ALGUMAS NOTAS SOBRE O TEU LIVRO (A PROPÓSITO E A DESPROPÓSITO)

domingo, 31 de dezembro de 2017

Por termos achado interessante esta análise feita por José Gameiro Lopes sobre o livro «Mulheres de  Pano Preto» de A. Ferreira, e vinda através de mensagem privada que uma velha amizade justifica; e porque  o  texto  contém uma descrição  histórica  comparativa às situações ocorridas em  igual  período de  tempo nas  outras colónias africanas então portuguesas, daí a nossa convicção  do   interesse  da sua publicação neste espaço.

NOTAS PRELIMINARES

Antes de mais, deixa que te diga que em boa hora li o teu (esquecido) livro, porque teve desde logo uma grande virtude: evidenciar a minha inimaginável indigência informativa sobre os processos independentistas da Guiné e de Cabo Verde, sobretudo nos últimos anos do colonialismo e nos primeiros anos de independência, em ambos os casos porventura o período historicamente mais complexo, significativo e doloroso até agora da ainda breve história daqueles países. E se àqueles países juntarmos, a título meramente comparativo, os de Moçambique e Angola, a conclusão é igualmente confrangedora.  
Mas, por reflexo, teve ainda outra virtude: dei por mim a repensar que ideia tenho hoje, à distância de um pouco mais de quatro décadas, dos líderes que, a meu ver, marcaram (ou poderiam ter marcado), para o bem e para o mal, aqueles acontecimentos, mesmo considerando que dois deles morreram antes da independência dos seus países. E, como se verá, o resultado não é mais animador.
De resto, atrevo-me a dizer que, para a generalidade das pessoas da minha geração – que diabo, muitos deles, como nós, por lá andaram a defender a fé (já muito abalada, é certo) e o império (o que dele restava) – o nível de conhecimento não será substancialmente diferente. Vejamos, pois, a traço grosso, os resultados de tão curiosa incursão por esse passado que, porventura na melhor altura das nossas vidas, nunca mais nos largou, não sem antes sublinhar que é uma leitura tão sumaríssima quanto profundamente subjectiva (donde, discutível), seguramente eivada de muitos vícios – o alheamento, a ignorância, a força das “verdades históricas oficiais”, a manipulação induzida, o distanciamento, etc. Vamos lá, então, a esse exercício:
  1. O processo de Moçambique é o que, apesar de tudo, conheço um pouco melhor – a razão é que estive lá a maior parte do tempo de meados de 1980 a 1981 e, mais tarde, passei naquele país bem mais de uma dezena de períodos de tempo, com a duração de 1,5/2 meses de cada vez, ao longo dos dois mandatos (1993/1999) em que integrei a Administração desse grande elefante que foi Cahora Bassa. Sobre o líder de referência (insisto, para mim), Eduardo Mondlane, mesmo não tendo chegado ao 25 de Abril, tenho dele uma imagem cosmopolita, de cultura democrática, avesso às democracias populares tão em voga na altura – espero não estar a ser muito benévolo. Depois, a PIDE matou-o, a ele e porventura ao sonho de Moçambique construir de raiz um tipo de regime diferente. Ou, cercado por elementos - esses sim, defensores da via da democracia popular - talvez não, quem sabe? Do regime, o que dizer que não se saiba já? Bom, começou por ser uma democracia dita popular de partido único – para o que contou, também aqui, com a colaboração activa do MFA – com tudo o que isso representou de repressão brutal, de estado policial, de massacres, de prisões arbitrárias, de julgamentos sumários, de corrupção, etc. A que se seguiu uma inevitável e longa guerra civil – cujo estado latente ainda subsiste nos nossos dias. Hoje vive-se um regime que cruamente podemos classificar de uma espécie de democracia popular, é verdade que não sustentada num partido único - passe a relativa contradição – mas que na prática funciona como tal, pois que só formalmente, e sem quaisquer consequências políticas em termos de alternância e de pluralismo activo, as outras forças partidárias são consentidas. E tudo o mais que se conhece e sobretudo o que se não conhece. Sintomaticamente desconheço se, em Moçambique, tem sido feito ou se está em curso algum esforço de uma revisitação séria da história do período antes/pós-independência, mas não me parece que já estejam reunidas condições mínimas para uma tal empresa, tanto mais que seria inevitavelmente um processo marcado por fortes resistências e particularmente doloroso, que não deixaria de reabrir muitas feridas. E, de resto, o peso da verdade oficial imposta, guardada por fiéis guardiões da ortodoxia histórica prevalecente, é ainda uma condicionante muito forte, ou mesmo intransponível - pelo menos por ora.
  2. Sobre Angola, o meu conhecimento é ainda mais rudimentar, mas a leitura parece-me aparentemente mais facilitada – o que não quer dizer menos complexa, sobretudo, também aqui, durante os primeiros anos pós-independência, porque depois, com o fim da guerra civil, foi a vitória esmagadora, e mesmo obscena, de um partido e literalmente de uma família desse movimento, que se prolongou por uma eternidade (até há poucos meses). Uma vez mais o favorecimento patrocinado pelo MFA reverteu a favor de um dos movimentos – o que era apoiado pela então URSS, Cuba, etc. (MPLA) – em detrimento dos que eram apoiados nomeadamente pelos EUA (FNLA) e pela África do Sul (UNITA). A ideia que tenho do (meu) líder de referência, Agostinho Neto, é que não passou de uma marioneta no meio do turbilhão interno de lutas fratricidas e das pressões e “cobranças” dos “países amigos”, até que, já esgotado física e animicamente na voragem dos acontecimentos, morreu envolvido em denso mistério. Se politicamente não deixou sementeira, outro tanto não podemos dizer no plano da escrita, pois que neste campo legou alguma poesia de qualidade – de resistência, mas também lírica. É agora o momento neste novo (?) tempo para rever a história daqueles anos de chumbo? Afigura-se-me uma hipótese, pelo menos por ora, de duvidosa verificação – a menos que as movimentações em curso indiciem efectivamente uma mudança profunda da política e da sociedade angolanas, que criem condições para que se abra com coragem as portas do passado. Falece-me autoridade para fazer previsões nesta matéria, mas sempre direi que, bastas vezes, a história nos diz que a transmutação de regimes ditadoriais ou paraditadoriais, ou opera pela via revolucionária e pode escancarar as portas do passado mais ou menos recente (como, em traços gerais, aconteceu em Portugal), ou por uma transição pacífica normalmente protagonizada a partir do interior do regime, em que essa viagem ao passado é percorrida com pinças, não esgravatando muito para não acordar os fortes poderes instalados, ainda subsistentes (como em Espanha). Em todo o caso, permitir-se hoje uma revisitação da história dos primeiros anos pós-independência de Angola, quando quase todos os que detêm neste momento o poder são homens profundamente ligados ao regime da família que politica e economicamente dominou com mão de ferro o país até há pouco tempo, representará uma autêntica caixa de pandora.
  3. Sobre a Guiné e Cabo Verde (tanta prosa para aqui chegar e, ainda por cima, com tão parcos resultados), estou literalmente em branco – ou estava, porque agora já colhi do teu livro algumas pistas, mas que não deram para mais do que para abrir o apetite. E sobre Amílcar Cabral – para mim, como para a maior parte dos portugueses, ainda o líder de referência, que por aqui ainda vai sendo considerado o mais aportuguesado dos líderes africanos, um humanista (?) e um chefe carismático que, uma vez mais, a PIDE liquidou (?) - o que posso dizer depois do teu livro? Na verdade, uma mão cheia de nada. Surpreende-te decerto que nem sequer tenha historicamente presente as circunstâncias que rodearam a ruptura entre a Guiné e Cabo Verde (os irmãos desavindos?), levando-os a optar por caminhos independentes, ao arrepio da unidade que o nome “PAIGC” prefigurava – ou que talvez já há muito não passasse duma sigla semântica. Mas, claro, enquanto um dia – se houver oportunidade para isso, porque as oportunidades no inverno da nossa vida são escassas – não conversarmos sobre o assunto, proponho-me ir investigando alguma coisa por conta própria. Como vês, o que a tua obra veio despertar! O teu livro – já lá vamos - deu para perceber que algum trabalho vai sendo produzido (talvez mais em Cabo Verde do que na Guiné?) tendo em vista destapar, parece-me que ainda cautelosamente, a realidade história dos anos antes/pós-independência daqueles dois países. E, se bem intuo alguma dinâmica nesse sentido, pressinto que tu estás na primeira linha desse desígnio – o que, de resto, não me surpreende.


