O 25 de Abril que nunca aconteceu

terça-feira, 30 de abril de 2024

 

TROVA DO MÊS DE ABRIL

 

Foram dias foram anos a esperar por um só dia.

Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía

com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia

na esperança de um só dia.

 

Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias.

Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias)

mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)

por um só dia vivida.

 

Foi o tempo que passava como se nunca passasse.

E uma flauta que cantava como se a noite rasgasse

toda a vida e uma palavra: liberdade que vivia

na esperança de um só dia.

 .... .... .... .... .... .... .... .... .... ....

Manuel Alegre in “País de Abril” – Uma antologia (Extracto do poema)


O 25 de Abril que nunca aconteceu[i]

Por  M. Brito-Semedo

O 25 de Abril foi, por isso, uma fraude aqui nas ilhas no sentido em que o termo é utilizado para descrever actos enganosos ou desonestos com a intenção de obter ganhos pessoais e políticos ou prejudicar outra pessoa sabendo que isso geralmente envolve a manipulação de informações, documentos ou sistemas para obter benefícios, no caso, o de poder decidir o destino de um povo.

Liberdade efémera

Posiciono-me a partir do lugar onde me encontrava quando aconteceu a Revolução de Abril, utilizando São Vicente como o meu ‘lugar de fala’. Esta referência destaca a importância (relativa) da minha experiência pessoal de 22 anos, na altura, estudante do Seminário Nazareno, para a compreensão da minha perspectiva e dos meus argumentos sobre esse facto político. Recorro-me, igualmente, do auxílio da realidade ficcional histórica de Teixeira de Sousa e da memória como auxiliares da construção da História. Em São Vicente respirava-se liberdade, alegria e esperança no Primeiro de Maio após o 25 de Abril.

“Os largos e as ruas encheram-se de povo, os sindicatos, os clubes desportivos, até os cães se incorporaram na gloriosa festa do Primeiro de Maio que se assinalava após o 25 de Abril. […] Drapejavam bandeiras, exibiam-se dísticos, soava música por todo o lado, estrelejavam foguetes, gritavam-se slogans, aliás bem ensaiados. Percorrida meia cidade, ocorreu a programada concentração na pracinha da igreja e da Câmara Municipal. O espaço era pequeno de mais para tanta gente. Os moradores do sítio franquearam as suas portas, janelas e varandas para quem as quisesse utilizar. Os Paços do Concelho viraram edifício do povo. O salão nobre abarrotou-se de cristãos. […].

Dois homens agarraram o Dr. Herbert e levaram-no aos ombros até lá acima, ao salão nobre […].

‘Todos devemos pensar que o futuro se acha agora nas nossas mãos. Não entreguemos a outro aquilo que nos compete a nós realizar […] agora vamos trabalhar em liberdade, e trabalhar mesmo, sem atitudes emotivas, sem radicalismos ideológicos. E pensar sobretudo que estas mãos não servem só para aplaudir […]. De futuro vão servir para trabalhar’” – Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, pp. 24-27.

A partir dessa data, e até 31 de Dezembro, quando foi empossado o Governo de Transição, integrado pelo major José Manuel Vaz Barroco, Carlos Reis, Amaro da Luz e Manuel Faustino, Ministros, respectivamente, da Administração Interna, da Justiça e Assuntos Sociais, da Coordenação Económica e Trabalho e da Educação e Cultura2 – ensaiou-se um simulacro de revolução e de luta armada.

“Tinha-se a impressão de que o Carnaval voltara mais ruidoso agora, com multidões desfilando, gritando, empunhando bandeiras, cartazes, outros símbolos, punhos erguidos, slogans em coro, cornetas, apitos, canzoada ladrando atrás. As fachadas e os muros encheram-se de dizeres: o fascismo não passará, abaixo o colonialismo, morte aos cachorros de dois pés, independência já, fora com os mondrongos, povo unido jamais será vencido, viva a unidade Cabo Verde-Guiné, Viva o PAIGC. Desde o celebérrimo 25 de Abril o ambiente era esse, nas ruas, nos largos, até no campo de football. Os cortejos e os barulhos findavam sempre na Praça Nova, com atitudes e actos provocatórios”. – Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, p. 21. [Os do Grémio Recreativo do Mindelo] “Achavam uns que as ilhas deviam permanecer portuguesas, uma vez que haviam sido achadas e povoadas pelos portugueses. Outros opinavam que a velha ideia da adjacência, como a dos Açores e da Madeira, seria o estatuto correcto. Outros ainda, que o caminho mais justo seria o da autonomia administrativa sob a soberania portuguesa. Ninguém simpatizava com a tese de independência total. O arquipélago era demasiado pobre para aspirar a Estado independente”.

Liberdade capturada

No tempo percorrido entre o momento histórico da Revolução dos Cravos e a independência política de Cabo Verde, as ilhas viveram um dos momentos mais conturbados da sua História recente. Houve a manipulação da população, sobretudo dos jovens estudantes, amedrontamento de certos estratos sociais e das elites locais – “os intelectuais são lixo, lixo da nossa História, que devem ser colocados num saco e atirados ao mar” – silenciamento da Rádio Barlavento, eliminação das forças políticas da UDC (União Democrática de Cabo Verde) e UPICV (União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde) e prisão dos “reaccionários inimigos do nosso povo”.

 “Infelizmente, volto a repetir, vejo muito apetite totalitarista a estragar o acontecimento do 25 de Abril, muito revanchismo, Santo Deus, numa terrinha onde todos somos primos e compadres. Estou muito decepcionado com estes meninos barulhentos, implicantes, intolerantes, impositivos, avessos ao diálogo sereno, construtivo” – Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, p. 176.

