Capitão Ambrósio e Nhô Ambrose – o Mito e a Realidade

sábado, 16 de abril de 2016
Ao ler, por mero acaso, uma declaração de uma conceituada personalidade da cultura cabo-verdiana, onde apontava como seu herói de infância o “capitão Ambrósio” (sic), fiquei perplexo e algo desapontado com a pessoa pela expressão utilizada. Trata-se de alguém que domina muitíssimo bem o verbo e de quem não esperava uma tão flagrante e inoportuna imprecisão. É que “capitão Ambrósio” é uma genial criação de Gabriel Mariano de 1956, altura em que ele – autor da declaração – já não era propriamente um adolescente e muito menos criança. Estaria a referir-se a Nhô Ambrose personagem que protagonizou a manifestação de 1934 e que acabaria por ser deportado para Angola? Fiquei curioso com o jogo de datas, porque sempre pensei que Ambrósio teria falecido antes de 1940.

E daí, perguntei a minha cara-metade – no meu caso específico acho mais assertiva a expressão inglesa better-half – se sabia em que datas teria regressado a Cabo Verde e falecido o Ambrósio, o nhô Ambrose, que tinha servido de referência a Gabriel Mariano para o magnífico poema “Capitão Ambrósio”, ao que ela me respondeu que não fazia a mínima ideia, enquanto me recomendava a consulta a Michel Laban. Disse-lhe, prontamente, que tanto quanto me lembrava – li-o há mais de 20 anos – não me parecia que Michel Laban pudesse responder à pergunta que lhe havia feito. Contudo, eu não tinha nada a perder em revisitar Michel Laban e o seu “CABO VERDE – Encontro com escritores”, uma edição em 2 + 1 volumes da Fundação Eng. António de Almeida.

Estava absolutamente convencido que a separação entre o mito e a realidade, entre “Capitão Ambrósio” e “Nhô Ambrose”, estava já perfeitamente esclarecida. Mas, também estava (ou ainda estou) igualmente convencido de que eram (ou são) necessárias atitudes pedagógicas no tratamento do assunto para não induzir os mais incautos, os menos informados, a uma ambiguidade que poderia (ou poderá) suscitar uma certa confusão entre a História e a ficção. Tanto mais que alguns, para se evidenciarem, até recorrem a “factos”, obviamente, urdidos – não será seguramente do caso em apreço – muito pouco honestos, na identificação e localização da personagem histórica dizendo ainda recordarem-se (imagine-se!...) do “mulato” Ambrósio.

Ao recorrer a Michel Laban e ao seu interessante “CABO VERDE – Encontro com Escritores” deparei-me com dois “encontros” – precisamente o primeiro e o último do seu I volume – onde o autor entrevista Baltasar Lopes e Gabriel Mariano, dois importantes protagonistas da saga do Mestre Ambrósio. Julgo pertinente transcrever no que ao assunto diz respeito, a posição clarificadora destas duas personalidades:

A esse propósito, disse Gabriel Mariano (G.M.) na entrevista concedida a Michel Laban (P.) em 1984 e transcrita no livro deste último (I volume págs. 296 a 378) a dado passo, o seguinte (pág. 352 a 354):

P. – Volto ao problema, humano também, do «Capitão Ambrósio», de 56. Pode contar o que sabia, nessa data, sobre o capitão Ambrósio?

G.M. – Posso. Em 56, quando eu… Antes de fazer o poema não tinha nenhum conhecimento do capitão Ambrósio. Do capitão, vírgula, do Ambrósio. Porque «capitão», eu é que lhe dei o posto de «capitão». Eu soube da história dessa sublevação popular em São Vicente, ocorrida em 1934, e dirigida, ao que suponho por nhô Ambrose – Ambrósio – , já em Lisboa, como estudante. Essa sublevação surgiu em 1934, eu tinha seis anos de idade; e eu soube disso em 53, 54, já adulto. Eu soube através de conterrâneos, infelizmente já mortos: Cristóvão Santos e o Carlos Alberto Leite. Eles é que me contaram a história desse levantamento popular que houve em São Vicente. Contaram-me a história, normalmente, em conversa de café: «Aconteceu isso…» E se eu fiz o poema, posteriormente, é porque a história me impressionou muito. Na altura o que senti foi raiva e orgulho. A história impressionou-me. E, bom, a partir daí, conhecendo a história de Ambrósio, e já com uma compreensão crítica dos fenómenos sociais, económicos, coloniais, etc. já, aí, eu pude distinguir, ao fazer o poema, as coisas. Enfim, o Ambrósio aparece no poema como um líder popular que, massacrado pela fome e pelas circunstâncias, lidera, conduz o povo à rebelião contra a ordem estabelecida, e deixa uma mensagem de liberdade. E no meu poema eu não condeno o Ambrósio – um juiz condená-lo-ia, um julgador, não… aliás, ele foi condenado. Foi condenado à prisão e cumpriu a pena em Angola. Quer dizer: um juiz condená-lo-ia, mas eu não o condeno… Nem sequer o absolvo, pois seria um insulto pôr-se o problema de absolver o Ambrósio. Eu limito-me a enaltecer o papel que o Ambrósio desempenhou nesta sublevação. E eu soube, para concluir, soube da história do Ambrósio, aqui em Portugal, porque, em Caboverde, nunca ouvi falar do Ambrósio… Nem aos mais velhos, nem aos mais novos. Eu sabia que tinha havido uma barulheira qualquer (isso contava-se) em São Vicente, e não só, em anos de crise. Agora, não sabia que isto teria ou não que ver com Ambrósio, porque nunca ninguém me falou do Ambrósio. Eu fiz o poema motivado pela história dessa movimentação e dei-lhe o título de «Capitão», que ele não tinha, nunca ninguém o tratou por capitão. «Capitão», eu é que lhe dei o posto de «capitão Ambrósio».