O LIVRO
Bom, agora o livro. Finalmente, pensarás tu.
Antes de mais, gostei muito sinceramente do teu livro, que considero muito interessante, sob vários pontos de vista. Breves notas que retive.
  1. Considero muito sugestiva a arquitectura que desenhaste, reflectida numa estrutura assente em dois planos: a narrativa histórica – ou, se quisermos, de uma certa realidade histórica, sobretudo da Guiné; e a representação ficcionada dessa realidade histórica, expressa na vivência figurada de protagonistas com as suas histórias pessoais de amores e desamores (e não só da Alice e do Tomás, ainda que se afirme como polo central de outras relações adjacentes), encantamentos e desencantos, medos e inquietações, perplexidades e dúvidas. Ou seja, ao mesmo tempo que convocas os leitores para a revisitação histórica dos anos de brasa da agonia do colonialismo e dos primeiros anos da independência da Guiné e de Cabo Verde, colocas no palco da vida (ficcionada) os protagonistas com os mais diversos estados de alma, caldeados com intensos e acalorados debates e discussões de cariz ideológico.  Vejo aqui, de algum modo, uma gizada relação dialéctica entre a realidade histórica e a sua representação ficcionada.
  2. A um ignorante como eu nesta matéria não faz sentido dizer alguma coisa sobre o plano da realidade histórica – seria juntar ao desconhecimento a irresponsabilidade - a não ser que, por si mesma e pelas fontes citadas, parece oferecer credibilidade bastante. Mas tenho o cuidado de falar de realidade histórica, e não verdade histórica – diz-se que esta não existe ou, a outra luz, não constitui mais do que outra forma de representação.
  3. O plano da representação – que, se bem o captei, sintomaticamente tem como principais protagonistas os filhos da pequena e média burguesia (de funcionários públicos, comerciantes, empregados de empresas privadas, alguns militares, etc.) – espraia-se por três tempos de representação: o tempo nostálgico que teve como epicentro o Liceu Honório Barreto, que, camonianamente falando, correu ledo e ameno – e aqui não resisti a registar a tua localização geograficamente estratégica (está aqui o estratega avant la lettre?)  na cadeia das idas e vindas dos protagonistas para e do Liceu; o da guerra colonial, em que coabitavam o medo e a ansiedade que foram crescendo com a intensificação da guerrilha e, apesar disso, uma pulsão da fúria de viver intensamente os anos de juventude ; e os primeiros anos de independência em que, a breve trecho, o sonho do homem novo(ou do homem renascido) virou pesadelo com a brutal subversão dos valores e ideais que, durante os anos negros do colonialismo, alimentaram o sonho. Ou de como a conquista da independência matou, tão perversa quanto implacavelmente, o sonho da liberdade.
  4. Ainda neste plano, realce para a tua capacidade de efabulação, sobretudo ideológica, de que dás sobejas provas, nomeadamente por via de discussões e debates de grande dimensão política em torno dos momentos mais marcantes do período imediatamente anterior e sobretudo posterior à independência. É, de resto, para mim, um dos pontos altos do livro. O que quer dizer – ilação inteiramente da minha lavra – que, para além do mais, o teu percurso nos meandros da política não passou em vão.
  5. Finalmente, uma questão de pendor mais marcadamente literário: romance histórico, sim ou não? Para além do significado e limites do romance histórico darem pano para mangas, de tão controvertidos que são – Saramago ficava especialmente irritado, para não dizer furioso, quando consideravam, por exemplo, o “Memorial do Convento”, a “História do Cerco de Lisboa” ou o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, como romances históricos – a verdade é que o teu livro tem um fundo histórico que se tem de considerar como tendencialmente verdadeiro. Para além de que, a meu ver, a vertente mais significativa e simbolicamente mais rica é a ficcionada. Donde, no meu modesto parecer, é uma classificação algo forçada e excessiva – e, pior, redutora. Mas esta é uma questão menor – para não dizer inútil.  

Para terminar, a mensagem central que, para mim, leitor, sobreleva subliminarmente no teu livro – diria, afinal, que o seu fio condutor:
- A história real da independência, sobretudo no último período colonial e nos primeiros anos da independência – a contrapor à história oficial - está por fazer, mesmo entrando em linha de contas com alguns contributos que já vêm sendo dados.
- A história (oficial) que ainda hoje vai colhendo vencimento, reescrita com toda a sorte de factos e acontecimentos historicamente inverdadeiros ou falseados, não contribui para a pacificação das comunidades cabo-verdiana e guineense – que, neste aspecto particular, continuam a viver uma paz podre (a Guiné nem isso) - e tolda, porventura irreversivelmente, a moldura identitária de ambos os países.
- Urge, pois, abrir as portas desse passado desapaixonadamente e sem preconceitos e com espírito aberto para acertar contas com a realidade histórica desse período. E o teu livro, na linha de outras intervenções que, segundo julgo saber, tens tido, constitui, sem dúvida, um depoimento oportuno e precioso.

Dezembro/2017

José M. Gameiro Lopes

RECICLAR O LIXO MEDIÁTICO

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017
      
Mal de quem hoje não faça uma reciclagem para despejo do lixo mediático que lhe entra de enxurrada pelos olhos e ouvidos dentro. É uma medida recomendável para preservar a saúde mental e não deixar estiolar a capacidade crítica e o ânimo cívico. Essa reciclagem é um imperativo de consciência na quadra festiva que se avizinha porque expurgar dos sentidos aquilo que é ruim ajuda a entrar no novo ano com a alma lavada.
      Dos canais de televisão e de alguns pasquins jorram diariamente autênticos dejectos que intoxicam o cidadão e impedem o seu desenvolvimento e progresso como ser integral. Seria por demais fastidioso estar aqui a enumerar e a citar os casos que exemplificam o mau jornalismo que está a ser praticado no nosso país. Mas queria apenas apontar o excessivo empolamento que foi e está ser dado ao chamado caso “Raríssimas”, espoletado por uma reportagem de uma jornalista da TVI. Qualquer espírito atento identifica um quadro descritivo nitidamente tendencioso e apostado em denegrir a imagem da fundadora da IPSS “Raríssimas”, enlameando-a de toda a maneira possível. Não faltou eco retumbante em conhecidos pasquins da nossa praça que, sem perder tempo e mandando às urtigas, como é seu hábito, qualquer espécie de autocensura e respeito pela dignidade da pessoa humana, até invadiram a vida privada da cidadã e de um secretário de estado publicando fotografias pessoais de ambos em poses indiciadoras de alguma intimidade, durante uma estada no Brasil.
      Telejornais abriram-se com o caso e dedicaram-lhe espaço de manifesto privilégio, mesmo quando outros factos da vida nacional mereciam e justificavam primazia e maior atenção jornalísticas. Os canais de informação, esses então, fazendo jus à sua congénita voracidade, regalaram-se com o festim dos abutres sobre o cadáver e procuraram a todo o custo mantê-lo consumível e inexaurível o mais possível, mercê dos habituais opinantes e presumidos zeladores das virtudes públicas e detentores das verdades axiomáticas. Claro, a TVI viu-se nos píncaros e deve ter ornado a cabeça da sua jornalista de “investigação” com uma qualquer coroa de louros. Obter altos níveis de audiência é o que mais interessa, não importa por que meios e processos. Honra para o canal do Estado, que esse ao menos permitiu à pessoa visada um certo contraditório, mediante uma entrevista precedida de alguma investigação. E além disso debateu o caso com comentadores qualificados e experientes.
      No meio disto tudo, o espantoso é que as notícias animadoras sobre o sucesso da política orçamental e económica do país, com a agência de notação Fitch a subir dois níveis à dívida portuguesa, foram quase silenciadas, soterradas pela avalanche da atenção dada ao caso “Raríssimas”. Esse nosso sucesso colectivo não abriu telejornais, não suscitou análises e debates aturados, não foi exaustivamente repetido nos canais de informação. Quase não passou de uma nota de rodapé.
      Tudo indica que a intenção, com o relevo proporcionado a este caso “Raríssimas”, é, sobretudo, atingir o governo na pessoa do seu ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, um dos mais competentes e experientes do elenco governativo. De resto, sobram razões para supor que a imprensa privada é quase toda ela avessa à actual política governativa, demonstrando-o a ênfase que põe em tudo quanto possa macular a sua imagem perante a opinião pública. Quando, para atingir um fim, não é suficiente o tratamento parcial e tendencioso dos factos, recorre-se à insinuação e à especulação para deixar no ar a suspeição sobre as pessoas supostamente envolvidas; e não raro se procede à sua incriminação e julgamento na praça pública, antes de decidirem os tribunais competentes.
       É evidente que a imprensa livre é indispensável à saúde da democracia. Mas para isso ela tem de ser séria, rigorosa, isenta e responsável, resistindo a que o interesse dos grupos financeiros que a sustentam se sobreponha ao bem comum. Mas quando vemos que casos como o da “Tecnoforma” e o do “Negócio dos Submarinos” quase passaram ao olvido, sem paralelo com outros que, envolvendo pessoas de diferente área política, foram muito badalados, dá para pensar que existe um comprometimento ideológico ou uma sintonia bem disfarçada entre certa comunicação social e as forças da chamada Direita, o que não é nada abonatório para a saúde da nossa democracia. Ainda recentemente, o gabinete antifraude da Comissão Europeia, contrariando as conclusões do Ministério Público português, considerou que a Tecnoforma cometeu "graves irregularidades" na gestão de fundos europeus, exigindo a devolução de 6.7 milhões de euros. Ora, a notícia não abriu telejornais, não foi ad nauseam repetida nos canais de informação, não suscitou debates na televisão.
      Os efeitos dos incêndios florestais deste ano continuam na mó de cima da agenda mediática, o que até seria de louvar se a intenção não fosse escrutinar uma qualquer culpa metafísica para quem governa, em vez de colaborar numa acção de verdadeira pedagogia social sobre o que fazer doravante para evitar ou reduzir a dimensão de semelhantes tragédias.
      Espelho da escassez de virtudes da nossa comunicação social em geral é também o tratamento dado ao futebol, com o descalabro e a sordidez a excederem os limites toleráveis num programa que a TVI 24 passa às segundas-feiras à noite. Tanto que jornalistas e analistas conscienciosos entendem que por este caminho se está a sentenciar a morte do desporto-rei entre nós e a comprometer um negócio que movimenta muitos milhões na economia.  
      Seria por demais exaustivo e fastidioso enumerar todo o lixo mediático que por aí abunda, com grande destaque para o que é vertido nos canais de televisão. Na impossibilidade de evitar a sua exposição ao ar livre e impedir a sua toxicidade, só nos resta uma maior selectividade e exigência na escolha dos programas televisivos que vemos em casa e na selecção dos jornais que lemos. Devemos fugir do voyeurismo de notícias sobre comportamentos sórdidos e aberrantes, de telenovelas e historietas sem conteúdo cultural ou mensagístico, de programas de divertimento banais e estupidificantes, enfim, de tudo aquilo que nos aliena e nos entorpece a atitude crítica indispensável a uma cidadania activa e consciente. Por outras palavras, juntar todo o lixo mediático numa pira incineradora, atear-lhe fogo e esperar que tudo se reduza a uma fumarola.
      Nesta quadra festiva, felizmente temos a possibilidade de pendurar na árvore de natal nacional alguns sucessos alcançados na gestão da nossa vida colectiva e de que muito nos devemos orgulhar.
      Desejo Boas Festas ao Templário e aos seus leitores.

