FACTÓTUNS DA CRUZADA DO CRIOULO

sábado, 26 de novembro de 2016
      Perguntado, em recente entrevista ao Expresso das Ilhas de 02 de Novembro de 2016, se “julgava que há pessoas que são contra a oficialização (do crioulo) só para não lhe darem o prazer de ver o seu reconhecimento”, o Professor Manuel Veiga (MV), antigo ministro da cultura, respondeu taxativamente que “o prazer não será para ele, mas sim para o povo de Cabo Verde”, visto que ele, Manuel Veiga, “fala o português, o crioulo e outras línguas.”
     Ora, esta afirmação do MV tem que se lhe diga e não pode passar em branco. Costuma-se dizer que o peixe morre pela boca. É que das suas palavras tem de deduzir-se que a oficialização do crioulo será mais para consagrar a situação de baixa escolaridade de largo segmento do povo cabo-verdiano do que para a elevação do dialecto a língua capaz de todos os desempenhos sociais, formais e literários. Sim, implícito na afirmação de MV está o reconhecimento de que o seu estatuto social e cultural dispensa o uso do crioulo, já que para a sua projecção como intelectual e homem de letras tem outras línguas ao seu dispor, em particular o português. E não é por acaso que o diz. Ele sabe que se escrever obras literárias em crioulo, será para ganharem poeira nas prateleiras das lojas… cabo-verdianas, bem entendido. Magríssima procura devem ter e o autor não realiza os seus objectivos de notoriedade pública, além de ter de arrostar com prejuízos financeiros.
     Contudo, outro entendimento do MV poderia supor numa aposta firme na língua portuguesa, conferindo-lhe prioridade, espaço e meios acrescidos, em benefício dos currículos escolares e também do ensino de adultos. Mas essa opção só ocorreria ao ex-ministro da cultura se ele tivesse uma visão mais alargada, evoluída e prospectiva do papel da língua na vida dos povos, em vez de circunscrita a este fraseado, qual epigrama, gravado no seu pensamento: “o crioulo faz parte da dignidade política, social e cultural conquistada com a independência em 1975” (entrevista ao Expresso das Ilhas em 2010). Caberá então ao leitor julgar se a “dignidade política, social e cultural” do povo cabo-verdiano sairia ferida com essa segunda opção, ou se, pelo contrário, ganharia mais sólida armadura para o futuro.
     Com efeito, o MV bem a podia ter considerado, concedendo-lhe ao menos o benefício da dúvida, porque outra dignificação “política, social e cultural” teriam hoje as camadas desfavorecidas da população, acaso tivessem fruído das oportunidades que ele e outros tiveram na vida, a ponto de poderem hoje optar por esta ou aqueloutra língua no seu discurso. Porque está por demonstrar qualquer nexo de causalidade entre a promoção do crioulo e a afirmação da dignidade do povo cabo-verdiano, ao passo que cientificamente parece mais plausível que o reforço do ensino do português alargue os seus horizontes no plano “político, social e cultural”.
     É que o crioulo é uma realidade adquirida e consumada, e vivenciada espontaneamente entre nós, pelo que a sua oficialização, uniformização e domesticação gramatical (alupequização) podem não acrescentar coisa alguma às competências pessoais e profissionais dos cabo-verdianos. Com o crioulo, as populações das nossas ilhas resolvem os seus problemas de comunicação mais triviais e instantes dentro do seu espaço social, mas já não será assim em circunstâncias laborais mais exigentes, e mesmo dentro do nosso território, como é o caso de empresas estrangeiras instaladas no país, em que no mínimo será útil e recomendável a comunicação em português.
     Escusado é referir que fora das nossas fronteiras é que o crioulo, oficializado ou não, “alupecado” ou não, de nada valerá à nossa gente, se tiver de conviver no espaço lusófono, em situação informal, escolar ou laboral, com falantes da língua portuguesa, sejam eles angolanos, brasileiros, moçambicanos ou outros. Afinal, somos apenas uma presença insignificante de 500 mil entre 250 milhões de criaturas cuja ferramenta linguística comum é, fundamentalmente, o português. Por isso, é no mínimo surreal que nos deslumbremos tanto com o crioulo a ponto de o eleger como bandeira política. Assim como abjurar, por nosso arbítrio, a capacidade para comunicar escorreita e fluentemente, e em igualdade de condições, com os parceiros de um espaço comunitário – CPLP – que tem objectivos de concertação político-diplomática e de cooperação nos mais diversos domínios. Ripostar que a promoção do crioulo não interfere com a língua portuguesa, como pretenderão os autores desta cruzada, é tão insensato que não merece sequer resposta. 
     À afirmação do MV sobre a dignificação que o crioulo nos confere como povo, não encontro nada melhor para contrapor que esta reacção de uma mulher do povo quando lhe disseram que o filho ia aprender o crioulo na escola: “Adé, bsot insnal ê português porque crioulo ele nascê quel prindid”. Este episódio foi contado por Viriato Barros. Pois então, será de concluir que uma mulher do povo, que labuta arduamente para ganhar o pão do dia, sabe mais da vida que um intelectual? Terá ela uma aptidão natural, vinda do instinto, para descortinar entre as sombras do futuro aquilo que um homem culto não lobriga? Provavelmente é o caso, se considerarmos que a lucidez humana muitas vezes se ilumina mais facilmente frente à agrura da vida real do que em monólogos intelectuais. No mais, o entendimento do MV sobre a dignidade do seu povo não passa de um chavão, mero palavreado para bordar uma presunção (política), e por isso perfeitamente descartável. É como se os factótuns desta cruzada do crioulo se julgassem ungidos por um desígnio escatológico, dispostos a toda a via-sacra, mesmo à revelia da opinião pública.
     O MV, eu e muitos cabo-verdianos tivemos a feliz oportunidade de frequentar o liceu e outros níveis de ensino, o que não aconteceu com largas camadas da população cabo-verdiana. Assim, nós, os “privilegiados”, temos um painel de opções linguísticas que não está ao alcance do comum dos nossos conterrâneos. Livremente, falamos o nosso crioulo nos momentos e circunstâncias informais que entendemos, inscritos no universo da nossa memória afectiva. Contudo, não nos sentimos mais cabo-verdianos por isso, nem sentimos que algo acresça à parcela individual da nossa “dignidade política, social e cultural”. Por outro lado, não nos sentimos menos cabo-verdianos ao termos de falar o português. Simplesmente, o uso desta língua, que é tanto nossa de direito próprio como o é para 250 milhões de pessoas que connosco partilham séculos de história comum, alarga-nos as perspectivas do futuro, abre-nos um espaço de convívio multinacional, potenciando as condições para um maior acesso ao trabalho, à cultura e à promoção social.
    O que o MV devia cuidar de saber é se os seus conterrâneos menos favorecidos desdenhariam a possibilidade de usar desenvoltamente o português, na sua terra e fora dela. Basta pensar que uma das mais gratas realizações da independência foi o aumento considerável da população escolarizada e instruída, havendo hoje numerosos licenciados, mestres e doutores na pirâmide da hierarquia social porque tiveram, efectivamente, uma oportunidade que antes era escassa. Não fora isso, talvez muitos deles estivessem a engrossar o sector dos que não dominam a língua portuguesa. Portanto, a continuidade da aposta na escolarização e no ensino poderá ser a via acertada para melhorar o desempenho dos cabo-verdianos na língua portuguesa e, implicitamente, resolver ou minimizar o problema da diglossia.
     Pelo contrário, criar condições para o crioulo competir com o português, como propugna o autor do ALUPEC, vai agravar o problema linguístico cabo-verdiano, com o risco de liquidar definitivamente as competências na língua de Camões. E isso entra em contraciclo com as tendências de aglutinação e padronização de valores materiais e culturais perceptíveis neste mundo em acelerada transformação, tanto que um grupo de linguistas e peritos da UNESCO concluiu em 2003 que, em cada ano, entre 20 e 30 línguas minoritárias desapareciam no mundo. No fundo, é iniludível que o problema linguístico entre nós foi suscitado mais por um preconceito político contra a “língua do colonizador”, na expressão dos fundamentalistas de alguma cultura, do que por um “estado de necessidade”. Em minha opinião, o progresso contínuo da escolarização e um redobrado apoio ao ensino do português, tendem a resolver a nossa questão linguística, cada um dos idiomas ocupando o espaço da sua verdadeira vocação.
     Bom seria que os factótuns da causa do ALUPEC e tudo o que lhe está subjacente reflectissem seriamente sobre esta problemática e não pressionassem os governos com o capricho do seu egocentrismo. Os desafios do futuro não se compadecem com a carnavalização de assunto tão delicado e importante para o futuro do país.    

