A política e os seus actores e mentores

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Por  Adriano Miranda Lima[i]

Embora a arte da comunicação seja um instrumento importante para a conquista e preservação do poder nas sociedades democráticas, torna-se cada vez mais evidente que a política se transformou num espectáculo mediático deslocado do seu lugar legítimo. O parlamento deixou de ser o palco por excelência para a visibilidade da política desde que as televisões a transformaram num espectáculo e num dos principais produtos da sua agenda comercial. Tudo seria razoavelmente tolerado se não houvesse uma relação incestuosa entre a televisão e o sistema político. Ora, os canais de televisão contratam para o comentário político antigos líderes e figuras de relevo dos aparelhos partidários, enquanto promovem os seus próprios comentadores internos criando condições para a sua futura ascensão ao mundo da política. E, neste contexto, era inevitável que as escolhas dos canais televisivos se identificassem criteriosamente com as ideologias mais favoráveis à lógica do negócio privado, vinculando-se a interesses e lobbies que pouco ou nada têm a ver com o primado do bem público.

Temos assim a redução da vida política à expressão televisiva partidária, num círculo vicioso em que a televisão se torna feudo do comentário partidarizado e os políticos e os partidos ficam reféns da televisão para poderem ter visibilidade. E é nestas circunstâncias que a valorização da televisão como palco da política tem como contraponto a desvalorização da acção política parlamentar. A mais evidente constatação deste fenómeno se oferece quando os debates parlamentares são frequentemente sobrepostos pelas intervenções dos comentadores televisivos, que interrompem ou truncam as emissões em directo a seu bel-prazer e em função de um critério partidário, pelo que ao espectador o que chega é uma visão partidariamente influenciada do que se passa no parlamento. É por isso que desde há muito utilizo o canal próprio do Parlamento para assistir aos debates políticos, pois assim são recebidos na sua integridade, sem qualquer manipulação de um agente exterior.

A verdade é que a política tem um lado que é tributário da representação e da teatralidade, da retórica balofa e sem conteúdo substantivo, do histrionismo e da gesticulação próprios dos chamados vendedores de banha de cobra; digamos que é a política na sua versão mais indigente, terreno privilegiado de simples actores da cena política em detrimento de mentores da realidade política no que ela tem de nobre e edificante. Os actores da política são fáceis de identificar e infelizmente tendem a sobrepor-se quantitativamente e cada vez mais aos mentores da política. A diferença entre os actores e os mentores é que os primeiros são de cultura fácil e primam pela aparência e pelo estilo, ao passo que os segundos possuem a ciência e o saber concretos e indispensáveis à realização da política no seu sentido aristotélico (associada à moral e à promoção da virtude tendo em vista o bem da comunidade), mesmo que não dominem a técnica da retórica e a arte da representação. O termo “mentor” vem do grego e refere-se à figura mítica de Mentor, amigo e conselheiro de Telémaco, que o apoiou enquanto o pai esteve ausente na guerra de Tróia. Foi assim que o termo “mentor” se tornou sinónimo de alguém que possui sabedoria, experiência e conhecimento e se predispõe a partilhá-los com outrem ou a colocá-los ao serviço da colectividade.

As recentes eleições europeias revelaram dois casos que considero paradigmáticos de uma tendência que se desenha na cena política e da comunicação e que devia merecer uma atitude crítica ao cidadão comum. O caso mais recente, e bem flagrante, da promoção de um candidato ao mister da política é o do comentador da CNN Sebastião Bugalho, cabeça de lista que foi da AD para as eleições europeias. No pólo oposto, o caso do embaixador António Tânger Correia, que foi cabeça de lista do Chega para as mesmas eleições. As diferenças entre um e outro são abismais, como passo a explicar numa análise completamente desligada de uma visão partidária. O Sebastião Bugalho foi considerado pelos comentadores das televisões uma escolha partidária promissora, num juízo subordinado mais aos seus talentos comunicacionais do que a qualquer evidência dos seus méritos políticos. De facto, para lá dos atributos que já demonstrou como comentador, a sua pouca idade não lhe permitiu ainda qualquer prova real de capacidade na área política ou em qualquer outra. O seu único trunfo é a habilidade retórica e o discurso fluente. Pelo contrário, o embaixador Tânger Correia foi considerado pelos mesmos comentadores televisivos um erro de “casting” cometido pelo Chega e o provável responsável pela queda eleitoral do seu partido. Fiquei perplexo ao ouvir semelhante explicação, mas perfeitamente ciente da lógica que subliminarmente a sustenta.

Está visto que estamos perante um actor e um mentor da política.

É natural que os comentadores televisivos, fazendo jus à lealdade corporativa, enalteçam um dos seus que transita do cenáculo televisivo para o mundo da política. Nada lhes diz um embaixador de 72 anos, com provas dadas ao longo de toda uma vida diplomática variada e intensa, mas que é desprovido de talentos comunicacionais, como ficou patente nos debates eleitorais, em que se lhe notou uma aparente despreocupação com a retórica e o palavreado supérfluo, prescindindo até dos habituais malabarismos verbais para minimizar ou anular o seu interlocutor. No entanto, tudo indica que ele poderá ser de uma utilidade efectiva nas funções para que foi eleito, só lamentando que tenha posto a sua experiência ao serviço de um partido de ideologia radical e populista e inimigo do nosso sistema político.