Tomar, 18 de Dezembro de 2017
Adriano Miranda Lima

…PERO QUE LAS AY, LAS AY

segunda-feira, 23 de outubro de 2017
 Vamos por partes, melhor dizendo, por peças.

      Primeira peça.
      No passado dia 16 do corrente, passou na RTP1, a hora já adiantada da noite, talvez não por acaso, um documentário intitulado BILDERBERG, O FILME. Trata-se de um trabalho sobre as origens, a natureza e a expansão articulada de uma das organizações mais elitistas e secretas da actualidade: o Grupo Bilderberg. O seu autor é o arguto jornalista de investigação Daniel Estulin, lituano, que escreveu também o livro A Verdadeira História do Clube de Bilderberg; no documentário são vários os testemunhos e as intervenções de personalidades internacionais do jornalismo, da historiografia e da análise política, que se constituem em vozes insurgentes contra uma nova “Ordem” que parece estar na forja.
Integrando as individualidades mais poderosas, mais influentes e mais ricas do planeta, este Grupo constitui o escol no campo dos negócios, das finanças, dos meios de comunicação e da política. O documentário explica bem que esta oligarquia transatlântica financeira e política está por trás das crises petrolíferas e financeiras, da manipulação dos mercados, de golpes de estado, de quedas de governos e do fomento de guerras regionais convenientes. Em nome de uma ideia de governação mundial que suprima o estado-nação e converta o mundo numa grande empresa, com as riquezas e o poder de decisão concentrados nas mãos de um grupo de pessoas, são congeminadas estratégias e decisões que se repercutem na vida de todos nós, em todas as latitudes do planeta. Não se pretende promover a felicidade humana olhando-a como um fim supremo; a intenção é gerir a comunidade mundial valorizando mais o instinto animal do homem (um ser simplesmente consumista) do que a centelha de liberdade e criatividade espiritual que o distingue das outras criaturas e confere verdadeiro sentido à sua existência.
As reuniões do Grupo Bilderberg são sempre da ordem de 150 a 200 personalidades, e para elas são convidados jovens ambiciosos que se revelam ou iniciam na política ou no mundo das finanças. É neste contexto que se explica a entrada de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia, a avaliar pela revelação de Daniel Estulin quando declara que as suas fontes lhe confirmaram que Henry Kissinger, um membro permanente de Bilderberg, terá dito sobre o político português: “É indiscutivelmente o pior primeiro-ministro na recente história política. Mas será o nosso homem na Europa”. O acesso às reuniões é vedado aos mass media, mas proprietários de redes de comunicação seleccionadas são convidados a assistir, não para proporcionarem uma informação livre, mas para colherem directrizes subliminares com vista à formatação de uma opinião pública mundial favorável aos desígnios desta poderosa e influente oligarquia.

     Segunda peça.
      É óbvio que o sucesso da “Geringonça”, contrariando todas as previsões do FMI e da UE, e demonstrando quão discutível era a inevitabilidade da receita da “Troika”, está ao arrepio das conveniências daqueles organismos. Podem agora elogiar os bons resultados alcançados, mas certamente que o farão com um sorriso constrangido ou voz sumida. De facto, não lhes interessa o sucesso de outra via que não seja a consagração da receita de má memória que foi para centenas de milhares de criaturas que perderam os seus empregos, que viram os seus ordenados e pensões arbitrariamente cortados, que ficaram sem as suas casas, que tiveram de emigrar ou ficar dependentes das sopas da caridade pública. Deve preocupar à oligarquia que a “Geringonça” ganhe foros de um “case study” ou se torne fórmula para soluções governativas europeias onde as forças da Esquerda se fragmentam com os seus dissídios ideológicos. Em suma, a “Geringonça” está a provar que há uma alternativa para a receita imposta pelos mercados, está a pôr em causa a matriz ideológica patrocinada pelo Grupo Bilderberg. 

      Terceira peça.
      O principal partido da Oposição nunca se conformou com a solução governativa encontrada no Parlamento, tanto que o seu líder mais de uma vez anunciou que tarde ou cedo viria o Diabo acertar contas com o país, esperando depois retomar o poder em clima de apoteose. Certamente que ele se referia a um novo resgaste em face de uma aguardada falência da política financeira e económica do governo. Mas, enfim, o diabo assume as formas que quisermos e, de tanto ser invocado nos salões do poder, em vez de esconjurado nos átrios das igrejas, pode surpreender-nos com as manifestações mais inesperadas. Pois, há quem diga que o Diabo ouviu a voz tonitruante de Passos Coelho e mostrou a sua arma dilecta – o fogo – ceifando este ano vastas áreas florestais do país e levando no seu vórtice mais de uma centena de vidas humanas. A compaixão e a dor até nos podem levar a conceder se não teria sido preferível um novo desacerto nas nossas contas a troco das vidas humanas, porque estas nenhum resgate as repõe. Mas quedamo-nos interrogativos sobre as verdadeiras causas dos incêndios que neste ano, sobretudo os últimos, assolaram de forma tão instantânea como aparentemente concertada o território nacional. Caberá à Justiça averiguar e concluir se os 160 incendiários identificados agiram simplesmente do seu livre arbítrio ou estiveram, pelo menos alguns deles, a soldo de uma organização criminosa com fins económicos ou políticos. Sim, porque nem sempre é fácil distinguir a linha separadora entre a motivação económica e a política; e essa busca remete-nos forçosamente para a natureza e os propósitos do Grupo Bilderberg.
Por outro lado, não me convenço da existência de um nexo de causalidade entre a pessoa concreta da ministra recém-demitida, Constança Urbano de Sousa, e a fragilidade ou insuficiência do nosso sistema de prevenção e combate a incêndios florestais. O problema é de fundo e é estrutural e compromete todos, mas rigorosamente todos os governos das últimas quatro décadas, e envolvendo também a agora empertigada Assunção Cristas, que, sem pudor, não se questiona pelo que fez ou deixou de fazer no domínio das florestas, enquanto ministra da agricultura. Por isso, ocorre perguntar se no lugar da ministra demitida, ela teria feito mais, melhor ou diferente. Costuma-se dizer que presunção e água benta, cada qual usa a que quer. É nítido, pois, que para a Oposição os incêndios florestais deste ano são uma espécie de bóia de salvação, sem pejo nenhum em colher dividendos políticos por algo que lhe caiu do céu, com artefactos e prodígios do Diabo. Não deixa de causar repúdio a qualquer consciência esclarecida que a Oposição queira exultar-se com presumidos ganhos políticos à custa de uma tragédia nacional, ao invés de congraçar-se com as melhores soluções para um problema que imbrica necessariamente com toda a colectividade nacional.

