Centenário de Amílcar Cabral

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

 

Daniel dos Santos: “É uma figura a respeitar, mas não com a dimensão que se fala”

Entrevista conduzida por Jorge Montezinho[i]

Muito mito, pouco rigor. Nestes 100 anos do nascimento de Amílcar Cabral, podemos resumir assim as palavras do politólogo, professor universitário e um dos poucos cabo-verdianos que escreveu sobre o antigo líder do PAIGC [Amílcar Cabral – Um Outro Olhar]. Por outro lado, defende, trazer para a contemporaneidade as ideias de Cabral não faz qualquer sentido.

Amílcar Cabral nasceu há 100 anos. Figura marcante da luta pela independência e do nacionalismo guineense e cabo-verdiano, o fundador do PAIGC acabou assassinado por elementos do próprio partido e passou a ter o estatuto de lenda, com o mito a confundir-se com a realidade e muitas vezes a ultrapassá-la.

 “O sistema de ensino foi a principal vítima dos 15 anos do Partido Unico em Cabo Verde”, diz ao Expresso das Ilhas Daniel dos Santos. “Por isso, é natural que as academias, a elite nova e pensante, escreva num tom panegírico. Isto só mostra a qualidade das elites que temos”.

“O sistema de ensino daquele tempo ainda vigora no nosso sistema de ensino”, continua o professor universitário. “Não se fala da democracia, mas fala-se da independência, dos heróis da independência. Os heróis da democracia são, pura e simplesmente, marginalizados e ignorados pela historiografia cabo-verdiana da actualidade. Eu acho que se deve discutir Cabral, se deve celebrar Cabral, mas sem colocá-lo no patamar que ele não tem”.

A academia engajada

Entre 1963 e 2020 foram publicados 450 trabalhos científicos sobre Cabral – do Egipto à Suécia, da Austrália ao Japão. E em Cabo Verde?

“Em Cabo Verde, praticamente, não existem. Eu não os conheço”, assegura Daniel dos Santos. “O que há são pequenos artigos publicados, aqui e ali, em revistas, mas em revistas da Fundação Amílcar Cabral, da Uni-CV, mais nada. A forma como se fazem esses trabalhos pode não atrair muitos investigadores. Quando um investigador estrangeiro vem a Cabo Verde, por exemplo, dá-se-lhe balizas: contacta esta pessoa, não contactes estas. Não é esta a perspectiva de isenção que se quer ao abordar estudos sobre Amílcar Cabral”.

Esta idolatria da academia sobre a figura, segundo o politólogo, retira discernimento, distanciamento e, acima de tudo, credibilidade científica. “Quando leio artigos de académicos, de historiadores, que passam por cima de acontecimentos que não abonam a favor de Amílcar Cabral, ignoram-nos pura e simplesmente. Quem perde é a ciência. Quem perde é a história. Mas insistem porque são assalariados da Fundação Amílcar Cabral”.

“Toda a gente conhece esses investigadores. São pagos, têm bolsas. Se não são bolsas da Fundação Amílcar Cabral, são de outras organizações. Dinheiro não lhes falta”, refere.

 “As universidades devem demarcar-se das orientações que recebem dos políticos, da Fundação Amílcar Cabral e do próprio PAICV, para, de vez, abraçarem uma investigação séria que retrate Amílcar Cabral tal como ele é. Um homem com virtudes, sim, com defeitos, sim, sem o maltratar e colocando-o no lugar da história que ele conquistou por mérito próprio e com a própria vida. Não é fazendo propaganda panegírica e canonizando-o por todos os lados e em todos os sítios que se resolve esse problema”.

 A ideologia cabralista

É quando se quer contextualizar Amílcar Cabral que, entende Daniel dos Santos, começam as dificuldades. As ideias de Cabral não são aplicáveis actualmente em Cabo Verde e segundo o académico, pouco ou nada se aproveita do pensamento de Amílcar Cabral. “O regime político que foi implantado em Cabo Verde no período pós-colonial, é um regime que saiu da cabeça de Amílcar Cabral. E basta lermos a última mensagem que ele endereçou aos povos da Guiné e de Cabo Verde, em que ele desenhava um esboço do Estado a implantar em Cabo Verde e na Guiné com a independência: um regime de partido único, à frente do qual deveriam estar os melhores filhos da Guiné e de Cabo Verde. Uma ditadura”. “Cabral tinha um projeto libertador? Certo! Mas para libertar o quê? Para libertar quem? Cabo Verde não foi libertado pela Guerra da Independência na Guiné. Quem libertou Cabo Verde foi o Movimento dos Capitães de Abril. Isto é indiscutível. Só que depois entregaram Cabo Verde ao PAIGC que instituiu um regime da mesma igualha que o Estado Novo”, afirma o docente universitário.

“O PAIGC limitou-se a substituir um partido único português por um partido único autóctone. Sei que isto é o que muita gente não quer ouvir, não quer mostrar, mas é verdade. Não estou a inventar rigorosamente nada”.