Era alto, moreno, tipo mulato, de olhos verdes. Por isso é que eu digo no poema… «corpo mulato e verde…» Dizem que ele fazia este comentário: «O bom português é como o bom bacalhau: só vem para o Ultramar de cem em cem anos e quando calha!» Mas que ele devia ter sido um homem de uma personalidade muito forte, devia ter sido… Porque aquilo que ainda me contam hoje, as pessoas mais antigas, dessa rebelião – Ambrósio à frente, com a bandeirinha preta, e quando a tropa saiu cá para fora para os reprimir, tiros… A coragem dele… A coragem ao ser, depois, preso e interrogado lá pelo militar português que foi encarregado de fazer o inquérito… A resposta que ele deu: «O bom português é como o bom bacalhau: só vem para o Ultramar de cem em cem anos e quando calha!» Isso, ao que me contaram, dito cara a cara, à sua excelência o oficial militar português que o interrogava… Isso revela uma personalidade muito forte, muito valente, muito corajosa… Nhô Ambrose, você sabe quem é que esteve envolvido no levantamento popular? Os intelectuais do grupo “Claridade”, designadamente Baltasar Lopes. Envolvidos como força propulsora. (Fim de transcrição; o “bold” e o itálico são meus):

Vejamos agora o que diz Baltasar Lopes (B.L.) sobre a mesma personagem (págs. 29 a 33) na entrevista (págs. 11 a 55 ), esta de 1985, também conduzida por Michel Laban (P.) com os mesmos propósitos e transcrita no mesmo livro:

P. – Mestre Ambrósio?

B.L. – O Mestre Ambrósio é um mito. É uma incertidão histórica… Eu vou-lhe contar o que é: eu morava na Praça Nova e um grande amigo meu, que está hoje na América do Norte, Jonas Wahnon, quase todos os dias ia lá, e ele andava – como todos nós – preocupadíssimo com a miséria que grassava em São Vicente: fome, fome, fome… Ele vivia perto do Monte Sossego, chegava lá e dizia: « – Olha para aquilo, nem o fumo se vê a sair! Miséria, miséria…» E a certa altura, não me lembro qual de nós se lembrou que nós precisávamos fazer qualquer coisa; mas para isso precisávamos dum pretexto, e um pretexto bom… E o óptimo seria se o povo saísse à rua numa manifestação. Mas é claro, saísse e depois voltasse imediatamente porque já sabíamos que quando o povo sai excede-se… E através dessas conversas, nós decidimos pensar quem seria que em São Vicente, com bastante ascendente sobre o povo, seria capaz de provocar uma saída do povo, um levante… E lá chegámos ao Mestre Ambrósio que era um indivíduo que eu já conhecia – conheci-o acidentalmente. – O Mestre Ambrósio era um indivíduo alto, muito alto, muito branco de olhos azuis, parecia um profeta…

P. – Branco?

B.L.Muito branco mesmo, muito alto. Era um ariano autêntico… Olhos claros… salvo erro azuis –, muito claros. Então com atitudes proféticas. Lembro-me perfeitamente quando o meu amigo Velosa foi julgado por uma prepotência do juiz que cá estava – depois do julgamento foi absolvido e nós todos fomos levá-lo a casa. Encontramos já lá o Mestre Ambrósio à porta e ele saudou a chegada do grupo com a mão levantada e exclamando: «E viva a consciência pública. A verdade é alta e a mentira é funda!»

Pensamos então no Mestre Ambrósio, que seria talvez o indivíduo…

P. - Mestre, porquê?

B.L. – Ele era carpinteiro, salvo erro. Mestre de ofício. Agora não sei se fui eu ou se foi…; o grupo pretendia – não é o grupo “Claridade”, o grupo…