A prisão do Tarrafal, fechada a 1 de Maio, voltou a abrir em Dezembro de 1974 pelos militares portugueses para receber os adversários políticos do PAIGC, os designados “inimigos do povo”, acusados de serem contra a independência nos moldes preconizados, “independência com o PAIGC”, “independência total e imediata”, “independência ou morte” e contra a “unidade Cabo Verde-Guiné”. Mesmo depois da proclamação da independência, ou por causa disso, a sanha dos novos donos do poder continuou e abriram-se outros “Tarrafais” com prisões arbitrárias torturas e mortes, de várias pessoas muito conhecidas no meio mindelense, em 1977, acusadas de planearem “actos terroristas”, para São Vicente e Santo Antão; de um grupo de pessoas em Santo Antão, em 1981, por protestar contra a Lei da Reforma Agrária; julgamentos em Tribunal Militar onde os juízes, os procuradores e os advogados provisionários eram nomeados de entre os militares-combatentes vindos de Conacri.

Acordo de Independência

Em 2004, pelos 30 anos do 25 de Abril, em entrevista ao Público3, Almeida Santos, Ministro da Coordenação Interterritorial, durante o período da descolonização, revelou como foi feito o Acordo de Independência de Cabo Verde:

“Ainda se nomeou um governador cabo-verdiano, mas foi demitido pouco depois, porque o PAIGC foi para lá fazer a mesma campanha eleitoral que tinha feito na Guiné.

O partido era o mesmo. Pouco depois tinham aquilo dominado. E os militares fizeram pressão para que houvesse descolonização rápida. Também houve um ultimato de lá para cá, a dar cinco ou oito dias para o Governo português entregar o poder ao PAIGC, sob pena de entregarem eles lá. Ficámos de mãos atadas. Não podíamos julgar centenas de militares, tinha sido um plenário de militares e não podíamos substituí-los — “Nem mais um soldado para o ultramar”.

O 25 de Abril, pelos valores que propugnava, nunca aconteceu em Cabo Verde, no sentido em que foi uma fraude, muito por culpa dos militares portugueses (Delegação do Movimento das Forças Armadas, MFA, e das Forças Armadas Portuguesas, FAP) aqui estacionados –com “a total identificação por parte dos militares com os ideais de luta do PAIGC”1 – e pelo projecto de poder trazido pelo grupo que veio de Conacri, com áurea de combatente e de libertador.

 O Costa Gomes e eu ficámos sem saber e eu disse: “Vou pedir a demissão, vou explicar porquê, não estou para aturar isto.” Ele disse: “Ah, senhor ministro, veja lá o que pode fazer, o senhor é tão hábil, tem resolvido tantos problemas, veja se resolve mais um.”

Lembrei-me: “Vou chamar o Pedro Pires.” Que era quem andava lá a fazer a propaganda revolucionária. Chamei-o e disse-lhe: “Você conhece este telegrama?” E ele: “Conheço.” E eu: “Então, agora?” Ele diz: “Os senhores perderam, nós ganhámos.” E eu perguntei: “Vocês ganharam o quê? Que guerra é que você ganhou em Cabo Verde? Quantos mortos é que tem lá?” Ele ficou um bocado chateado e diz-me: “Você é que me chamou, tem que me dizer o que quer.”

E eu disse: “O que quero é que você seja mais inteligente do que infelizmente alguns dos nossos moços que estão lá em Cabo Verde e que aceite uma consulta popular. Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face.” E ele disse: “O que é que ganho com isso?” Respondi: “Olhe, ganha a legitimação democrática do novo poder, nunca mais será discutida. Se você o recebe da mão de militares, toda a vida será discutida.” Ele disse: “Eu já percebi, estou de acordo, mas tenho de ir falar com os meus colegas do PAIGC e dentro de dois dias estou cá.” Respondi: “Então vá depressa que não temos tempo.”

Ele foi, veio, quando chegou disse-me que estavam de acordo. Eu disse: “Então sente-se aí.” Comecei a redigir o acordo, eu e ele, praticamente fi-lo sozinho, mas ele lá discutia uma palavra ou outra. E depois telefonei ao Costa Gomes a pedir uma reunião urgente com Mário Soares e Melo Antunes, que tinha novidades. Ele perguntou: “Boas ou más?” Respondi: “Não lhe digo pelo telefone.”

Chegámos lá, assinámos o acordo e ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande participação da população. Eles ganharam por 92 por cento. Elaboraram uma Constituição. Acabou. Salvámos a face.”

O Acordo de Independência, publicado na íntegra no Novo Jornal de Cabo Verde, de 26 de Dezembro de 1974, continha 19 artigos, dos quais se tratava da criação do Governo de Transição de Cabo Verde, da composição do mesmo Governo e da eleição de uma Assembleia representativa do povo de Cabo Verde, denominada Assembleia Nacional que, dotada de poderes soberanos e constituintes, teria por função declarar a independência do Estado de Cabo Verde e elaborar a futura Constituição desse Estado, só foi cumprido em parte.

Independência com moderação

O médico e escritor Teixeira de Sousa defendia a posição de uma independência com moderação, e disse-o a Michel Laban, em 19924 :

“A discordância maior foi a ideia de unidade Cabo Verde/Guiné-Bissau. Ora, eu não via que essa unidade fizesse o mínimo de sentido dada a disparidade dos valores culturais entre os dois países […].

Outra discordância foi eu ter advogado uma independência neutra, tanto em relação ao Leste [U.R.S.S.] como em relação ao Oeste [E.U.A.]. […].

A terceira discordância foi o meu combate à lusofobia […], chegando mesmo a preconizar uma certa colagem ao Portugal politicamente renovado […].

Finalmente, aproveito a ocasião para declarar que não me agradou nada o “apartheid” político praticado de início em relação a cabo-verdianos vivos e mortos, nados e criados num contexto colonial, inexorável nas suas consequências humanas”.

DizCorrendo sobre as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, celebrado em Cabo Verde pela primeira vez, em que muitos dos principais actores e donos da narrativa são aqueles que fizeram com que isso não tivesse acontecido. Só em 1990, quinze anos depois, com a mudança dos ventos da História, viria a haver o espírito do verdadeiro 25 de Abril com a conquista da Liberdade.

Fonte:

ALMEIDA, São José (S.J.A.), “As que Pude Controlar Previram Consulta”, Entrevista com Almeida Santos. Público, 11 de Abril de 2004, p. 14. CARDOSO, Humberto, O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança. Praia: Edição do Autor, 1993.