Tomar, 26 de Novembro de 2016
 Adriano Miranda Lima

AFLORAÇÕES DE UM DIÁLOGO SOBRE A SITUAÇÃO DE CABO VERDE

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Já lá vão quase dez anos, José Fortes Lopes lançou um repto ao grupo dos seus ciber-correspondentes mais chegados, em que me incluo, no sentido de uma franca e aberta troca de ideias sobre a situação política e social de Cabo Verde. De então a esta parte, muita água correu debaixo da ponte que iríamos construir entre as nossas idealizações e a nossa vontade comum de pugnar pelo bem da nossa terra.
No contexto de um diálogo entabulado e já arquivado na nossa memória, recupero o que ambos afirmámos a certa altura, por entender que tudo se mantém actual. Disse o José Lopes:
“Efectivamente, há dois observadores da realidade de Cabo Verde: os insiders, residentes, e os outsiders, que incluem a diáspora e os observadores externos ou internacionais. Se por um lado o insider pode ter uma visão micro do que se passa no país, capturando os detalhes, se não estiver armado de bagagem intelectual e espírito crítico suficientes, poderá só ver os detalhes, algumas árvores, mas não toda a floresta. O outsider poderá ter alguma vantagem em ver a fotografia macro, do conjunto, de fora e de longe, sem todavia poder aperceber-se dos detalhes. Nalguns casos a mesma pessoa pode ser insider e outsider. Pode acontecer, como realça o Adriano Miranda Lima, que o outsider se enriqueceu de outras realidades e ganhou assim vantagem sobre um insider umbilical. O ideal é alguém que esteja entre o insider e o outsider, alguém que tenha tido também uma longa vivência fora de Cabo Verde e que agora aí reside”.
A este juízo certeiro e ponderoso, retorqui nos seguintes termos, corroborando o pensamento do meu interlocutor:
“Penso que acertaste em cheio na metáfora da floresta e da árvore. O outsider está para a floresta assim como o insider para a árvore, se bem que o primeiro também pode, à distância, enfocar a árvore junto da qual permanecem os seus familiares ou amigos residentes na terra e de quem recebe inputs constantemente. O outsider não pode é ser excluído do debate nem olhado com suspicácia, quantas vezes acusado por alguns espíritos mesquinhos de se resguardar numa cómoda posição de observador à distância em vez de assentar arraiais na terra natal. Ora, se Cabo Verde é um país diasporense, é inaceitável criar barreiras mentais e artificiais entre os seus filhos em função da maior ou menor lonjura em que vivem. A história do país, se bem analisada e interpretada, só tem de enaltecer o protagonismo da emigração, como amiúde vem lembrando o sociólogo Luiz Andrade Silva, emigrante em França.
Para termos uma noção dos diferentes níveis de focagem em que pode incorrer a observação da realidade, há poucos dias perguntei a um amigo como iam as coisas na terra e a resposta foi que tudo estava bem, fazendo-me ver que, felizmente, sem as cores sombrias com que as notícias públicas pintavam, à data, a situação portuguesa. Estávamos a sofrer os primeiros efeitos da crise de 2008. Ora, aí tínhamos um olhar optimista ou acomodado à aparência da árvore local, com o seu quê de ilusório. Olhar optimista porque a avaliação local pode estar privada de variáveis só perceptíveis à distância e mediante uma maior amplitude da bitola. Olhar acomodado porque a habituação ao real materializado numa circunstância restrita, pode induzir a considerar como natural um quadro de privações menos comum ou menos aceitável numa perspectiva mais alargada.”
Disse a seguir o meu correspondente, e com real fundamento:
“Presentemente, a fotografia macro que Cabo Verde oferece ao outsider é de manchas e nuvens cinzentas a pairar sobre o horizonte: da democracia e do estado de direito, da organização interna do país, dos problemas de auto-suficiência e da sustentabilidade do país, da energia, da água, da segurança, da paz social, etc. É claro que nesta fotografia estão incluídos os avanços indiscutíveis nos últimos 40 anos, e não podia ser diferente.”
Reanalisando, na actualidade, o teor da nossa conversação, é indubitável que o José Lopes pintou bem a floresta mas sem deixar de retratar o perfil de algumas árvores. Na altura, parecia que o comum das pessoas se convencia de que a onda de choque da crise financeira mundial não iria atingir a nossa terra. Mas a pergunta que devia colocar-se, com toda a pertinência, era até quando iriam manter-se os equilíbrios macroeconómicos que vinham sendo conseguidos à custa da providencial ajuda externa, que, verdade seja dita, não fora delapidada ou desviada para fins ilícitos, como aconteceu com alguns países beneficiários. Isto porque se países dotados de recursos naturais e infra-estruturas industriais avançadas estavam a braços com a grave crise do sistema financeiro mundial, como admitir que Cabo Verde poderia sobreviver à mesma sem sentir os seus efeitos gravosos, directa ou indirectamente, e sempre com o risco de reeditar situações dramáticas como em outros tempos da sua história?
Aliás, independentemente de crises conjunturais, o pano de fundo da nossa realidade humano-geográfica é marcado indelevelmente por ciclos naturais que nos aprisionam e tendem a condicionar a nossa existência se não os enfrentarmos com uma atitude desassombrada, realista e em permanente reavaliação das metodologias e dos procedimentos no campo político. O cenário de incerteza, ou a sua iminência, é um espectro que paira sempre sobre o país, a desafiar quem tem a responsabilidade da governação. Por isso, hoje é cada vez mais nítido que uma renovação do tecido partidário, como defende José Lopes, assim como uma profunda reforma do Estado e uma cidadania mais dinâmica e actuante, são condições essenciais para reagirmos aos desafios de um futuro que não se adivinha benfazejo.
Ora, o tecido partidário só pode reformular-se, actualizando-se, mediante um debate ideológico que permita uma mais rigorosa clarificação da identidade de cada força política, em especial as do arco da governação. Para o senso comum, o PAICV e o MpD são as duas forças partidárias que em Cabo Verde representam a dicotomia entre a Esquerda e a Direita, cuja diferença ideológica é, lato sensu, aferida pelo pêndulo entre a promoção das políticas sociais e o grau de liberalização da economia. Mas sucede que os dois partidos têm a sua génese num contexto revolucionário ou de ruptura com as suas incidências, pelo que, decorrido todo um tempo de vida democrática em que a poeira foi assentando, é natural que se imponha agora uma reavaliação e redefinição da sua linha ideológica e da sua prática política, em ordem a uma relativa diferenciação identitária entre ambos, para evitar o juízo popular que vem sendo recorrente: “é tudo a mesma coisa”.
No entanto, reconheça-se que em Cabo Verde, pelas suas limitações, essa dialéctica não tem grande margem para alimentar todas as expectativas, como certamente ninguém ignora. Com efeito, e por exemplo, como pode o mercado assumir rédea larga e livre num país de parcos recursos e em que o atractivo para o investimento se resume praticamente ao sector do turismo? E, por outro lado, como sustentar o estado social sem uma economia razoavelmente consistente e progressiva? Esta constatação pode induzir que, mercê das circunstâncias geoeconómicas, e também das nossas fatalidades naturais, os governos são obrigados a ater-se a um certo pragmatismo na sua acção governativa, mas não parece líquido que tenham de ficar reféns das circunstâncias, incapazes de afirmarem a sua própria identidade na forma de encarar e resolver cada problema concreto.  
Nesta conformidade, o que pode então diferenciar os partidos políticos? Ou seja, em que medida os principais partidos podem distinguir-se nitidamente no plano ideológico e dentro do contexto económico-social que caracteriza o país? Este é o desafio e caber-lhes-á a devida resposta. Se a diferenciação não é muito plausível na sua substancialidade a ponto de gerar políticas sociais e económicas que no plano ideológico se distingam na sua essência, nas vias, nos métodos e nos objectivos, será sempre de esperar que ao menos o tentem no plano da ética política e da exemplaridade da sua conduta perante o país. Aqui estão dois aspectos que, refinados, contêm matéria para uma base de emulação entre os partidos e, porque não, fundacional de uma doutrina conceptual cujo grau de observância e aplicação poderá configurar a diferença que norteará a adesão do eleitor. Recorrendo a uma imagem alegórica, dir-se-á que as circunstâncias são de uma tal exigência no nosso país que os políticos têm de ser morigerados e rigorosos na sua conduta pública, devendo envergar, no seu quotidiano, o fato-macaco em vez de fato e gravata do último modelo, e, nas suas deslocações, preferir o jeep à mercedes luzidia. Não podem encarar o múnus político como um trampolim para um rendoso tacho futuro. Servir o povo de Cabo Verde deve ser o móbil dos seus anseios, a realização pessoal mais engrandecedora.
E não tenhamos ilusões, tem de se remunerar condignamente, e dentro das possibilidades, quem se disponha a dar a cara e a arrostar os sacrifícios pessoais da governação, porque estes são iniludíveis. A compensação moral, essa, é absolutamente justa e necessária, e exigível, e só pode rever-se na boa prática política e nos seus resultados concretos e visíveis. É sobretudo nestes requisitos, que não apenas no discurso retórico, muitas vezes vazio, que o eleitorado colherá a motivação e o alento cívico, inspirado no exemplo dos governantes, para não se furtar aos actos eleitorais e para fazer as suas escolhas conscienciosamente. Digamos que aqueles princípios devem ser os principais mobilizadores do pensamento ideológico e da prática política, os mandamentos que devem nortear a acção de quem se compromete a servir o país.
Todavia, e retornando à nossa realidade nua e crua, penso que Cabo Verde é um país que não pode descurar uma protecção social mínima, dentro da margem de acção consentida aos governos, pois não é previsível que a iniciativa privada alicerçada no mercado livre consiga ser a mola real da política social. Até porque também não é crível que possa vir a florescer no horizonte mais próximo uma economia liberal capaz de assumir proporções condizentes com as exigências de uma parceria social com suficiente relevo. Apenas a expectativa num maciço investimento externo no turismo poderia abrir um olhar prospectivo nessa direcção, mas não somos ingénuos a ponto de pensar que o turismo será a solução para todos os problemas. Ainda mais, quando o exemplo de algumas facetas negativas do comportamento desse sector em algumas regiões do mundo menos desenvolvido, nos aconselha a pôr um certo travão ao entusiasmo lírico. E a aprender com as experiências alheias, evitando repetir os mesmos erros.
Deste modo, Cabo Verde tem de explorar ao máximo as potencialidades da sua agricultura mediante um judicioso aproveitamento e armazenamento das águas pluviais, prosseguindo a construção de barragens e pequenos diques. Neste particular, é preciso olhar para o exemplo das ilhas Canárias, como o Dr. Arsénio de Pina recomenda constantemente nos seus artigos. Por outro lado, a indústria pesqueira e outras actividades ligadas ao mar são igualmente potencialidades exploráveis. É nestes dois quadros precisos que se encaixam as expectativas mais realistas e de resultados mais controláveis. De resto, o “MANIFESTO PARA UM S. VICENTE MELHOR”, que o nosso Grupo da diáspora publicou em 2010, é uma expressão de medidas possíveis que se recomendam não apenas para a nossa ilha (S. Vicente) como para país como um todo, obviamente onde elas forem aplicáveis.
O nosso diálogo não se esgotou. Prosseguiu o seu curso e, de discussão à flor das ideias à abordagem mais aprofundada dos problemas de Cabo Verde, viria a proporcionar-se a criação do Grupo de Reflexão da diáspora, cuja principal agenda é a Regionalização do país.

