terça-feira, 19 de março de 2024

 

 

Comemora-se hoje, 19 de Março, o Dia do Pai. Daí o pretexto e o contexto do texto que se segue – com a devida vénia ao autor - do Prof. Marco Neves, dedicado ao pai e em que o autor nos explica as origens e as diferentes formas de se nomear “pai” ao redor do mundo. Muito interessante Sugiro ao leitor que atente nos diversos vocábulos que representam esta entidade tão importante para a família: o pai.

A todos os pais presentes na vida dos filhos, a minha homenagem.  

 

Volta ao mundo a bordo da palavra «pai»

Hoje ofereço uma viagem ao meu pai. Seria óptimo oferecer-lhe uma viagem mesmo a sério, mas como não é possível, partimos pelo mundo fora a bordo da palavra «pai».

MARCO NEVES

MAR 19


 

 

 

 

Do passado do português ao persa

Começamos, claro, no nosso «pai». A sua origem é conhecida — com muitas paragens pelo caminho, terá vindo do «pater» latino. Ora este também veio de outros tempos — os linguistas conseguiram mesmo reconstruir a forma «*phtḗr». Mas essa história já a contei aqui.

Avancemos pelo mar. Saímos de Lisboa, navegamos até ao Estreito de Gibraltar, entramos no Mediterrâneo.

À nossa esquerda, estendem-se terras onde «pai» é «padre» — ou também, começando ali na zona de Guardamar del Segura, «pare».

Do lado direito estão as costas de países onde a língua oficial é, entre outras, o árabe. Uma das formas da palavra «pai» é, em árabe, «ʾab» — mas também podemos dizer «bābā».

O nosso barco avança veloz — aportamos a Malta. Já por lá andámos noutras viagens desta página e sabemos, por isso, que o maltês é uma língua da família do árabe. No entanto, muito do vocabulário tem origem italiana. Neste caso, «pai» é «missier». Como? Então nada de «papa», «baba» ou outros que tais? Donde vem esta palavra? Não parece nem árabe nem latina. Vem de «misseri», uma palavra do siciliano antigo relacionada com o italiano «messere», que terá vindo do occitano «meser», palavra irmã do «monsieur» francês… Ou seja, o «missier» maltês é primo do «monsieur» francês — mas o significado é «pai»!

O nosso barco está com vontade de viajar. O meu pai e eu sentimos o sal na cara e olhamos em frente. Já se vê a Grécia! Em grego antigo, «pai» era um familiar «patḗr» («πατήρ»). Hoje em dia, a palavra é «patéras» («πατέρας»).

Passando pelas ilhas gregas como que pelos pingos da chuva, aportamos na Turquia — onde «pai» é «baba».

A viagem pela Anatólia é feita por terra. Teria muito que contar, claro, mas dar uma volta ao mundo em poucos minutos exige que avancemos. Passamos, sem grande dificuldade, a fronteira entre a Turquia e o Irão e ficamos a saber que, por lá, a palavra pode ser «bâbâ» — o que lembra o turco, é certo — mas é, antes de mais, «pedar». Ao contrário do turco, o persa é uma língua indo-europeia — este «pedar» está próximo do latino «pater», do grego «patḗr» ou do germânico «*fadēr» (os germânicos substituíram o «p» pelo «f» em muitíssimas palavras).

Do persa ao futuro do português

O meu pai e eu estamos a conversar sobre estas velhas palavras num café de Bandar-Abbas, que os comerciantes portugueses também conheciam como Cambarão. Estamos encostados ao Estreito de Ormuz. Fazemo-nos ao mar. Já não temos muito tempo…

Atravessamos todo o Oceano Índico e aportamos na Indonésia. Neste arquipélago, encontramos muitas línguas. A língua oficial é o indonésio, estreitamente relacionado com o malaio (o indonésio e o malaio são, no fundo, duas normas da mesma língua). Por aqui, «pai» é «bapa». O curioso é perceber a forma do plural: «bapa-bapa». Parece lógico, não parece?