“Hoje, Cabo Verde é um país que está nos antípodas do pensamento político de Amílcar Cabral. É um país democrático, que não tem nada a ver com o regime político pensado por Amílcar Cabral”, reitera Daniel dos Santos.

A luta começa

A insurreição armada nos PALOP inicia-se em Angola, em 1961, com a formação de três movimentos de libertação – FNLA, MPLA e UNITA –, estende-se à Guiné-Bissau com o PAIGC e a Moçambique com a FRELIMO.

A estas insurreições armadas, Salazar respondeu com a deslocação de milhares de soldados para as colónias, o que provocou o isolamento português a nível internacional e uma crescente oposição interna contra a guerra colonial, que vem culminar com a queda da ditadura no dia 25 de Abril de 1974.

Amílcar Cabral explicou a ideologia que o guiava a um grupo de intelectuais, em Londres, em 1971: “nós acreditamos que uma luta como a nossa é impossível sem ideologia. (...) Partir das realidades do nosso próprio país para a criação de uma ideologia para a luta não implica que se pretenda ser um Marx ou um Lenine, ou qualquer outro grande ideólogo, mas é simplesmente uma parte necessária da luta. Confesso que não conhecíamos suficientemente bem estes teóricos quando começámos. Nós não os conhecíamos nem metade do que os conhecemos agora! Nós tivemos necessidade de conhecê-los, como disse, a fim de julgarmos em que medida podíamos aproveitar a sua experiência para ajudar a nossa situação – mas não necessariamente para aplicar a ideologia cegamente, só por que ela é uma ideologia muito boa. Este é o nosso ponto de vista. Mas a ideologia é importante na Guiné. (...) Não queremos que o nosso povo seja mais explorado. O nosso desejo de desenvolver o nosso país com justiça social e com o poder nas mãos do povo é a nossa base ideológica. Nunca mais queremos ver um grupo ou uma classe de pessoas explorar ou dominar o trabalho do nosso povo. Esta é a nossa base. Se se quiser chamar a isso marxismo, chame-se marxismo”.

Um humanista radical? Não!

Recentemente, Portugal tem sido o país de onde parte a maior parte da efabulação à volta de Amílcar Cabral: quando um colóquio de académicos que decorreu em Lisboa, no ano passado, recuperou os obituários dos jornais internacionais após o assassinato, os adjectivos sucederam-se – o pacifista que teve de pegar em armas, o rebelde gentil, o diplomata combatente, o guerrilheiro moderado. Segundo Daniel dos Santos, estão aqui vários exemplos do branqueamento da imagem do antigo líder do PAIGC.

“Amílcar Cabral pacifista? Não foi. Humanista? Não foi. Obrigado a responder à violência colonialista com a violência revolucionária? Não foi”, sublinha o politólogo. “Acho que a melhor via para Amílcar Cabral sobreviver, inclusive ao próprio partido que fundou, era ter apostado na diplomacia, na propaganda, para lutar contra o colonialismo português na Guiné. Houve guineenses, como Eliseu Turpin, uma das figuras importantes do nacionalismo guineense, e um dos putativos seis fundadores do PAIGC em 56, que nunca quis ir a Conakry participar na luta armada. O Rafael Barbosa também não foi. São pessoas que não acreditaram na via armada para a libertação da Guiné”.

“Cabral é um pequeno burguês revolucionário, que apostou na violência como resposta ao regime colonial, porque o colonialismo é em si um estado de violência permanente. Mas mesmo depois da morte de Cabral violência não acabou na Guiné”, diz Daniel dos Santos.

“Amílcar Cabral tinha um discurso violento. Quando Lumumba foi assassinado, Amílcar Cabral escreveu um texto [pode ser consultado na página da Fundação Mário Soares – www.casacomum. org]. Em que ele escrevia que era um traidor e que merecia ser morto todo o guineense ou cabo-verdiano que dissesse que era português”, reforça o professor universitário.

“Veja-se também as séries de execuções que se registaram na Guiné. A cultura de fuzilamento que o próprio Cabral introduziu no PAIGC, como técnica de resolver problemas políticos. Portanto, acho que podemos apresentar Cabral, como um combatente anti-imperialista, um anticolonialista, um diplomata exímio, um grande propagandista, mas não um pacifista”, afirma o académico.

Guiné vs Cabo Verde

Idolatrado em Cabo Verde, quase esquecido na Guiné, onde a fotografia saiu das notas e o nome abandonou a toponímia. Para visitar o mausoléu, na fortaleza José de Amura, em Bissau, é preciso pedir autorização aos militares.

“Em Cabo Verde, a aura do Amílcar Cabral ficou. Nas escolas primárias, nas escolas secundárias, na comunicação social”, explica Daniel dos Santos. “Mas, Amílcar Cabral não é uma figura do Estado, é uma figura partidária. A Fundação Amílcar Cabral e o PAICV têm muita dificuldade em lidar com essa verdade”.

