TROVA DO MÊS DE
ABRIL
Foram dias foram anos
a esperar por um só dia.
Alegrias. Desenganos.
Foi o tempo que doía
com seus riscos e
seus danos. Foi a noite e foi o dia
na esperança de um só
dia.
Foram batalhas
perdidas. Foram derrotas vitórias.
Foi a vida (foram
vidas). Foi a História (foram histórias)
mil encontros
despedidas. Foram vidas (foi a vida)
por um só dia vivida.
Foi o tempo que
passava como se nunca passasse.
E uma flauta que
cantava como se a noite rasgasse
toda a vida e uma
palavra: liberdade que vivia
na esperança de um só
dia.
Manuel Alegre
in “País de Abril” – Uma antologia (Extracto do poema)
O 25 de Abril que nunca aconteceu[i]
Por M.
Brito-Semedo
O 25 de Abril foi, por isso, uma fraude aqui nas ilhas no sentido
em que o termo é utilizado para descrever actos enganosos ou desonestos com a
intenção de obter ganhos pessoais e políticos ou prejudicar outra pessoa
sabendo que isso geralmente envolve a manipulação de informações, documentos ou
sistemas para obter benefícios, no caso, o de poder decidir o destino de um
povo.
Liberdade efémera
Posiciono-me a partir do lugar onde me encontrava quando aconteceu
a Revolução de Abril, utilizando São Vicente como o meu ‘lugar de fala’. Esta
referência destaca a importância (relativa) da minha experiência pessoal de 22
anos, na altura, estudante do Seminário Nazareno, para a compreensão da minha
perspectiva e dos meus argumentos sobre esse facto político. Recorro-me,
igualmente, do auxílio da realidade ficcional histórica de Teixeira de Sousa e
da memória como auxiliares da construção da História. Em São Vicente
respirava-se liberdade, alegria e esperança no Primeiro de Maio após o 25 de
Abril.
“Os largos e as ruas encheram-se de
povo, os sindicatos, os clubes desportivos, até os cães se incorporaram na
gloriosa festa do Primeiro de Maio que se assinalava após o 25 de Abril. […]
Drapejavam bandeiras, exibiam-se dísticos, soava música por todo o lado,
estrelejavam foguetes, gritavam-se slogans, aliás bem ensaiados. Percorrida
meia cidade, ocorreu a programada concentração na pracinha da igreja e da
Câmara Municipal. O espaço era pequeno de mais para tanta gente. Os moradores
do sítio franquearam as suas portas, janelas e varandas para quem as quisesse
utilizar. Os Paços do Concelho viraram edifício do povo. O salão nobre
abarrotou-se de cristãos. […].
Dois homens agarraram o Dr. Herbert
e levaram-no aos ombros até lá acima, ao salão nobre […].
‘Todos devemos pensar que o futuro
se acha agora nas nossas mãos. Não entreguemos a outro aquilo que nos compete a
nós realizar […] agora vamos trabalhar em liberdade, e trabalhar mesmo, sem
atitudes emotivas, sem radicalismos ideológicos. E pensar sobretudo que estas
mãos não servem só para aplaudir […]. De futuro vão servir para trabalhar’” –
Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, pp. 24-27.
A partir dessa data, e até 31 de
Dezembro, quando foi empossado o Governo de Transição, integrado pelo major
José Manuel Vaz Barroco, Carlos Reis, Amaro da Luz e Manuel Faustino,
Ministros, respectivamente, da Administração Interna, da Justiça e Assuntos
Sociais, da Coordenação Económica e Trabalho e da Educação e Cultura2
– ensaiou-se um simulacro de revolução e de luta armada.
“Tinha-se a impressão de que o Carnaval voltara mais ruidoso agora,
com multidões desfilando, gritando, empunhando bandeiras, cartazes, outros
símbolos, punhos erguidos, slogans em coro, cornetas, apitos, canzoada
ladrando atrás. As fachadas e os muros encheram-se de dizeres: o fascismo
não passará, abaixo o colonialismo, morte aos cachorros de dois pés,
independência já, fora com os mondrongos, povo unido jamais será vencido, viva
a unidade Cabo Verde-Guiné, Viva o PAIGC. Desde o celebérrimo 25 de Abril o
ambiente era esse, nas ruas, nos largos, até no campo de football. Os
cortejos e os barulhos findavam sempre na Praça Nova, com atitudes e actos
provocatórios”. – Teixeira de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, p. 21.
[Os do Grémio Recreativo do Mindelo] “Achavam uns que as ilhas deviam
permanecer portuguesas, uma vez que haviam sido achadas e povoadas pelos
portugueses. Outros opinavam que a velha ideia da adjacência, como a dos Açores
e da Madeira, seria o estatuto correcto. Outros ainda, que o caminho mais justo
seria o da autonomia administrativa sob a soberania portuguesa. Ninguém
simpatizava com a tese de independência total. O arquipélago era demasiado
pobre para aspirar a Estado independente”.