      Quarta peça.
      É estranho mas talvez não surpreendente que a nossa comunicação social se mostre quase toda ela afinada por um mesmo diapasão, dando a ideia de domesticada por algo que está na sombra mas imanente e incontornável. Salvo raras e honrosas excepções, o tratamento das notícias é pouco digno de uma imprensa livre, limpa e honrada, como o demonstra, entre outras tristes evidências, a ignóbil a tentativa de explorar até à exaustão a desgraça alheia, sem outra finalidade que não seja produzir um eco social desfavorável ao governo. Jornalistas, repórteres e fazedores de opinião devidamente seleccionados parecem autênticas marionetas. O discurso é genericamente ambíguo, redondo, vazio, certamente para não arriscar entrar em disrupção com o paradigma instalado.
Vindo ao encontro do que eu penso, no blogue “AS PALAVRAS SÃO ARMAS”, o general da Força Aérea na reserva Vítor Cunha, em texto de 16 de Outubro do corrente, afirmou que: “Começa a ser muito difícil olhar para estes fogos como se fossem todos eles produto de causas naturais ou de incendiários loucos ou doentes. A coisa tem, inclusivamente, contornos demasiado odiosos para ser obra do chamado lobby dos fogos. Não, por mim deixei de ter dúvidas, isto faz-me lembrar os incêndios às sedes do PCP por esse país fora (sobretudo a Norte, também), no Verão quente de 1975, com o intuito de enfraquecer e derrubar o poder político da época. Repito: não tenho hoje grandes dúvidas que estes fogos são obra de gente a soldo de quem está interessado em derrubar este poder político. Não sejam ingénuos, as pessoas são extremamente activas nestas actividades, sobretudo quando não lhes restam grandes alternativas no plano da luta política”. Prosseguindo, o general afirma: “Se o leitor ainda achar que estou a exagerar, note apenas o seguinte: este fim-de-semana, atendendo à chuva prevista para os próximos dias e à chegada de tempos mais húmidos e com menores temperaturas, era a última oportunidade de provocar danos físicos graves e, eventualmente, danos políticos na "geringonça”. Viu-se o que aconteceu, acha o leitor que foi apenas coincidência? E então, vamos continuar a fingir que todos estes fogos não são acções inimigas do actual poder político? Vamos continuar a ter medo de chamar os bois pelo nome?”.
Ora, o autor do texto faz uma especulação com propósito e toda a liberdade lhe assiste nesse sentido. E poderia ainda ter sublinhado que a estranha e devastadora guerra incendiária deflagrada em 15 de Outubro seguiu-se a uma pesada derrota eleitoral do principal partido da oposição, sentenciando a morte política do seu líder.
      Juntando as peças do meu discurso, há razão para crer que misteriosos cordelinhos entrelaçam uns e outros, comunicação social, o mundo dos negócios e políticos obedientes e domesticados ao serviço de uma causa que está para além do interesse nacional. Perante tantas evidências e coincidências, apetece-me concluir nestes termos: Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.

Escrevo segundo a antiga ortografia.

Tomar, 23 de Outubro de 2017
Adriano Miranda Lima

Efeitos lactogéneos da bafureira

sábado, 14 de outubro de 2017
Nota ao Leitor: De acordo com o autor - o nosso prezado e sempre bem-vindo colaborador e clínico Arsénio Fermino de Pina - o texto que se segue destinou-se a uma revista de saúde infantil, publicada em Coimbra.
Pois bem, o artigo versa um tema já aqui publicado, a célebre festa ou a comemoração do sétimo dia de nascimento da criança, mais conhecida entre nós por: “Guarda Cabeça” ou “Festa de Sete”, celebração com fundas raízes  nestas ilhas. Recordemos a descrição de Augusto Casimiro, sobre o evento na ilha Brava e o texto do poeta José Lopes sobre as possíveis origens do facto em apreço.
 Ora bem, o texto de Arsénio de Pina vai nesta linha e com enfoque bem interessante sobre a amamentação do recém-nascido, coadjuvada pela também conhecida planta, bafureira ou bofareira.
Um convite ao leitor para uma leitura ilustrativa de certos usos e costumes do antanho do Arquipélago.


S. Vicente, 30 de Maio de 2017-05-30
                                                           Exmo Senhor Director da
Revista SAÚDE INFANTIL
                                                                                  COIMBRA
         A localização de um texto, do século XIX, enviado de Cabo Verde, por um irmão do Prof. H. Carmona da Mota descoberto na sua visita periódica a alfarrabistas, tratando dos efeitos lactogéneos da bafureira (planta do rícino, também conhecida sob o nome de bofareira, bofarêra, mamona, carrapateiro, catapúcia, etc.), na Revista Universal Lisbonense, 1ª série, Tomo II, 1842/1843, levou-me a fazer pesquisas até encontrar a confirmação da notícia num dos livros do escritor cabo-verdiano Germano Almeida. Fi-la chegar ao Prof. Carmona da Mota, que me tinha contactado a saber se conhecia essa acção da planta, tendo-me sugerido, ao enviar-lhe os elementos coligidos, que comunicasse os factos descobertos à Acta Pediátrica ou Saúde Infantil. Como continuo a ser assinante da Saúde Infantil, tendo até publicado na Revista “A Saúde das crianças em Cabo Verde”, de parceria com Bjorn Wenngren e Ingve Hofvander – separata de “Saúde Infantil”, nº 2, Setembro 1984, faço chegar esses factos à Revista que, se encontrar interesse neles, poderá publicá-los. Incluo recortes do livro do citado escritor, “Regresso ao Paraíso”, onde encontrei referências à tradição, outros textos, juntando alguns esclarecimentos da minha experiência como pediatra cabo-verdiano.
         Antes de mais, o texto descoberto: “Já se terá reconhecido pelos nossos artigos 176, 324 e 1173, a grandíssima utilidade que para a amamentação, especialmente nas misericórdias se poderá sacar da bafureira, se de véras há n´ella a lactígena virtude, que apregoam, e transplantada para o nosso clima a não perverte, continuando pois a pedir aos médicos e cirurgiões, que façam na matéria todas as possíveis tentativas, continuaremos ao mesmo tempo a ajuntar para este processo quantos documentos nos vierem à mão. A carta que abaixo transcrevemos nos foi graciosamente oferecida pelo Exmo Sr. Visconde de Sá da Bandeira, que foliando do cavalheiro que lh´a escreveu, nol-o abona por pessoa de toda a confiança, residente n´aquelle tempo na Ilha de S. Nicolau, e ao presente nesta cidade de Lisboa” CARTA : “Exmº Sr. Joaquim Marques, capitão de navios, e sua mulher D. Maria do Carmo Marques, naturaes d´este reino, foram para Cabo Verde em 1808 por causa da invasão francesa e estabeleceram-se em S. Nicolau em 1818 ou 13: teve esta senhora a infelicidade de perder a vista, um anuo depois, pouco mais ou menos, teve um filho por nome António: vendo-se ella impossibilitada de o crear, chamou uma mulher por nome Maria Ganela, que costumava a visitar a sua casa e fazer-lhe algum serviço como criada, e lhe pediu quizesse incumbir-se de amamentar seu filho; esta mulher contava então 71 annos de idade; não poz objecção, fez o tratamento com a planta lá chamada bafureira, e em S. Thiago jagué jagué; no terceiro dia veio-lhe o leite em muita abundância; e criou o menino forte e robusto, sem ter nunca mais pequena moléstia: os pais do rapaz ainda existem, e ele também: o leite da velha foi examinado por um médico inglez, que o achou excelente.
         Bem podia eu relatar a V. Exª centos de casos como este, e dar-lhe os nomes de muitos que foram assim creados por avós, tias, primas, e mesmo por algumas mulheres caritativas que não são raras n´aquellas ilhas; porém limito-me só a este caso por ser o mais extraordinário, em razão da grande idade da mulher. V.Exª pode afiançar isto em qualquer parte sem receio de ser desmentido. Sou com todo o respeito e amizade De. VExª, venerador e a migo obrigado”
                                                            João António Leite

