SOBRE O PATRIMÓNIO E
A ESSÊNCIA DA NOSSA HUMANIDADE
“O homem
primeiramente existe, surge no mundo; não é definível, porque primeiramente não
é nada. Só depois será algo, assim como a si próprio se fizer. Desse modo, não
há natureza humana, já que Deus não existe para conceber os seres humanos”
Jean
Paul Sartre
Há tempos, assisti num canal de televisão a um filme
francês que achei de real interesse, tanto quanto ele nos permite reflectir
sobre o sentido da nossa existência. O título é “Tempos de Verão”. A princípio,
e com o desenrolar das primeiras cenas, a narrativa é dominada por situações
aparentemente vazias de conteúdo, num jeito de ir gerindo o espontâneo e o
supérfluo, um pouco a fazer lembrar o existencialismo de Sartre, cuja tese se
fundamenta na ideia de que a “existência precede a essência”.
Mas algo me dizia que aquilo não ia acabar assim, na mesma
cadência repetida de situações desprovidas de um interesse visível, sem nada de
apreensível que justifique que o espectador opte por estar ali sentado em vez
de ler, por exemplo, um bom livro. De facto, não haveria propósito algum neste
filme se não houvesse na cena final um momento de marcante simbolismo. É
evidente que o impacte da cena é variável com a formação e a sensibilidade do
espectador.
Vejamos então qual o enredo do filme. Uma senhora de 75
anos toda a vida preservou com desvelo a obra artística do seu tio, pintor e
solteiro, numa enorme e velha mansão familiar. É Verão e o espaço é invadido
pelos filhos e os netos para a festa do aniversário da velha senhora.
Uns meses decorridos, com a morte repentina da senhora, os
seus descendentes regressam àquele casarão para se desfazerem de um património
que era tão nobre como artístico. O recheio entretanto já fora leiloado e agora
tratava-se de liquidar a venda do imóvel. Adultos e adolescentes partilham o
mesmo ambiente de eufórica excitação sem que nada, mas absolutamente nada,
tocasse a sua sensibilidade e por um momento sequer lhes lembrasse que, por
razões meramente materiais, estavam a despedir-se de um passado que continha matriz histórica das suas vidas. Sem
perceberem que prescindir daquele
passado significava descomprometer-se com o futuro, o fechar definitivo do
bronze de uma porta antiga sem a certeza de que outra se lhes abriria no futuro
com a mesma garantia de resguardo da sua identidade.
Para cúmulo, os netos, na exaltação da sua adolescência,
resolvem dar uma festa de juventude na velha casa de família, prestes a ser
vendida, e já esvaziada do seu recheio. Essa festa tem, aos meus olhos, o significado de um desconchavo absoluto sobre uma memória
já irrecuperável. Nada como uma estouvada e acéfala juventude para liquidar a
dor da separação, e assim anestesiar os remorsos dos mais velhos. E a festa decorre
naquele frenesim ensurdecedor de música e dança, sem outro propósito que não
seja soltar a torrente impetuosa dos sentidos em direcção ao estuário onde jaz
o supérfluo, o inútil e o transitório.
Mas, a dado trecho, há um momento em que a neta mais
velha, frívola e despreocupada como a sua geração, abstrai-se do ambiente à
volta, pára e emociona-se ao descobrir que afinal de contas está a perder para
sempre algo mais valioso do que a princípio supusera. Algo retiniu subitamente
no seu espírito, acordando-a, ainda que furtivamente, para a realidade de uma
porta que se fechava para nunca mais. O momento da cena não é demorado nem é
rebuscado com os habituais ademanes da dramaticidade. E no entanto dura uma
eternidade.
Dir-se-á que bastou uma alma, a dessa jovem de tenra
idade, para voltarmos a acreditar que a esperança no homem pode não estar
definitivamente morta. A moça pareceu ressuscitar dos escombros de uma memória acabada de ruir para nos transmitir uma
mensagem discreta mas significativa. E nessa altura lembrei-me do abandono a
que está votado certo património arquitectónico na minha ilha de S. Vicente.
Tomar, 23 de Fevereiro de 2015
Adriano Miranda Lima