Liberdade capturada
No tempo percorrido entre o momento histórico da Revolução dos
Cravos e a independência política de Cabo Verde, as ilhas viveram um dos
momentos mais conturbados da sua História recente. Houve a manipulação da
população, sobretudo dos jovens estudantes, amedrontamento de certos estratos
sociais e das elites locais – “os intelectuais são lixo, lixo da nossa
História, que devem ser colocados num saco e atirados ao mar” – silenciamento
da Rádio Barlavento, eliminação das forças políticas da UDC (União Democrática
de Cabo Verde) e UPICV (União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde) e prisão dos
“reaccionários inimigos do nosso povo”.
“Infelizmente, volto a repetir, vejo muito
apetite totalitarista a estragar o acontecimento do 25 de Abril, muito
revanchismo, Santo Deus, numa terrinha onde todos somos primos e compadres.
Estou muito decepcionado com estes meninos barulhentos, implicantes,
intolerantes, impositivos, avessos ao diálogo sereno, construtivo” – Teixeira
de Sousa, Entre duas Bandeiras, 1994, p. 176.
A prisão do Tarrafal, fechada a 1 de Maio, voltou a abrir em
Dezembro de 1974 pelos militares portugueses para receber os adversários
políticos do PAIGC, os designados “inimigos do povo”, acusados de serem contra
a independência nos moldes preconizados, “independência com o PAIGC”,
“independência total e imediata”, “independência ou morte” e contra a “unidade
Cabo Verde-Guiné”. Mesmo depois da proclamação da independência, ou por causa
disso, a sanha dos novos donos do poder continuou e abriram-se outros “Tarrafais”
com prisões arbitrárias torturas e mortes, de várias pessoas muito conhecidas
no meio mindelense, em 1977, acusadas de planearem “actos terroristas”, para
São Vicente e Santo Antão; de um grupo de pessoas em Santo Antão, em 1981, por
protestar contra a Lei da Reforma Agrária; julgamentos em Tribunal Militar onde
os juízes, os procuradores e os advogados provisionários eram nomeados de entre
os militares-combatentes vindos de Conacri.
Acordo de Independência
Em 2004, pelos 30 anos do 25 de
Abril, em entrevista ao Público3, Almeida Santos, Ministro da
Coordenação Interterritorial, durante o período da descolonização, revelou como
foi feito o Acordo de Independência de Cabo Verde:
“Ainda se nomeou um governador
cabo-verdiano, mas foi demitido pouco depois, porque o PAIGC foi para lá fazer
a mesma campanha eleitoral que tinha feito na Guiné.
O partido era o mesmo. Pouco depois
tinham aquilo dominado. E os militares fizeram pressão para que houvesse
descolonização rápida. Também houve um ultimato de lá para cá, a dar cinco ou
oito dias para o Governo português entregar o poder ao PAIGC, sob pena de
entregarem eles lá. Ficámos de mãos atadas. Não podíamos julgar centenas de
militares, tinha sido um plenário de militares e não podíamos substituí-los —
“Nem mais um soldado para o ultramar”.
O 25 de Abril, pelos valores que propugnava, nunca aconteceu em
Cabo Verde, no sentido em que foi uma fraude, muito por culpa dos militares portugueses
(Delegação do Movimento das Forças Armadas, MFA, e das Forças Armadas
Portuguesas, FAP) aqui estacionados –com “a total identificação por parte dos
militares com os ideais de luta do PAIGC”1 – e pelo projecto de
poder trazido pelo grupo que veio de Conacri, com áurea de combatente e de
libertador.
O Costa Gomes e eu ficámos sem saber e eu disse: “Vou pedir a demissão, vou explicar porquê, não estou para aturar isto.” Ele disse: “Ah, senhor ministro, veja lá o que pode fazer, o senhor é tão hábil, tem resolvido tantos problemas, veja se resolve mais um.”
Lembrei-me: “Vou chamar o Pedro
Pires.” Que era quem andava lá a fazer a propaganda revolucionária. Chamei-o e
disse-lhe: “Você conhece este telegrama?” E ele: “Conheço.” E eu: “Então,
agora?” Ele diz: “Os senhores perderam, nós ganhámos.” E eu perguntei: “Vocês
ganharam o quê? Que guerra é que você ganhou em Cabo Verde? Quantos mortos é
que tem lá?” Ele ficou um bocado chateado e diz-me: “Você é que me chamou, tem
que me dizer o que quer.”