Avançamos — que ainda nos falta mais de meio mundo e o artigo tem de acabar! Atravessamos o Pacífico até ao Havai, onde encontramos — para lá do mais conhecido «father» — a forma «makua kāne», que tanto dá para «pai» como para «tio»… Se dermos mais um salto e chegarmos ao continente americano sem sair dos EUA (a viagem faz-se agora de avião), ficamos a saber que em navajo a palavra pai é «azhéʼé».

Esta palavra faz parte da frase «shizhéʼé tʼáá ákwíí jį́ naalnish», que significa «o meu pai trabalha todos os dias» (encontrei-a no Wikcionário). É uma frase bem verdadeira, pelo menos no que toca ao meu pai — mas tem um problema: onde está a palavra «azhéʼé»? «Naalnish» é o verbo «trabalhar». «Tʼáá ákwíí jį́» significa «todos os dias». Sobra «shizhéʼé» — que é, de facto, a forma do possessivo da primeira pessoa singular de «azhéʼé». Ou seja, «shizhéʼé» é «o meu pai». É estranho, não é? Uma palavra que se flexiona no início? Ora, basta imaginar o português daqui a uns 2000 anos, depois de muita pancada fonética. Nessa língua do futuro, tão distante de nós como o latim, não é impossível que as formas da palavra «pai» sejam algo como «mpai», «tepai», «sepai» («o meu pai», «o teu pai», «o seu pai»). Sabe-se lá!…

A volta ao mundo ainda não acabou. Saímos do porto de Nova Orleães e aportamos em Curaçau, onde descobrimos que «pai» é «tata» em papiamento (a língua de que falámos por aqui há uns tempos).

Por fim, o nosso barco chega a Lisboa vindo de ocidente, depois de atravessar o velho oceano. É então que ouvimos de novo a palavra que nos fez partir nesta volta ao mundo: «pai».

Feliz Dia do Pai a todos os pais — mas (espero que compreendam) em especial ao meu pai…

 

 Marco Neves

19/03/2024

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3 comentários:

Adriano Miranda Lima disse...

Foi um privilégio embarcar nesta viagem com o pai e ir descobrindo as metamorfoses linguísticas que ele ia sofrendo ao longo da geografia do planeta e sem deixar de ser quem é. Agradeço a viagem a este blogue porque não tive de pagar bilhete e cheguei ao fim mais rico do que quando embarquei. Parabéns ao avisado capitão Marco Neves pela sua refinada arte de navegação entre as línguas
do mundo.
No dia do pai, mal acordei de manhã estava a receber por telefone os parabéns das minhas duas filhas.
E nesse dia veio-me à memória

Adriano Miranda Lima disse...

Foi um privilégio ter embarcado nesta viagem com o pai, que tenho de agradecer a este blogue porque não tive necessidade de comprar bilhete. Felicito o capitão Marco Neves pela sua refinada arte de navegação entre as línguas do mundo. Permitiu-nos a magia de assistir à facilidade com que o pai se metamorfoseia ao longo da geografia do planeta, sem deixar de ser quem é. Cheguei ao fim da viagem mais rico do que quando embarquei.
No dia do pai, mal acordei recebi por telefone os parabéns das minhas filhas e nesse momento senti pena de quem não é pai. Mas deu-me também para recordar a madrugada em que o meu pai me levou ao colo ao hospital. Tinha 6 anos e acordei com violentas tosses e febre alta, pelo que o meu pai, sem hesitar, fez o que achou prudente. Como eu ia com a cabeça encostada ao seu ombro, ficou-me para sempre entranhada na memória o cheiro da brilhantina com que ele se penteava. Não fosse este episódio, não o recordaria o tempo fora pelo cheiro da brilhantina que usava.

Adriano Miranda Lima disse...

Esqueci-me de esclarecer que fiquei internado no hospital porque me foi diagnosticada uma pneumonia. Felizmente que já havia penicilina e o tempo de internamento foi relativamente breve.

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