Que sirva esta análise para nos ajudar a reflectir sobre as inconveniências do espectáculo em que se converteu a política, com os meios de comunicação social a promoverem a teatralização e o sensacionalismo à volta do fenómeno político, mais interessados em atrair audiências ou leitores do que em informar com isenção, rigor e objectividade, tendo em vista o interesse público. O leitor ajuizará se isto terá alguma coisa a ver com o crescente desinteresse dos cidadãos para com a política



[i]  Escreve conforme a ortografia anterior ao AO 90. (Em 24/6/2024)

Amílcar Cabral e a "Despartidarização" do seu Legado

domingo, 23 de junho de 2024

Li, num jornal digital que me foi enviado por um amigo, para a partilha da notícia, que o Dr. Ulisses Correia e Silva – não sei se na condição de primeiro-ministro ou de presidente do MpD – afirmou que, cito: “O maior tributo a prestar a Cabral é não partidarizar a sua figura e o seu legado". Fiquei verdadeiramente surpreendido que tal afirmação tenha saído da boca ou da pena ou mesmo da mente – de um tão experimentado político cabo-verdiano, dirigente de um partido de democracia liberal – o MpD; assim dito, parece violar o espírito e a essência do pensamento de Cabral em o querer afastar da sua obra mais emblemática o PAIGC.  Porventura o autor dessa frase tenciona ignorar a história contemporânea de Cabo Verde? Ou será que quer legitimar uma narrativa que pretende atribuir a Amílcar Cabral (AC) o estatuto de “fundador” da cabo-verdianidade, ficando deste modo acima dos partidos e dando assim aos seus correligionários – sobretudo os vindos de Conacri – a legitimidade “histórica” que vêm procurando e de que “habilidosamente” têm vindo a fazer gala? Ou, por último, será que “ignora” ou desconhece o conceito de partido, estruturado, organizado e defendido por Amílcar Cabral?

Dissociar Amílcar Cabral do PAIGC, – só assim se conseguiria despartidarizá-lo – ou vice-versa, constitui uma autêntica quadratura do círculo. É impossível, porque são absoluta e estruturalmente indissociáveis!

Hoje, numa análise cuidada da guerra para a independência na Guiné-Bissau levantam-se-me dúvidas sobre se foi AC que engrandeceu o PAIGC ou, entenda-se(!), se foi este que o notabilizou – tal é o imbricamento! – e o tornou conhecido através do brilhantismo dos seus operacionais nas matas da Guiné, verdadeiros comandantes forjados na luta e não fabricados administrativamente num gabinete ministerial para efeitos de status e enquadramento na Administração Pública, para justificação de altas remunerações e consequentes mordomias; e, pour cause,  chorudas pensões de reforma.

O PAIGC de Amílcar Cabral, na realidade nunca foi um partido e ele sabia-o bem.

Tal como as suas congéneres MPLA e FRELIMO, de Angola e Moçambique, é um “movimento armado” e, como tal nunca teve uma linha de pensamento definido, assumido e consolidado para todas as situações e circunstâncias, mas sim, uma união à volta de um objectivo único, o de derrube do colonialismo e conquista do poder. Não me vou debruçar, por agora, neste aspecto, eventualmente, polémico – haverá tempo para o fazer – mas apenas lembrar que a atitude de AC e as suas “conversas” de sedução perante os diferentes líderes políticos mundiais – há registos – são bem elucidativas. Ele é social-democrata perante Olof Palme na Suécia, comunista com Leonid Brezhnev em Moscovo, anticolonialista e democrata liberal (vide carta a Oliveira Salazar) para os portugueses, comunista maoista na China, socialista/revolucionário internacionalista com Fidel em Cuba e, internamente, um exímio e acabado discípulo de Lenine, seguidor convicto do marxismo-leninismo e, consequentemente, praticante laborioso do centralismo democrático e da democracia nacional revolucionária, base em que se assenta todo o edifício do PAIGC, e assim por diante. Não é tempo de falar das suas múltiplas “ideologias” políticas conforme as circunstâncias que, de certa forma até se compreende, porque se enquadram no afã de “conquistar” o interlocutor e obter ajudas à sua causa imediata que é a destituição do poder colonial e sua substituição.

A transformação do “movimento armado” num “partido político” é um desígnio a que abnegada e artificiosamente Amílcar Cabral se propôs alcançar na procura de instrumentos cada vez mais eficazes de manipulação duradoura da sociedade e de conquista e consolidação de poder pessoal dada a sua concepção de partido – monolítico e elitista. Duma forma clara e inequívoca, ele deixa entender que é defensor de partido único e, consequentemente, de partido-Estado e que nele só devem tomar parte “os melhores filhos”. É ele próprio que no-lo diz in “Arma da Teoria” que passo a citar:

1.         1. «Não é por acaso, não é porque gostamos do nome partido. É com um sentido claro para hoje e para amanhã. Movimento é uma coisa muito vaga (…) O nosso Partido, talvez seja, hoje, na realidade, um movimento, mas o nosso trabalho tem que ser transformá-lo em Partido cada dia mais (…) Desde o começo demos-lhe o nome de Partido para que todos entendam que temos ideias bem claras sobre o caminho que estamos a seguir (…). (o negrito é meu)

2.            2. «[o] partido é o instrumento de transformação da nossa sociedade, primeiro para expulsar da nossa terra o colonialismo, em segundo lugar, para construir o progresso do nosso país» (o negrito é meu)

3.         3. «Partido é o representante legítimo do nosso povo»(o negrito é meu)

4.            4.[PAIGC] é «o poder organizado na nossa terra, é o nosso Estado»[1]

É este o principal legado político que Cabral nos deixou – o PAIGC – e que os primeiros 15 anos da independência política mostraram bem o que representa – ditadura, partido único, autoritarismo, repressão, censura, prisões arbitrárias, ausência de liberdade, polícia política, torturas, mortes, impunidade…

Um outro legado, não menos trágico, foi a “Unidade Guiné-Cabo Verde” de triste memória – doente e moribundo aquando da morte de Cabral (início de debandada de cabo-verdianos); ressuscitado e estimulado no 25 d’Abril (toque a reunir) – que ao mais pequeno abanão (14 de Novembro) se desmoronou completamente, contrariando os desígnios de Cabral, mas manifestamente desejado, porque aplaudido – o desmoronamento – pelas populações das partes envolvidas.

Poderia ainda citar um terceiro legado, apesar de tudo, o único conseguido mas este não nos diz directamente respeito: é a Independência política da Guiné-Bissau. A económica foi igualmente, por ele, AC, projectada e programada, mas tudo leva a crer que é, ou desastrosa ou está adiada sine die.

Para terminar esta brevíssima reflexão, pergunto: De que legado se trata?  E preservar o quê?