“Os efeitos da acção do PAIGC e de Amílcar Cabral na Guiné foram mais no âmbito militar do que político. Em Cabo Verde são meramente políticos. A população não sofreu tanto fisicamente como sofreu na Guiné. Isto acaba por explicar alguma coisa que seja muito diferente do caso da Guiné e do caso do Cabo Verde. São processos históricos completamente diferentes”.

“Em Cabo Verde não houve violência, não houve luta armada. Na Guiné houve”, continua o professor universitário. “Quais são os efeitos desta guerra na consciência do guineense? E os das atrocidades que o PAIGC cometeu? De 1974 a 1980, cerca de 500 guineenses foram torturados e assassinados a sangue-frio, sem julgamento”.

“Mesmo em Cabo Verde”, diz o politólogo, “sou professor, lido com os jovens. Os jovens não querem saber do Amílcar Cabral. Os jovens querem ver os seus problemas resolvidos. Sim, dizem que é um herói. Mas isso é mais o resultado da grande intensidade propagandista que foi levada a cabo nas escolas”.

“Amílcar Cabral é uma figura a respeitar, mas não é com a dimensão que se fala”, conclui Daniel dos Santos. “No fim, Amílcar Cabral não passa de um homem, de um político, que foi amado e que foi odiado”.

 



[i] Jornalista – Expresso das Ilhas – 11.Setembro.2024


Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da literatura na educação

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

 1. Inicialmente, tinha escrito um título alusivo à formação sacerdotal, mas depois pensei que o que se segue pode ser dito, de modo semelhante, em relação à formação de todos os agentes pastorais e de qualquer cristão. Refiro-me ao valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal.

2. Muitas vezes, no tédio das férias, no calor e na solidão dos bairros desertos, encontrar um bom livro para ler torna-se um oásis, afastando-nos de outras escolhas que são nocivas. Na verdade, não faltam momentos de cansaço, irritação, desilusão, fracasso e, quando nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma, pelo menos um bom livro ajuda-nos a enfrentar a tempestade, até que possamos ter um pouco mais de serenidade. Talvez essa leitura abra novos espaços interiores, capazes de evitar o encerramento naquelas poucas ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente. Antes da omnipresença dos media, das redes sociais, dos telemóveis e de outros dispositivos, esta era uma experiência frequente, e quem a viveu sabe bem do que estou a falar. Não se trata de algo ultrapassado.

3. Ao contrário dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo, e a margem e o tempo para “enriquecer” a narrativa ou para a interpretar são geralmente reduzidos, o leitor é muito mais ativo quando lê um livro. De certo modo, reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever. Uma obra literária é, portanto, um texto vivo e sempre fértil, capaz de falar de novo e de muitas maneiras, capaz de produzir uma síntese original com cada leitor que encontra. Este, enquanto lê, enriquece-se com o que recebe do autor, mas isso permite-lhe, ao mesmo tempo, fazer desabrochar a riqueza da sua própria pessoa, pois cada nova obra que lê renova e expande o seu universo pessoal.

4. Isto leva-me a avaliar muito positivamente o facto de, pelo menos em alguns Seminários, se ultrapassar a obsessão dos ecrãs – e das venenosas, superficiais e violentas fake news –, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar dos livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto. Mas, em geral, é preciso constatar, com pesar, a falta de um lugar adequado da literatura na formação daqueles que se destinam ao ministério ordenado. Efetivamente, esta é, muitas vezes considerada como uma forma de passatempo, ou seja, como uma expressão menor de cultura que não faria parte do caminho de preparação e, portanto, da experiência pastoral concreta dos futuros sacerdotes. Com poucas excepções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial. A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspetiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano.

5. Com esta carta, desejo propor uma mudança radical de atitude em relação à grande atenção que deve ser dada à literatura no contexto da formação dos candidatos ao sacerdócio. A este respeito, considero muito eficiente o que diz um teólogo:

«A literatura [...] brota da pessoa no que tem de mais irredutível, no seu mistério [...]. É a vida que se torna consciente de si mesma quando, utilizando todos os recursos da linguagem, atinge a plenitude da expressão»[1].

6. De uma forma ou de outra, a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados.

7. Aprendi isto nos tempos da juventude, com os meus alunos. Entre 1964 e 1965, quando tinha 28 anos, fui professor de literatura numa escola jesuíta, em Santa Fé. Ensinava aos dois últimos anos do liceu e tinha de fazer com que os meus alunos estudassem El Cid. Mas eles não gostavam. Pediam para ler García Lorca. Por isso, decidi: em casa, estudariam El Cid, e, durante as aulas, abordaria os autores de que aqueles jovens mais gostavam. Claro que eles queriam ler obras literárias contemporâneas; porém, à medida que fossem lendo o que os atraía no momento, iriam adquirindo em geral o gosto pela literatura, pela poesia, e depois passariam a outros autores. Afinal, o coração procura mais e, na literatura, cada um encontra o seu próprio caminho[2]. Por exemplo, eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão. Naturalmente, não estou a pedir para fazerdes as mesmas leituras que eu fiz. Cada um encontrará os livros que falarão à sua própria vida e que se tornarão verdadeiros companheiros de viagem. Não há nada mais contraproducente do que ler por obrigação, fazendo um esforço considerável só porque alguém disse que é essencial. Não, devemos selecionar as nossas leituras com abertura, surpresa, flexibilidade, orientação, mas também com sinceridade, tentando encontrar o que precisamos em cada momento da vida.