LABAN, Michel, Cabo Verde – Encontro com Escritores, I vol. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1992.

MARTINS, Pedro, Testemunho de um Combatente. Mindelo: Ilhéu Editora, 1990.

PIRES, Sandra Cunha, Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo Verde. Lisboa: Edições Colibri/ Associação 25 de Abril, 2022.

TEIXEIRA DE SOUSA, Henrique, Entre duas Bandeiras. Lisboa: Publicações Europa-América, 1994.

 


1. Sandra Cunha Pires, in Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo Verde, Lisboa, 2022.

2. A 22 de Fevereiro de 1975 viria a ser nomeado o tenente-coronel de engenharia Vasco Fernando de Melo Wilton Pereira, Ministro do Equipamento Social e Ambiente.

3. São José Almeida (S.J.A.), “As que Pude Controlar Previram Consulta”, Entrevista com Almeida Santos. Público, 11 de Abril de 2004, p. 14.

4. Michel Laban, Cabo Verde – Encontro com Escritores, I vol., 1992, pp. 202- 203

 


[i] In “Expresso das Ilhas” Nº 1169 de 24 de Abril de 2024


segunda-feira, 29 de abril de 2024

ABRIL DE ABRIL

Era um Abril de amigo    Abril de trigo

Abril de trevo e trégua e vinho e húmus

Abril de novos ritmos novos rumos.

 

Era um Abril comigo    Abril contigo

ainda só ardor e sem ardil

Abril sem adjectivo    Abril de Abril.

 

Era um Abril na praça    Abril de massas

era um Abril na rua    Abril a rodos

Abril de sol que nasce para todos.

 

Abril de vinho e sonho em nossas taças

era um Abril de clava    Abril em acto

em mil novecentos e setenta e quatro.

 

Era um Abril viril    Abril tão bravo

Abril de boca a abrir-se    Abril palavra

esse Abril em que    Abril se libertava.

 

Era um Abril de clava    Abril de cravo

Abril de mão na mão e sem fantasmas

esse Abril em que Abril floriu nas armas.



                Manuel Alegre in “País de Abril” – Uma antologia



50 anos após o 25 de Abril: Responsabilidades por assumir[i]

Por Humberto Cardoso

Amanhã dia 25 de Abril completam-se cinquenta anos sobre o golpe militar em Portugal que pôs fim à ditadura salazarista que vigorou durante 48 anos. Na sua origem estaria a constatação de que a defesa do último império colonial se tinha tornado insustentável com a guerra a pesar na economia, com a pressão internacional e com tensões nas forças armadas. Ao golpe seguiu-se um movimento popular que tanto em Portugal como nas colónias rapidamente se converteu numa revolução com a bandeira dos três Ds: Descolonização, Democracia e Desenvolvimento. Internacionalmente o golpe de 25 de Abril ficou conhecido por ter sido o primeiro de muitos outros processos de mudança que nas duas décadas seguintes, em todos os continentes, iriam elevar o número das democracias no mundo ao seu apogeu. Para Samuel P. Huntington, a Revolução dos Cravos de 25 de Abril foi o percursor da terceira vaga da democracia.

No cumprimento do primeiro D, descolonização, foi adoptada em Julho de 1974 a lei constitucional de 7/74 em que Portugal reconhecia, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o direito dos povos à autodeterminação com todas as suas consequências incluindo a aceitação da independência das colónias. O problema com que rapidamente os sucessivos governos p portugueses se depararam nos meses seguintes foi o de garantir a ordem institucional necessária para se proceder conforme a lei. As liberdades que vieram com o 25 de Abril, designadamente de expressão, reunião e manifestação, de imprensa e de formação de associações e partidos originaram uma dinâmica social e política espontânea e sem paralelo em todos os territórios sob administração portuguesa.

Claramente em vantagem se posicionaram os grupos que se reivindicavam de ligações aos movimentos de libertação. Sabendo ao que vinham e focados no objectivo último de conquista do poder, rapidamente conseguiram atrair multidões e organizar militantes. Tentativas da sociedade em produzir propostas alternativas goravam-se quase à nascença ou eram tidas como inimigas a eliminar. Por outro lado, a identificação ideológica de esquerda dos grupos ligados aos movimentos de libertação deu-lhes acesso especial a sectores esquerdistas nas forças armadas portuguesas presentes nas colónias. O resultado é que o direito à autodeterminação dos povos não foi realmente exercido e o poder foi entregue aos movimentos de libertação. Na prática, os auto-proclamados libertadores dispensaram o consentimento dos povos e tal qual conquistadores apossaram-se do poder recebido das mãos do Movimentos das Forças Armadas (MFA).

O que se seguiu confirmou a intenção primeira da conquista do poder. Em todos os novos países independentes instalaram-se regimes ditatoriais de partido único. Onde não havia movimentos rivais procederam à intimidação brutal da população e das elites anteriores chegando a casos como o fuzilamento de centenas de pessoas na Guiné-Bissau. Nos casos onde existiam movimentos de libertação rivais, desencadearam-se guerras civis que duraram décadas e que resultaram em muitos milhares de mortos. Como se pode também constatar, não se concretizaram os outros Ds do 25 de Abril. Não tiveram democracia, nem conseguiram desenvolver-se.

A incapacidade dos governos portugueses em cumprir com a sua própria lei e garantir o direito à autodeterminação dos povos viu-se mesmo no caso de Cabo Verde onde não se tinha verificado luta armada. Também aqui como disse o então ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos, em entrevista ao jornal Público de 11 de Abril de 2004, as forças armadas queriam entregar o poder ao PAIGC. Para contornar o problema Almeida Santos em conversa com dirigentes do PAIGC propôs que aceitassem uma consulta popular nos seguintes termos: Vocês ganham a consulta popular por 90 por cento e nós salvamos a face. E assim aconteceu, disse ele: ganharam por 92% e salvamos a face.