Na verdade, toda a doutrina de Cabral foi testada, durante pelo menos década e meia, na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, pela fina-flor do PAIGC – aqueles que foram dele, os companheiros mais chegados, que se privaram com ele de forma continuada desde o primeiro momento – e os impactos e os resultados foram, infelizmente, os que bem conhecemos e que atrás, muito sintecticamente, já foi referido. Pode-se até afirmar que, se algum legado pudesse ter existido ele foi autofagicamente deglutido pelo próprio PAIGC. Não precisou de intervenções, nem de inimigos nem de adversários.

O seu pensamento, as suas ideias, o seu conceito de partido e da sua intervenção na sociedade e no Estado estão hoje nos antípodas de uma democracia liberal e de uma economia de mercado em que hoje vivemos. Logo, pouco, muito pouco, resta para preservar. Contudo, isto, não belisca a imagem de um homem inteligente, culto, exímio geo-estratega político, combativo e determinado até à morte na defesa dos seus objectivos, merecendo por isso a nossa consideração e o nosso respeito. Estamos, obviamente, a falar de Amílcar Cabral.

A.    Ferreira

 



[1] - PAIGC – Apontamentos das Aulas em Política. Centro de Aperfeiçoamento dos Professores, Conacri, Julho/Setembro, 1966.

A Ilha de S. Nicolau na Escrita de Baltasar Lopes da Silva

sábado, 15 de junho de 2024

 

Nota Introdutória

Tive, em 2007, a oportunidade e o privilégio de assistir e de participar em São Nicolau, nas celebrações do centenário daquele que muitos, onde me incluo, consideram o maior vulto da cabo-verdianidade, o mais acabado intelectual da sua geração e do século XX cabo-verdiano – Baltazar Lopes da Silva, – bem definido por Leão Lopes como “O Homem Arquipélago” no seu livro homónimo e  a quem um também mui ilustre homem de cultura seu contemporâneo – Jorge Barbosa – fazendo jus à sua enorme estatura de intelectual lhe dedicou as seguintes palavras:

    À Baltazar Lopes:- à sua cultura vibrante, ao seu talento vivo, ao seu cabo-verdianismo,

    e para que nos ajude a acertar a hora atrazada do relógio cabo-verdiano.

Quero aproveitar para neste chamar “de volta” à ilha, do insigne Professor e Mestre Baltazar Lopes destacar e louvar o então Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Brava, Amílcar Spencer Lopes, que em boa hora centralizou em São Nicolau, as celebrações do centenário do nascimento (1907-2007) com um programa a todos os títulos interessante, onde houve lugar por iniciativa sua, a colocação de uma estátua de Baltazar Lopes da Silva numa destacada Praça da sua ilha de origem.

As celebrações, repito, a que tive o privilégio de assistir e de participar, foram marcadas por conferências e palestras conduzidas por biógrafos – de entre os quais, destacaria o Professor Alberto de Carvalho -  e estudiosos de diversas áreas da literatura, da cultura e que discorreram com sapiência, sobre a obra imensa de Baltazar Lopes da Silva.

Foi assim que se assinalaram os cem anos sobre o nascimento desse portento que orgulha todos os cabo-verdianos, porque representa o que de melhor, até agora, possui a elite intelectual destas ilhas.

No artigo que adiante  transcrevo que repesquei dos meus antigos escritos sobre Baltazar Lopes da Silva, gostaria de aproveitar esta oportunidade, contextualizada pelo texto, e fazer uma pequena comparação entre o que Málaga fez com Pablo Picasso e o que a ilha de São Nicolau poderia fazer com Baltazar Lopes da Silva.

Assim, há a sugestão de se aproveitar os lugares da ilha de Chiquinho – protagonista do romance homónimo do escritor – citados na obra para se fazer um roteiro turístico que desse a conhecer a ilha. Para além da criação de uma casa/memória de B. Lopes da Silva no Caleijão, rincão natal do poeta, escritor, filólogo e grande estudioso da cultura cabo-verdiana.

A minha sugestão encontra suporte no aproveitamento feito pelos malaguenhos do seu, quiçá, mais ilustre conterrâneo, Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) famoso pintor espanhol e mundialmente conhecido como um dos maiores pintores de todos os tempos:

Picasso, nasceu em Málaga, mas cedo deixou-a com os pais em busca de uma vida melhor. Deixou a terra-natal ainda na adolescência e, contam os seus biógrafos, que nunca mais lá voltou, excepto numa rápida visita que lá fez aos 19 anos.

Mas os malaguenhos não se esqueceram desse grande filho da terra e desenvolveram inteligentemente um turismo, um desenvolvimento da região, muito graças à celebridade, Pablo Picasso que se constituiu num autêntico chamariz. Fundaram um Museu Picasso; criaram um roteiro turístico com a sinalização da casa onde nasceu Picasso, com o jardim onde ele costumava brincar e até, com a Igreja onde foi baptizado, entre outras iniciativas para o celebrar, que levam inúmeros turistas estrangeiros e nacionais (espanhóis) a demandar, em visita à terra de origem do famoso Pintor.

Ora bem, “mutatis, mutandi” com as devidas diferenças, dimensão e condicionalismos, seria a mesma abordagem, ou similar, que os sãonicolauenses deviam fazer e tirar partido (no bom sentido da expressão) com essa figura máxima da intelectualidade cabo-verdiana que é sem dúvida, Baltazar Lopes da Silva. (1907-1989).

 

A Ilha de S. Nicolau na Escrita de Baltasar Lopes da Silva

Começaria por introduzir neste texto uma informação que acho curiosa e que talvez balize, com algum fundamento, tudo o que virá a seguir. Trata-se do seguinte:

Havia uma frase, com que invariavelmente, o Dr. Baltasar Lopes da Silva iniciava as suas intervenções, quando em situação de exemplificar casos e tópicos que tivessem a ver com questões antropológicas e culturais de Cabo Verde. Afirmava ele: “Bem, eu falo da minha ilha, a ilha de S. Nicolau, que é a que melhor conheço”.

Baltasar Lopes da Silva nunca omitiu, antes pelo contrário, registou-a na sua escrita e na sua oralidade, esta espécie de gratidão que ele tinha com “…a paisagem, (a terra) que o recebeu quando abriu os olhos para o entendimento” como ele próprio afirmou num dos seus muitos escritos.