Tomar, 16 de Novembro de 2016

                                                                 Adriano Miranda Lima




        





O XADREZ POLÍTICO CABO-VERDIANO E O PROCESSO DA REGIONALIZAÇÃO

domingo, 20 de novembro de 2016
     Quando, neste momento, se fala na necessidade de uma clarificação interna no seio do PAICV, face aos últimos desaires eleitorais sofridos e à aparente fragilidade da sua actual direcção, há razões para interrogar nos seguintes termos:
     Em que medida o problema interno do PAICV é transversal a todo o território nacional? Ou em que grau uma reflexão interna sobre o presente e o futuro do partido suscitará o ânimo interventivo de militantes das ilhas da chamada periferia, nomeadamente da segunda mais populosa, S. Vicente?
     Estas perguntas são pertinentes porque não vejo que a iniciativa das bases do PAICV venha a ter algum significado político relevante que não se restrinja à ilha de Santiago, ou, mais propriamente, à realidade sociológica viciosa e nociva para o país em que se tornou a “Praia”. Esta designação, a “Praia”, utilizo-a como uma alegoria do poder centralizado e concentrado na capital do país, que foi, e é, causa directa do crescimento desmesurado ocorrido nessa ilha, particularmente reflexivo na cidade capital, tanto a nível demográfico como de progresso material. Mas mal nenhum haveria naquele crescimento desmesurado, naturalmente entendido à nossa escala de quantificação, se o seu contraponto não tivesse sido a assimetria provocada no território nacional, prejudicando principalmente a ilha de S. Vicente. De resto, hoje ninguém ignora que houve um claro propósito de revanchismo político em relação a S. Vicente, no sentido de um pretenso ressarcimento de Santiago por alegados privilégios fruídos pela ilha do Porto Grande durante a administração colonial. Como o Professor José Fortes Lopes muito já escreveu sobre este tema, não será necessário alongar este artigo com aquilo que já é do domínio público.
     Aliás, só recuperei o assunto, à laia de intróito, porque entendo que a contínua e desenfreada transferência de massa crítica para Santiago/Praia, a partir das outras ilhas, tinha de reflectir-se, mais tarde ou mais cedo, na expressão territorial da actividade político-partidária, embora talvez nunca se esperasse que o desequilíbrio viesse a ser tão acentuado. Assim, era inevitável que o nervo da política se embutisse mais profusamente onde o aparelho do Estado se instalou maciçamente, onde medram as oportunidades de ascensão social e sucesso profissional, onde se criam as redes de interesse com as suas espúrias conexões, onde nascem as cumplicidades e os compromissos de vária ordem, ou seja, no único lugar onde o tecido social encontra a espessura necessária e suficiente para estimular a actividade política.   
     Este circunstancialismo conduziu a que a política cabo-verdiana fosse quase exclusivamente lavrada no chão da ilha de Santiago, pelas mãos dos seus naturais e com uma visão tendenciosamente influenciada por uma matriz de pensamento que não reproduz a diversidade das idiossincrasias nacionais. Prova concludente desta realidade é os governos de Cabo Verde serem compostos quase só por cidadãos de Santiago, o mesmo acontecendo com outros cargos relevantes do Estado. Alguma excepção nominal que possa ocorrer é apenas para confirmar a regra. E isto independentemente do partido que está no governo, como é aliás flagrantemente notório com o actual, tal como o foi com o anterior. Se outra prova não houvesse da afronta aos princípios basilares da harmonia democrática, bastaria a evidência da chancela genética santiaguense nos elencos governamentais e em outras instituições e organismos do país.
     Portanto, não é crível que qualquer transformação que possa ocorrer no seio do PAICV tenha protagonistas de peso que não radiquem na ilha de Santiago, naturais ou residentes. Desta forma, não será estulto admitir que o principal móbil da pretendida renovação do PAICV seja continuar a privilegiar o domínio dessa ilha sobre as outras, salvaguardando a realidade estanque e irredutível em que se converteu a capital do país: o poder centralizado e concentrado. Por alguma razão, o PAICV de José Maria Neves nunca encarou a sério a ideia de empreender a descentralização do poder, ou de promover qualquer reforma do Estado que desmantele a capital macrocéfala, tendo sempre utilizado estratagemas de diversão como o simulacro de debates e cimeiras sobre regionalização que se constituíram na mais despudorada mistificação. Nessas cimeiras, mormente na última, o artifício foi tal que nem sequer houve pudor em convidar um especialista estrangeiro na matéria, que deve ter ficado intrigado por ouvir os intervenientes falar de tudo menos de regionalização.
     Poder-se-ia enaltecer a intenção de revitalizar o PAICV no sentido de o relançar como força de oposição eficaz e tendo em vista o interesse nacional. Mas não, receio que qualquer arrumação interna que venha a acontecer no partido vise apenas, ou principalmente, disputar com o actual governo o protagonismo para manter a hegemonia irrevogável da “Praia” sobre todo o território. Provavelmente, não está em causa reavaliar a política que vem sendo praticada no partido, quiçá redefinir a sua linha ideológica, ponderar formas de acção conducentes ao repensar do país como um todo a precisar de profundas reformas, tão necessárias à sua sustentabilidade económica, para não dizer à viabilidade da sua independência. Nada disso, o que mais deve preocupar os paicvistas é a galopante perda de terreno que estão a sofrer a olhos vistos, com as suas implicações não apenas no terreno político, mas sobretudo no plano dos interesses pessoais e partidários. Ninguém ignora que a actividade política se degenerou na nossa terra, como aliás acontece um pouco por todo o lado, com a democracia a despir o seu manto de virtudes e a tornar-se uma autêntica farsa.
     Por conseguinte, o país precisa de muito mais do que uma clarificação interna do PAICV. Precisa como de pão para a boca de uma profunda reforma para acertar com o caminho do futuro. Precisa de alterar a sua organização político-administrativa, implementando a descentralização e adoptando um modelo de regionalização que reparta o poder por todas as ilhas. Por enquanto, resta esperar que o actual governo cumpra integralmente a sua promessa eleitoral de viabilizar o processo da regionalização, levando a debate parlamentar a proposta de um determinado modelo e o “modus operandi” da sua implementação.
     Na verdade, a oportunidade da reflexão interna no seio do PAICV devia servir, não para disputa de protagonismos de liderança no partido, mas para ele se retractar pela estratégia política errada em que persistiu ao longo de anos e cuja consequência mais nefasta se traduziu no reforço do centralismo político e na hegemonia santiaguense sobre todas as restantes ilhas. A renovação do partido, a almejar verdadeiramente o interesse nacional, deveria passar por disputar com o governo do MpD a primazia das melhores soluções para desmantelar a realidade pétrea que é a capital do país. Descentralizar o poder poderia, também, e não menos importante, abrir a via para a renovação do xadrez político no país, mercê de uma nova pulsão à actividade cívica e partidária em todas as ilhas, abrindo caminho para que a governação incorpore cidadãos de outras ilhas e não exclusivamente da ilha de Santiago.  E, no fundo, para que a democracia em Cabo Verde sofra um arejamento e se afirme na plenitude dos seus valores.
  