Fé e cultura

8. Além disso, para um crente que deseja sinceramente entrar em diálogo com a cultura do seu tempo ou, simplesmente, com a vida de pessoas concretas, a literatura torna-se indispensável. Com grande razão, o Concílio Vaticano II afirma que «a literatura e as artes […] procuram dar expressão à natureza do homem» e «dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias»[3]. Na verdade, a literatura inspira-se na quotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como «a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida»[4].

9. Perguntemo-nos: como será possível alcançar o núcleo das culturas antigas e novas se ignorarmos, descartarmos e/ou silenciarmos os símbolos, mensagens, criações e narrativas com que se captaram e se quiseram mostrar e evocar os seus feitos e ideais mais belos, tal como as suas violências, medos e paixões mais profundas? Como falar ao coração dos homens se ignorarmos, relegarmos ou não valorizarmos “essas palavras” com que quiseram manifestar e, porque não, revelar o drama do seu viver e sentir através de romances e poemas?

10. A missão eclesial soube desenvolver toda a sua beleza, frescura e novidade no encontro com diversas culturas – e muitas vezes graças à literatura – nas quais se enraizou, sem medo de arriscar e de extrair o melhor daquilo que encontrou. É uma atitude que a libertou da tentação do solipsismo ensurdecedor e fundamentalista que consiste em acreditar que uma certa gramática histórico-cultural tem a capacidade de exprimir toda a riqueza e profundidade do Evangelho[5]. Muitas das profecias de desgraça que hoje tentam semear desespero radicam precisamente neste aspecto. O contacto com diferentes estilos literários e gramaticais permitirá sempre aprofundar a polifonia da Revelação, sem a empobrecer ou reduzir quer às próprias exigências históricas quer às próprias estruturas mentais.

11. Não é por acaso que o cristianismo primitivo tenha percebido bem a necessidade de uma relação estreita com a cultura clássica da época. Um Padre da Igreja Oriental como, a título de exemplo, Basílio de Cesareia, no Discurso aos Jovens, que escreveu entre 370 e 375, e provavelmente dirigiu aos seus sobrinhos, exaltava a preciosidade da literatura clássica – produzida pelos éxothen (“os de fora”) como ele chamava aos autores pagãos – tanto para a argumentação, ou seja, para os lógoi (“discursos”) a utilizar na teologia e na exegese, como para o próprio testemunho de vida, ou seja, para os práxeis (“atos, comportamentos”) a ter em conta na ascética e na moral. E concluía exortando os jovens cristãos a considerarem os clássicos como um ephódion (“viático”) para a sua instrução e formação, obtendo deles “proveito para a alma” (IV, 8-9). É precisamente deste encontro, do acontecimento cristão com a cultura daquele tempo, que emerge uma original reelaboração do anúncio evangélico.

12. Graças ao discernimento evangélico da cultura, é possível reconhecer a presença do Espírito na variegada realidade humana, ou seja, é possível captar a semente da presença do Espírito plantada nos acontecimentos, sensibilidades, desejos, tensões profundas dos corações e dos contextos sociais, culturais e espirituais. Podemos reconhecer uma abordagem semelhante, por exemplo, nos Atos dos Apóstolos, onde é mencionada a presença de Paulo no Areópago (cf. Act 17, 16-34). Falando de Deus, Paulo diz: «É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: “Pois nós somos também da sua estirpe”» (Act 17, 28). Neste versículo, temos duas citações: uma indireta, na primeira parte, onde se cita o poeta Epiménides (séc. VI a.C.), e uma direta, citando Fenómenos do poeta Arato de Silo (séc. III a.C.), que canta as constelações e os sinais do bom e do mau tempo. Aqui neste ponto, «Paulo revela-se um “leitor” de poesia e deixa intuir o modo como se aproxima ao texto literário, o que não pode deixar de levar a refletir sobre um discernimento evangélico da cultura. Ele é definido pelos atenienses como spermologos, que significa “papagaio, tagarela, charlatão”, mas literalmente quer dizer “colecionador de sementes”. Assim, paradoxalmente, o que era um insulto parece uma verdade profunda. Paulo recolhe as sementes da poesia pagã e, abandonando uma atitude anterior de profunda indignação (cf. Act 17, 16), chega a reconhecer os atenienses como “os mais religiosos dos homens” e, naquelas páginas da literatura clássica deles, vê uma verdadeira preparatio evangelica»[6].