Com efeito, a ilha natal, mereceu-lhe sempre – quer nos ensaios escritos, quer nas intervenções orais, nas palestras, quer ainda na narrativa ficcionista e na sua poética – lugar afectivamente destacado e historicamente fundamentado, em relação a qualquer das ilhas irmãs. Daí a naturalidade e o à-vontade, com que se lhe refere nos seus ensaios. De tal modo assim é, que a ilha berço é presença constante nas suas análises. O autor vai geralmente buscá-la para caso-estudo porque a conhece bem e ela serve-lhe para exemplificar e ilustrar os quadros sociais, os hábitos, os usos e os costumes da terra e das gentes. Foi assim, nas suas muitas intervenções e, algumas, soberbas.

Veja-se para exemplo, as intervenções por ele feitas a quando da realização em Mindelo, em 1956, da «Mesa Redonda sobre o Homem cabo-verdiano».

Pode-se afirmar, com muita verdade e sem correr muito risco do exagero, que a ilha de S. Nicolau é focada de forma continuada e persistente em quase todo o tipo de textos deste autor. Ora como espaço protagonista na sua escrita, ora como pano de fundo, o perfeito cenário, de onde ele parte, para abarcar, compreender, comparando e aproximando, os casos sanicolauenses aos das restantes ilhas.

É certo que espaços como os das ilhas de S. Vicente e de Santo Antão estão também presentes, mas o de S. Nicolau impregna-se num quase absoluto na obra deste autor.

Interessante também o facto do poeta, Osvaldo Alcântara, pseudónimo de Baltasar Lopes, quando coloca, nos seus versos, por exemplo, a palavra: Vila, sem mais explicitar, apenas vila, o leitor pode e deve situá-la e descodificá-la, com muita margem de segurança, como sendo a Vila Ribeira Brava a referida naturalmente pelo poeta. Está neste caso o poema «Nocturno» em que todo o cenário em que se desenrola numa espécie de encantamento romântico e mágico, de silêncio e da serenata; para além dos medos e de outros pressentimentos que a noite propicia. Ora, o cenário de tudo isto é a Vila Ribeira Brava.

Registe-se aqui um excerto ilustrativo, do poema referido:

Arcadas soluçantes no lirismo ingénuo da serenata; Passos nas vielas nostálgicas da vila antiga ao luar. //Romantismos de moças à janela /na ansiedade amorosa do luar. //A noite vai perdendo o peso; /os fios do luar dobam / um vestido branco /para Nossa Senhora. //Os coqueiros velam esgalgadamente /a ansiedade do mar na boca da ribeira…//Nas casas de colmo a Pobreza nina /o sono dos filhos dos trabalhadores /que sonham com a varinha de condão / que lhes deu sua madrinha Mai-da-Lua. // O busto do Dr. Júlio advinha pensativamente/as rezas adormecidas na Igreja da-Sé. /Nas encruzilhadas paradas /há suspeitas de fantasmas /que passeiam esbranquiçadamente / entre as sombras das casas, /…lobisomens andam a chupar /o sangue das crianças…/os gongons piam da rocha a presença nocturna do medo… // A serenata calou-se /há gritos diluídos /no lago transparente do silêncio. //As montanhas em volta, postadas em tutela, /dormem largamente o sono sereno dos gigantes. // (…)

E como este, há mais exemplos na poética de Osvaldo Alcântara. Igualmente, por vezes, nos textos do autor, surgem pequenos indícios, não nomeados explicitamente, de lugares, de sítios, de comportamento e de reacção de personagens, que nos remetem para referentes reais da ilha natal do escritor.

A ilha de S. Nicolau situa-se na escrita de Baltasar Lopes da Silva, sobretudo a ensaística, sempre como termo de referência e de comparação para ele chegar à tese pretendida. Num dos números do ano de 1957, do antigo periódico, o Boletim «Cabo Verde» foi transcrito um texto do Dr. Baltasar, que terá sido lido aos microfones da antiga Rádio Barlavento, integrado no programa radiofónico: “Arco-íris” sob epígrafe: «Cabo Verde visto por cabo-verdianos». A ele coube S. Nicolau. É deste texto que vou transcrever, algumas passagens que me parecem ser bem ilustrativas da ligação, do afecto e do conhecimento que Dr. Baltasar detinha da terra e das suas gentes.

Passo a citar:

 «(…) Na evocação da ilha berço, uma imagem se fixa logo, como baliza de toda uma paisagem: a do Homem – rural nas raízes mais profundas. (…) Creio estar certo ao falar da ligação, dir-se-ia que placentária do Homem à ilha. E continua mais adiante: “Onde quer que ele esteja, as preocupações para a construção ou consolidação da concha não calam a voz, baixa, mas persistente. É a mulinha de jornada, os casais de terra a comprar, a boa casa a levantar, os filhos a mandar para a escola-do-Rei (…) Outra raiz da ilha parece ser a religiosidade. Nutrida secularmente da vida religiosa do arquipélago, a ilha aferra-se às práticas católicas, não com ardor místico, mas com a tranquilidade de alma de pessoa por quem nunca roçou a asa da dúvida (…)

O ensaio continua, pleno de informações das peculiaridades que caracterizam e individualizam o sanicolauense. O retrato chega a ser minucioso. Há um traço, uma atitude que o enforma e que o autor muito bem observou. Dizia ele, continuo a citar: Por outro lado, o Homem (de S. Nicolau) ainda crê na “prenda,” isto é, para sua concepção pragmática de valores, ele crê na virtude da aristocratização intelectual. Este dualismo (o culto terrunho e a ambição intelectual) é uma característica muito sua.”

