Há vidas que sem serem propriamente heróicas, merecem ser contadas. Se não no todo, pelo menos parte dela; pois que contém episódios interessantes e ao mesmo tempo reveladores do carácter e da forma de estar na vida da pessoa, não só consigo própria, mas também com os outros.
Assim foi e tem sido a vida da minha amiga Firmina, quem nos verdes anos, emigrou para a Itália, país onde permaneceu durante mais de três décadas.
Hoje ela considera a língua de Dante e a Itália como sua língua e sua segunda terra.
Aí trabalhou como empregada doméstica continuadamente até à reforma numa casa de família – onde ela viu crescer e como acrescenta: “ajudou a criar” os dois filhos do casal – que com ela manteve uma relação amistosa, de tal modo que após o regresso definitivo a Cabo Verde a convidam de dois em dois anos para passar um mês de Verão com eles e retribuem nos intervalos, vindo eles até Cabo Verde visitá-la. De modo que mutuamente as relações são já na actualidade, quase familiares.
Conheço alguns episódios da vida dela, pois que ela mos contou, numa aproximação de amizade já que Firmina e eu frequentamos a mesma paróquia.
Contou-me ela que em criança frequentou uma instituição dirigida por Irmãs religiosas em Santa Catarina, interior da ilha de Santiago. Aí fez a escolarização básica e aprendeu os lavores e a culinária.
Em meados dos anos 60 do século XX, emigrou para Milão com contrato feito com os patrões, os únicos que teve até deixar definitivamente a Itália.
De entre historietas e factos interessantes acontecidos durante a estada no país de acolhimento, reporto um devidamente autorizada para tal fazer pois, longe de mim querer aqui imprimir qualquer sentimento negativo em relação a uma vida laboriosa e honesta como foi e é a da minha amiga Firmina que tanto a orgulha! E isso, na minha opinião, vinda de alguém que me parece ser portadora de uma modéstia e de uma generosidade naturais, sem artifícios.
Recém chegada a Milão, tratou de frequentar um curso nocturno para aprender italiano o que aconteceu com sucesso.
Levava na sua “bagagem” ética, valores que lhe recomendavam que devia cumprir bem as suas obrigações, sem nunca esquecer os seus direitos. Segundo ela, guardou isto como lema que a guiou ao longo dos anos que esteve no estrangeiro.
Ora bem, havia em Milão à época, uma significativa comunidade imigrada, jovem feminina cabo-verdiana (sobretudo oriunda das ilhas de Barlavento) – que tal como a Firmina – era maioritariamente empregada doméstica. Normalmente quase todas se encontravam aos Domingos em locais habituais o que naturalmente acabou por criar laços de forte solidariedade, de amizade entre patrícias que aí se conheceram.
Algumas consideravam-se exploradas pelos patrões que não lhes pagavam o ordenado estipulado no contrato. E mais, até chegavam a reter-lhes os documentos tais como o passaporte e demais papéis para que elas não pudessem reclamar.
Aqui entra a nossa Firmina, que cumpridora das suas obrigações, mas igualmente ciosa dos seus direitos e mais instruída do que a maioria das colegas; transformava-se em perfeita “sindicalista” e numa persistente e acérrima defensora dos direitos das colegas prejudicadas.
Segundo ela, várias vezes foi bater à porta da casa, onde trabalhava a colega mal paga e pedir satisfações aos patrões da patrícia, informando-os de que eles não estavam a cumprir com o que a lei italiana que estipulava em relação ao montante mensal devido. Contou-me que fez isso várias vezes e em algumas delas, foi chamada a polícia que chegou a levá-las (a ela e à colega que defendia) para a esquadra sendo queixosas as patroas. Mas a Firmina que se expressava bem em italiano fazia-se entender muito bem e relatava para o agente policial que ela fora em defesa de uma cidadã estrangeira cujos patrões, não estavam a cumprir com o que assinaram em documento. Acabava quase sempre por ganhar a causa e uma amiga devotada em cada colega que assim defendia.
Fazia isso de forma generosa e arrojada, pois que não devia ser nada fácil a uma empregada doméstica, estrangeira, imigrada e naquela época, ter a ousadia de confrontar patrões da forma como ela o fazia. Alguns chegaram a proibi-la de se abeirar da porta da casa deles para acompanhar a colega que aí trabalhava.
Com tantas intervenções a favor de colegas de trabalho, a minha amiga Firmina ganhou experiência e sabedoria nessa matéria que no fim se tornou conhecida não só dos serviços da emigração, como também dos da segurança social da cidade que já quase a consideravam como uma sindicalista “vera” tal era o empenho com que tratava os assuntos que diziam respeito às cabo-verdianas empregadas domésticas em Milão.
Pois é, tal como disse no início deste escrito há vidas que sem serem heróicas no sentido clássico do termo merecem – com igual mérito – serem reconhecidas como tal.
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