Será que burro velho não aprende línguas?

quinta-feira, 16 de março de 2023

É nossa opinião que o tema tratado no texto tem interesse para o Leitor do Coral -Vermelho - com a devida vénia à sua autora - tomámos a liberdade de aqui o transcrever. 

 

Margarita Correia

Na maioria das vezes, os animais referidos nos provérbios constituem personificações, i.e., representam humanos com determinados comportamentos e características, e o provérbio expressa um julgamento (moral, ético, social…) sobre eles - e.g. "cão que ladra não morde", "a curiosidade matou o gato", "a bezerrinha mansa mama a sua e a alheia", "grão a grão, enche a galinha o papo". Não compreendo, por isso, iniciativas como a de pretender modificar os provérbios populares para eliminar linguagem ofensiva para os animais - como se os animais se ofendessem e como se não representassem, precisamente, os humanos!

Um dos provérbios que mais me ocorre e sobre o qual mais perguntas me fazem é "burro velho não aprende línguas". A concepção por trás do provérbio é a de que uma pessoa (o burro) a partir de certa idade (velho) não será capaz de aprender línguas, exceptuado a materna, que adquirimos sem esforço, na infância. O provérbio expressa um facto incontestável: o de que as crianças, intuitiva e rapidamente, aprendem as línguas com as quais estiverem em contacto, sem esforço, enquanto os adultos não conseguem fazê-lo. A Psicologia, a Neurologia e a Linguística explicam-no com base no fenómeno conhecido como neuro plasticidade, plasticidade neuronal ou cerebral.

Plasticidade é sinónimo de maleabilidade e denomina a capacidade de um corpo se deformar sem romper ou quebrar, i.e. a de uma entidade se adaptar ao meio e às circunstâncias. É característica de todos os seres vivos. A plasticidade neuronal diz respeito à capacidade do sistema nervoso central, cérebro incluído, de mudar ou se adaptar, do ponto de vista estrutural e/ou funcional, ao longo desenvolvimento e sempre que o sujeito é exposto a experiências ou estímulos novos.

Aprendizagem pode ser entendida como plasticidade e o cérebro humano é o que apresenta maior capacidade de adquirir conhecimento, explícita e implicitamente, de se adaptar. A plasticidade do cérebro em desenvolvimento é muito grande (só assim se explica tudo o que uma criança aprende nos primeiros anos de vida) e vai diminuindo com a maturidade, embora não desapareça. O cérebro em desenvolvimento encontra-se mais apto a adquirir conhecimento procedimental (relativo ao "como" executar tarefas ou exercícios), mas a aquisição de conhecimento declarativo, explícito, mantém-se ao longo da vida, havendo operações cognitivas que só conseguimos realizar com a maturidade intelectual (e.g. raciocinar sobre entidades e processos abstractos).

A aquisição de uma língua por uma criança realiza-se sobretudo com base em conhecimento procedimental - ela vai intuitivamente construindo o seu conhecimento sobre como funciona a língua, a sua gramática, e aperfeiçoa-o em resposta às produções linguísticas que recebe. A grande plasticidade cerebral das crianças permite, assim, entender a sua capacidade para lidar com as línguas ou, dito proverbialmente, explica porque "burro novo aprende bem línguas."

E o que acontece com os "burros velhos"? Estes também aprendem línguas, seguramente, e até podem atingir elevados níveis de proficiência, dependendo da sua motivação, da qualidade e quantidade de input a que forem expostos e das estratégias metacognitivas (conscientes) de aprendizagem que adoptarem. Aprenderão é de forma muito diferente: com recurso a conhecimento explícito sobre como funciona a língua e com maior esforço e perseverança do que as crianças. Em suma, burro velho aprende línguas, com certeza, mas com tenacidade, como "água mole em pedra dura".


Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

 

 

2 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Foi-me importante a leitura deste artigo. Embora não ignorasse o conceito de plasticidade neuronal e a sua relação com a aprendizagem de línguas, fiquei mais bem informado. Tive a experiência pessoal de ensinar as regras graamaticais da língua inglesa à minha neta quando ela estava nos primeiros anos do ensino secundário. Mais tarde, com a continuação e expansão da aprendizagem dessa língua com os seus professores, nomeadamente com a sua mãe, ela explodiu na aquisição das competências e hoje domina completamente o inglês, tanto na fala como na escrita, como se o tivesse aprendido desde o berço. Eu é que fiquei no mesmo patamar em que me encontrava quando lhe ensinava o vocabulário e as regras gramaticais elementares. Foi a plasticidade que funcionou em pleno quando a sua mente estava ainda a desabrochar-se. Eu, por mais que me esforce, nunca atingirei o nível dela, nem por sombras.
E ao abordar este conceito, pergunto se não será por esta realidade - a da plasticidade - que a directora determinou que no espaço físico da Esola Portuguesa não se fale o crioulo. Não será para maximizar o efeito da plasticidade enquanto a têm disponível e em maior plenitude. Eu é que se quiser melhorar a minha competência no inglês terei de fazer uso de toda a minha "perseverança", o que, confesso, faço dentro das possibilidades.

Adriano Miranda Lima disse...

Por lapso, não pus o ponto de interrogação no final do penúltimo período do meu comentário. Dá para ver que a sua ausência altera o significado da frase. Peço desculpas.
Adriano Lima

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