13. O que é que Paulo fez? Entendeu que a «literatura descobre os abismos que habitam o homem, enquanto a revelação, e depois a teologia, os retoma para mostrar como Cristo vem atravessá-los e iluminá-los»[7]. Em direção a estes abismos, a literatura é um «caminho de acesso»[8], que ajuda o pastor a entrar num diálogo fecundo com a cultura do seu tempo.

Nunca um Cristo sem carne

14. Antes de entrar nas razões concretas, devido às quais se deve promover a atenção dada à literatura no percurso formativo dos futuros sacerdotes, quero recordar um pensamento sobre o atual contexto religioso: «O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época, são fenómenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne»[9]. Portanto, a urgente tarefa de anunciar o Evangelho no nosso tempo exige, dos fiéis e dos sacerdotes em particular, o compromisso que permita a cada homem encontrar-se com um Jesus Cristo feito carne, feito homem, feito história. Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a “carne” de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez; numa palavra, de amor.

15. E, precisamente a este nível, o recurso assíduo à literatura pode tornar os futuros sacerdotes e todos os agentes pastorais ainda mais sensíveis à plena humanidade do Senhor Jesus, na qual se derrama toda a sua divindade, e anunciar o Evangelho de tal modo que todos, realmente todos, possam experimentar como é verdadeiro o que diz o Concílio Vaticano II: «na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente»[10]. Não se trata do mistério de uma humanidade abstrata, mas do mistério daquele homem concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida.

Um grande bem

16. De um ponto de vista pragmático, muitos cientistas afirmam que o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda-a a adquirir um vocabulário mais vasto e, consequentemente, a desenvolver vários aspectos da sua inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade; simultaneamente, permite que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica; melhora também a capacidade de concentração, reduz os níveis de deficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade.

17. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.

18. Para tentar ainda encorajar à leitura, cito de bom grado alguns textos de autores conhecidos, que nos ensinam tanto em poucas palavras:

Os romances desencadeiam «em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber»[11].

«Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de homens sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo. Como o céu noturno da poesia grega: vejo-o com uma miríade de olhos, mas sou sempre eu a ver. Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca»[12].

19. No entanto, não é minha intenção deter-me exclusivamente neste nível de utilidade pessoal, mas refletir sobre as razões mais decisivas para redespertar o amor pela leitura.

Ouvir a voz de alguém

20. Quando o meu pensamento se volta para a literatura, lembro-me do que o grande escritor argentino Jorge Luis Borges[13] costumava dizer aos seus alunos: o mais importante é ler, entrar em contacto direto com a literatura, mergulhar no texto vivo que se tem diante de si, mais do que fixar-se em ideias e comentários críticos. E Borges explicava este pensamento aos seus alunos, dizendo-lhes que, talvez, no início compreendessem pouco do que estavam a ler, mas em todo o caso teriam escutado “a voz de alguém”. Aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém. Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela! Caímos imediatamente no isolamento, entramos numa espécie de surdez “espiritual”, que também afeta negativamente a nossa relação connosco próprios e com Deus, por mais teologia ou psicologia que tenhamos conseguido estudar.

21. Neste caminho, que nos torna sensíveis ao mistério dos outros, a literatura faz-nos aprender a tocar os corações. Como não recordar aqui a palavra corajosa que, a 7 de maio de 1964, São Paulo VI dirigiu aos artistas e, portanto, também aos grandes escritores? Dizia: «Precisamos de vós. O nosso ministério precisa da vossa colaboração. Porque, como sabeis, o Nosso ministério é o de pregar e tornar acessível e compreensível, melhor, comovente, o mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus. E vós sois mestres nesta operação, que transforma o mundo invisível em fórmulas acessíveis, inteligíveis»[14]. Eis o ponto: a tarefa dos fiéis, e dos sacerdotes em particular, é precisamente a de “tocar” o coração do homem contemporâneo para que se comova e se abra diante do anúncio do Senhor Jesus. Neste esforço, o contributo que a literatura e a poesia podem oferecer é de um valor inigualável.

22. T.S. Eliot, o poeta a quem o espírito cristão deve obras literárias que marcaram a contemporaneidade, descreveu corretamente a crise religiosa moderna como uma generalizada «incapacidade emocional»[15]. À luz desta leitura da realidade, o problema da fé nos dias de hoje não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos em proposições doutrinais. Liga-se antes à incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos. Por conseguinte, abre-se aqui a tarefa de curar e enriquecer a nossa sensibilidade. Por isso, no regresso da minha Viagem Apostólica ao Japão, quando me perguntaram o que é que o Ocidente tem a aprender com o Oriente, respondi: «creio que falte ao Ocidente um pouco de poesia»[16].