É evidente que a consulta popular não foi nem livre, nem plural porque precedida de prisão de todos os adversários políticos, do controlo da comunicação social com a tomada das rádios privadas e do apoio explícito das forças armadas portuguesas. Para além disso, toda a acção política do PAIGC tinha como base a ideia que era o único representante do povo e que a independência só podia acontecer sob a sua direcção. Nesse sentido não podia deixar de ter uma componente intimidatória para os recalcitrantes e condicionante dos indecisos.

Feita a descolonização com a preocupação primeira de “salvar a face”, Portugal prosseguiu com os seus objectivos de implementar a democracia e construir o desenvolvimento. Realizaram-se eleições para a Assembleia Constituinte em 1975 e adoptou-se uma nova Constituição em 1976 com muita luta política, mas de qualquer forma num ambiente livre e plural. Ajudou também no processo a intervenção militar no dia 25 de Novembro de 1975 que contrariou derivas complicadas e assegurou que uma democracia representativa e liberal tivesse a possibilidade de se instalar. Não tiveram a mesma sorte as ex-colónias deixadas à mercê de conquistadores trasvestidos de libertadores que viriam a controlar o poder nas décadas seguintes, impedindo a democracia e adiando o desenvolvimento. Em Cabo Verde as liberdades de Abril só se tornaram realidade quinze anos depois com o 13 de Janeiro de 1991 e com a Constituição de 1992.

As comemorações do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril deviam ser acompanhadas da assunção da responsabilidade pelos enormes sacrifícios e sofrimentos causados por uma descolonização tardia conduzida por um país esgotado e com as suas forças armadas quase em debandada. Na falta disso, devia-se, pelo menos, poupar aos povos que se viram a braços com regimes ditatoriais o espectáculo de ver autoridades e instituições portuguesas a validar as narrativas histórico-políticas que os legitimaram e a honrar personalidades que os incarnaram como paladinos da liberdade.

 Narrativas não são factos e a história com toda a sua complexidade não pode ser reduzida à versão dos que ditatorialmente impediram outras visões, percepções e opiniões. A Revolução dos Cravos fez-se para que não continuasse a ser assim depois da noite salazarista e para que a liberdade, a autonomia e a dignidade de todos fossem recuperadas.



[i] In “Expresso das Ilhas” de 24 de Abril de 2024”

 


sábado, 20 de abril de 2024

 

As Universidades e a Investigação Científica

O Dilema de Cabo Verde

José Pedro de Barros Duarte Fonseca*

Durante os 49 anos de independência de Cabo Verde (1975-2024) foi desenvolvida com sucesso uma campanha para erradicar a iliteracia, mediante grandes investimentos na educação básica e secundária, à custa de um sub-investimento no ensino superior (ES). As primeiras duas décadas do Século 21 viu emergir o ES em Cabo Verde, actualmente com 11 universidades, das quais duas públicas.

Devido à sua tenra idade, o ES encontra-se numa fase crítica, em que proporciona ensino e aprendizagem, mas não consegue garantir um ecossistema adequado para a ciência, tecnologia e inovação. Cabo Verde carece de uma Fundação de Ciência e Tecnologia, e essa fragilidade dificulta a capacidade dos investigadores cabo-verdianos em atrair financiamento competitivo internacionalmente com excepção da biologia marítima, fruto do grande interesse de certos países no nosso recurso nas pescas. Por sua vez, a ausência de investigação significativa dificulta a conexão da academia com o sector produtivo, nomeadamente a indústria.

A inovação e a competitividade regional/internacional são ainda mais prejudicadas pela falta de um competente serviço de propriedade intelectual ou sistemas de certificação.

Considera-se importante fomentar a investigação científica e tecnológica no domínio da energia eólica, solar, geotérmica e da conversão de energia térmica oceânica (OTEC), e a criação de soluções institucionais para centralizar os esforços de investigação energética, capazes de integrar importantes centros e redes globais de conhecimento e I&D na área da energia, aprofundando o âmbito da Tarifa Social de Energia Eléctrica para um mercado energético mais inclusivo (Fonseca, 2012).

É de vital importância a criação de um projecto Piloto de Hidrogénio Verde com base na integração da produção de energia solar e/ou eólica em grande escala em Cabo Verde

Cabo Verde apresenta elevados níveis de vulnerabilidade e fragilidade, particularmente no que diz respeito às alterações climáticas, e elevados custos energéticos e dependência de combustíveis fósseis importados. Só uma investigação científica pró-activa numa estratégia de transição energética do país, com impacto na transformação económica e no desenvolvimento sustentável, poderá promover o acesso universal à energia e ajudar as indústrias, serviços e outras empresas a serem mais competitivas.

O presente artigo propõe uma análise sobre os factores que dificultam ou facilitam o acesso ao ES. A falta de acessibilidade ao ES de jovens e adultos das famílias consideradas com poder aquisitivo baixo tem causado uma grande preocupação. A maioria da população é composta por famílias consideradas de baixa renda, que enfrentam várias dificuldades no acesso ao ES. Embora a população sinta essa necessidade ou tenha vontade de acessar o ES, vários problemas acometem o ES. O ES em Cabo Verde tem baixa qualidade por conta da qualidade do ensino médio.

Essa fraca qualidade resulta de algum facilitismo que resultou da massificação do ensino básico e que tem efeito em cadeia no secundário e no superior. Eu tenho muitos casos de alunos na universidade que escrevem mal e são muito fracos nas ciências da matemática e da física.

 Na investigação científica há a ausência, ignorância e falta de preocupação com a investigação científica, falta de editoras, carências de bibliotecas e laboratórios, má formação e falta de méritos dos docentes, costumes facilitadores, metodologia não adequada pelos docentes.

Um caso que me toca particularmente foi ter trabalhado 10 anos no Instituto Nacional de Investigação Científica na Praia, entre 1986 e 1996 e, quando fui admitido como quadro e único doutorado da UNICV em 2008, esses 10 anos não foram contabilizados para efeito de carreira e promoções, desmotivando os investigadores a seguir a carreira universitária. Uma universidade não se pode dar ao luxo de prejudicar um investigador com experiência, mestrado e doutoramento em energias renováveis, área vital para o desenvolvimento nacional.