Outrossim, é na sua ilha que o romancista e o contista Baltasar Lopes coloca por excelência, o “habitat” ficcional de toda a sua narrativa. Temos o caso que é disso paradigmático, a sua obra maior: o romance “Chiquinho”. O narrador/protagonista, as personagens e a acção, partem do Caleijão, o foco mais importante, pois que casa paterna e lugar sagrado por que território da infância e da adolescência de Chiquinho. Do Caleijão vão a Fajã, Fajã de Baixo, Assomada do Mancebo, Fragatinha, Praia Branca, Covoadinha, Canal da Fragata o refúgio do “tio Joca”; passam pela Vila, Chã de Marcela, Campo, Chamiço, Campo da Preguiça, (o percurso “dos pateados, dos encantados que tinham pacto com Aquele Homem”): Prainha, Ladeira do Cachaço, Cintinha, passam também pelo Campo da Preguiça, Galhana, Praia dos Garfos, (sítios de pasto, de gado e de agricultura); continuando por: Estância, Ribeira dos Calhaus, Lajinha, Boca da Ribeira, Ribeira da Prata, Assomada do Matinho, Ponta da Vermelharia, Àgua do Canal, Trás de Picos; indo até, Cruzeta, Morro Bissau, Salto, Morro Brás, Juncalinho, Combota, Fontainhas, Alto da Cancela, Coima, Ladeira da Lapa, Chã.

Enfim, há ao longo do romance, um mapa geo-social da ilha que sobressai valorizado na pena do insigne romancista.

Creio que a narrativa do autor, desenhou um interessante itinerário, registou e fixou um mapa toponímico da ilha que valeria a pena conhecer ou reconhecer, até em percurso turístico e cultural.

Não é por acaso que a ilha de S. Nicolau tem um segundo nome já bem popularizado: a ilha de “Chiquinho.” Já dizia Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada”.

Abro aqui um pequeno parêntesis para estabelecer um paralelismo entre alguma escrita de Baltasar Lopes e alguma escrita também de Miguel Torga poeta, contista e uma das figuras cimeiras da cultura portuguesa do século XX. Ambos grandes intelectuais, ambos oriundos de espaços rurais, que por livre escolha ou, por forças das circunstâncias, se transpuseram para meios urbanos, para aí exercerem a vida profissional. Baltasar Lopes de S. Nicolau para Mindelo e Miguel Torga de Trás-os-Montes para Coimbra.

Ora bem, ambos mantiveram, tomando de empréstimo o que sobre Miguel Torga disse um dos seus biógrafos, José Augusto Cardoso Bernardes “Uma linha de fidelidade aos espaços maternos e daí uma busca íntima…e uma forte relação que o autor mantém com a terra natal.” Vale dizer que esta “busca íntima e a forte relação com a terra natal” são bem expressas por ambos quer na lírica, quer na prosa narrativa. Fecho o parêntesis.

Aliás, Baltasar Lopes da Silva, naquilo que configurava o seu perfil de intelectual intrépido e indomável, da sua capacidade de resistir a “ventos contrários”, de uma frontalidade até manifestada por vezes sob forma, de uma aparente “rudeza” que não esconde, ao mesmo tempo, uma enorme solidariedade para com o próximo, mais não foi do que uma perfeita e fiel aliança paritária, que o grande homem do saber fez na sua escrita, da modernidade urbana com a forte ruralidade ancestral. Esta última, ele vai buscá-la às suas raízes, à ilha de S. Nicolau.

Como já me referi, a ilha de S. Nicolau não é apenas «habitat» das personagens, cenário dos enredos, das intrigas, das histórias, e espaço das acções da ficção de Baltasar Lopes. Esta ilha é também e quase sempre, ponto de partida para os ensaios do autor, não só sobre a fenomenologia do Homem cabo-verdiano, mas também, a ilha natal é igualmente local para inúmeras aprendizagens, de Baltasar Lopes da Silva, como ele deixa transparecer no seu legado escrito. Ou seja, ela, a ilha, testemunhou e foi parte importante da sua socialização, da sua educação caseira e do seu “abrir os olhos ao entendimento” porque uma fase de vida intensa importante, nela passou: a infância e a adolescência.

Para finalizar direi que, para além do mais, Baltasar Lopes da Silva tinha de S. Nicolau um indisfarçável orgulho, de entre muitas e boas razões, avulta o facto – que ele volta e meia evocava – de ser esta ilha a que propiciou a primeira e ainda hoje prestigiada intelectualidade cabo-verdiana, a saída da memorável instituição religiosa e académica, o Seminário – Liceu da ilha.


 

 

 

 

 

 

 

 

Cabo Verde e as suas Memórias: Preservação e Conservação

quarta-feira, 12 de junho de 2024

 

Sim, Cabo Verde precisa de conhecer, de amar e de saber respeitar – para as poder preservar as suas memórias, tanto as documentais, como, fundamentalmente, as que ficaram em ruínas das edificações, das igrejas e dos faróis, entre outras…

 A história destas ilhas, que hoje são um país insular, remonta a meados do século XV, com a chegada das caravelas portuguesas. Após isso, sucedeu-se um longo e, por vezes, doloroso caminho ao longo dos séculos, para a sua subsequente edificação. Os vestígios e os registos de todo os ciclos históricos devem ser bem conservados e devidamente identificados e organizados, sob pena de sermos uma comunidade humana que não conhece o seu passado; que não tem memória o que revela uma enorme ignorância histórica. Mas mais, em algumas situações, até parece que nós não os queremos reconhecer e, nem que eles - os vestígios e os registos históricos - se mantenham em registos visíveis.

Através da preservação de vestígios patrimoniais, de documentos, estes servirão também como um recurso educativo valioso para as gerações futuras.

De notar que a UNESCO instituiu em 1982, O Dia Internacional dos Monumentos e dos Sítios, que se celebra a 18 de Abril, exactamente para que as nações não percam a memória colectiva do seu passado.

Mas infelizmente, nós não sabemos, não aprendemos ainda a estimar, a respeitar, a valorizar e a guardar bem as memórias do passado, do nosso passado histórico. E nem sabemos apreciá-las e valorizá-las. Das poucas que temos não cuidamos nem as tratamos bem.

Tenho a sensação de que isto acontece por épocas, que ora são de algum avanço, em matéria de conservação, ora são de muito retrocesso – estou ainda a tentar compreender o que se passa.