Tomar, 15 de Novembro de 2016


Adriano Miranda Lima

No Centenário do nascimento de Humberto Duarte Fonseca (Mindelo 1916 – Lisboa 1983)

segunda-feira, 14 de novembro de 2016
Este texto insere-se na homenagem (centenário do seu nascimento, Novembro de 1916) que se presta ao grande cientista Humberto Duarte Fonseca, ilustre cabo-verdiano que cedo e com constância, se preocupou, estudou e abordou munido de uma dedicada e sapiente persistência – em textos publicados e trabalhos legados – com atenta e indesmentível seriedade científica, alguns dos graves problemas que atormentaram durante séculos as ilhas atlânticas de Cabo Verde. De entre eles, a seca, as estiagens e o ciclo irregular das chuvas, os ciclones que nos fustigavam e fustigam, o vulcanismo, entre outros males e causas naturais que afrontavam e afrontam o Arquipélago.
Humberto Duarte Fonseca, era natural da ilha de S. Vicente, onde nasceu a 20 de Novembro de 1916, oriundo de uma família pertencente à chamada classe média da cidade de Mindelo, composta por sete irmãos.  Todos estudaram e singraram bem nas respectivas carreiras profissionais. O pai, Torquato Gomes Fonseca também nascido em Mindelo, era filho de santantonenses. Estudou no Seminário-Liceu de S. Nicolau e foi funcionário dos Correios, tendo chegado a Director de Serviço. Exerceu outros cargos de relevo em Mindelo e na Praia. A mãe, Leopoldina Duarte Fonseca, igualmente mindelense, cuja ascendência proveio da ilha de S. Nicolau, foi uma educadora de mérito da sua numerosa prole, tendo-lhe transmitido valores em que o estudo, o trabalho, a honestidade, a seriedade e a honra foram traços fundamentais e dignificadores, na formação humana dos seus filhos.
Ora bem, é nesse ambiente de família bem estruturada que nasceu e cresceu Humberto Duarte Fonseca.
Humberto Duarte Fonseca fez os estudos primários e secundários em Mindelo. Uma nota interessante: o pai, Torquato, exigia que os filhos repetissem – “mesmo que se tratasse do melhor aluno da sala” (Transcrito de «Notas Biográficas sobre Humberto Duarte Fonseca» de Maria Adélia de Barros Fonseca) – a quarta classe, que à época era o 2º grau da instrução primária. O progenitor considerava que era o ano escolar charneira e por isso, ano-chave na aquisição de bases sólidas para a continuação do outro patamar, o do ensino liceal. Presumo que mais tarde, esta repetição foi pedagogicamente reconhecida e “formalizada” como “admissão aos liceus”.
Humberto D. Fonseca dedicava muitas horas do seu tempo à ginástica, ao desporto – futebol e, sobretudo, natação – só se revelando aluno distinto a partir dos 15 anos. Quando terminou o Liceu, convidaram-no para ser professor do mesmo estabelecimento de ensino. Aí se manteve alguns anitos, até seguir para Portugal onde prosseguiu com brilhantismo o curso de Ciências Matemáticas na Faculdade de Ciências de Lisboa. Em Lisboa já se encontravam outros irmãos – ele é o 4º de entre eles – que faziam os seus respectivos estudos universitários e que o apoiavam. Mercê das muitas explicações de matemática que dava, enquanto estudante, cedo prescindiu da mensalidade que o pai com manifesto sacríficio enviava de S. Vicente para os filhos, estudantes em Lisboa.
Portanto, auto-sustentou-se e ei-lo a completar com alta classificação o curso. Formou-se mais tarde, sempre com altas notas, como engenheiro geógrafo e fez também o curso de Geofísica.
Quadro distinto dos serviços meteorológicos e geofísicos, onde desempenhou em Portugal, Cabo Verde e Angola, funções de chefia.
Posto isto, gostaria de entrar agora na faceta que o tornaria conhecido – o de cientista, investigador e inventor.
Humberto D. Fonseca muito cedo se revelou um curioso e um estudioso dos problemas que afligiam estas ilhas, como já foi referido. O problema das secas e das estiagens devastadoras e visitantes frequentes e indesejadas do Arquipélago de Cabo Verde, com o seu cortejo de mortandades e de miséria, fizeram parte das suas inquietações e preocupações de pesquisador.
Igualmente cedo se interessou em como tirar-se proveito daquilo que hoje, se convencionou chamar “energias renováveis”. Foi sempre um ambientalista, um ecologista, num tempo que isso era pouco conhecido e falado entre nós.
De forma interessante explica a esposa, Maria Adélia de Barros Fonseca, autora de: «Notas Biográficas sobre Humberto Duarte Fonseca» apresentadas em Mindelo em 1993, no fórum alusivo ao décimo aniversário da morte desse insigne cabo-verdiano. A determinada altura, informa-nos M. Adélia Fonseca que: “Humberto Fonseca começou, desde muito pequeno a revelar interesse e curiosidade pelos fenómenos da natureza e a sua atenção era frequentemente despertada para os efeitos do vento e do sol, para a enregia das ondas do mar e para outros efeitos semelhantes. Contam os irmãos que, muitas vezes, ao ter de travar o moinho de vento que, na habitação de seus pais, captava água para encher um tanque que servia de piscina para a sua turma de rapaziada, lastimava que toda aquela energia se perdesse ingloriamente quando poderia ser aproveitada por engenhos adequados; não lhe escapava, também, o facto de o vento soprar forte, em S. Vicente, cerca de 300 dias por ano; pelo facto de passar muitas horas junto da praia e da orla marítima exprimia a sua contrariedade pela falta de aproveitamento da energia que emanava das ondas do mar. Estes e outros factos semelhantes foram despertando no seu espírito desde muito jovem”.  
Mais tarde, formado, investigador e inventor com um curriculum rico que espelha e atesta a dimensão do estudioso aplicado, sério e criativo, Humberto Fonseca, havia de realizar alguns dos seus muitos sonhos de menino e moço de S. Vicente.
Com efeito, Humberto Fonseca levou a vida intensamente virada para o estudo e para a investigação.  Algo que começou na juventude e continuou ao longo do resto de toda a sua vida, em trabalhos de pesquisa, sobre os elementos da natureza, as variações climatológicas, os quais, as mais das vezes, pela sua força adversa, maltratavam as ilhas de Cabo Verde o que preocupava e inquietava esse grande espírito humanista e pensador.
Por outro lado, também foi-se apercebendo em estudos e reflexões de que a energia do vento, do mar e do sol podiam ser também viradas positivamente para o desenvolvimento destas ilhas, e assim vamos tendo nesse laborioso percurso e nos seus principais inventos, o objectivo pretendido pelo criador:
Barragem Anemomotriz – 1968 – Medalha de bronze no Salão Internacional de Invenções e Técnicas Novas de Bruxelas.
Gravímetro Absoluto Fotoeléctrico de Mercúrio – 1969 – Medalha de ouro com felicitações do Júri e medalha de Honra da cidade de Bruxelas.
Balizador Tangencial – 1970 – Medalha de ouro com felicitações do Júri e Taça de cristal da Boémia. Bruxelas.
Teleondâmetro de Impulsos – 1971 – Medalha de ouro com felicitações do Júri. Bruxelas.
Fluxicóptero – 1971 – Medalha de ouro. Bruxelas.
Dispositivo de Aceleramento da Evaporação de soluções salinas para a indústira do sal – 1978 (co-inventor) – Medalha de ouro no Salão internacional de Genéve.
Barragem Ecológica – 1978 – Medalha de ouro no Salão internacional de Genéve.
Anjo Eólico – 1981 (co-inventor) – Medalha de ouro no Salão Internacional de Genéve.
Para além dos inventos premiados internacionalmente, Humberto Duarte Fonseca é criador de outros engenhos e de mais aparelhos, que não foram apresentados internacionalmente. São eles:
Patim Bengala – 1977;
Saco Termo-Solar – 1978;
Estação Telegravimétrica Automática – 1979;
Também em Portugal, obteve numerosos outros prémios dos quais se destacam:
1951 – Prémio Junta de Investigação do Ultramar;
1958 – Prémio de Física do Instituto de Angola;
1971 – Prémio Peixoto Correia da Fundação Cuca;
1972 – Prémio Salão de Invenções da FIL. (Feira Internacional de Lisboa);
1983 – Medalha de Ouro de Mérito da Cidade de Lisboa;
Deixou muitos ensaios/teses escritos e publicados em revistas científicas e em separatas. Foi colaborador assíduo do antigo Boletim «Cabo Verde» 1949/1964, publicado na cidade da Praia.
Gostaria de nesta oportunidade trazer ao leitor uma passagem de um artigo de H. Fonseca – seja aqui acrescentado que Humberto D. Fonseca escrevia muito bem e possuía o dom da palavra e, consequentemente, muita facilidade de falar em público, com à-vontade, e de improviso, que nós, os seus sobrinhos, e toda a família admirávamos.
Ora bem, a páginas tantas de um dos artigos, ele escreveu o excerto que se segue e que, no nosso entender, definia o que ele era na realidade:” (...) Nós, homens e mulheres oriundos de uma terra pobre como esta, temos de estar permanentemente vinculados à dramática problemática da promoção social  da nossa gente, e onde quer que estejamos e seja qual fôr a actividade que nos ocupe, o cordão umbilical que nos liga à terra, deve funcionar, não só sob uma mera forma platónica do culto da morna ou da saudade, mas sim procurando dar um contributo válido para o progresso  geral da pobre terra”.
Devo confessar que me socorri da boa memória do meu mano mais novo, o Hugo, que o decorou, memorizou-o quando leu esta passagem da mensagem do tio. Excerto aliás, que Hugo Fonseca Rodrigues, mais tarde, havia de transcrever, como se de prefácio se tratasse (numa homenagem ao tio Humberto), para o seu livro de poemas: «Burcan» publicado em 1974.
Retomando, não vá sem acrescentar que os campos de interesse deste cientista, não se confinaram apenas ao mundo da ciência – pura e aplicada. Não. Ele demonstrava interesse por quase tudo que a Cabo Verde dissesse respeito. Um desses centros de interesse era a Literatura cabo-verdiana.  Não sei se publicado, ou não, sei que ele escreveu, nos anos 60 do século passado, um excelente texto: «Saudação ao poeta Jorge Barbosa» creio que lida numa homenagem feita ao grande poeta, na ilha do Sal ou, em Lisboa. Não me certifiquei do local. Além disso, e por ocasião da morte do poeta Daniel Filipe (Boa Vista, 1925, Lisboa, 1964) ele enviara um texto/mensagem ao antigo e prestigiado Boletim «Cabo Verde» – texto transcrito neste Blogue (vide “Daniel Filipe, o poeta da solidão e do exílio” de 10 de Abril de 2016) em que H. Duarte Fonseca anunciava a morte prematura do poeta e pedia ao Director, Dr. Bento Levy,  que a revista que dirigia não deixasse passar em branco, tal notícia e que  homenageasse  tão insigne figura e qualificado poeta que teve vida breve. De facto, Daniel Filipe mereceu nesse número da revista uma destacada lembrança, pois que para além do texto/carta do promotor da homenagem ao poeta luso-cabo-verdiano, também apareceu uma evocação ao poeta, «Apenas um Búzio» da escritora Maria Rosa Colaço, bem como poemas de Daniel Filipe.