         Lê-se no livro do Germano Almeida (natural da Ilha da Boavista),“A Família Trago”, o seguinte que corrobora o assunto acima descrito: “… Quando nha Ninha recebeu a nova de que o seu afilhado já estava a caminho, começou a acompanhá-lo cada dia com um carinho e cuidados cada vez mais redobrados, deslocando-se à casa dos Trago para pessoalmente fazer a fricção de azeite de purga na barriga da mãe, cuidando da planta de bofareira que mandou colher e guardar, porque explicava, o suadouro da bofareira não só servia para apertar as entranhas desconjuntadas da mulher pelo esforço de suportar durante nove meses uma criança a crescer dentro dela e depois pari-la, como para obrigar o organismo a reagir e a produzir leite em abundância”.
         Uma senhora da Boavista contou a um amigo meu, letrado nesses assuntos, que consultei, que as folhas de bofareira eram cozidas num bacio de barro, onde se sentavam as parturientes a fim de receberem o vapor produzido, o que melhorava a qualidade e a quantidade de leite materno. Ela mesma, aquando do nascimento da primeira filha, há 43 anos, submeteu-se ao tratamento com bons resultados. Não referiu a função higiénica e outra através da Delta de Venus (Anais Nin), possivelmente por pudor.”
         No romance do mesmo escritor, Regresso ao Paraíso, encontra-se a página 139: “Durante os seis primeiros dias após o nascimento a família podia ainda relaxar-se um pouco os cuidados. Porém, na noite do sétimo dia, a famosa “noite de sete”, era a noite do alerta máximo, porque sem dúvida a mais temerosa e aziaga, dado que nessa noite as bruxas perdiam completamente o tino e o recato, ficavam endemoniadas na raiva de saberem que estavam desbaratando a última oportunidade de se banquetearem à grande e à francesa com as tenras carninhas do bebé.” […] “Para as esconjurar nesse perverso desígnio e afastá-las do local onde estava a criança que perseguiam, era preciso que dentro da casa houvesse grande barulho, muita confusão de gritos, vivas e demais alarido por toda essa noite. Com cantos, com música, com festa, com muito grog e muita comida, com muito sal grosso atirado a espaços sobre o telhado, acompanhado de insultos e uma longa tesoura escondida debaixo do travesseiro do menino, e sobretudo com palavras cabalísticas “vai para o espaço superior, vai ensombrar a tua mãe, com este aqui não tens poder porque ele é da parte de Nosso Senhor Jesus, vocês são da parte d´Aquele Homem pelo sinal-da-santa-cruz”. […] “Mas finalmente chegava a meia-noite sem mais sobressaltos, a parturiente mais o bebé eram solenemente trazidos do quarto para a sala ao som dos instrumentos de corda, violino, viola, cavaquinho, que alguns convidados tinham levado, e ali, de pé, cerimoniosamente ouviam embevecidos a bela morna esconjuradora de todos os males que nhô Eugénio Tavares tinha dedicado à alma de um amigo, cantada em sentido e aliviado coro por todos os presentes na festa: Ná, ó menino ná/ sombra rum fugi di li/ Ná ó menino ná/ Dixa nha fidjo dormi/Sono di bida, sonho de amor,/ Ou graça, ou dor,/ Es é nós sorte…/ Se Deus, más logo, mandano morte, /Quem que tem medo/ Ta morrê cedo”, enquanto a madrinha, com a tesoura recuperada de debaixo da almofada, cortava o ar em redor do recém-nascido em todas as direcções, como forma de afastar e mandar para o espaço qualquer coisa ruim ou mal-intencionada que pudesse ter entrado e estar ali a rondar com intenções maléficas. E terminada a morna, mas sempre ainda ao som os instrumentos, todos, comovidamente e um por um, abraçavam e beijavam a mãe e depois os pezinhos do bebé, apertavam a mão do pai, e finda a sessão de cumprimentos continuavam a festa em alegria redobrada.”
         Há outros hábitos e costumes ligados à criança, que ainda se mantêm em praticamente todas as ilhas, embora menos frequentes, desde que se pôs de pé, o Programa de Saúde Materno-infantil e planeamento familiar (PMI/PF), após a independência, mas só transcrevo estes, resultado da tradição e experiências das pessoas. Realmente, e posso atestar isso por ter começado a trabalhar como clínico geral em várias ilhas desde 1967 até 1971, e somente em 1976 é que regressei ao país, com um interregno de cinco anos na especialização em Pediatria e Saúde Pública. Antes da PMI/PF, as mortes por tétano umbilical e hemorragia dos recém-nascidos eram frequentes por se utilizar can-can (rapé) e terra fina para facilitar a secagem do cordão umbilical, terra que veiculava, bastas vezes, esporos do Clostridium tetani, manifestando-se a doença (quase 100% letal) antes dos sete dias, bem como a hemorragia, também por essa data, período que o organismo do recém-nascido leva para adquirir autonomia na produção da Vit K endógena. Actualmente, como a vacinação antitetânica das mães é muito elevada em Cabo Verde, se administra vitK injectável aos recém-nascidos, e a acção da PMI/PF é eficaz, essas doenças são raríssimas, bem como o sarampo e a paralisia infantil, praticamente erradicados.
         A “noite de sete” também se chama, em certas ilhas, “guarda cabeça”.
Glossário:
Grog - aguardente de cana sacarina
Di li - daqui
Rum - ruim
Dixa  - deixa
Nha- meu, minha, senhora
Fidjo - filho
Es é nós sorte –esta é a nossa sorte ou sina
Nhô - senhor

Fontes de consulta:
Revista Universal Lisbonense – 2º volume
A Família Trago, de Germano Almeida
Regresso ao Paraíso, de Germano Almeida
Sobre o uso medicinal: Mamona – usos, efeitos colaterais, interacções e avisos, no Google Chrome
AECCOM, Anais, volume 1,nº 1 e volume 1, nº 2, 1999. Mindelo. Cabo Verde.

 S.Vicente, 31 de Maio de 2017                                                    
Arsénio Fermino de Pina

PS Encontro-me de férias, até fins de Julho, em S. Vicente, Cabo Verde. Email pinaarsenio@gmail.com