E eu disse: “O que quero é que você
seja mais inteligente do que infelizmente alguns dos nossos moços que estão lá
em Cabo Verde e que aceite uma consulta popular. Vocês ganham a consulta
popular por 90 por cento e nós salvamos a face.” E ele disse: “O que é que
ganho com isso?” Respondi: “Olhe, ganha a legitimação democrática do novo
poder, nunca mais será discutida. Se você o recebe da mão de militares, toda a
vida será discutida.” Ele disse: “Eu já percebi, estou de acordo, mas tenho de
ir falar com os meus colegas do PAIGC e dentro de dois dias estou cá.”
Respondi: “Então vá depressa que não temos tempo.”
Ele foi, veio, quando chegou
disse-me que estavam de acordo. Eu disse: “Então sente-se aí.” Comecei a
redigir o acordo, eu e ele, praticamente fi-lo sozinho, mas ele lá discutia uma
palavra ou outra. E depois telefonei ao Costa Gomes a pedir uma reunião urgente
com Mário Soares e Melo Antunes, que tinha novidades. Ele perguntou: “Boas ou
más?” Respondi: “Não lhe digo pelo telefone.”
Chegámos lá, assinámos o acordo e
ficou descolonizado Cabo Verde. Fiz uma lei eleitoral. Houve uma grande
participação da população. Eles ganharam por 92 por cento. Elaboraram uma
Constituição. Acabou. Salvámos a face.”
O Acordo de Independência, publicado na íntegra no Novo Jornal de
Cabo Verde, de 26 de Dezembro de 1974, continha 19 artigos, dos quais se
tratava da criação do Governo de Transição de Cabo Verde, da composição do
mesmo Governo e da eleição de uma Assembleia representativa do povo de Cabo
Verde, denominada Assembleia Nacional que, dotada de poderes soberanos e
constituintes, teria por função declarar a independência do Estado de Cabo
Verde e elaborar a futura Constituição desse Estado, só foi cumprido em parte.
Independência com moderação
O médico e escritor Teixeira de Sousa defendia a posição de uma
independência com moderação, e disse-o a Michel Laban, em 19924 :
“A discordância maior foi a ideia de
unidade Cabo Verde/Guiné-Bissau. Ora, eu não via que essa unidade fizesse o
mínimo de sentido dada a disparidade dos valores culturais entre os dois países
[…].
Outra discordância foi eu ter
advogado uma independência neutra, tanto em relação ao Leste [U.R.S.S.] como em
relação ao Oeste [E.U.A.]. […].
A terceira discordância foi o meu
combate à lusofobia […], chegando mesmo a preconizar uma certa colagem ao
Portugal politicamente renovado […].
Finalmente, aproveito a ocasião para
declarar que não me agradou nada o “apartheid” político praticado de início em
relação a cabo-verdianos vivos e mortos, nados e criados num contexto colonial,
inexorável nas suas consequências humanas”.
DizCorrendo sobre as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, celebrado em
Cabo Verde pela primeira vez, em que muitos dos principais actores e donos da
narrativa são aqueles que fizeram com que isso não tivesse acontecido. Só em
1990, quinze anos depois, com a mudança dos ventos da História, viria a haver o
espírito do verdadeiro 25 de Abril com a conquista da Liberdade.
Fonte:
ALMEIDA, São José (S.J.A.), “As que Pude Controlar Previram Consulta”,
Entrevista com Almeida Santos. Público, 11 de Abril de 2004, p. 14. CARDOSO,
Humberto, O Partido Único em Cabo Verde – Um Assalto à Esperança. Praia: Edição
do Autor, 1993.
LABAN, Michel, Cabo Verde – Encontro com Escritores, I vol. Porto:
Fundação Eng. António de Almeida, 1992.
MARTINS, Pedro, Testemunho de um Combatente. Mindelo: Ilhéu Editora, 1990.
PIRES, Sandra Cunha, Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo
Verde. Lisboa: Edições Colibri/ Associação 25 de Abril, 2022.
TEIXEIRA DE SOUSA, Henrique, Entre duas Bandeiras. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1994.
1.
Sandra Cunha Pires, in Os Militares Portugueses e a Descolonização em Cabo
Verde, Lisboa, 2022.
2. A
22 de Fevereiro de 1975 viria a ser nomeado o tenente-coronel de engenharia
Vasco Fernando de Melo Wilton Pereira, Ministro do Equipamento Social e
Ambiente.
3.
São José Almeida (S.J.A.), “As que Pude Controlar Previram Consulta”,
Entrevista com Almeida Santos. Público, 11 de Abril de 2004, p. 14.
4.
Michel Laban, Cabo Verde – Encontro com Escritores, I vol., 1992, pp. 202- 203
[i] In
“Expresso das Ilhas” Nº 1169 de 24 de Abril de 2024