 Helena Pinto, no seu interessante e esclarecedor livro: «Educação Histórica e patrimonial: concepções de Alunos e Professores sobre o Passado em Espaços do Presente» Edição. CITCEM - Centro de Investigação transdisciplinar «Cultura Espaço e Memória» Porto, 2016, a certa altura diz o seguinte, que passo a transcrever: “a ligação entre a problemática da identidade e a do património – à escala da identidade nacional a ligação e do património cultural – ressalta da tomada de consciência de que ambas se organizaram também em torno da questão das relações com o lugar e o tempo, voltando-se para o futuro. (…) ao conservarmos o património cultural – conjunto de objectos, naturais ou artificiais, extraídos totalmente ou em parte do circuito de actividades utilitárias, para serem preservadas para um futuro indefinidamente distante – exteriorizamos e tornamos visível o laço que nos une àqueles e que «não se reduz a uma sucessão no tempo nem a uma simples filiação genética, mas que supõe uma pertença comum à nação e uma comum identificação com ela». Assim, a problemática do património resulta da subordinação deste ao futuro que «constitui um conjunto diverso de objectos e de sítios enquanto património», daí a necessidade de conciliar as exigências de conservação com várias outras.”

E a investigadora acrescenta: Por isso, na relação com o tempo, o património não desfrutou de continuidade, mas sofreu rupturas e questionamentos, na mudança de um regime de memória para outro. Para alguns autores, (…), o património resulta de uma ruptura entre o passado e o presente, em que os objectos já não têm a função utilitária das coisas, mas finalidades diferentes, as de intermediários entre o passado e o futuro. Os objectos antigos transportam o passado para o presente, mas quem os contempla é transportado do presente para o passado, (…) sendo esta fuga para as origens motivada pela observação do objecto antigo, o que atrai e mobiliza os hodiernos para a sua sobrevalorização. Todavia, o património não pode ser olhado apenas como reserva e, menos ainda, como recordação, mas como algo que faz parte do nosso presente. Fim de transcrição.   

Ora bem, retomando a nossa situação e o pouco valor que aqui se dá ao património construído, vamos, para iniciar, apresentar alguns  casos: vou começar pelo meu rincão de origem – e que já é, há quase três décadas, município de pleno direito – onde tem vindo a acontecer algo bizarro e de muito mau exemplo para os munícipes, que é o  facto da edilidade que  sucede nas eleições autárquicas, deixa cair, deixa apodrecer tudo o que fora feito pelo colega anterior; e o pior é que em algumas construções e miradouros públicos, o edil que saiu da última eleição deixa ruir um muro ou algo similar, mandado fazer pelo autarca anterior, para, por vezes, quando convém, o reerguer e colocar o nome dele em placa destacada, seguida de inauguração do dito muro ou similar, como se ele fosse o  autor da obra reeditada… Com atitudes comportamentais destas como queremos conservar o que já foi construído? É também revelador de falta de respeito pelo erário. O mais bizarro aconteceu com as árvores tidas como as mais velhas da antiga povoação, que se tornaram uma espécie de património natural. Ora bem, por terem sido identificadas, cuidadas e marcadas pelo autarca antecedente, foram imediatamente arrancadas a atiradas ao lixo pelo autarca eleito que se lhe seguiu. Vejam bem! até com pertences da mãe natureza se fizeram coisas dessas no meu município!

Um outro ponto que queria aqui referir é o da estatuária pública das ilhas. Gostaria de aproveitar este escrito, para expressar o meu elevado apreço ao Historiador, Dr. Joaquim Saial, pois que, graças a ele, ao levantamento que ele fez sobre isso, permitiu-nos conhecer a origem, a data das esculturas, os seus autores e a respectiva justificação histórica de cada estátua, de cada busto erguido nas praças e nos miradouros do Arquipélago. Um trabalho de vulto para nós. Bem-haja!

Vou abrir aqui um pequeno parêntesis e narrar o seguinte: de cada vez que levamos pessoas amigas, de uma maneira geral, forasteiras –  e já não são poucas as vezes que tal acontece –  que  nos vêm visitar à Praia e para as quais fazemos, Armindo e eu um programa de visita, onde incluímos, quase que obrigatoriamente, uma passagem pela “Cidade Velha” e por Tarrafal, e de cada vez que visito, quer sejam as ruínas da Sé Catedral, quer seja a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (a mais antiga do Arquipélago e curiosamente em actividade religiosa) – fica-me a impressão de maior degradação, de menor cuidado com os objectos antigos, originais.

O pior disso tudo, na minha modesta opinião, foi o péssimo trabalho que creio ter sido feito pela cooperação espanhola, nos inícios de 2000 (século XXI, na recuperação e conservação de monumentos da Cidade Velha. Não consegui perceber porque retiraram as lápides dos túmulos dos religiosos sepultados no átrio da Igreja de Nossa Senhora do Rosário desde o século XVI, que actualmente estão amontoados e ao abandono no mesmo átrio e este todo com pedras… qual foi o sentido histórico disto? Qual foi o sinal de preservação de vestígios até aí conservados?...até hoje estou para entender a razão da destruição feita. Não parece que se tenha preocupado minimamente com a História, mas apenas com a Engenharia…

Reforço a minha narração, acrescentando que, da última vez que levei amigos, no passado mês de Abril do ano que corre, fiquei envergonhada quando, ao entrar nas ruínas da antiga Sé catedral, para além do lixo ali acumulado…até uma mesa de plástico de “pernas para o ar” encontrámos! como que a querer dizer aos visitantes: “vejam ao que isto chegou!”. Fecho o parêntesis.

Desculpe-me, caro leitor, este arrazoado de casos, aparentemente “casitos” e de caos, reveladores da pouca importância que a população e as próprias autoridades demonstram em relação aos símbolos, às estátuas e aos marcos públicos.

Não sei como está neste momento a antiga Colónia Penal do Tarrafal (1936-1960), mais tarde, Campo de Trabalho de Tarrafal 1960-1975). Deduzo que esteja de “cara lavada” por causa das recentes comemorações dos 50 anos da libertação dos presos políticos portugueses.

 Como vou com alguma frequência ao Tarrafal, notei nos dias que antecederam às comemorações, desusado movimento de muitos trabalhadores a capinarem a erva seca, que normalmente cobre as suas instalações ao longo do ano, dando-lhe um ar decrépito, que tinha da última vez que lá levei gente amiga forasteira que queria conhecer a prisão de triste memória.

