Regresso em Noite Mágica

domingo, 12 de março de 2023

  

O poema que se segue da autoria de Adriano Miranda Lima, chegou-nos em formato “Power-Point” com música de Bau que terá também inspirado o poeta ao ouvi-la ao vivo, como aliás, explica na Nota de rodapé.

Infelizmente, este “Blog” não está capacitado com a ferramenta adequada para passar o poema tal como veio no original.

Lamentamos!

Mesmo assim, e porque achámos bela a composição poética de A. Miranda Lima, queremos partilhá-la com o leitor.

Fica a promessa de que se viermos a conseguir publicá-la no original - com música - voltará a ser aqui colocada.

A noite é de um silêncio puro e irreal

como o prenúncio de uma tormenta.

Não sopra a mais leve brisa

e uma cálida mansidão invade os espectros

dos navios fundeados na baía do porto.

 

Até as ondas calaram o seu murmúrio

quando subitamente o vulto místico da Eurídice

liberta das grades do seu submundo

desce às ruas desertas de vida

e bate ansiosamente às portas

à procura do seu amado Orfeu.

 

Surpreso ensaio o verbo do meu espanto

e a minha voz soa como o vagido

da flor que se abre à luz da vida.

Nisto um som de violino surge do nada

e invade a noite morna derramando

a convulsão das suas cordas

ora em suave gemido de uma alma sofrida

ora em súplica de coração ardente.

 

Submissa a noite explode de emoção

e o violino ignora o meu grito:

– Ó alma virtuosa espera um instante

deixa-me subir ao terraço da infância

para regressar ao velho lençol de linho

onde me enrolei a ouvir o vento

e a namorar o rosto terno da lua!

– Quero aliviar a mágoa

pelos silêncios a que não dei voz

e pelas vozes que não me responderam!

 

Mas a serenata prossegue ininterrupta

inundando-me com o seu feitiço

e o meu ser voa silenciosamente

e entra na espessura da noite

 como um pirilampo vogando ao acaso

à descoberta do infinito.

 

Até que o violino suspende o meu devaneio

e imploro com veemência:

– Ó mágico violino, bálsamo da vida,

poupa as tuas lágrimas e as tuas penas

que a saudade é já só um eco remoto

a morrer nas tuas finas cordas!

Penitencio-me do pecado da longa ausência

e rendo-me à plangência da tua melodia!

 

Contudo o violino não me ouve

porque o seu mundo é incorpóreo

e o seu destino é apenas conquistar corações.

Entretanto raia a aurora e tudo se extingue

em misteriosa alternação de sombra e luz

com a música já em dolentes acordes de despedida.

 

Acabei de viajar à origem das coisas

encantado por uma música sublime

que me levou aos confins da memória.

Vou partir. Irei aos primeiros alvores do dia

com mágoa de não ter decifrado

o mistério da noite enfeitiçada.

 

Adriano Miranda Lima

Música “Regresso”, interpretada por Rufino Almeida (Bau)

  

Nota explicativa:

Foi em 2003 que ouvi pela primeira vez e ao vivo a composição “Regresso”, quando o seu autor, o músico Rufino Almeida, mais conhecido por Bau, actuava na esplanada de um hotel na cidade portuária do Mindelo. Tanto apreciei a melodia que ela me inspirou uma reacção poética, tocado pela graça do tema musical, de extraordinária beleza e soberba interpretação.  Ela fez-me viajar aos confins da minha memória mais longínqua, onde reside uma saudade em que se amalgamam porções de mistério, remorso e encantamento. Reduzi o tempo a uma única dimensão, prendendo-o ao momento presente e acrescentando-lhe o que permanecia incólume no meu imaginário, refúgio de sonhos e ideais. Os anacronismos sentimentais que alimentam a nossa saudade podem assumir as formas mais variadas, mas o seu fundo motivacional é o mesmo. O problema é que a própria idealização desconstrói os nossos mitos quando nos confrontamos com a realidade nua e crua. E é por isso que raramente encontramos o que idealizamos.

2 comentários:

Ondina Ferreira disse...

Bela composição poética «Regresso» que se deixou impregnar-se da e na melodia homónima. Digo "composição" porque a melodia escutada é parte dela.
A melodia, a noite na cidade do Mindelo, foram de tal forma sugestivas, inspiradoras e encantatórias que, conduziram o sujeito poético a um regresso mágico ao passado, à infância e fizeram com que o poeta pedisse que o deixassem "subir ao terraço da infância // para regressar ao velho lençol de linho (...)".
Mas mais, dentro dessa magia a que o poeta esteve sujeito naquele virtuoso momento musical, fá-lo soltar uma confissão:
"- Quero aliviar a mágoa/ pelos silêncios a que não dei voz / e pelas vozes que não me responderam"
Para finalmente, confessar (e atente-se nos versos finais do poema:
“Penitencio-me do pecado da longa ausência / e rendo-me à plangência da tua melodia!”
Daí que se encontre - na minha opinião - no poema dois eixos fundamentais, provocados pela magia da melodia; o primeiro será o sentimento poético de pertença “ao lugar,” onde a escutou, tal como vem no verso: “Eurídice (…) à procura do seu amado Orfeu.”
O segundo eixo é o de uma certa e inacabada “revelação,” que quase permitiu ao sujeito poético, desvendar o mistério profundo que há muito trazia e traz recolhido dentro de si, como se de uma intimidade sagrada se tratasse.
Para melhor o entender, reveja os versos da última estrofe do poema.

Adriano Lima disse...

Ondina, agradeço, muito sensibilizado, o seu comentário e interpretação do sentimento impregnado no texto que escrevi e em que, sem querer entrar no domínio dos poetas, procurei encontrar o discurso mais adequado à expressão da minha saudade pela longa ausência da terra natal.
Não encontro palavras para enaltecer a eloquência do seu comentário, senão um MUITO OBRIGADO.

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