Esses entraves fazem com que o ES viva uma precariedade, causando dificuldade no acesso e má qualidade do ensino. Esses entraves no ES não são específicos de cabo Verde, mas também são evidenciados em outros países do continente africano. O ES em África ainda vivencia outros problemas, como: ensino com fraca qualidade, limitação da produção do conhecimento local, precariedade no funcionamento, baixas remunerações, factores de desmotivação que agravam a fuga de cérebros e o poder político interessado em beneficiar um pequeno grupo (VARELA, 2015). O ES em África ainda é doentio e sem qualidade.

Igualmente, os problemas do ES em África geram consequências, como: superlotação de salas, fugas de cérebros, excesso de carga horária dos docentes, condições de trabalhos deficientes, rendimento insuficiente de programas de pós-graduação e de recrutamento de bacharéis em ciências sociais (VARELA, 2015). Essas consequências têm gerado precariedade no ensino e prejuízo à vida dos estudantes. A inexistência de internet e correspondente de acesso ao estado da arte, caso do Bon e de editoras como a Elsevier, resultam na estagnação da investigação no país.

Um estudo saído do inquérito (INE, 2015) em relação à colocação dos doutores, mestres, licenciados e bacharéis envolvidos na investigação e desenvolvimento, permite também observar que os doutores estão maioritariamente no ES. Os mestres e licenciados nos institutos de pesquisas. Esses factos, somados a um não investimento na área, retardou até hoje a investigação pois ainda não existem em Cabo Verde critérios que determinam quem é investigador e nem um Estatuto de Investigador actualizado. De acordo com o mesmo estudo, em 2014, havia 69 investigadores nas áreas de Ciências Sociais e Humanas (45% do total nacional), 53 nas áreas das Ciências Naturais, Engenharias e Tecnologias (34,6%), Ciências Agrícolas 24 (15,7%) e Saúde (4,7%).

Existiram três institutos públicos de investigação em Cabo Verde, o INIDA, o INIT e o INDP, o INIT foi extinto pelo governo em 1992, o INDP foi recentemente integrado no Campus do Mar no Mindelo e designado por IMAR e restou o INIDA em São Jorge dos Órgãos.

Ficámos mais pobres do que estávamos em 1992,

Finalmente deixo aqui algumas anotações sobre Ética na Pesquisa Científica:

 

Consentimento Informado: Certificar-se de que todos os participantes da pesquisa tenham dado seu consentimento livre e informado para participar, com total compreensão dos objectivos da pesquisa e dos possíveis riscos envolvidos.

Confidencialidade: Garantir a privacidade dos participantes, protegendo suas informações pessoais e mantendo a confidencialidade dos dados colectados.

Integridade dos Dados: Colectar, analisar e relatar os dados de maneira honesta e precisa, evitando qualquer manipulação ou falsificação de resultados.

Plágio: Evitar o plágio, citando correctamente as fontes e dando crédito apropriado ao trabalho de outros pesquisadores.

Conflito de Interesses: Identificar e divulgar quaisquer conflitos de interesses que possam afectar a objectividade da pesquisa ou a interpretação dos resultados.

Experimentação em Animais e Ética em Pesquisa com Seres Humanos: Seguir directrizes éticas estritas ao realizar pesquisa envolvendo animais ou seres humanos, obtendo aprovação ética adequada quando necessário.

Publicação Ética: Garantir que os resultados da pesquisa sejam publicados de maneira ética, evitando a publicação duplicada ou redundante e seguindo as directrizes e políticas editoriais das revistas científicas.

Divulgação de Conflitos de Interesses Financeiros: Divulgar qualquer financiamento ou apoio financeiro recebido para a pesquisa, bem como qualquer relação financeira relevante com empresas ou organizações que possam ter interesse nos resultados.

Responsabilidade do Pesquisador Principal: O pesquisador principal é responsável pela conduta ética de toda a equipe de pesquisa e deve garantir que todos os membros sigam padrões éticos rigorosos.

Ética na Co-autoria: Certificar-se de que a autoria de um trabalho seja atribuída de forma justa e que todos os co-autores tenham contribuído significativamente para a pesquisa.

Divulgação Transparente de Resultados Negativos: Não esconder ou omitir resultados negativos, pois a falta de divulgação desses resultados pode distorcer a compreensão geral de um tópico de pesquisa.

Responsabilidade Social: Considerar o impacto potencial da pesquisa na sociedade e no meio ambiente, tomando medidas para minimizar quaisquer efeitos negativos e maximizar os benefícios.

Educação em Ética: Promover a educação em ética na pesquisa, tanto entre estudantes de graduação e pós-graduação quanto entre pesquisadores experientes, para garantir uma cultura de pesquisa ética.

A ética na pesquisa científica não apenas protege os direitos e a dignidade dos participantes da pesquisa, mas também mantém a integridade e a credibilidade da comunidade científica como um todo. Portanto, é fundamental que todos os pesquisadores adiram a esses princípios éticos em todas as etapas de seu trabalho.

Mãos à obra

* Engenheiro, Investigador. Professor da UTA,

 

 

Fonseca, 2010; Integração das Fontes de Energia Renovável em Ilhas e Regiões Remotas, Edições UNICV

Ph.D. em Eng. Mecânica IST- Lisboa 2004,

Pós-graduação (Patent attorney) em patentes, modelos industriais, marcas, concorrência desleal, contractos de licença de fabricação e transferência de tecnologia.  Universidade de Direito de Concord, EUA 1992.