Uma espécie de ginásio de discernimento

23. O que é que o sacerdote ganha neste contacto com a literatura? Porque é necessário tomar em consideração e promover a leitura dos grandes romances como uma parte relevante da paideia sacerdotal? Por que razão, na formação dos candidatos ao sacerdócio, é importante recuperar e implementar a intuição, esboçada pelo teólogo Karl Rahner, de uma profunda afinidade espiritual entre o sacerdote e o poeta?[17]

24. Tentemos responder a estas questões escutando as considerações do teólogo alemão[18]. As palavras do poeta, escreve Rahner, estão «cheias de saudade», são «portas que se abrem para o infinito, portas que se escancaram à imensidão. Evocam o inefável, tendem para o inefável». A palavra poética «olha para o infinito, mas não pode dar-nos este infinito, nem pode trazer ou esconder em si Aquele que é o Infinito». Efetivamente, isto é próprio da Palavra de Deus, e – continua Rahner – «a palavra poética invoca, portanto, a Palavra de Deus»[19]. Para o cristão, a Palavra é Deus, e todas as palavras humanas mostram traços de uma intrínseca saudade de Deus, tendendo para essa Palavra. Pode dizer-se que a palavra verdadeiramente poética participa analogicamente da Palavra de Deus, tal como a Carta aos Hebreus no-la apresenta de forma inovadora (cf. Heb 4, 12-13).

25. E é assim que Karl Rahner pode estabelecer um belo paralelo entre o sacerdote e o poeta: «só a palavra é intimamente capaz de libertar tudo o que mantém encarceradas as realidades não expressas: a mudez da sua orientação para Deus»[20].

26. Na literatura entram em jogo questões de forma de expressão e de sentido. Ela representa, portanto, uma espécie de ginásio de discernimento, que aguça as capacidades sapienciais de escrutínio interior e exterior do futuro sacerdote. O lugar onde se abre esta via de acesso à própria verdade é a interioridade do leitor, diretamente envolvido no processo de leitura. Aqui se descortina o cenário do discernimento espiritual pessoal, onde não faltarão angústias e até crises. Com efeito, são numerosas as páginas literárias que podem responder à definição inaciana de “desolação”.

27. «Chamo desolação a […] obscuridade da alma, perturbação, inclinação a coisas baixas e terrenas, inquietação proveniente de várias agitações e tentações que levam a falta de fé, de esperança e de amor; achando-se [a alma] toda preguiçosa, tíbia, triste, e como que separada de seu Criador e Senhor»[21].

28. A dor ou o tédio que se sentem ao ler certos textos não são necessariamente sensações más ou inúteis. O próprio Inácio de Loyola tinha observado que, «naqueles que vão de mal a pior», o bom espírito age causando inquietação, agitação, insatisfação[22]. Esta seria a aplicação literal da primeira regra inaciana do discernimento dos espíritos, reservada àqueles que «vão de pecado mortal em pecado mortal», ou seja, nessas pessoas a ação do bom espírito «punge-lhes e remorde-lhes a consciência pelo instinto da razão»[23], para as conduzir ao bem e à beleza.

29. Assim se entende que o leitor não seja o destinatário de uma mensagem edificante, mas uma pessoa que é ativamente solicitada a encaminhar-se para um terreno instável, onde as fronteiras entre salvação e perdição não estão a priori definidas e separadas. O ato de ler é, pois, como um ato de “discernimento”, graças ao qual o leitor é implicado na primeira pessoa como “sujeito” da leitura e, ao mesmo tempo, como “objeto” do que lê. Ao ler um romance ou uma obra poética, o leitor experimenta efetivamente “ser lido” pelas palavras que vai lendo[24]. Deste modo, o leitor é semelhante a um jogador em campo: faz acontecer o jogo, ao mesmo tempo que o jogo acontece através dele, na medida em que está totalmente envolvido naquilo que faz[25].

 

Atenção e digestão

30. No que diz respeito ao conteúdo, há que reconhecer que a literatura – segundo a célebre imagem cunhada por Proust[26] – é como “um telescópio” apontado para os seres e as coisas, indispensável para medir “a enorme distância” que o quotidiano abre entre a nossa percepção e o conjunto da experiência humana. «A literatura é como um laboratório fotográfico, no qual as imagens da vida podem ser processadas de modo a revelarem os seus contornos e nuances. Eis a “utilidade” da literatura: “desenvolver” as imagens da vida»[27], levar-nos a interrogar sobre o seu significado. Serve, em suma, a fazer eficazmente a experiência da vida.

31. Na verdade, a nossa visão ordinária do mundo é como que “reduzida” e limitada pela pressão que os objetivos operacionais e imediatos do nosso agir exercem sobre nós. O próprio serviço – cultual, pastoral, caritativo – pode tornar-se um imperativo que orienta as nossas forças e a nossa atenção apenas para os objetivos a alcançar. Mas, como nos recorda Jesus, na parábola do semeador, a semente precisa de cair em terra profunda para amadurecer frutuosamente ao longo do tempo, sem ser sufocada pela superficialidade ou pelos espinhos (cf. Mt 13, 18-23). Assim, o risco passa a ser o cair na busca duma eficiência que banaliza o discernimento, empobrece a sensibilidade e reduz a complexidade. Por isso, é necessário e urgente contrabalançar esta inevitável aceleração e simplificação da nossa vida quotidiana, aprendendo a distanciarmo-nos do imediato, a reduzir a velocidade, a contemplar e a escutar. Isto pode acontecer quando, de modo desinteressado, uma pessoa se detém para ler um livro.