O CENTENÁRIO DO GIL EANES E O ESCANTILHÃO DA MEMÓRIA

sexta-feira, 6 de outubro de 2017
Pela simples circunstância de ter preopinado sobre o tema concreto de uma das palestras agendadas para a comemoração do centenário do “Liceu Nacional de Cabo Verde”, obliterei, ou adiei, o momento de manifestar publicamente o meu apreço de cidadão por aqueles que aceitaram assumir a organização desse evento em nome da nação cabo-verdiana. Por isso, faço-o agora, com o sentimento de orgulho e gratidão de que não pode abdicar nenhum conterrâneo.
Quando, no meu texto (1), focalizei a atenção num excerto da entrevista de Amiro Faria para extrair elementos estruturantes da minha argumentação, poderá ter passado a ideia de que pretendi conflituar ou afrontar as intenções que o meu ilustre conterrâneo propugna para o êxito da comemoração. Mas não, longe de mim semelhante propósito; tal seria absurdo, tanto mais que as suas palavras serviram-me apenas como função veicular. O meu objectivo era, e é, tão-só, o tema da palestra que se propõe Leão Lopes, não por discordar da temática em si − Liceu Gil Eanes, Consciencialização Política e Resistência Colonial, O caso “Semente de Manga”− mas por entender que é um exagero considerar o antigo reitor um caso paradigmático da repressão colonial. Mas sobre este tema voltarei mais adiante. Impõe-se é desde já assinalar que, como todo o cabo-verdiano, tenho Amiro Faria em alta consideração cívica, por aquilo que representa como cidadão e por tudo o que tem dado ao nosso país, como o atesta a actividade pública que já exerceu com comprovada competência e as valiosas ideias que tem exprimido sobre várias matérias de interesse colectivo.
Na verdade, reitero a minha absoluta discordância com a ideia de trazer o alegado “Caso Semente de Manga” para o pelourinho da fustigação pública. Não o faço por estar mandatado para defender ou justificar o professor Antero Simões, que não deve sequer imaginar o que escrevo e torno público. E enganar-se-á redondamente quem possa supor nas minhas palavras outra servidão que não aos ditames da minha consciência. É exactamente por eu ser também usufrutuário do legado cultural que o liceu Gil Eanes representa, que me julgo no direito de emitir uma opinião própria sobre o caso. Faço-o com o distanciamento temporal indispensável a uma avaliação fria e objectiva dos factos, conforme aconselha Foucault no seu conceito de Problematização. E também com a autonomia intelectual e moral que desprenda a minha narrativa de qualquer tutela, seja ela política, seja ela determinada por qualquer preconceito, modismo ou corrente de opinião. Eu julgava o Antero Simões já fora do mundo dos vivos até ter tido um contacto com ele por mera casualidade e conforme expliquei no artigo anterior. O que, de facto, me surpreendeu foi notar-lhe um renovo de alma quando soube que um antigo aluno cabo-verdiano quis saber do seu destino.
Ora, é por estar em causa a dialéctica dos meios e dos fins que me permiti questionar se, de facto, o “Caso Semente de Manga” deve ser ressuscitado na comemoração do centenário. Eu julgo que não porque reafirmo que o professor foi mais vítima das circunstâncias do que o tal carrasco com que foi conotado. É que para mim ele foi mal escolhido para reitor, e pior ainda se a intenção foi mesmo incumbi-lo de uma “missão especial”, como é suposto. Não tinha idade e experiência suficientes para o cargo e faltavam-lhe sobretudo requisitos naturais de liderança, assim como uma estrutura psicológica ou emocional adequada. E isto é que me espanta porque não é concebível que o então governador, Silvino Silvério Marques, um homem de fina inteligência e oficial de gabarito, possa ter incorrido em semelhante erro de casting. De resto, o Silvino Silvério Marques não era seguramente um salazarista ferrenho, definia-se mais propriamente como um oficial imbuído de elevado espírito de missão e, sem ponta de dúvida, um humanista, como o provou preocupando-se mais com o resolver o problema da fome na nossa terra do que com o policiamento da ordem do Regime.
Conforme refiro no artigo anterior e referenciado no fim deste texto, Antero Simões é hoje um homem fragilizado pela idade e corroído pela mágoa do seu insucesso em Cabo Verde como reitor de liceu, e, por sinal, deixando transparecer facilmente a insegurança emocional e a fragilidade psicológica que lhe devem ser congénitas e não o recomendavam para o cargo. E para agravar o seu estado, perdeu recentemente a esposa, vítima de cancro. O que lhe parece dar ânimo, talvez suprindo a solidão interior, é a sua intensa e profícua actividade literária, tendo produzido obra biográfica de valor inestimável sobre o Eça de Queirós nas suas múltiplas facetas, de homem, escritor, polemista e cidadão.
Sucede que depois de ler o texto de alguém que era um adolescente de 15 anos à data dos acontecimentos, reclamando a co-autoria do assalto às instalações do liceu, reforçou-se-me a convicção de que o episódio que espoletou a queda do reitor, foi mais um acto de rebaldaria e irreverência juvenil do que uma acção de resistência pensada e organizada contra a “opressão colonial”. Que leitura faço daquele texto? Desculpar-me-á o seu autor mas penso que entram aí doses de efabulação e metonímia. O autor, agora homem maduro e certamente exemplar cidadão, gaba-se e baba-se pela autoria de uma façanha em que não vejo motivo nenhum para gáudio ou vanglória. Quando se lêem palavras do aludido texto deste teor, ispsis verbis: “Queremos os mondrongos fora da nossa terra"; "Queremos reitor caboverdeano"; tem de se denunciar um flagrante sentimento xenófobo e um radicalismo que surpreende quando comummente se glosa o espírito de tolerância e convivialidade dos mindelenses. Será para mim decepcionante se se confirmar que aquele sentimento xenófobo foi menos um arrobo juvenil instantâneo do que um sentimento que o adulto de hoje amadureceu e cristalizou no espírito. Porque será então caso para lhe perguntar o que pensariam os autores da bravata de homens que foram grandes beneméritos para a nossa terra como o Dr. Regala e o Dr. Baptista de Sousa, também eles “mandrongos”, um imortalizado em estátua numa praça do Mindelo, outro no frontispício do hospital da ilha. Isto para não falar de outros mais que se inscreveram facilmente na nossa idiossincrasia e na esfera da nossa humanidade.
É certo que alguns alunos mais velhos tinham, na altura, cada um a seu modo e em grau variável, uma opinião crítica em relação à acção do reitor. Mas não creio que aqueles que, como eu, eram finalistas, pudessem enveredar por actos de pouca civilidade, que seriam contrários aos padrões comportamentais ou à maturidade psicológica que, embora em fase incipiente, estavam em processo de modelação nas nossas jovens personalidades. Desta maneira, defrontamo-nos com a ironia desta constatação: não fora o tal “assalto” ao liceu perpetrado por rapazes de quinze anos, provavelmente não se teria configurado a acção de “resistência anticolonial” que conduziu à destituição do reitor. Poderia vir a acontecer mais tarde, é certo, mas provavelmente em moldes diferentes ou por outras vias. É exactamente por isso que eu sugiro maior ponderação nos juízos que o “Caso Semente de Manga” possa suscitar, para evitar hiperbolizações, manipulações ou mistificações que levem a confundir actos administrativos precipitados, canhestros ou excessivos com propósitos de “repressão colonial”.
A vida é breve, o tempo e os acontecimentos fluem vertiginosamente e desaguam nesse silêncio onde procuramos rebuscar a memória, ordená-la e construir a história. Esta é mais fidedigna se apaziguarmos o ânimo e mantivermos a capacidade de lobrigar que a nossa condição humana sucumbe à sua própria incapacidade de se interrogar, quanto mais de julgar. Com isto tudo quero apenas sugerir que seja exaltado e celebrado, e muito bem, o papel que o Gil Eanes exerceu na nossa consciencialização cívica, e mais tarde política, mas sem entrar-se em endeusamentos ou diabolizações de meros peões de xadrez. Dê-se lugar aos grandes vultos da história do liceu Nacional de Cabo Verde, ignore-se o que não passa de episódio menor, transitório, perecível à fogueira da ilusão ou do delírio.
Em minha opinião, o velho professor, que diz ter a ilha de S. Vicente no coração, mais do que Angola, para onde seria compulsivamente transferido, foi apenas um peão de xadrez desacertado no tabuleiro do jogo. Foi mais vítima de uma má escolha administrativa para a função de reitor do que agente de “opressão colonial” aturdido nos trâmites da sua missão. Ele próprio reconhece que a sua vocação era ensinar e não administrar. Foi o que me disse com grande angústia visível no rosto, o que me leva a perguntar se ele não foi também vítima da política autoritária que terá pretendido servir com obediência acrítica.
Meus caros conterrâneos e antigos colegas de liceu, interposta a sugestão que as minhas palavras subentendem, deixemos que o escantilhão da memória nos trace a perspectiva mais correcta para revisitar e celebrar a história do Gil Eanes.

(1) Artigo intitulado O Alegado “Caso Semente de Manga”, Entre a Mistificação e a Politização, de Set/2017, publicado no jornal online Notícias do Norte e no blogue Coral Vermelho.