E a propósito da colaboração escrita e das muitas intervenções, muitas mesmo, deste querido conterrâneo, protagonista deste escrito, refiram-se as do «Colóquio Cabo-verdiano» realizado em 1961, de que H. Duarte Fonseca foi um dos mais notáveis impulsionadores e activo co-organizador. 
Sobre o «Colóquio cabo-verdiano», transcrito no Boletim «Cabo Verde», nº 142, de Julho de 1961, um texto de sua autoria em que rectifica a notícia transcrita das Actas do Colóquio, nomeadamente o seu ponto nº 8 sobre o grogue de Santo Antão. Acérrimo defensor da produção da boa aguardente da ilha das montanhas, de cuja qualidade tanto enaltecia que ele se orgulhava de a oferecer a paladares requintados deste tipo de bebida. De igual modo, reconhecia ele que a produção da aguardente de cana constituía uma fonte de rendimento para os seus agricultores e, como tal, devia ser incentivada. Isto porque se apercebeu a certa altura, de que poderia estar em marcha alguma “manobra” encoberta no sentido de se acabar com o cultivo da cana sacarina, a pretexto de substituí-la pelo da banana. Vai daí, em extenso artigo, publicado no citado número do «Cabo Verde», tecer considerandos sobre a ausência de lógica, explicitada na conclusão mas que ele aceitava que até poderia ter sido um erro na redacção da Acta, para aquele ponto, dado que, tal como redigido, expressava um autêntico contra-senso. Para ele, o problema colocava-se da seguinte maneira: “Há regiões onde a cana se produz bem e banana mal, sendo aí anti-económica a sua substituição(...)” Mas Humberto Fonseca não se quedou nesses considerandos. Escreveu logo a seguir um belo artigo em defesa dos produtores da aguardente da ilha de Santo Antão, com uma força emotiva tal, e um argumentário assaz lógico e assertivo, que nos faz pensar que se alguma intenção houvera, da parte das autoridades da época, em acabar com o cultivo da cana, ela não se verificou da forma como deixava antever. No texto, o autor convida em tom irónico, a quem pensasse em atirar pedras aos “pobres produtores da riquíssima aguardente de Cabo Verde” com manifestos prejuízos económicos, mas que antes de tal acto praticarem que o seguissem numa viagem imaginária a países, onde, com cuidados e com real e abrangente lógica mercantil, se produzia aguardente. “(...) Antes de apedrejarmos os fabricantes da aguardente de Cabo Verde, passemos às regiões do Minho e Douro e apedrejemos os vinhateiros; apliquemos a mesma pena aos fabricantes de aguardentes várias da metrópole (bagaceira, macieira, medronhos, etc ) depois passemos à Espanha munidos de pedras, pois temos muito que fazer (o belíssimo Fundador, D. Carlos I, Pedro Domecq, etc); prossigamos através dos Pirenéus e lapidemos os homens de Champanhe, Bordeaux e tantas outras regiões alcoogénicas da França; atiremos pedras também aos do Reno e aos cervejeiros alemães, holandeses, etc, etc. Depois disso – e enquanto viajamos para Cabo Verde, meditando nos graves e injustificáveis prejuízos económicos causados às populações daquelas tão ricas e cativantes paisagens europeias – preparemos pedras a atirar aos pobres produtores da riquíssima aguardente de Cabo Verde (...) terra cuja produtividade flutua ao sabor da lotaria das chuvas de Outubro; terra onde todos os produtos ricos devem ser acarinhados, valorizados, industrializados e lançados sob protecção da nossa diplomacia económica, nos mercados internacionais”  (Julho de 1961)
Era assim, o perfil deste filho das ilhas. Sempre muito atento e oportuno na defesa e/ou na condenação de matérias que mexessem com as ilhas. E isso não importava a que coordenadas geográficas ele se encontrava.
Contava ele que o facto de passar férias, jovem, nos anos 40 do século XX, nos Mosteiros, na ilha do Fogo, em casa da irmã mais velha, Celina, (nossa mãe) casada com um foguense (nosso pai, Hugo Rodrigues) permitiu-lhe o contacto com um ambiente eminentemente rural, agrícola, e despertou-lhe um enorme interesse pelos problemas próprios do meio agrícola, com particular acuidade para a questão da cultura do milho, da forma como era dependente das chuvas que ora vinham, ora não vinham, tendo ele chegado a defender e a recomendar, o cultivo de um tipo de milho menos exigente de água.
Nota interessante é que Baltazar Lopes da Silva, no número da revista «Ponto & Vírgula» de Abril/Setembro de 1985, na rubrica que assinava: “Vária Quedam” a propósito das chuvas e da economia agrária das ilhas, anotou sobre Humberto Duarte Fonseca o seguinte: “(...) Claro que nem todos atribuirão as chuvas que caem nesses dias à intercessão dos santos que neles são especìficamente cultuados. E o problema que então se põe será o de saber que alterações meteorológicas e/ou cósmicas estão na raiz de tais precipitações. Cá está matéria digna de investigação e da perspicácia dos homens de estudo da nossa terra (...) de um sei eu certo que, se a morte o não tivesse levado tão cedo, se teria dedicado ao problema com o entusiasmo cabo-verdiano e a responsabilidade científica que o caracterizavam. Refiro-me a Humberto Fonseca (...) era um dos maiores e mais úteis valores que tão necessários seriam à nossa terra.” (o negrito é nosso)
Por ocasião do décimo aniversário da morte de H. Duarte Fonseca, em 1993, um grupo de Quadros cabo-verdianos, ligados à meteorologia, ao ensino e à pesquisa, enquadrados pela Associação para o Desenvolvimento e para o Ambiente ADAD presidida pelo Dr. Januário Nascimento, prestou-lhe uma homenagem significativa, organizando na altura um fórum: “Humberto Duarte Fonseca, o Homem e o Cientista”, realizado na cidade do Mindelo, no salão nobre da Câmara Municipal da ilha de S. Vicente.
Não corro perigo algum de qualquer exagero, afirmar ser, Humberto Duarte Fonseca, o cabo-verdiano que mais medalhas e distinções obteve (até ao momento em que escrevo estas linhas) por notáveis trabalhos científicos.
Trabalhou até morrer, escrevendo e criando sempre, mesmo acamado, nos períodos de melhoras que a doença lhe proporcionava. Lúcido e criador até fechar os olhos para sempre.
Viveu com simplicidade e tinha um grande desprendimento, nada afectado, pelos bens materiais. Aliás, ele era conhecido entre os colegas como o “Bom Pastor.” Generoso, acudia da sua algibeira e com as suas palavras, quem necessitado de ajuda estivesse. Quando sentiu que a morte já o queria, pediu à mulher que fosse enterrado em “caixão de pinho”. Entenda-se o simbolismo do pedido: o mais simples e o menos oneroso, pois que isso fazia jus à forma como ele passara pela vida. As vaidades mundanas e o mundo do parecer, pouco, ou quase nada, lhe diziam.
Passados agora 100 anos sobre o seu nascimento, a viúva, os filhos, os familiares, os amigos, antigos colegas e algumas instituições e associações com as quais, Humberto Duarte Fonseca trabalhou e colaborou; todos eles, em boa hora, prestam-lhe uma merecida homenagem na cidade de Lisboa, a 19 de Novembro próximo.
A seguir, de forma resumida e abreviada a sua vasta folha curricular de brilhantes serviços e obras deixadas.
Biografia de Humberto Duarte Fonseca
(coligida e adaptada da brochura: «Notas biográficas sobre H. Duarte Fonseca» obra citada, de autoria de Maria Adélia de Barros Fonseca, viúva do biografado)
1916 – Nascimento na cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, Cabo Verde
Filiação – Torquato Gomes Fonseca, nascido em Mindelo, de pais oriundos da ilha da Santo Antão e de Leopoldina Duarte Fonseca, nascida em Mindelo, de pais oriundos da ilha de S. Nicolau.
1923/1927 – Estudos primários na escola central do Mindelo.
1928/1936 – Estudos liceais no Liceu Infante D. Henrique, mais tarde Liceu de Gil Eanes em S. Vicente.
!937/1940 – Professor liceal em Mindelo, das disciplinas de Matemática, Ciências Naturais, Higiene e Educação Física.
!941/1946 – Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Frequência e conclusão da licenciatura em Ciências Matemáticas (17 valores).
1946 – Presidente da Associação Académica da Faculdade de Ciências de Lisboa.
1946/48 – Presidente da Casa dos Estudantes do Império C.E.I. (Nota com interesse:  um ano antes, em 1945, Humberto Fonseca e Aguinaldo Veiga, ambos membros da Direcção da CEI, intervieram e pugnaram para que o jovem setemanista, recém-chegado a Lisboa, vindo de S. Vicente, Amílcar Lopes Cabral, obtivesse uma Bolsa de Estudos, com a qual cursou Agronomia, embora o beneficiado não fosse “natural” de Cabo Verde como mandavam os critérios para a atribuição da referida Bolsa de Estudos).
1947/48 – Curso de Geofísica, na mesma Faculdade, com a classificação final de 16 valores.
1948 – Meteorologista do Serviço Meteorológico Nacional (SMN).
1949/1950 – Concluiu com a nota final de 16 valores, o curso de Engenheiro Geógrafo, também feito na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
1950 – Director do Observatório Meteorológico de Mindelo, ilha de S. Vicente, Cabo Verde.
1951 – Membro da expedição científica à erupção do vulcão da ilha do Fogo, Cabo Verde. Foi Humberto Duarte Fonseca quem denominou os dois montes surgidos com a erupção de «Monte Rendall», (Luís Silva Rendall, Administrador do Concelho do Fogo e incansável no socorro à população afectada) e, «Monte Orlando» (Prof. Orlando Ribeiro, chefe da expedição científica ao vulcão do Fogo).
1953/54 – Bolseiro da Junta de Investigação do Ultramar – Paris.
1958/60 - Delegado à Comissão Meteorológica Marítima da Organização Meteorológica Mundial.
1959 – Chefe do Departamento de Geofísica do Serviço Meteorológico de Angola. Chefe da expedição científica ao Iona – Angola.
1960 – Vice-Presidente da Sociedade Cultural de Angola – Luanda.
1961/62 – Bolseiro da Junta do Ultramar – Cabo Verde.
1967 – Chefe do Serviço Meteorológico de Cabo Verde.
1968 – Chefe do Departamento de Estudos do Serviço Meteorológico de Angola, como Meteorologista-Inspector.
1970/75 – Presidente da Associação Portuguesa de Inventores – Luanda.
1972/73 – Membro convidado do Júri Internacional do Salão de Invenções de Bruxelas.
1973 – Representante do Serviço Meteorológico de Angola na Subcomissão Nacional do Meio Ambiente.
1974/76 – Membro do Júri Internacional do Salão Internacional de Invenções e Técnicas Novas – Genéve, Suiça.
1975 – Representante de Portugal e de Angola ao Congresso Meteorológico Mundial – Genéve. Subdirector do Serviço Meteorológico de Angola e Professor da Cadeira de Meteorologia da Universidade de Luanda.
1976/79 – Presidente da Assembleia Geral e Director do Centro de Invenção da Associação Portuguesa de Criatividade (APC) – Lisboa. Coordenador de Departamento do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica em Lisboa.
1979 – Director do Serviço de Geofísica do INMG. Lisboa. Director da Revista Inventiva da APC. Delegado de Portugal ao Congresso Meteorológico Mundial – Genéve.
1980 – Reeleito Presidente da APC – Associação Portuguesa de Criatividade. Lisboa
1983 – Faleceu em Lisboa, no ano em que completaria 67 anos de idade, por doença.