32. É necessário recuperar formas hospitaleiras e não estratégicas de relacionamento com a realidade, não diretamente orientadas para um resultado; formas nas quais seja possível deixar emergir o infinito excesso do ser. Distância, lentidão, liberdade são características de uma abordagem da realidade que encontra precisamente na literatura uma forma de expressão, não exclusiva, mas privilegiada. A literatura torna-se, então, um ginásio onde se treina o olhar para procurar e explorar a verdade das pessoas e das situações como mistério, carregadas de um excesso de sentido, que só parcialmente se pode manifestar em categorias, esquemas explicativos, dinâmicas lineares de causa-efeito, meio-fim.

33. Uma outra bela imagem para contar o papel da literatura vem da fisiologia do corpo humano e, em particular, do ato da digestão. Neste caso, o modelo é a ruminatio bovina, como afirmavam o monge Guillaume de Saint-Thierry, do século XI, e o jesuíta Jean-Joseph Surin, do século XVII. Este último falava do “estômago da alma” e o jesuíta Michel De Certeau apontava para uma verdadeira «fisiologia da leitura digestiva»[28]. Ou seja, a literatura ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais[29].

 

Ver através dos olhos dos outros

34. No que diz respeito à forma do discurso, acontece o seguinte: ao lermos um texto literário, colocamo-nos na condição de «ver com os olhos dos outros»[30], adquirindo uma amplitude de perspetiva que alarga a nossa humanidade. Isto ativa em nós o poder empático da imaginação, que é um veículo fundamental para essa capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia. Ao ler, descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente só.

35. A maravilhosa diversidade do ser humano e a pluralidade diacrónica e sincrónica das culturas e dos saberes configuram-se, na literatura, numa linguagem capaz de respeitar e exprimir a sua variedade, e, ao mesmo tempo, traduzem-se numa gramática simbólica de sentido que as torna inteligíveis para nós, porque partilhadas, não estranhas. A originalidade da palavra literária consiste no facto de exprimir e transmitir a riqueza da experiência, sem a objetivar na representação descritiva do conhecimento analítico ou no exame normativo do juízo crítico, mas enquanto conteúdo de um esforço expressivo e interpretativo para dar sentido à experiência em questão.

36. Quando se lê uma história, graças à visão do autor, cada um imagina, à sua maneira, o choro de uma jovem abandonada, a idosa que cobre o corpo do neto adormecido, a paixão de um pequeno empreendedor que tenta ir para diante apesar das dificuldades, a humilhação de alguém que se sente criticado por todos, o rapaz que encontra no sonho a única saída para a dor de uma vida miserável e violenta. À medida que sentimos vestígios do nosso mundo interior no meio dessas histórias, tornamo-nos mais sensíveis às experiências dos outros, saímos de nós próprios para entrar nas suas profundezas, conseguimos compreender um pouco mais as suas lutas e desejos, vemos a realidade com os seus olhos e acabamos por nos tornar companheiros de viagem. Assim, mergulhamos na existência concreta e interior do vendedor de fruta, da prostituta, da criança que cresce sem pais, da mulher do pedreiro, da idosa que ainda acredita que vai encontrar o seu príncipe. E podemos fazê-lo com empatia e, por vezes, com tolerância e compreensão.

37. Jean Cocteau escreveu a Jacques Maritain: «A literatura é impossível, temos de sair dela, e é inútil tentar sair dela com a própria literatura, porque só o amor e a fé nos permitem sair de nós mesmos».[31] Será que saímos realmente de nós próprios se os sofrimentos e as alegrias dos outros não arderem no nosso coração? Prefiro lembrar-me que, como cristão, nada do que é humano me é indiferente.

38. Além disso, a literatura não é relativista porque não nos despoja de critérios de valor. A representação simbólica do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, como dimensões que na literatura tomam a forma de existências individuais e de acontecimentos históricos coletivos, não neutraliza o juízo moral, mas impede-o de se tornar cego ou superficialmente condenatório. Pergunta-nos Jesus: «Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista?» (Mt 7, 3).

39. Na violência, na limitação ou na fragilidade dos outros, temos a possibilidade de refletir melhor sobre a nossa. Ao dar ao leitor uma visão alargada da riqueza e da miséria da experiência humana, a literatura educa o seu olhar para a lentidão da compreensão, para a humildade da não simplificação, para a mansidão de não pretender controlar a realidade e a condição humana através do julgamento. Este é certamente necessário, mas nunca se deve esquecer o seu alcance limitado: com efeito, jamais deve traduzir-se na sentença de morte, no cancelamento, na supressão da humanidade em prol de uma árida totalização da lei.