Chegado a este ponto remeto para a educação formal – da mesma forma que é na escola que as crianças e os adolescentes se habilitam a olhar com atenção e com mais cuidado, o meio ambiente (educação ambiental) que de há já alguns anos a esta parte, se ministra no ensino básico – assim, a educação para a preservação da memória histórica e do património construído, deve, igualmente, fazer parte do currículo da aprendizagem na escola.

Quanto aos Faróis – outro património construído e que deve ser conservado – vejam-se os bons exemplos, nesta matéria, de Portugal e dos Açores, que reclamam (ou, exigem)  uma atenção especial, pois, para além de representar aquilo que as ilhas possuem de mais emblemático, o mar, guardam também histórias de salvamentos, de naufrágios, de iluminação do caminho do mar e da sua protecção aos barcos em demanda do porto de destino ou de abrigo.

Não vá sem acrescentar, que alguns faróis (não muitos) estão restaurados e conservados por iniciativa e a pedido, se não estou em erro, de alguns edis dos Concelhos de certas ilhas. Mas tenho notícias também da existência de outros faróis, nas pontas extremas de algumas ilhas, em estado de degradação crescente.

Citando o antropólogo João Lopes Filho, (in: “Faróis de Cabo Verde”, Maio de 2019) transcrevo:    Acontece que, devido à sua privilegiada posição geográfica e pela natureza de alguns portos, o arquipélago de Cabo Verde foi desde a expansão marítima europeia um ponto de paragem quase inevitável dos navios a vela (descanso da marinhagem, reparação das embarcações, aguada e receber frescos), passando mais tarde a ser importante escala na época da navegação a vapor, sobretudo, para reabastecimento dos barcos que cruzavam o Atlântico.

       Como navegar entre as ilhas cabo-verdianas implicava estar em permanente estado de alerta, devido aos ventos, correntes e obstáculos junto das costas, associados a zonas de anomalia magnética, acrescidos da limitada capacidade de manobra das embarcações e inexactidão dos mapas, faziam com que muitos barcos naufragassem, de modo que os faróis contribuiriam para tentar evitar os acidentes que se registavam amiúde.  Fim de transcrição.

Com efeito, os faróis carregam memórias belas e memórias trágicas da vida marítima das ilhas e de entre as ilhas e de barcos estrangeiros que demandavam os nossos portos ou, de passagem pelas ilhas para outras paragens.

Por tudo isto, urgem ser preservados, através do restauro estes belos símbolos do mar, que inspiraram poemas e narrativas aos poetas e escritores mais consagrados, entre nós.

A terminar, e para satisfazer alguma curiosidade sobre os nomes dos mais importantes faróis de Cabo Verde, aqui se registam numa pequena lista: Farol Dona Maria Pia, construído em 1881 na cidade da Praia, ilha de Santiago,  Farol D. Luís I, construído em 1882 no ilhéu dos Pássaros, junto à ilha de São Vicente,  Farol Fontes Pereira de Melo na ilha de Santo Antão, inaugurado em 1886, o Farol da Ponta Preta, instituído em 1889 na então vila do Tarrafal e  Farol Rainha Dona Amélia, edificado na ilha de São Vicente no ano de 1894. (extraída do trabalho aqui citado de João Lopes Filho, que por sua vez, a transcreveu da Capitania dos Portos, de São Vicente)

 Note-se que quase todos os nomes (patrónimos) dos faróis de Cabo Verde, são homenagens a reis e a rainhas portugueses, com excepção do de Fontes Pereira de Melo, (1819-1887) aristocrata e primeiro-ministro de Portugal no reinado de D. Maria II e interessantemente muito ligado a Cabo Verde. De várias maneiras: primeiro, jovem, acompanhando o seu pai, João Fontes Pereira de Melo, governador de Cabo Verde (1839-1843). Terminada a comissão, seu pai, acompanhado da mulher, regressou a Portugal. O jovem deixou-se ficar por cá pois, entre outras razões, apaixonara-se por uma cabo-verdiana; segundo, casa com Isabel Sousa Machado, cabo-verdiana, com quem teve uma filha. E, terceiro, regressado a Portugal com a família, António Fontes Pereira de Melo foi eleito Deputado pelas ilhas de Cabo Verde.

 Fecho esta pequena nota, a que chamei de curiosa, e termino o texto, voltando à memória patrimonial, para concluir que há um grande trabalho a fazer-se entre nós, sobre a preservação do património construído e dos seus vestígios – embora poucos, mas é o que temos – sendo nosso o dever de cuidar deles. Alguém já o disse: património conservado é, sobretudo, consciência histórica.

 

O paradoxo da democracia[i]

segunda-feira, 3 de junho de 2024

 Por Adriano Miranda Lima[ii]

Um pouco por todo o lado, o debate político tem vindo a degradar-se a olhos vistos nos regimes democráticos, fenómeno que suscita mais preocupação nas sociedades europeias ocidentais porque nelas foi onde o Estado se fundou na mais bem conseguida intermediação entre o direito, a moral e a liberdade. É onde a concepção abstracta da liberdade – filha dilecta da democracia − é criteriosamente modelada pelo instrumento jurídico de coerção, criando-se assim condições para que a liberdade do cidadão se circunscreva nos limites em que não interfira com a liberdade alheia. Aqui reside uma prerrogativa essencial do estado de direito, sem o que seria como viver num estado de natureza, onde tudo fica à mercê da força ou do arbítrio.

