Acabei
recentemente a leitura do livro «Os Anos» no original, «Les Années»x1
da escritora francesa, citada no título e Prémio Nobel de Literatura, 2022.
Pois
bem, Annie Ernaux, é considerada, nos dias que correm, como uma das vozes mais abalizadas
no que toca à escrita literária de cariz autobiográfico, fundida numa
articulação que diria, simbiótica e soberba com a História e a sociologia.
Com
efeito, a autora, de «Os Anos», configura toda a narrativa num registo que é a
um tempo, autobiográfico e histórico, o que permite que o leitor perceba e
mesmo, que adira (neste último caso, se o leitor pertencer à mesma geração, ou à
mesma década de nascimento da escritora, o que é o meu caso) tal é o modo como
ela entrelaça os dois campos da sua escrita.
Escritora
nascida em 1940 em Lillebonne, na Normandia, França.
Ora bem,
no livro perpassa ao longo das suas páginas, uma narração movimentada e pormenorizadamente
descritiva das diferentes etapas da vida da protagonista, alter ego da
autora; as suas vivências na escola, em família, entre amigas com quem partilha os segredos; entre os grupos juvenis que se vão formando,
no Liceu e, na juventude na Universidade; nos quais se debatem os anseios de
mudança de paradigma social e político e, mais tarde, os dilemas da vida
profissional da narradora.
O
interessante também do livro é que ao lado das questões que conformam a vida da
narradora, e quase em paralelo, concomitantemente, vemos desfilar contextualizadas,
as etapas históricas e sociais mais marcantes ,em França, na Europa e no Mundo.
Como consequência, a leitura que se faz da
obra, é apaixonante e apela à emoção e à memória. E se me fosse permitida, como leitora, usaria a
expressão: uma prosa que carreia uma visão holística e global de um determinado
tempo.
De
facto, a obra de Annie Ernaux, convida a uma fruição plena da sua literariedade
narrativa, através de uma pena soberba e de um estilo único, que caracterizam a
autora. E é nesta mesma linha de escrita
que lemos num outro livro dela, intitulado: «O Jovem», publicado em 2022. No
original: «Le Jeune Homme» das mesmas Editoras mencionadas no rodapé deste
escrito.
Assim,
e voltando ao «Os Anos», temos na infância da narradora, as lembranças então
recentes, da II Grande Guerra, (que ela escutava à mesa, nas palavras dos avós
e dos pais) que guardou na memória. As significativas movimentações sociais e
políticas em França com a subida ao poder do general de Gaulle, saído vitorioso
das contendas externas e internas em que a França esteve mergulhada nos anos
quarenta e cinquenta do século XX. Aliás, o livro acaba por abarcar quase todos
os grandes acontecimentos do século mencionado.
Com efeito, na puberdade e/ou na adolescência
ela, a narradora, vive com intensidade, não só as transformações que se operam
no seu corpo, mas também, as evoluções, por vezes, bem conflituosas dos
entendimentos e dos questionamentos do complexo Ser humano.
Pelo
caminho, a narradora faz-nos conhecer os políticos/estadistas que governaram a
França, para além do já mencionado De Gaulle, os nomes de Pompidou, Giscard D’Estaing, Mitterrand, de entre os mais conhecidos, que alteraram a França e influenciaram a Europa de então.
Torna-se
igualmente muito interessante, reviver na escrita de Annie Ernaux, o célebre
Maio de 1968 que teve o berço em Paris e que rapidamente alcançou a juventude, um
pouco por todo o mundo. Em Lisboa também o vivemos nessa época, por adesão àquilo
que foi detonado pelos estudantes universitários de Coimbra, ainda que sob o salazarismo
e a Pide.
No
mesmo passo, a autora retoma e recorda o tempo dos “hippies,” da ideologia do
“make love, not war”; da liberdade do sexo, das canções revolucionárias e
românticas que se ouviam com deleite, nos meados dos anos 60 do século XX, indo
até à moda da mini-saia e das calças boca-de-sino.
A autora vai passando a sua juventude no meio
dos filmes ditos intelectuais e da “nouvelle vague” (para nós, em Lisboa estes
filmes eram projectados nos cinema-Estúdios) - filmes franceses, italianos e suecos que mais
marcaram a sua juventude e um pouco, como contrapeso ao cinema americano que
dominava as grandes salas de cinema e as bilheteiras; dos realizadores mais
destacados neste género de filmes como Alain Resnais, Jean Cocteau, Jean
Luc-Godard, François Truffaut, Vittorio de Sica, Fellini, Ingmar Bergman, entre outros; também percorre grandes actores como Michelle
Morgan, Gérard Philippe; discute a filosofia existencial (Sartre) Althusser, e as interpelações da mulher
(Simone de Beauvoir) plasmadas no livro «O Segundo Sexo» da autora atrás citada;
as grandes obras literárias que marcaram o tempo histórico da narradora, como
as dos escritores Alain Robbe-Grillet, Roland Barthes, Camus e Nathalie Sarraut;
das canções e das vozes de Juliette Greco, Édith Piaf, Ives Montand, Gilbért Bécaud, Jacques Brel, entre outros, sem omitir a era grandiosa dos Beatles.
Enfim,
de muitos mais e famosos, que também construíram a década fabulosa da chegada
do homem americano à lua, agora transfigurada belamente, na pena não menos
fabulosa de Annie Ernaux, numa espécie de grande e movimentada tela.
Daí
que recomendo vivamente a leitura deste livro, não só aos leitores que viveram
a juventude nos anos 60 do século passado, mas também, aos mais novos, que assim
podem conhecer as grandes convulsões e não menos significativas transformações
da época, através deste relato narrativo poderoso e magnífico, da escritora
francesa Annie Ernaux, Prémio Nobel, do ano transacto.
x
Edição Livros do Brasil, da Porto Editora, 2020
x1 Éditions
Gallimard, 2008.
1 comentários:
Com esta notável descrição e apresentação do livro, estou já na primeira fila para o adquirir. Todos os que, como eu, são da geração da escritora Annie Ernaux, de quem confesso nunca li nada, certamente que sentirão imensa curiosidade em ler e partilhar a sua narrativa dos diferentes e sucessivos episódios do tempo biográfico e histórico vivido. Até porque os que, como é o nosso caso, viviam à época privados de todas as liberdades cívicas, preencherão a sua curiosidade com uma espécie de satisfação compensatória.
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