40. O olhar da literatura forma o leitor para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e, talvez até, a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou de certo/errado, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça, isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o humano enquanto esperança de salvação.

 

O poder espiritual da literatura

41. Com estas breves reflexões, espero ter evidenciado o papel que a literatura pode desempenhar na educação do coração e da mente do pastor ou futuro pastor, no sentido de um exercício livre e humilde da sua racionalidade, de um reconhecimento fecundo do pluralismo das linguagens, de um alargamento da sua sensibilidade humana e, finalmente, de uma grande abertura espiritual para escutar a Voz através de muitas vozes.

42. Neste sentido, a literatura ajuda o leitor a quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais, que por vezes correm o risco de contaminar até o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra. A palavra literária é uma palavra que põe a linguagem em movimento, liberta-a e purifica-a; abre-a, por fim, às suas ulteriores possibilidades expressivas e exploratórias, torna-a hospitaleira à Palavra que vem habitar na palavra humana, não quando se entende a si mesma como conhecimento já pleno, definitivo e completo, mas quando se torna vigília de escuta e de espera d’Aquele que vem renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5).

43. A força espiritual da literatura recorda, por último, a primeira tarefa confiada por Deus ao homem: a tarefa de “dar nome” aos seres e às coisas (cf. Gn 2, 19-20). A missão de guardião da criação, atribuída por Deus a Adão, passa primeiramente pelo reconhecimento da sua própria realidade e do sentido da existência dos outros seres. Também o sacerdote está investido desta tarefa original de “dar nome”, dar sentido, fazer-se instrumento de comunhão entre a criação e a Palavra feita carne e o seu poder de iluminar todos os aspectos da condição humana.

44. A afinidade entre o sacerdote e o poeta manifesta-se assim nesta misteriosa e indissolúvel união sacramental entre a Palavra divina e a palavra humana, dando vida a um ministério que se torna serviço cheio de escuta e compaixão, a um carisma que se traduz em responsabilidade, e a uma visão do verdadeiro e do bem que se abre como beleza. Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: «Quem realmente aprende a ver, aproxima-se do invisível»[32].

 

Dado em Roma, em São João de Latrão, no dia 17 de julho do ano 2024, décimo segundo do meu Pontificado.

 

FRANCISCO



[1] R. Latourelle, «Letteratura», in R. Latourelle - R. Fisichella, Dizionario di Teologia Fondamentale (Assisi 1990), 631.

[2] Cf. A. Spadaro, «J. M. Bergoglio, il “maestrillo” creativo. Intervista all’alunno Jorge Milia», in La Civiltà Cattolica 2014 I, 523-534.

[3] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 62.

[4] K. Rahner, «Il futuro del libro religioso», in Nuovi Saggi II (Roma 1968), 647.

[5] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 117.

[6] A. Spadaro, Svolta di respiro. Spiritualità della vita contemporanea (Milano), 101.

[7] R. Latourelle, «Letteratura», 633.

[8] São João Paulo II, Carta aos Artistas (4 de abril de 1999), 6.

[9] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 89.

[10] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 22.

 

[11] M. Proust, À la recherche du temps perdu – Du côté de chez Swann (Paris 1914), 104-105.

[12] C.S. Lewis, Lettori e letture. Un esperimento di critica (Milano 1997), 165.

[13] Cf. J.L. Borges, Oral (Buenos Aires 1979), 22.

[14] São Paulo VI, Homilia durante a Santa Missa com os Artistas (Capela Sistina, 7 de maio de 1964).

[15] T.S. Eliot, The Idea of a Christian Society (London 1946), 30.

[16] Conferência de imprensa durante o voo de regresso da Viagem Apostólica de Sua Santidade Francisco à Tailândia e ao Japão, 26 de novembro de 2019.

[17] Cf. A. Spadaro, La grazia della parola. Karl Rahner e la poesia (Milano 2006).

[18] K. Rahner, «Sacerdote e poeta», in La fede in mezzo al mondo (Alba 1963), 131-173.

[19] Ibid., 171 s.

[20] Ibid., 146.

[21] Santo Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, 317.

[22] Cf. Ibid., 335.

[23] Ibid., 314.

[24] Cf. K. Rahner, «Sacerdote e poeta», op. cit., 141.

[25] Cf. A. Spadaro, La pagina che illumina. Scrittura creativa come esercizio spirituale (Milano 2023), 46-47.

[26] M. Proust, À la recherche du temps perdu. Le temps retrouvé (Paris 1954), Vol. III, 1041.

[27] A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 14.

[28] M. De Certeau, Il parlare angelico. Figure per una poetica della lingua (Secoli XVI e XVII) (Firenze 1989), 139 s.

[29] Cf. A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 16.

[30] C.S. Lewis, Lettori e letture, op. cit., 165.

[31] J. Cocteau - J. Maritain, Dialogo sulla fede (Firenze 1988), 56. Cf. A. Spadaro, La pagina che illumina, op. cit., 11-12.

[32] P. Celan, Microliti (Milano 2020), 101.