Tomar, 4 de Outubro de 2017
Adriano Miranda Lima





O ALEGADO “CASO SEMENTE DE MANGA” ENTRE A MISTIFICAÇÃO E A POLITIZAÇÃO

sexta-feira, 22 de setembro de 2017
Porque pouquíssimos leitores conhecerão o significado e a razão da expressão em título colocada entre comas, passo a explicar. Trata-se da alcunha com que um aluno do antigo liceu Gil Eanes crismou o Dr. Antero Marques Simões (AMS), português, natural da Póvoa de Varzim, que foi professor naquele estabelecimento entre 1959 e 1963 e exerceu o cargo de reitor a partir de meados de 1962. A alcunha ficou a dever-se ao facto de o AMS usar o seu cabelo bastante liso colado à cabeça.
      Tudo isto só vem a propósito porque em entrevista publicada no jornal online Mindelinsite, o ilustre cidadão Amiro Faria, que integra a comissão organizadora das comemorações do centenário do Liceu Gil Eanes, afirmou, entre outras declarações:Além destes (palestrantes), o escritor Leão Lopes assume a tarefa de falar sobre a “Consciencialização política e resistência colonial – O caso do semente de manga”, que é um facto bastante notável de jovens que se rebelaram contra a presença colonial. No passado, o Liceu acolheu portugueses que deixaram boas recordações, caso do famoso professor de matemática Aristides Gonçalves. Mas, o Antero Simões, mais conhecido por ‘semente de manga’ era um homem da mocidade portuguesa, que pertencia e que estava comprometido com o regime que nos queria oprimir. Portanto, os estudantes revoltaram-se contra ele e não foi contra um português qualquer, foi contra um homem da máquina colonial opressora. Não era uma oposição anti-lusa, porque na altura tínhamos vários colegas portugueses e nunca houve quaisquer problemas com eles a não ser quando algum se arvorava de ser mais esperto e arrogante pelo simples facto de ser português”.
      Ora, antes de mais, surpreende-me que seja Leão Lopes a falar sobre o “Caso do Semente de Manga”, porque, adolescente dos seus catorze anos quando Antero Marques Simões (AMS) deixou o liceu, não foi seguramente seu aluno e mal deve ter conhecido a pessoa. Assim, Leão Lopes só pode construir e sustentar a sua tese com base em narrativa alheia, que pode ser legítima mas não necessariamente pautada pela objectividade e pela isenção. De facto, a avaliar pelo título da sua palestra, receio que o autor se fundamente apenas em fontes que podem estar contaminadas por preconceitos ou sentimentos pessoais que nem o tempo conseguiu delir. Possivelmente, as atoardas e objurgatórias de outros tempos ainda retinem no diapasão de algumas consciências que detestavam o professor pelo seu modo peculiar de ser ou pela sua identificação com o ideário salazarista de um Portugal uno do Minho a Timor, que ele não ocultava mas também não publicitava ostensivamente.
      Da minha parte, nunca alimentei qualquer animosidade contra o AMS nem seria capaz de me referir à sua pessoa utilizando aquela alcunha. Do que mais guardo memória é das suas notáveis qualidades como docente e pedagogo, enquanto meu professor de português nos antigos 4º e 5º anos do liceu. Não me lembro de alguma vez o AMS ter feito qualquer alusão à política do Estado Novo nas aulas, de forma explícita ou sequer insinuada. Eu ignorava completamente o rumo que a sua vida tomou após sair de Cabo Verde e nunca mais soube dele até receber, há três anos, o telefonema de um correspondente meu residente em França. No facebook, ele lera que um tal Dr. Antero Simões ia lançar um livro na Póvoa do Varzim e pretendia que eu averiguasse se se tratava do “Semente de Manga”, expressão de que fez uso com jocosidade e disparando uma gargalhada.
      De facto, prometi averiguar e nesse sentido enviei um e-mail para a Biblioteca da Póvoa de Varzim, por ali ter ocorrido o lançamento do livro. Deixei os meus dados pessoais e contacto telefónico para me poder ser prestada a informação pretendida. Para minha surpresa, receberia dias volvidos um telefonema do próprio AMS, mostrando-se radiante e mesmo exultante pelo facto de um antigo aluno de Cabo Verde ter procurado saber da sua pessoa. Contou-me o que lhe aconteceu depois de sair de S. Vicente e ficámos a corresponder por correio electrónico. Fui logo convidado para o lançamento do seu livro (sobre Eça de Queirós) em Lisboa, de que me enviou um exemplar por correio. Na correspondência electrónica que se seguiria, a mágoa do que lhe aconteceu em S. Vicente vinha sempre ao de cima e percebi tratar-se de uma ferida na alma que nunca cicatrizou e vai manter-se viva até ao fim da sua existência. No entanto, em todas as nossas conversas, arranjava sempre pretexto para falar de Cabo Verde e do carinho que sentia pela nossa gente.
      No meu entendimento, à volta da pessoa do AMS, e à revelia das qualidades do docente, criou-se uma imagem negativa proporcionada por duas contribuições distintas. De um lado, a chacota que a alcunha suscitava entre os alunos irreverentes e quantas vezes pródigos em atitudes parvas, descabidas e alarves. De outro lado, os juízos que alguns alunos mais velhos tendiam a fazer sobre alguém que, sendo “mandrongo”, só poderia personificar no liceu a autoridade colonial (ou colonialista) e repressora, a partir do momento em que foi nomeado reitor e, em acumulação, encarregado da Mocidade Portuguesa (MP). Naturalmente que os julgamentos que uns e outros, como eu, poderiam formular em questões desta natureza, dependiam de preconceitos que são do foro íntimo e de horizontes mentais que cada um construía à medida das suas capacidades intelectuais, mas sempre com as naturais limitações impostas pelo meio e pela censura política. Contudo, não creio que a essa época algum de nós estivesse imbuído de uma crença política alicerçada em sólido conhecimento filosófico ou doutrinal ou balizada por uma convicção razoavelmente esclarecida.
      Indirectamente, a alcunha “Semente de Manga” é que espoletou o incidente que originou a destituição de AMS do cargo de reitor. Com efeito, certo dia de 1963, um aluno, logo de manhãzinha, lembrou-se de pregar na porta de entrada do liceu a semente de uma manga. O estabelecimento não se abriu à hora normal e os alunos foram-se aglomerando no exterior, aguardando qualquer resolução. A dado passo, a mole humana dos alunos abandonou o local e rumou para a rua de Lisboa, com um ou outro a gritar palavras de ordem contra o reitor. O acontecimento teve impacto imediato e o reitor foi logo suspenso das suas funções. Seguiu-se um inquérito ou averiguações em que eu e alguns alunos, por sermos finalistas do liceu, fomos chamados a depor.
      Ora, temos de analisar os factos pondo de lado as paixões e os preconceitos, sem o que cilindramos a verdade ou a manipulamos ardilosamente em função das nossas conveniências. E a verdade é que, em minha opinião, o AMS não correspondia ao estereótipo que alguns dos meus companheiros julgavam. Só não o quererão ver os que, infelizmente, ficaram presos no tempo ou então aqueles em que o preconceito político ou de outro jaez mora de pedra e cal, renitente mesmo, impedindo a descolonização definitiva dos espíritos.
      Com efeito, à volta do AMS criou-se e mantém-se, a meu ver, uma imagem distorcida sobre a sua verdadeira natureza humana, em simultâneo com uma total omissão das qualidades que evidenciou como docente no nosso Gil Eanes. Quanto à questão política que é invocada para fundamentar a intenção de o julgar sem apelo nem agravo, e de o vilipendiar, o AMS, na verdade, acreditava, como certamente ainda acredita, no ideário salazarista de um Portugal utópico do Minho a Timor, num absurdo autismo face ao caminhar da História. Contudo, a sua visão era a de um homem crédulo nas virtudes que ingenuamente supunha existir na doutrina salazarista, talvez aceitando como um mal necessário a ausência de liberdades cívicas e a repressão política. É que no seu espírito abrigava uma versão do salazarismo a que emprestava apenas colorações humanistas, acreditando num espaço comum onde haveria uma igualdade de direitos entre os povos, sem distinção de raças ou etnias. Tendo nascido no Estado Novo e sido educado segundo a sua cartilha, aliás, como todos os portugueses da sua geração, mesmo os naturais das colónias, AMS não via qualquer malefício na política de Salazar e não pertencia ao rol dos seus críticos e menos ainda daqueles que a condenavam e combatiam. E o que é curioso, se não irónico, é que AMS não pertencia àquelas ricas e influentes famílias que apoiavam e patrocinavam a política salazarista porque colhiam os dividendos da exploração dos povos das colónias. Pelo contrário, homem bom e simples, sem qualquer presunção, fez saber em Cabo Verde que era filho de um alfaiate e neto de pescador. Ora, um professor de liceu “mandrongo”, vaidoso e pretensioso, como o querem catalogar, não chega a uma colónia e confessa a sua modesta origem social assim de forma tão explícita e natural.
      Pelo que precede, acho abusivo, se não mesmo uma monstruosa falácia, afirmar que o professor era “um homem da máquina opressora colonial”, conforme as palavras de Amiro Faria, o que pode sugerir ao leitor a ideia de que ele foi colocado no Gil Eanes para doutrinar jovens e adolescentes. Por outro lado, considerar que o cargo de chefia que passou a deter na Mocidade Portuguesa (MP) era prova cabal da suspeição que sobre ele recaiu, não constitui argumento sério. Não se esqueça que houve entusiastas e antigos filiados da MP que aderiram ao PAIGC e à independência de Cabo Verde nos moldes precisos em que ela ocorreu. Certo cidadão que foi outrora um destacado graduado da MP viria mesmo a exercer um cargo importante na segurança (ou polícia política?) do novo estado independente. Bastou um conveniente virar de casaca a seguir ao 25 de Abril. Bem afirmou William Shakespeare, aludindo à hipocrisia, que “os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são”.
        Na correspondência que estabeleci com AMS, o professor confessou-me que antes de ser reitor no Gil Eanes nunca pertencera sequer àquela organização e que só aceitou o cargo porque foi uma exigência para ser nomeado reitor pelo governador de então. Eu aqui não posso ajuizar porque desconheço em absoluto o que se passou em sede de decisão. Em todo o caso, não houve notícia de que o responsável local pela MP tivesse procedido nesse cargo de forma muito diferente dos seus antecessores. Percebi, por aquilo que me confessou, que ele via a MP como um espaço onde os jovens se entretinham em actividades lúdicas, desportivas e formativas. O que julgo fez entornar o caldo foi ter exigido a obrigatoriedade da comparência à Milícia, que era a versão da MP a partir dos 18 anos ou do sexto ano do liceu, sob pena de perda de ano por faltas. No entanto, não me recordo de ter havido sanção disciplinar contra alguém que tenha incumprido. Mas a verdade é que foi sobretudo essa medida, ou o modo desastrado como foi imposta, que fez espoletar uma certa má vontade contra o reitor, porventura agravada pelo facto de ser “mandrongo”.
      E chegado aqui vou fazer uns juízos, naturalmente subjectivos, por aquilo que observei no homem que é hoje o velho professor. Julgo que o ASM denota uma certa fragilidade emocional que nem com a idade ultrapassou. A sua estrutura psicológica talvez não o recomendasse para o cargo de reitor à idade que tinha na altura (trinta e três anos), e a verdade é que não se saiu bem no seu desempenho. Foi o próprio AMS que, remoendo a sua mágoa, me confessou esta pergunta que viria pelo tempo fora a fazer constantemente a si próprio: “Antero, quem te mandou aceitar seres reitor se eras ainda muito jovem e se o que mais adoravas era ensinar aquilo que sabias?”. Ao fazer esta afirmação, deu a entender, reconhecendo a sua falha, que como reitor devia ter tido uma atitude algo mais cautelosa e mais prospectiva, antes de introduzir as alterações com que, no seu ponto de vista, tencionava uma melhoria do funcionamento do liceu. Direi que ele não terá avaliado convenientemente todos os parâmetros do circunstancialismo do meio social local.
      Por tudo o que precede é que me parece errado rotular o AMS de ditador ou instrumento de repressão colonial, porque em boa verdade, e conforme vai ficando nítido a quem queira ver, esse papel não se lhe quadrava. E nem o desejaria porque era, e é seguramente, um ser de boa natureza. O que é de facto questionável é a razão por que foi nomeado reitor quando havia colegas mais velhos e mais antigos no estabelecimento de ensino. Foi porque ele era “mandrongo”? Ou porque mais ninguém pretendia o cargo? Desconheço em absoluto.
      Demonstrando-me que nutria um especial sentimento de solidariedade para com a nossa gente, fez-me estas revelações: pagava à sua criada bem mais do que era praticado no meio porque conhecia bem as suas necessidades pessoais; ajudou financeiramente umas poucas de vezes o guarda do clube de ténis onde aprendeu a praticar a modalidade; deu aulas particulares grátis de latim, à noite, ao Corsino Fortes, na altura em que este se preparava, como adulto, para ir para o curso de Direito em Lisboa; a sua mulher, Maria das Dores, que era professora mas não exercia, cosia à noite fardas da MP para os alunos que tinham dificuldade em a comprar. Isto era procedimento de alguém arrogante, distante e colonialista de maus fígados?
      Pois, acredito que se os detractores deste homem conhecessem bem a sua verdadeira índole, a comissão organizadora não aprovaria que um dos palestrantes o elegesse como bombo da festa da comemoração do centenário do nosso Gil Eanes. Quando fui ao lançamento do seu livro em Lisboa, para que fui convidado, estiveram presentes muitos dos seus alunos de Angola, alguns deles mestiços. Chalaceavam com ele, ao encontro do seu jeito peculiar de ser, e todos demonstravam especial carinho pelo antigo professor, sem nenhum sinal de hostilização ou de dívida por cobrar. Nesse evento esteve também presente uma criada que o AMS teve em Angola, cabo-verdiana, acompanhada de um filho. A este respeito, confidenciar-me-ia que quando foi transferido para Angola fez questão de procurar lá uma criada que fosse filha das nossas ilhas para assim poder matar as saudades. No fim, reparei que ele puxou da carteira para dar algum dinheiro à mulher, já idosa.
      Por conseguinte, há necessidade de clarificar os factos para evitar mistificações em torno de uma pessoa que pode ter sido mais vítima das circunstâncias do que o algoz em que alguns o querem transformar. Nesse sentido, sugiro acima de tudo ao Leão Lopes que evite pessoalizar quaisquer extrapolações políticas que pretenda na sua tese, evitando sobretudo que o velho professor, escritor e estudioso incansável e profícuo do Eça de Queirós, com várias obras publicadas, seja desnecessariamente achincalhado e vexado, o que não será nada dignificante para o palestrante, tanto mais que a pessoa visada tem actualmente uma provecta idade e, estando ausente, não pode justificar-se e defender-se. Em minha opinião, incorrer nesse erro atentará contra a dignidade de um acto que se pretende de celebração e enaltecimento da história do ensino em Cabo Verde e não de ajuste serôdio de contas com pessoas que bem ou mal serviram o liceu Gil Eanes. De resto, acho desapropriado que o palestrante faça uso de uma alcunha −“Semente de Manga”− que terá sido criada por algum rapazola possivelmente carente daquela educação e princípios básicos que nem todos tinham a possibilidade de adquirir no seio familiar.
      Tenho a certeza absoluta de que Baltasar Lopes da Silva e António Aurélio Gonçalves, dois vultos notáveis da história do liceu Gil Eanes, dois ícones da nossa cultura, concordariam comigo.