Finalmente, já se fala do serviço militar obrigatório

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Por Adriano Miranda Lima[i]

Há alguns anos, escrevi um livro intitulado “Forças Expedicionárias a Cabo Verde durante a II Guerra Mundial”. O que mais me motivou para essa iniciativa literária foi o entusiasmo e orgulho com que os veteranos de Tomar e outras localidades se reuniam amiúde, em almoços-convívio, para recordar essa experiência militar vivida na sua já longínqua juventude. Há muito que já nenhum sobrevive. Terminei o livro com estas palavras: Invade-nos a nostalgia quando vemos desaparecer os portadores de uma memória colectiva que era evocada e celebrada com orgulho e emoção, como se nela estivesse o epicentro das suas mundividências. Quando o sentimento do dever militar cumprido ilumina o rosto de um veterano e lhe devolve momentaneamente o entusiasmo juvenil, tem de se reconhecer que o serviço militar obrigatório é uma oportunidade inigualável para o exercício mais expressivo e mais intenso da cidadania.

Os veteranos da chamada “Guerra Colonial”, ou “Guerra do Ultramar”, conforme a perspectiva política, reúnem-se anualmente em almoços-convívio, com o mesmo propósito que animava os seus antepassados que serviram o país durante a II Guerra Mundial.

Uns e outros foram jovens que cumpriram o serviço militar obrigatório. Um serviço cujo tempo médio era de cerca de 3 anos e em condições incomparáveis aos tempos de hoje, com uma remuneração pouco mais que simbólica e em condições duras e precárias. Não obstante, a maioria dos jovens encarava o cumprimento da obrigação militar com um sentimento de orgulho porque, no mínimo, evidenciava a plena afirmação das suas aptidões físicas e psicológicas. Antigamente, o acto de ir "às sortes" (inspecção militar) era como um ritual de passagem, e os mancebos apurados para a tropa eram recebidos em festa na aldeia. A passagem pelas fileiras proporcionava uma ocasião ímpar para a socialização e criação de laços de amizade e camaradagem que perduravam pela vida fora, além do inegável contributo que representava para a formação humana dos jovens a aquisição de valores cívicos e disciplinares. Ao longo de toda a minha vida militar, nunca notei que os militares detestassem o serviço militar. As cerimónias de juramento de bandeira eram um momento único de entrosamento entre a instituição militar e a sociedade civil: as famílias enchiam os quartéis, orgulhosas de verem os filhos garbosos nas suas fardas e aprumados nas formaturas e nos desfiles que se seguiam.

Poderá argumentar-se que todo esse imaginário pertence ao passado, que as sociedades evoluem e que os padrões culturais da actualidade não se compadecem com sentimentos e valores tradicionalistas. E que, por conseguinte, a compulsividade inerente ao serviço militar não é passível de retorno, de ser entendido e acolhido pacificamente pelas sociedades. Discordo, porque a alma dos povos é imutável na sua essência e na consistência dos elementos afectivos, simbólicos e místicos que a integram. A esse respeito, penso que nada mudou.

O que mudou foi o modelo de serviço militar, a partir do momento em que, nos finais dos anos 90, os líderes das juventudes partidárias do PSD e do PS, respectivamente, Pedro Passos Coelho e António José Seguro, inscreveram na agenda da sua militância a extinção do Serviço Militar Obrigatório (SMO). Fizeram passar a ideia de que essa obrigação representava um sério prejuízo para os jovens, um entrave ao seu progresso e um comprometimento do seu futuro. Mas logo ficou evidente que a problemática do serviço militar se convertera em simples instrumento de disputa eleitoral, permitindo duvidar não só da maturidade política dos seus protagonistas como da própria autenticidade da bandeira que arvoraram em suposta defesa da juventude.

Passos Coelho muito se esforçou para que o governo do seu partido, o de Cavaco Silva, avançasse com a proposta para a discussão no Parlamento da extinção do SMO, mas sem êxito.

A decisão só seria tomada no final de 1999 pelo executivo seguinte, chefiado por António Guterres, o qual, face à pressão exercida por todos os partidos, à excepção do PCP, não teve outra saída senão levar o assunto ao Parlamento, tendo o respectivo diploma sido discutido e aprovado. Contudo, foi estabelecido um período de transição de quatro anos para o diploma entrar em vigor, o que aconteceu em Setembro de 2004. Passos Coelho considerou o diploma “um logro”, por arrastar durante mais quatro anos a obrigatoriedade do serviço militar. Seja como for, o SMO foi abolido sem qualquer discussão pública entrecruzando a sociedade civil, a academia e a instituição militar. O seu fim não obedeceu a uma visão estratégica e não foi precedido de um estudo aprofundado do problema e de tudo o que o envolve; resultou em grande parte de um capricho das juventudes político-partidárias, que, expulsando os adultos da sala, foram juízes em causa própria em algo que as transcendia largamente, porque estava em causa uma delicada e complexa questão que se inscreve na centralidade da Defesa Nacional.

O problema volta agora de novo à discussão pública quando soam tambores de guerra na Europa e outras paragens do mundo. O fenómeno da guerra tem hoje a marca da omnipresença e da transversalidade. E é neste cenário que a NATO aconselha aos seus membros o reforço do orçamento da Defesa no mínimo de 2% do PIB, além de medidas reformadoras das políticas de defesa nacionais, no cerne das quais se coloca necessariamente a questão do serviço militar.

Mas o regresso da discussão da problemática do SMO se deve à constatação de que o sistema de voluntariado e contrato não resolveu nem parece capaz de resolver o problema dos recursos humanos para as Forças Armadas, a avaliar pela grave situação deficitária dos efectivos causada pela dificuldade de recrutamento de novos militares. As razões de fundo estarão directamente relacionadas com as condições remuneratórias pouco atractivas e ainda com a circunstância de o actual sistema oferecer uma solução de empregabilidade apenas transitória. Só que o problema não se cinge apenas à capacidade de criar e apetrechar estruturas de forças para responder a qualquer ameaça. Para isso, o voluntariado serve e será sempre possível aliciá-lo com um sistema remuneratório mais compatível e outros incentivos, acaso o permitam os recursos financeiros. O problema de fundo é que a extinção do SMO eliminou o importante sistema de mobilização que o país construiu e vigorou desde sempre e ao longo de muitas décadas, mercê dos “distritos de recrutamento militar” instalados no território continental e ilhas, e das “secções de mobilização” existentes em cada unidade territorial. Tudo isso desapareceu e o país ficou sem condições para proceder a uma efectiva e maciça mobilização de forças de reserva se qualquer ameaça ou emergência o exigirem. Num ápice, por amadorismo político e irreverência juvenil, destruiu-se um sistema secular que foi validado e consolidado ao longo de décadas.