P. S. Agora a minha nota pessoal, do muito afecto que lhe tive em vida e de memórias boas que guardo desse tio querido e padrinho muito estimado. Estima aliás, que toda família lhe expressava, pois que para além de sabedor e de alguém naturalmente professor, com atitudes permanentemente pedagógicas, era também pessoa cativante na sua forma de estar e de falar connosco; o tio Humberto era acima de tudo, um familiar em quem esta definição assentava bem, pois que ele demonstrava e distribuía amizade por todos os seus parentes, dos mais próximos aos mais afastados, mesmo àquele que ele tivesse acabado de conhecer. Ele era assim, de natureza e de feitio. É uma das memórias que dele guardo, para além dos muitos ensinamentos, quer de teor científico, quer de teor humano que dele ouvi e interiorizei.

AS “TRUMPALHADAS” DA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL AMERICANA

domingo, 13 de novembro de 2016
       Penso que na história social dos EUA não há memória do que se viu no “day after” à eleição do novo presidente do país. Com efeito, manifestações ruidosas e atrabiliárias ocorreram em algumas cidades, contestando a eleição de Donald Trump, como que a confirmar o velho adágio: quem semeia ventos colhe tempestades.
     Posto isto, muitos perguntarão o que irá agora na cabeça do próximo inquilino da Casa Branca, quando, uma vez eleito, parece forçar sinais de um comportamento diferente do estilo belicoso, boçal, reles e ordinário que caracterizou a sua campanha eleitoral. De facto, e na aparência, é como se o leão se tenha de repente convertido em cordeiro. Será então caso para indagar o que há de verdade e autêntico no comportamento de Donald Trump. Ele é o rufião da campanha eleitoral ou é o homem que, num ápice, muda a sua pose por finalmente tomar consciência da realidade e da tremenda responsabilidade do cargo para que foi eleito?
     Ora, não é crível que alguém, ainda mais aos setenta anos, mude de personalidade e de carácter, a não ser por conveniência táctica. Por isso, quando, em súbita pirueta, Trump exterioriza um ar mais apaziguado e compõe um estilo mais contemporizador, reluzindo de urbanidade, pergunta-se se não estamos perante alguém com dotes de actor. Sendo assim, forçoso é reconhecer que o homem não será destituído de astúcia política, como se poderia supor, o que, paradoxalmente, deita por terra a ideia de um estilo populista puro e duro. Vendo a coisa pelo viés da sociologia política, direi, especulando obviamente, que na campanha eleitoral o Trump pode ter usado o tom e o modo que julgava adequados para conquistar o eleitorado que lhe interessava. Ou seja, o eleitorado WASP (branco, anglo-saxónico e protestante) das classes média e média-baixa, visando nomeadamente as cidades industriais decadentes e o mundo rural. Sem este estratagema, moldado pela astúcia e pelo cálculo, fica a dúvida se ele teria conseguido atrair aquele sector da sociedade que foi seguramente decisivo na sua vitória. Caber-lhe-á agora arranjar expedientes para não defraudar aquele segmento social, sem que o que será muito curto o seu estado de graça.
     Isto porque, colocado agora frente à realidade fria dos factos e das circunstâncias, deve estar a passar em revista as promessas eleitorais proclamadas alto e bom som. Sentirá um frio percorrer-lhe a espinha quando pensa na promessa de dar uma machadada na globalização com a taxação substancial dos produtos importados da China e da Europa, sabendo como sabe que aquele país detém a dívida federal dos EUA, de mais de 1 trilião de dólares? Estará a meditar na promessa de retrair a intervenção do seu país como polícia do mundo (NATO), quando sabe que esse papel é indissociável da prosperidade da indústria de guerra americana? Estará a medir o alcance efectivo da sua promessa de maciço investimento público no país, sabendo de antemão que uma medida de natureza keynesiana não se quadra a uma economia aberta e autónoma a nível da política monetária? Isto só para referir três medidas emblemáticas porque outras que foram anunciadas não deixarão de implicar fortemente com a realidade social americana.
      É óbvio que um empresário da estirpe do Trump só pode ter triunfado no mundo de negócios graças ao comportamento racional e não à atitude impulsiva, epidérmica e errática. Assim, quando acusou a candidata opositora de pertencer ao “sistema”, surpreende que a denúncia seja feita por um grande tubarão como ele, já que uma economia genuinamente liberal como a americana não deixa de se entrelaçar na rede dos interesses políticos. De duas uma, ou ele leva até ao fim o seu papel de “outsider” ou não demorará a ser engolido pela dinâmica natural do “establishment” social e política que ele verbera e considera responsável pelo esmaecimento da grandeza do seu país. Seja como for, a grande novidade é este caso de populismo ser personificado por um homem da origem e estatuto social de Trump, ao contrário de outros casos que a História regista. Mas a verdade é que, mesmo que venha a verificar-se uma cambalhota espalhafatosa no seu trajecto, o “fenómeno” Trump não vai deixar de ter repercussões no mundo, a começar pela Europa, em que despontam candidatos do mesmo estilo à espera de subir ao proscénio do populismo. É o Beppe Grillo na Itália, é a Marine Le Pen na França, e são outras mais tendências preocupantes no xadrez político de outros países da Europa, incluindo a Alemanha.
     No entanto, e apesar de tudo, é possível que o Donald Trump não venha a comportar-se como um elefante numa loja de porcelanas. Admite-se que as oligarquias tradicionais do partido Republicano possam, preventivamente, domesticar o animal, segurando-lhe a tromba para evitar que faça estragos irreparáveis. Mas será sempre um “case study” saber como este tipo de populismo vai evoluir numa democracia experimentada e sólida como a americana. Não é fácil adiantar vaticínios, mas, para já, nem tudo será negativo se o Trump representar uma pedrada nesse charco que é globalização desregulada, obrigando a um reacerto das suas regras.
 Tomar, 12 de Novembro de 2016