P. - Que grupo então?

B.L. – Este grupinho, eu, Manuel Lopes, o Velosa e o Jonas Wahnon. Nós pretendíamos pura e simplesmente um pretexto para chamar atenção do Governo e falámos então ao Mestre Ambrósio que saísse com o Povo mas que imediatamente visse se o povo recolhia para evitar distúrbios. E assim se fez, ele saiu, mas pelo sim pelo não, promovemos – neste caso, neste ponto intervém também um cidadão, o senhor Augusto Miranda, um velho advogado provisionário que estava sempre onde houvesse uma causa digna a ser defendida, lá estava ele. Morreu, coitado, desemparado em Lisboa, no Hospital do Ultramar. Nós organizamos então um grupo e fomos àquela pracinha que fica em frente da Câmara, havia lá um coreto, fizemos um comício. Eu falei, falou o senhor Miranda e dissemos então ao povo que nós estávamos a par da situação e que íamo-nos pôr em contacto com o Governo para resolver a situação do povo, arranjar trabalho, melhorar aquela situação. Pedimos então ao povo que fosse para casa serenamente, sossegadamente, ordeiramente, que nós íamos tratar do assunto. Eles dispersaram, foram para casa e nós fomos à Associação Comercial e mandámos um telegrama ao Governo em que em nome da Associação Comercial… Já tínhamos mobilizado a Associação Comercial – eu até fazia parte da Associação Comercial, entrava lá, porque o meu pai era comerciante também, ele era proprietário, mas, de quando em quando, lá fazia o seu comércio. De maneira que – a Associação Comercial era uma força viva – para poder entrar nessa força viva, a minha militância levou-me a pedir ao meu pai que se inscrevesse na Associação Comercial; ele delegou-me a mim plenos poderes para o poder representar. De maneira que eu tinha lá… era a minha casa também. E, depois do comício, fomos a Associação, expusemos o assunto, que ia a Associação, ia mandar telegrama: redigimos o telegrama, dizíamos a situação do povo, etc., etc., pedimos providências imediatas porque a situação do povo era intolerável e perigosa e que a Associação se solidarizava com o povo. Sabe qual foi a reacção do Governo? Em vez de tomar providências, agravou com um imposto “ad valorem” de 3% todas as mercadorias que o comércio de São Vicente importasse porque ele é que se tinha solidarizado com o povo nos distúrbios do dia tal! A nossa militância foi isso… O governante que cá estava era um estupor, imagine! A única coisa que ele sabia era fazer discursos e beber whisky, nisso era “imbattable”…

P. – E o Mestre Ambrósio?

B.L. – E o Mestre Ambrósio depois foi julgado…

P. – Mas incidentes, não houve? Houve essa reunião na praça da Câmara, depois dispersaram… Não houve desfile com o Mestre Ambrósio?

B.L. – Antes, isso foi antes. Mas o desfile não foi mais do que a caminhada desde os lados da Salina. Porque o grosso da população trabalhadora é da parte sul da cidade…

P. – Da aldeia da Craca?

B.L. – É um dos bairros, sim. É na vinda para a cidade, propriamente.

P. – Foi então que houve esse desfile… E essa bandeira, viu-a ou foi uma coisa imaginada?

B.L. – Não, houve bandeira, a «bandeira negra da fome»… O Mestre Ambrósio, a imagem que se tem do Mestre Ambrósio é a imagem criada pelo poema de Gabriel Mariano: o Mestre foi julgado, foi deportado para Angola e nesta altura nós resolvemos… discutimos se devíamos ou não apresentarmo-nos para seguirmos o destino do Mestre Ambrósio já que nós tínhamos, ainda que indirectamente, responsabilidade do que se tinha passado. Se não estou em erro, o Manuel Velosa é que disse: «Assim é abrir caminho para… é deixar o campo da batalha sem guerreiros. Porque se nós vamos, quem fica cá para qualquer coisa de que o povo precise?» De maneira que lá foi…

P. – Até foi dito que havia, inscrita na bandeira, a palavra fome…

B.L. – Sim, fome.

P. – Lembra-se de tê-la visto?

B.L. – Sim, sim.

P. - E o «Capitão» depois voltou?

B.L. – Voltou, veio morrer em Cabo Verde.

(Fim da transcrição; o itálico e o “bold” são meus)

Das duas entrevistas fica claro que Ambrósio, Nhô Ambrose, sendo um herói, era na verdade um “soldado desconhecido”, como muitos outros que, na mesma ocasião, encabeçaram o assalto aos armazéns da Alfândega do Mindelo em São Vicente uma vez que só cerca de 20 anos após os acontecimentos que o marcaram, ouviu Gabriel Mariano, em absoluto, falar dele em Lisboa numa normal conversa de café. E sabe-se que quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto... E vai daí, o poeta Gabriel Mariano, idealizou-o e transformou-o num “mulato de olhos verdes”, num heróico e garboso “capitão” que marcha à frente das suas “tropas”. Num herói nacional. Ele «capitão Ambrósio» é uma obra toda sua… Aliás, a distinção entre Nhô Ambrose e Capitão Ambrósio é nítida. Inclusive fisicamente. Enquanto Nhô Ambrose é de tez branca e olhos azuis, Capitão Ambrósio é mulato e de olhos verdes. É uma criação poética que imortalizou Nhô Ambrose.

É preciso separar a ficção da História, o mito da realidade.
A.Ferreira

Obs. De acordo com a nota de Michel Laban, na entrevista a Gabriel Mariano, “Cabo Verde” foi escrito “Caboverde” por indicação do entrevistado.

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