Destruir é muito mais fácil do que construir ou reconstruir. Embora se constate que os políticos continuam a fugir do assunto como o diabo foge da cruz, a discussão tem de ser fomentada na sociedade civil e no seio das Forças Armadas, para a recolha dos mais diferentes contributos que permitam uma tomada de decisão em sede institucional própria, decisão a ser equacionada, como me lembrou um amigo da Armada e correspondente, em função dos parâmetros "estrutural-genético-operacional" e "adequabilidade-exequibilidade-aceitabilidade". Seja como for, nada perderemos se olharmos para os modelos de serviço militar obrigatório que foram reintroduzidos na Suécia, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Letónia, Grécia e Áustria, entre outros. São países democráticos e socialmente avançados que encararam o problema com realismo e sem complexos existenciais, porque a necessidade o exigiu.



[i]Escreve conforme a ortografia anterior ao AO 90.

                                                                                                

Língua portuguesa: a curiosa origem da palavra “adeus”

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Quase todas as palavras da LP carregam um passado, uma história, um étimo, uma origem que vale a pena conhecer. Assim acontece com a palavra "Adeus" trazida no Artigo publicado na revista VortexMag de 9/04/2024. Com a devida vénia, e por o julgarmos com interesse para o leitor aqui o transcrevemos.

 

A língua portuguesa, rica em história e em nuances, é repleta de palavras cujas origens se entrelaçam com momentos cruciais da história e com as transformações culturais das sociedades que a falam. Uma dessas palavras, carregada de significado e repleta de curiosidades sobre a sua origem, é “adeus”.

Este termo, usado diariamente por milhões de falantes do português, encerra em si não apenas uma despedida, mas também uma janela para o passado linguístico e cultural da língua.

A palavra “adeus” é uma forma de despedida em português, usada quando alguém se afasta de outra pessoa. À primeira vista, pode parecer apenas uma simples combinação de sons, mas a sua origem remonta a uma profunda tradição religiosa e cultural.

O termo é, na verdade, uma contracção das palavras latinas “a Deo”, que se traduz literalmente por “a Deus”, sugerindo que, ao despedir-se, o falante entrega a pessoa que parte à protecção divina.

Esta expressão tem as suas raízes no Cristianismo, onde a ideia de confiar alguém à protecção de Deus era uma prática comum. Com o tempo, “a Deo” transformou-se linguisticamente em “adeus” nas línguas românicas, como o português, o espanhol (“adiós”) e o francês antigo (“adieu”), todas reflectindo variações da mesma origem e do mesmo significado intrínseco.

A evolução da palavra “adeus” reflecte também a história da própria língua portuguesa, que se originou do latim vulgar falado pelos soldados, colonos e mercadores romanos que se estabeleceram na Península Ibérica a partir do século III a.C.

Com o passar dos séculos, o latim vulgar misturou-se com as línguas locais e com as dos povos invasores, como os visigodos e os mouros, dando origem às línguas românicas, incluindo o galego-português, que mais tarde se diferenciaria no português e no galego.

A transformação de “a Deo” em “adeus” é um exemplo fascinante de como as línguas evoluem e de como as palavras se adaptam às necessidades comunicativas das sociedades, absorvendo influências culturais e religiosas.

Além do mais, a utilização de “adeus” como despedida é um lembrete da importância que a religião cristã teve na formação da cultura e da língua portuguesas. A presença da religião no quotidiano dos falantes reflectia-se na língua, incorporando termos e expressões que evocavam a fé e a espiritualidade.

No entanto, é interessante notar como, com o tempo, o significado original religioso de “adeus” tem sido, de certa forma, secularizado. Hoje, muitos falantes usam o termo simplesmente como uma forma de despedida, sem necessariamente invocar a conotação religiosa que originalmente possuía. Isso reflecte a capacidade das línguas de se adaptarem e de evoluírem, reflectindo as mudanças nas crenças e nas práticas sociais.

Em conclusão, a palavra “adeus” é muito mais do que uma simples despedida. É um elo com o passado, uma janela para a compreensão de como a língua portuguesa, e as línguas em geral, são um reflexo vivo das culturas que as falam.

Explorar a origem e a evolução das palavras como “adeus” permite-nos não apenas entender melhor a língua portuguesa, mas também apreciar a riqueza cultural e histórica que ela encerra.

In: VortexMag

9/04/2024

 

domingo, 7 de abril de 2024

 50 anos depois de Abril, uma inesperada encruzilhada

Seria de estranhar que a democracia não fosse um percurso semeado de encruzilhadas, umas mais problemáticas do que outras, ou não se tratasse de um sistema político concebido pelo homem e que, portanto, exala necessariamente a natureza dos seus ideais e a feição das suas virtudes, tal como as suas dúvidas e ambiguidades existenciais e a sua vocação conflituosa. Shakespeare foi quem melhor exprimiu o drama do homem na encruzilhada da vida, isto é, nas ocasiões em que tem de fazer escolhas decisivas. Uma das suas frases universais foi proferida pelo personagem Hamlet: "To be or not to be, that is the question". Foi quando o Príncipe da Dinamarca enfrentou o dilema de saber se devia ir à luta, como lhe havia ordenado o fantasma do seu pai, ou quedar-se inactivo.

Este intróito é para caracterizar o actual momento da vida política nacional. É certo que tem havido encruzilhadas na caminhada da democracia portuguesa desde o I Governo Constitucional, que tomou posse a 23 de Julho de 1976, com Mário Soares como primeiro-ministro. Houve encruzilhadas jubilosas, como a adesão à CEE, em 1985, assim como outras menos afortunadas, como as intervenções do FMI em 1977, em 1983 e em 2011. Porém, seria absurdo ignorar que a actual conjuntura não resultou das incidências normais da vida política, o que acontece quando a inépcia e a imprevidência sobram onde se esgotam a lucidez e a imaginação criativa. Não, se estamos agora como estamos foi simplesmente pelo arbítrio de dois cidadãos com as mais altas responsabilidades na vida da República: a Procuradora-Geral da República, por inadvertência e irresponsabilidade; o Presidente da República, por uma decisão unipessoal que caberá à História julgar em que doses se operou uma mistura letal de intencionalidade, partidarismo e imprevidência.