Adriano Miranda Lima

Subsídios para a caboverdeanidade [2]:Qual a origem do Arquipélago? Faz parte de África?

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Por nos parecer muito interessante e bastante clarificador da génese geológica das nossas ilhas e da sua localização e identificação no contexto geográfico, assunto “dogmatizado e mitificado” como argumentário para derivas várias, tomamos a liberdade de publicar o texto adiante, com a devida vénia ao autor, a quem agradecemos a valiosa contribuição e felicitamos pela sua capacidade de síntese e clareza de exposição.

Por José Carlos Mucangana

Hoje, todos parecem acreditar e muitos continuam a afirmar, leigos e conceituados especialistas, que o arquipélago se encontra em África.
Jorge Querido (2011, Um demorado olhar sobre Cabo Verde, 342 p., Chiado Editora, Lisboa ou Praia?) escreve peremptoriamente: “Todas ilhas do arquipélago cabo-verdiano, sem excepção, são de origem vulcânica”, esquecendo-se que a ilha de Maio resultou dum movimento tectónico, que trouxe à superfície sedimentos pelágicos depositados a cerca de 2.000 metros de profundidade (Frederico Machado, 1967, Geologia das ilhas de Cabo Verde, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 25 p.). Depois afirma que “as dez ilhas e algumas ilhotas” (oito mais precisamente) “se situam sobre a vertente da plataforma continental africana”. Poucas linhas mais adiante, lembra que “as ilhas estão separadas da costa africana por fundos que, em muitos pontos, ultrapassam largamente os 3.500 metros de profundidade”.

Como é que Jorge Querido, um conceituado especialista na matéria, quer prolongar a plataforma africana ou a sua “vertente” para ocidente destes fundos oceânicos, onde se encontram as dez ilhas e os oito ilhéus do arquipélago? Esses fundos oceânicos separam obviamente o arquipélago do continente a que ele chama “nosso” e o arquipélago está fora do continente de Jorge Querido.
Desde o século XIX, os geólogos nunca consideraram os arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde como uma dependência de África, atendendo à grande profundidade dos mares que os separam deste continente (Fig.1). Esta conclusão foi tirada muito antes do aparecimento da teoria tectónica de placas, que só veio confirmá-la e procurar explicá-la.
Os arquipélagos da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde são de formação mais antiga do que dos Açores. Mas, vejamos primeiro o que são ilhas vulcânicas. Trata-se de vulcões submarinos, que são muito numerosos, dando relevo aos fundos oceânicos e às planícies abissais. Só alguns crescem e se levantam acima do nível das águas para formar ilhas.

Há ilhas vulcânicas de dois tipos: As do primeiro tipo como os Açores, a Islândia e a ilha de Santa Helena, pertencem a uma dorsal vulcânica médio-oceânica, ou cordilheira de montanhas submarinas, que divide os oceanos em duas bacias. Nesta dorsal a crosta ou litosfera oceânica abre-se, deixando sair lavas basálticas que se vão solidificando para formar nova litosfera oceânica dum lado e doutro da dorsal, ocupando assim o espaço libertado pelo afastamento dos dois novos continentes, um do outro, no nosso caso o Brasil ou a América do Sul a ocidente e a África a oriente. Há ainda outro tipo de ilhas vulcânicas, que resultam da passagem das placas de litosfera oceânica deslizando sobre o manto (Fig. 2), por cima de pontos (na realidade zonas de mais de 100 Km de dimensões horizontais) de acumulação de calor neste manto.

 Fig. 2. Num corte do globo terrestre (Wikipedia) , pode ver-se que, à volta de uma esfera muito densa, chamada núcleo, vem o manto de 2000 Km de espessura e, por cima deste, à superfície, a litosfera rochosa, que pode ser muito delgada (geralmente 7 a 8 Km de espessura) no fundo dos oceanos ou mais espessa, melhor, menos delgada, com cerca de 30 Km de espessura nos continentes. As dorsais vulcânicas médio-oceânicas dividem a litosfera em placas grandes e pequenas. Estas dorsais expulsam magma basáltico, que faz crescer as placas e as empurra e faz deslizar sobre o manto, umas contra as outras e ainda umas por debaixo das outras, perdendo-se no manto, a chamada subducção. Estes movimentos tectónicos das placas de litosfera rochosas são acompanhados de vulcanismo, nas faixas de tracção, que as separam e fracturam, como nas (1) dorsais médio-oceânicas e nos (2) riftes continentais, exemplo o grande rifte africano e nas faixas de (3) subducção, como a África a passar por debaixo da Europa fechando o Mediterrâneo. Há ainda faixas de compressão como o subcontinente indiano contra a Ásia, levantando os Himalaias e o Tibete. A litosfera oceânica delgada é formada por rochas basálticas de composição química dita básica, ao passo que que a litosfera continental é formada por rochas de composição química preponderantemente ácida, sendo os granitos as rochas plutónicas mais representadas e características dos continentes acompanhados pelas rochas metamórficas.
Estes pontos quentes ou penachos de calor, fundem as rochas do manto e da litosfera oceânica dando origem a Câmaras de magma, que se descarrega periodicamente, rasgando a litosfera oceânica e formando arquipélagos de ilhas alinhadas. Estão neste caso o arquipélago de Hawai, onde o movimento da placa oceânica em relação ao manto é rápido (cerca de 10 cm/ano), os arquipélagos das Canárias, Madeira e Cabo Verde, que se deslocam mais devagar, a menos de 1 ou 2 cm/ano relativamente ao ponto quente correspondente do manto. Todos eles são formados por montanhas submarinas e ilhas alinhadas em cadeias, com o respectivo ponto quente do manto, cuja posição é conhecida ou extrapolada.

Em Cabo Verde há duas cadeias de ilhas alinhadas, a do Norte (Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, esta alongada no sentido do alinhamento, Boa Vista e Sal, que fica fora do alinhamento e a Norte deste e a do Sul (Brava, Fogo Santiago e Maio). Os eixos das duas cadeias fazem um ângulo inferior a 40º, cujo vértice está a 21º 45’ de longitude W e 15º 40’ de latitude N. Neste vértice encontra-se um monte submarino, chamado Monte Cabo Verde (Fig. 1). As ilhas de Maio, Boa Vista e Sal com o parcel de João Valente, entre Maio e Boa Vista a 20 m de profundidade, certamente uma antiga ilha erodida, alinham-se grosseiramente num eixo SSSW-NNNE de fraca curvatura, cortando o ângulo agudo das outras duas cadeias e dando ao conjunto do arquipélago a forma de uma ferradura aberta para o ocidente.
O alinhamento das ilhas em duas cadeias diferentes e uma terceira cadeia de que faz parte o parcel de João Valente indica que o movimento da litosfera oceânica não tem sido uma simples translação, houve rotação e mudança de direcção da translação da placa, quando o continente africano e a Península Arábica embateram com a grande placa euroasiática a Norte. A abertura do Grande Rifte ou sistema de falhas dos lagos da África Oriental também pode ter perturbado este movimento. O terceiro alinhamento das ilhas em arco de círculo pode ser o resultado duma tectónica profunda.
As ilhas de Sal e de Maio são as mais antigas; a sua formação, sem contar os complexos de base e os seus socos, inacessíveis à colheita directa de amostras para datação, iniciou-se há cerca de 17 Ma (milhões de anos). A ilha de Maio não apresenta vulcanismo recente, contrariamente a todas as outras. Está num processo de erosão, que é compensado por um movimento de levantamento vertical (José Ricardo Ramalho, Rui Quartau, Alan Trenhaile, George Helffrich, José Madeira, Sónia S. D. S. Victória e Daniela N. Schmidt, Why have the old Cape Verde islands remained above sea level? Insights from field data and wave erosion modeling,
http//www.webpages.uidaho.edu/dgeist/Chapman/Ramalho_AGU_erosion.pdf).