Tomar, Setembro de 2017

Adriano Miranda Lima

A propósito do texto: “O Descalabro do Ensino em Cabo Verde”

domingo, 13 de agosto de 2017


Tendo aqui partilhado recentemente, no meu modesto blogue, um estado de alma, um desabafo enquanto avó, mãe e filha destas Ilhas preocupada com o futuro do país, recebi muitas mensagens que revelavam afinal, a mesma preocupação.
Neste particular, regozijo-me, pois verifiquei à posterori, que a visão é real, e foi ao encontro de muitos pais e avós, antigos alunos dos liceus, e que também tristes com o estado a que as coisas chegaram (e estão!), fizeram-me  saber as suas inquietações e os seus desassossegos, e por isso pensei: Afinal não sou uma cavaleira solitária nesta batalha! Podemos contar ainda com uma sociedade civil  activa e preocupada com o país e  com avós e pais ainda  participantes e ávidos por um debate específico – a  Educação – que é de toda a Nação.
Um Bem-Haja a todos, (queridos amigos, colegas, antigos alunos, ilustres conhecidos) pois os vossos comentários, em todos os sentidos, enriqueceram o despretensioso e bem simples texto inicial!
No entanto, infelizmente, em Cabo Verde – nós temos um longo caminho a percorrer, e com o descalabro do ensino nem sei se lá chegaremos tão cedo − permanece a necessidade de tudo, ou de quase tudo, partidarizar (não é politizar, que é algo elevado) o que acaba por desfocar o importante do assunto a debater...
Ao ter, a certa altura do meu desabafo, escrito algo como: “Este conjunto de fenómenos, a que chamarei de derrapagem do ensino (?) cabo-verdiano, pode  ser datado, com pouca margem de erro, de há quase década e meia atrás e tem vindo a acontecer num ritmo crescente e assustador.fui de forma surpreendente confrontada com o associar deste facto a um determinado governo do meu país!
Longe de mim a relação com qualquer governo, partido politico ou algo parecido. É que tal matéria assim associada, não faz parte das minhas cogitações. Parafraseando o brasileiro: “nem tou aí” − ainda por cima tratando-se de um assunto de transcendente e de crucial importância para o desenvolvimento de gerações de cabo-verdianos, como é a Educação.

A responsabilidade é de Todos!
A Educação ou o Ensino Público é um desígnio nacional, e  a ser um desígnio ele não é partidário,  nem ideológico,  mas de toda a Nação e de  forma convergente.  É esta a minha linha de pensamento.
De facto, estou tão afastada da política, e mais ainda da política partidária que para mim a relação com qualquer governo, partido politico ou algo parecido, de forma direccionada é algo sem qualquer nexo, nesta minha etapa de vida.
Estou sim, muito próxima, para não dizer demasiado próxima, da minha condição de Avó, e este horizonte temporal − permitam-me o prosaísmo − só surge com a entrada da minha neta mais velha na 1ª classe do Ensino cabo-verdiano, há cerca de década e meia! Mas aceito, sem qualquer rebuço, que venham de mais longe, os efeitos nefastos do mau ensino público cabo-verdiano.
Ao mesmo tempo, mantenho-me fiel à minha condição de antiga professora, (tenho contactos frequentes com antigos alunos que me falam com tristeza da escola actual dos filhos) e não abdico da profissão que abracei e exerci com muita devoção nem de ser cidadã activa − enquanto Deus mo permitir − e pensar os problemas da escolarização de jovens alunos, que observo esperançosos, quando se dirigem diariamente à sua escola, no convencimento de que dela sairão mais ricos no saber e em conhecimentos.
Essas são as minhas reais e, ouso acrescentar, constantes preocupações.
Partidos? Governos?... Muito importantes, sim, mas igualmente, passageiros, transitórios e transitivos. E também, e felizmente, mutáveis! Isto não obsta que deva reconhecer que uma boa política educativa, tem de emergir de entre as principais preocupações governativas.
Por isso reitero, o bem-haja a todos. Gostaria de destacar o Jornal «Expresso das Ilhas», o Nuno Duarte Rodrigues Pires, a Solange Lisboa Ramos, o Ângelo Barbosa, pela divulgação feita nas redes sociais desse meu singelo desabafo acabando por lhe dar um estatuto e uma elevação que muito apreciei.