Sim, a dissolução da Assembleia da República colocou a democracia portuguesa numa perigosa encruzilhada quando ela está à porta de comemorar o seu cinquentenário. E, ironicamente, quando existiram todas as condições políticas para assinalar a efeméride sob os melhores auspícios. O governo que vai entrar em exercício é de uma maioria relativa tão inexpressiva que dificilmente poderá garantir a estabilidade do seu funcionamento. Mas a consequência mais grave da decisão presidencial é a extrema-direita alçapremada para o terceiro lugar das forças mais votadas, posição que transforma o Parlamento num complicado xadrez político.

E é preciso ter em atenção que o fenómeno da emergência da extrema-direita tem uma localização muito mais endógena do que à primeira vista se pode pensar. Será ilusório querer resolvê-lo com uma simples pateada ao actor principal da comédia burlesca que é o André Ventura, visto que o milhão e 300 mil de cidadãos que nele votaram caracterizam uma faixa difusa da sociedade que importa auscultar e acompanhar atentamente. Sem rebuço, direi que pertencerão à mesma estirpe dos que ovacionaram Marcelo Caetano no estádio do Alvalade em 31 de Março de 1974 e que menos de um mês volvido encheriam as ruas a vitoriar a revolução de Abril. E é uma falsidade grosseira querer identificá-los com aqueles que não “vêem os seus problemas resolvidos”, na expressão pouco fundamentada de alguns jornalistas e comentadores, dado que nenhuma democracia, nem nos países mais ricos do mundo, conseguiu até hoje resolver todos os problemas a todos os cidadãos. Haverá sempre faixas da sociedade estagnadas na sua inexpressividade, e é nesse húmus social que se infiltra e se cultiva a extrema-direita. Foi nesse húmus que o Estado Novo assentou os alicerces da sua longevidade de 40 anos, fertilizando-o e expandindo-o.

Calcula-se a enorme dificuldade que terá tido Luís Montenegro em convencer figuras prestigiadas da sociedade civil a ingressar no governo, muitas das quais lhe devem ter fechado as portas. Se não tem sido fácil em circunstâncias mais pacíficas, o que não será no actual momento político? Consta que houve quem só aceitasse o convite poucas horas antes da apresentação dos indigitados ao Presidente da República. Compreende-se a razão. Bem longe vão os tempos em que o exercício de um cargo na governação exornava honra e prestígio e suscitava o respeito dos cidadãos e a consideração pública. Deixou de ser assim a partir da altura em que a proliferação de canais televisivos e de jornais desprovidos de ética de serviço público, em conluio com

magistrados do Ministério Público inexperientes ou pouco escrupulosos, levaram ao cúmulo do exagero o seu conceito de escrutínio dos titulares dos cargos públicos. Hoje, ser-se ministro equivale a ter a vida pessoal devassada nos media ou em escutas telefónicas reiteradamente prolongadas e despropositadas. Ou ser rotulado de “ladrão” no palavreado indecoroso, indigno e abjecto de políticos populistas e demagogos, cujo crescimento eleitoral muito se deve ao excesso de mediatismo que lhes concede a comunicação social, sabe-se lá com que motivações e com que fins. Perante isto, receia-se que se chegue a uma situação em que as forças políticas apenas poderão formar governo com recurso exclusivo aos seus militantes, cuja disponibilidade e dedicação dificilmente compensarão a sua falta de experiência profissional e o escasso domínio nas diversas áreas do saber.

O país democrático aplaudiu, e muito bem, a decisão de Luís Montenegro de recusar qualquer acordo com o partido da extrema-direita. Foi-o na eleição do Presidente da Assembleia da República. E espera-se que o seja igualmente no decurso de toda a legislatura.

A situação é, portanto, nebulosa e complexa. Montenegro assumiu que não conta com a extrema-direita, o que subentende que lhe restará o apoio ou a concertação possível com as restantes forças da oposição para poder governar. Caso contrário, será curto o tempo de vida do seu governo e iremos entrar em mini-ciclos governativos que alterarão a normalidade que regeu a maior parte do tempo o nosso quadro legislativo. É aqui que o Partido Socialista terá, talvez, de fazer uma leitura atenta e criteriosa dos sinais que se lhe deparam no chão desta encruzilhada. Terá de se socorrer das artes do bom pisteiro, como fazíamos nas operações militares em África.

Com efeito, se o Partido Socialista não engolir escrúpulos partidários ou não congelar temporariamente algumas convicções programáticas a fim de facilitar o cumprimento do ciclo legislativo normal ao governo da AD, a alternativa é a queda do executivo ou o seu recurso, em última instância, ao apoio da extrema-direita. Não seria nada saudável para a nossa democracia que se estendesse o tapete ao partido que o denega e atenta contra os seus fundamentos, os seus princípios e os seus valores. Partilhar com ele a governação, ainda que por via indirecta, seria uma promiscuidade inaceitável e difícil de digerir por todos aqueles que se orgulham da democracia instaurada há 50 anos e que transformou radicalmente a vida dos portugueses.

Além disso, o Partido Socialista deverá saber que se forçar o derrube do governo que entra em funções muito dificilmente poderá contar com o retorno de uma situação de alternância que lhe seja eleitoralmente diferente e mais vantajosa do que a actual. E com a contrapartida negativa de, eventualmente, se poder alimentar ainda mais uma instabilidade que favorecerá os desígnios eleitorais da extrema-direita. Seria desastroso que a entronização de mini-ciclos legislativos pudesse abrir a porta a uma indesejável ciclotimia nacional, ameaçando seriamente a saúde da democracia.

Nota: escrevo conforme a ortografia anterior ao AO 90.

Adriano Miranda Lima