A formação das outras ilhas datadas não vai além 6 Ma (Santiago, São Nicolau, São Vicente) ou 3 Ma para Santo Antão. A ilha do Fogo com o seu vulcão activo é a mais jovem e está em fase de construção. A idade das ilhas de Boa Vista, Santa Luzia e Brava não são bem conhecidas, só foi extrapolada das ilhas mais próximas (Ricardo Alexandre dos Santos Ramalho, 2011, Building of Cape Verde Islands, Springer Verlag, 207 p.)
Todas estas ilhas estão no cume e no centro de uma elevação arredondada ou abóbada dos fundos submarinos, que é a maior do mundo com mais de 1500 m de altura e um diâmetro lateral de cerca de 1500 Km. A espessura da litosfera oceânica de 7 Km entre as ilhas é normal. Trata.se duma abóbada ou inchamento do próprio manto. A estratigrafia da ilha de Maio indica que o movimento de elevação desta abóbada atingiu 2000 m no fim do Mioceno e início de Oligoceno e que esta elevação foi contemporânea do início da actividade do ponto quente. Ao sul desta elevação encontra-se a planície abissal da Gâmbia e a pequena abóboda da Serra Leoa, ao norte a planície abissal entre Cabo Verde e Madeira, a ocidente as duas planícies abissais unem-se na planície abissal de Cabo Verde, que se prolonga à dorsal médio-atlântica e a oriente a abóboda de Cabo Verde com a sua litosfera oceânica esbarra com o continente africano ou prolonga-se por debaixo deste.

O movimento lento e complicado da placa oceânica praticamente estacionária em relação ao penacho de calor, ou ponto quente do manto e as rupturas tectónicas e movimentos verticais desta placa, são os dois factores, que combinados podem explicar a origem das ilhas e a forma do arquipélago.

A origem das ilhas não é puramente vulcânica, há intervenção da tectónica profunda e da sedimentação no fundo oceânico; as ilhas não são simplesmente vulcânicas. Além de rochas vulcânicas compreendem rochas sedimentares antigas e depositadas a grandes profundidades (ilha de Maio). Em Santiago, Boavista, Maio, S. Vicente, Brava, encontram-se rochas plutónicas macrocristalinas alcalinas, pobres em sílica, e também gabros. Citemos ainda os carbonatitos de Brava e Fogo para sublinhar a complexidade litológica das ilhas. Faltam porém, em todas as ilhas, as rochas ácidas graníticas e metamórficas características das litosferas continentais (Ramalho 2011). Estas ilhas não têm nada que se assemelhe a um continente. Contrariamente a Madagascar, Cabo Verde não é um pedaço de continente, um pequeno continente, que teria ficado entre África e Brasil, quando o continente primitivo, Gonduana se fracturou e desintegrou, ou que se teria separado tardiamente de África. Também não é um micro-continente, como o Arquipélago do Almirante (República de Seychelles), que se separou de Madagascar com a Índia, para depois se separar desta e que compreende um conjunto de ilhas graníticas. Cabo Verde será talvez um microcontinente, uma pequena placa, que falhou no seu desenvolvimento, ficou incompleta, sem crosta continental e não chegou a ser placa continental.

A tectónica de placas não é tão simples como parece na sua apresentação esquemática. As placas nem sempre deslizam sobre uma astenosfera, ou manto superior, bem lubrificada; a superfície de contacto nem sempre é uniforme mecanicamente (viscosidade, resistência à ruptura) e quimicamente; compreende asperidades variadas, é rugosa; pedaços da litosfera continental inferior podem ser arrastados à superfície da astenosfera como talvez tenha acontecido no arquipélago e sua abóbada oceânica.

As ilhas Canárias estão só a cerca de 100 Km da plataforma ou margem do continente africano. Porém, não pertencem ao continente, nem estão relacionadas com a tectónica norte-africana nem com o grande acidente tectónico activo de Agadir, sensivelmente alinhado com elas (J.C. Carracedo et al., 1998, Hot spot volcanism close to a passive continental margin: the Canary islands Geol. Mag., 135, 5, p. 591-604).

As ilhas de Cabo Verde encontram-se a distâncias de 450 a 600 Km do continente mais próximo que é o africano. Estão mais longe de África do que a Madeira, que os madeirenses nunca pretenderam considerar como fazendo parte do continente africano.

A plataforma ou margem continental da África (Fig. 3) é estreita e só se alarga na África do Sul e no canal de Moçambique (Fig. 4). A sua largura é de 20-25 Km, em média, ao longo da costa Atlântica.
Fig. 3. A plataforma continental prolonga o continente sob as águas do oceano até uma profundidade de 200 m, com larguras variáveis de alguns a poucas dezenas de quilómetros. O continente acaba por um talude íngreme entre 200 m e mais de 3000 m de profundidade (Wikipedia)
Fig. 4. Mapa simplificado do continente africano com a sua plataforma continental geralmente estreita (Wikipedia)

Como é que Jorge Querido desejaria encaixar o arquipélago completo de dez ilhas e oito ilhéus, mais um parcel e um monte submarino na estreita plataforma do “seu” continente e no talude ainda mais estreito desta plataforma? As ilhas grandes não cabem lá, quanto menos o arquipélago! Só as “ilhotas” lá caberiam, com as suas pequenas dimensões; o arquipélago só lá cabe em mitos delirantes ou disparates irreflectidos…

Felizmente os recursos do oceano à volta de Cabo Verde pertencem exclusivamente à República de Cabo Verde. Não pode haver disputa com nenhum país africano, americano ou europeu. Os países da África Ocidental exercem as suas jurisdições nos troços de plataforma continental delimitados ou a delimitar relativamente às suas fronteiras terrestres, o que é o caso da Guiné, por exemplo. Cabo Verde não está, nem nunca esteve em África.

Com efeito e resumidamente, o estudo da sua geologia, geoquímica e geofísica só tem comprovado que o arquipélago de Cabo Verde, como os arquipélagos da Madeira e das Canárias, faz parte do Oceano Atlântico, pertence à litosfera oceânica, não faz parte de continente nenhum. Está fora do continente africano e da sua estreita plataforma e separado desta por profundidades superiores a 3.500 m, como atinadamente lembrou Jorge Querido.
O mesmo se pode dizer das ilhas e arquipélagos do Oceano Índico. A grande ilha de Madagascar é um pedaço de continente ou um pequeno continente, que se separou da África, mais precisamente de Moçambique, a seguir à Austrália e ao Subcontinente Indiano. É de origem tectónica, com vulcanismo e rochas vulcânicas na sua periferia onde houve ruptura do grande continente pré-existente, o continente Gonduana. O arquipélago do Almirante é um pedaço de continente ainda mais pequeno. A formação dos Arquipélagos das Mascarenhas e do Comoro está ligada a pontos quentes do manto.
Está assim bem estudado e documentado, que as dez ilhas, oito ilhéus, um parcel e um monte submarino do arquipélago, pertencem ao Oceano Atlântico.
Contrariamente à linguística, o estudo da geologia do arquipélago não foi descurado, nem politizado pelos investigadores cabo-verdianos e portugueses, que trabalham em equipa e se apoiam mutuamente.
Foi recentemente publicado o livro acima referido (Ramalho, 2011), que reúne e interpreta os conhecimentos adquiridos até à data sobre a formação deste arquipélago oceânico. Mas a formação das ilhas e do arquipélago ainda não foi bem compreendida; as investigações continuam. Tampouco ainda não foi bem estudada a tectónica da África Ocidental, que aparenta estabilidade, mas apresenta uma sismicidade notável com movimentos horizontais entre compartimentos separados por falhas e movimentos verticais, com as rias da Guiné a afundarem-se enquanto se eleva o Futa Djalon. Serão estudos apaixonantes a fazer pelas novas gerações de geólogos cabo-verdianos, dispostos a esquecerem os mitos e porem-se a trabalhar para acertar o relógio cabo-verdiano, como já diziam os Claridosos (Jorge Barbosa, 1936, citado por Arnaldo França, em Baltasar Lopes, 2010, Escritos Filológicos e Outros Ensaios, Praia, 365 p.), ou melhor, no caso da geologia, mantê-lo acertado e, quem sabe, adiantá-lo. Tudo depende deles.

Extraído de Artiletra Nº 128/129 de Abril/Maio de 2015