O
texto que aqui se publica com a devida vénia ao seu autor, o historiador
português José Pacheco Pereira, traz-nos - a sua leitura - uma compreensão bem
fundamentada sobre o perigo de regressão da democracia e da sua sobrevivência
enquanto escolha de uma sociedade com mais humanidade – em oposição à "barbárie." E isto, devido à ausência de um “suporte cultural,” que necessita ser alimentado com consistência e com perseverança; com leitura e com cultura.
E mais
nos transmite o texto sobre o saber entender melhor outras culturas, o que só acontece quando a nossa democracia possui um
“suporte cultural” forte.
E daí a pertinência da sua divulgação também neste espaço.
O recuo da cultura das humanidades e a
democracia
Por
José Pacheco Pereira*
A crise da leitura, a
crise do valor do saber e das mediações que implica a democracia, reduz o
espaço para o sentimento humanístico
Algum
do processo de usura da democracia, de crescimento do populismo, de
tribalização da política, da cloaca das redes sociais, está para além do
sentimento de exclusão económica, social e cultural, está para além dos efeitos
perversos da corrupção e do nepotismo, e do racismo e xenofobia modernos. Está
na fragilidade do suporte cultural que é essencial para a sobrevivência da
democracia, que é uma escolha cultural no sentido lato contra a natureza.
Repito, a democracia não é um regime natural, mas artificial. Natural era andarmos
todos a comer-nos uns aos outros, e todos os regimes que assentam na violência
e na ordem do poder estão mais próximos dessa natureza do que da democracia. O
que distingue a escolha democrática é exactamente ser uma opção, uma escolha,
que nos afasta da barbárie através de um conjunto de procedimentos cujo
objectivo é dar poder a todos, pela soberania do voto, e construir sociedades
reguladas pela lei, em que não vale tudo. É imperfeito, mas é o melhor que
temos, e está a ruir diante dos nossos olhos à custa de muita covardia, abolia
e inércia.
Um
dos aspectos dessa crise democrática é o recuo daquilo que, à falta de melhor,
podemos chamar humanidades. Não vou entrar aqui na discussão sobre as “duas
culturas”, que tem algum sentido em particular onde uma das “culturas” não é
reconhecida como tal, ou pelo menos como igual à outra. Não me esqueço de um
antigo flashback feito numa escola, ainda com Vasco Pulido Valente, em que ele
gozava com Cavaco Silva porque este não sabia quantos Cantos tinham os Lusíadas.
Eu perguntei-lhe se ele sabia o Princípio de Arquimedes ou o que era a inércia,
e se não achava que isso era ignorância, e a coisa ficou por ali. Para mim não
tem sentido a distinção contraditória, porque os rudimentos de uma cultura
científica fazem parte das humanidades.
Vamos,
por isso, usar uma definição comum de vulgar de “humanidades”, para não
complicar, que contém a literatura, a arte, a música, o direito, as ciências
sociais, a história, num contexto de aproximação ao “homem” que desde a Renascença
e o Iluminismo tem traços comuns. Inclui uma ideia da fragilidade da vida
humana, do serviço do “bem comum”, dos direitos humanos, da liberdade, a
começar pela mais importante historicamente, a liberdade religiosa, do valor da
igualdade, do papel da educação na luta contra a servidão, na emancipação e
dignificação do trabalho, na recusa da violência, do respeito pelas escolhas de
género e da aceitação de que cada um é livre de viver a vida que quer desde que
não seja à custa da liberdade de outrem. É um sistema de valores ideal, que não
nos protege em absoluto contra a barbárie, mas ajuda. E sem ele, como “visão do
mundo” e contexto, a democracia não é possível, porque ele é uma peça
fundamental na ecologia da democracia. Não é por acaso que todos os antidemocratas
se manifestam contra esta tradição iluminista, que foi historicamente muito
importante nos debates e decisões da independência dos EUA, e preferem falar
das perversões do jacobinismo.
Mas
esta cultura de humanidades é uma cultura, implica conhecimento, saber,
referências, capacidade para viver experiências indirectas. É livresca? Também
é, porque implica ler livros e não pensar que meia dúzia de simples
competências num computador ou num telemóvel o substitui. E é incompatível com
os traços anti-intelectuais típicos da ignorância agressiva das redes sociais
que extravasam para a vida política no negacionismo da ciência que tem matado
muita gente na actual pandemia. A crise da leitura, associada à crise do
silêncio, do tempo e do espaço do pensar, a crise do valor do saber e das
mediações que implica a democracia, reduz o espaço para o sentimento
humanístico. É por isso que não se pode embarcar no mito da “geração mais bem
preparada”, quando essa “preparação” pouco mais é do que um frágil diploma,
conseguido com muito laxismo do lado das escolas, sem ler um livro fora da
sebenta, com mais consumo das indústrias de simplificação e da logomaquia que
vai do futebol ao Facebook, do engraçadismo dos vídeos virais, ou à adoração
das imagens no Instagram.
A coragem na defesa do
sentimento humanista é hoje mais importante do que nunca
Querem
um exemplo do que é uma resposta à barbárie assente nas humanidades? Olhem para
a fotografia: Unamuno, velho e débil, em plena guerra civil espanhola, diante
de Millan Astray, legionário, mutilado de guerra, o típico herói fascista, que
dizia que sempre que ouvia falar de cultura puxava da pistola, numa sala aos
gritos de braços ao alto. Não se sabe bem os termos exactos do que disse
Unamuno, que teve que ser tirado da sala protegido, mas o que é importante é
que sentiu o dever de ter que dizer ao falangista, numa sala cheia de
falangistas, que “vencer” não é “convencer”. A coragem na defesa do sentimento
humanista é hoje mais importante do que nunca.
*Historiador
– Público de 21.Nov.2020