quinta-feira, 4 de maio de 2023

Creio tratar-se de um assunto com actualidade, este que vem vazado no Artigo de Nuno Pacheco, a quem, com a devida vénia, peço permissão para aqui o publicar.

Oportunamente divulgado, isto é, na véspera de mais uma celebração do Dia Mundial da Língua Portuguesa, 5 de Maio.

As questões apresentadas no texto, tal como ao autor, também vêm preocupando os falantes da Língua portuguesa, que dela cuidam e a prezam sempre. Por saber que os Leitores do Coral-Vermelho estão incluídos entre os tais falantes aqui referidos, transcreve-se a seguir o referido texto.

 

A língua, a ortografia, voluntarismos e bajulações

Por: Nuno Pacheco – Jornalista

Amanhã, 5 de Maio, celebra-se mais um Dia Mundial da Língua Portuguesa e nem vale a pena sublinhar o que aí vem de euforias, quanto a “oportunidades” e “internacionalizações”, como se a língua portuguesa não fosse já uma língua internacional “desde pelo menos o fim da Idade Média […], sem problemas de difusão ou promoção independentemente da forma como se escreva”, como acertadamente escreveu António Emiliano em 2008. Mas enfim, os políticos têm de se entreter com alguma coisa — só é pena que a língua se inclua nessa “cobiçada” lista. Este ano, nos festejos anunciados, há uma novidade: a sua celebração em Olivença, em aliança entre o município local, espanhol (o Ayuntamiento de Olivenza) e a UCCLA, nela participando escritores, professores, o alcaide de Olivença e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Dado o velho diferendo ali existente em matéria de soberania, trata-se de um oásis amistoso e digno de nota. Abre, claro, com uma “receção” aos participantes, que seria “recepção” se fosse no Brasil ou “recepción” caso ocorresse em Madrid. Malhas que o nosso acordismo tece. Por falar em acordismo, quase a coincidir com mais um Dia da Língua foi divulgado um apelo ao Presidente da República para que “seja reconhecido e revertido o gravíssimo erro cometido e por via do qual o Estado Português adoptou o Acordo Ortográfico, anulando-o”. Com um total de 169 subscritores (continuando, segundo os promotores, a recolha de mais assinaturas, que serão enviadas igualmente para o Palácio de Belém), tal apelo vem somar-se a iniciativas com idêntico fim, sob a forma de manifestos, abaixo-assinados ou iniciativas legislativas, às quais a classe política tem reagido, na sua grande maioria, com desinteresse ou mesmo desprezo. O que não deve desmotivar quem nelas se empenha, pelo contrário; desistir, aqui, não será nunca o lema. Daí que tal apelo mereça também boa nota, face ao aviltamento ortográfico reinante. A propósito da língua portuguesa, uma das discussões recorrentes é a do abuso do inglês. Um interessante artigo assinado por Carl Eric Johnson (“Porque é tão difícil dominar a língua portuguesa?”, PÚBLICO, 21 de Abril) atribuía “a dificuldade de muitas pessoas em dominarem o básico da língua portuguesa”, não só a complicações gramaticais e fonéticas, mas ao facto de haver uma “abundância de portugueses que falam bem inglês” e à “prevalência de informação apresentada em inglês”. Muitos encontros entre portugueses e estrangeiros, escreve Carl, “iniciam-se com o português a falar inglês, sem dar ao visitante a oportunidade de provar a sua capacidade de falar na língua da terra”. Se é duvidoso que haja assim tantos portugueses a falar bem inglês (sublinhe-se o “bem”), já parece pacífico que o português, por desejo de mostrar simpatia ou simples voluntarismo, tenda a exprimir-se em qualquer língua que não a sua, até numa mistura macarrónica de várias, quando tem um estrangeiro pela frente. Pior do que isso, bem pior, é o abuso de termos ingleses nas mais diversas áreas, que leva a anúncios públicos com frases como “Net talks”, “Apoia a tua crew” ou “Boosted odds para a tua laife” (assim mesmo, com “ai”), além da verdadeira praga que são as brands, o background, os shares, as views, os likes, os smarts, os gamings e toda a panóplia de pretenso novo-riquismo linguístico que não é mais do que pobreza lexical disfarçada. Mas disto já se encarregou (e bem) o escritor Alexandre Borges no artigo “Erradicar o Português: ponto de situação” (Observador, 2021). Por fim, uma frase delirante, dita pelo primeiro-ministro português, António Costa, perante empresários brasileiros num encontro onde participou Lula da Silva: “O que temos mesmo pena é de não falarmos com o vosso sotaque.” Não se imagina tal frase dita por um brasileiro a um português. Ou um nortenho a um alentejano, um beirão a um algarvio, um inglês a um americano, um escocês a um londrino — e vice-versa, em todos os casos. Porque é mesmo pela diversidade de sotaques que se torna interessante o nosso intercâmbio linguístico, não por um qualquer aplainamento ou acto bajulatório disfarçado de admiração. Foi esse erro, o de se achar que havia uma “língua portuguesa” igual para todos, quando já era saudavelmente diferente consoante as geografias, que conduziu ao desastre do Acordo Ortográfico de 1990, uma peça demonstrativa do pior que poderíamos juntar: a ambição política, a servidão académica e o desvario de um punhado de crentes que se julgaram “iluminados” para tal façanha. Se, por hipótese, alguém se virasse para um amigo e dissesse qualquer coisa como “o que tenho pena é de não usar um fato como o teu”, viam nisso sinal de amizade? Ou razão para desconfiar?

In: Público de 4/05/2023.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

O Nuno Pacheco tem-nos deliciado com artigos de muito valor e pertinência sobre esta questão do famigerado Acordo. Este é mais um e certamente outros mais haverá, a menos que quem de direito se compenetre definitivamente do grave erro cometido e decida a revogação por que tantos anseiam.
Se é certo que a responsabilidade pela grotesca decisão é unicamente da classe política, o que não é compreensível é que credenciados académicos se tenham prestado à criação do aborto que a maioria das cabeças pensantes não tardou a repudiar. Não me identificava ideologicamente com o Vasco Graça Moura, mas concordei e apoiei a incansável campanha a que ele meteu ombros para a revogação do Acordo.
Subscrevo a denúncia que o autor deste artigo faz ao uso tão abusivo como desnecessário de termos ingleses na comunicação. Pode compreender-se que isso aconteça em com pessoas comuns em momentos informais, mas é de todo inadmissível nas televisões e com pessoas com responsabilidade no plano académico e científico. Sim, é um novo-riquismo linguístico ridículo e completamente despropositado. E é uma traição à língua pátria, já que ela tem todos os recursos para qualquer comunicação. Por exemplo, tenho visto alguns "especialistas militares" a usar de vez em quando terminologia inglesa em comentários sobre a guerra na Ucrânia, mas sem justificação porque não há linguagem técnica na ciência militar, na estratégia e na geopolítica que não tenha o seu correspondente em
português. E mesmo que isso seja útil em
ambiente de cooperação internacional, não se justifica que
entre nós não utilizemos exclusivamente a nossa língua.

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