De facto, assiste-se, hoje, a situações que desprestigiam a democracia, provocam atrições deletérias e corroem a coesão social em torno do que é fundamental. Tal acontece não só na casa mãe da democracia como em outros cenáculos. O discurso político é normalmente dogmático, poucas vezes conciso e quase nunca axiomático, como que votando Aristóteles às urtigas, seja pela semântica, seja pelos decibéis vociferados. Em vez de debates na sua verdadeira acepção, com fecunda troca de ideias e confronto de opiniões primando pelo construtivismo, o que se vê são discussões iradas e exaltadas, com um histrionismo por vezes apalhaçado por parte de alguns actores. Nem sequer a sensatez permite reconhecer que, pela lei natural, ninguém pode ser tão imaculadamente detentor da verdade ou senhor de virtudes sacrossantas, nem o outro pode ser tão falho de razão e lucidez. Se assim fosse, os problemas seriam de fácil solução porque bastaria circundar os presumidos iluminados num espaço inviolável e incontaminável e sujeitar a uma quarentena os supostamente deserdados. Quando hoje ocorre a discussão sobre os limites da liberdade de expressão, apercebe-se de que faltará, talvez, uma harmonização dos significados e dos conceitos, o mesmo é dizer uma compatibilização entre o direito positivo − fruto de um ordenamento jurídico, e o direito natural – princípios universalmente reconhecidos pela razão.

Mas algo parece ter piorado nos últimos tempos quando o abuso da liberdade de expressão transcende o debate político e se converte, lateralmente, em atitudes reprováveis – piadas de racismo e misoginia − nos bastidores e corredores do Parlamento, dirigidas a deputadas negras, lésbicas ou gordas, de forma mais ou menos dissimulada. As denúncias foram feitas por duas deputadas de esquerda e visaram o terceiro partido mais votado. É a evidência de que o nível e a qualidade dos representantes do povo na casa mãe da democracia já não são o mesmo de antes, sobretudo desde que ganhou maior expressão eleitoral o actual partido populista.

Constata-se, assim, que o regime democrático gera um paradoxo quando não evita que o uso espúrio e incontrolado da liberdade ataque os seus alicerces. Deste modo, pergunta-se se a concepção abstracta da liberdade não deve atentar numa permanente reavaliação da consistência do vínculo jurídico e filosófico que a prende estruturalmente à democracia. Claro que sim, pois não o fazer é consentir a intrusão de Cavalos de Tróia no reduto da democracia. É que a corrosão do debate parlamentar nunca foi tão notória, parecendo haver uma estratégia concertada para descredibilizar a democracia em prol de uma qualquer forma de autocracia. Os seus agentes estão identificados, uns agindo com mais estrépito e visibilidade, outros mais insidiosamente. A solução do problema caberá acima de tudo ao povo, mediante o escrutínio eleitoral, e aí pouco poderá fazer o legislador ou a conciliação entre o direito positivo e o direito natural, de onde se conclui que cada povo tem a democracia que merece, dado que ela é e será sempre uma obra inacabada. Até porque, conscientemente ou não, o povo pode mesmo sentenciar o fim da democracia por via eleitoral, o que confere toda a actualidade ao paradoxo apontado por Karl Popper no seu livro “The Open Society and Its Enemies”. É bom que os democratas não se desliguem de uma pedagogia cívica pró-activa e constante sobre o que deve ser uma cidadania consciente e responsável.



[i] Artigo originalmente publicado no jornal “Templário” de Tomar

[ii] Texto escrito de acordo com a ortografia anterior ao AO 90

Qual é a origem da palavra «criança» ?

sábado, 1 de junho de 2024

 

Por  Marco Neves

Com a devida vénia ao autor, Prof. Marco Neves, aqui transcrevemos o oportuno e interessante texto, cujo título elucida o tema nele tratado.

 

Neste Dia da Criança, fazemos uma viagem à origem da palavra portuguesa «criança». E, como habitual por aqui, também damos uma espreitadela a outras línguas…

Antes de começarmos, note como a palavra tem um sufixo muito curioso: -ança. Encontramo-lo em palavras que mostram um excesso, como «festança», mas também em palavras menos superlativas: «confiança», «esperança» (entre tantas outras).

Portanto, o que este sufixo faz é pegar num verbo e transformá-lo num nome. «Confiar» transforma-se em «confiança»; «esperar» transforma-se em «esperança» — e por aí fora.

Ao contrário doutros sufixos, o sufixo -ança parece ter perdido a força. Criou palavras durante séculos e, um belo dia, cansou-se. Hoje, é difícil usá-lo para criar novas palavras. «Amar» pode transformar-se em «amança»? Dificilmente. «Parar» pode ser «parança»? Na verdade, sim: «parança» está nos dicionários, tal como, entre outras mais raras, «falança». Mas palavras como «teclança» seriam difíceis de criar agora (mas nunca se sabe…).

Em contraste, há outros sufixos que continuam a trabalhar sem parança: se amanhã aparecesse um país chamado «Talaguistão», é bem provável que os seus habitantes fossem os talaguistaneses. O sufixo -ês está vivo e recomenda-se.

No caso da palavrinha que nos trouxe aqui, o sufixo -ança, num tempo em que ainda andava cheio de pujança, encontrou o verbo «criar», chegou-se a ele e nasceu uma bela «criança». Este «criar» veio — surpresa! — do latim, mais propriamente da forma verbal «creāre». O verbo latino já tinha vindo da antiga forma proto-indo-europeia «*er-», que significava «crescer» ou «fazer crescer» e que também está na origem do verbo português «crescer». O verbo «criar» também deu origem a «criatura», «criação», «cria», «criadouro»…

E o -ança? Veio do sufixo latino «-antia», que deu origem a sufixos semelhantes em muitas línguas: o castelhano «-anza», o catalão «ança», o francês «ance», o italiano «anza»…

Curiosamente, esta mistura entre o verbo «criar» e o tal sufixo deu origem a uma palavra muito parecida em castelhano: «crianza». Só que, neste caso, o significado não é o próprio humano pequenino, mas sim o processo de criação… O dicionário da Real Academia Española dá este significado à palavra (entre outros): «Acción y efecto de criar, especialmente las madres o nodrizas mientras dura la lactancia.» Ou seja, «la crianza del hijo» é a «criação do filho».

A maneira como as línguas próximas moldam os materiais de forma subtilmente diferente deixa-me sempre com cócegas no cérebro. É como se, nestas pequenas diferenças, víssemos o avesso da costura com que se cosem as línguas. Cada um de nós tem a sua pancada; para mim, quando me ponho a olhar para as línguas e as pequenas diferenças entre elas, sinto-me como criança com um brinquedo novo.

Feliz Dia da Criança!