segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015


SOBRE O PATRIMÓNIO E A ESSÊNCIA DA NOSSA HUMANIDADE


“O homem primeiramente existe, surge no mundo; não é definível, porque primeiramente não é nada. Só depois será algo, assim como a si próprio se fizer. Desse modo, não há natureza humana, já que Deus não existe para conceber os seres humanos”
                                                                                                                                Jean Paul Sartre




Há tempos, assisti num canal de televisão a um filme francês que achei de real interesse, tanto quanto ele nos permite reflectir sobre o sentido da nossa existência. O título é “Tempos de Verão”. A princípio, e com o desenrolar das primeiras cenas, a narrativa é dominada por situações aparentemente vazias de conteúdo, num jeito de ir gerindo o espontâneo e o supérfluo, um pouco a fazer lembrar o existencialismo de Sartre, cuja tese se fundamenta na ideia de que a “existência precede a essência”.

Mas algo me dizia que aquilo não ia acabar assim, na mesma cadência repetida de situações desprovidas de um interesse visível, sem nada de apreensível que justifique que o espectador opte por estar ali sentado em vez de ler, por exemplo, um bom livro. De facto, não haveria propósito algum neste filme se não houvesse na cena final um momento de marcante simbolismo. É evidente que o impacte da cena é variável com a formação e a sensibilidade do espectador.

Vejamos então qual o enredo do filme. Uma senhora de 75 anos toda a vida preservou com desvelo a obra artística do seu tio, pintor e solteiro, numa enorme e velha mansão familiar. É Verão e o espaço é invadido pelos filhos e os netos para a festa do aniversário da velha senhora.

Uns meses decorridos, com a morte repentina da senhora, os seus descendentes regressam àquele casarão para se desfazerem de um património que era tão nobre como artístico. O recheio entretanto já fora leiloado e agora tratava-se de liquidar a venda do imóvel. Adultos e adolescentes partilham o mesmo ambiente de eufórica excitação sem que nada, mas absolutamente nada, tocasse a sua sensibilidade e por um momento sequer lhes lembrasse que, por razões meramente materiais, estavam a despedir-se de um passado que  continha matriz histórica das suas vidas. Sem perceberem que  prescindir daquele passado significava descomprometer-se com o futuro, o fechar definitivo do bronze de uma porta antiga sem a certeza de que outra se lhes abriria no futuro com a mesma garantia de resguardo da sua identidade.

Para cúmulo, os netos, na exaltação da sua adolescência, resolvem dar uma festa de juventude na velha casa de família, prestes a ser vendida, e já esvaziada do seu recheio. Essa festa tem, aos meus olhos,  o significado  de um desconchavo absoluto sobre uma memória já irrecuperável. Nada como uma estouvada e acéfala juventude para liquidar a dor da separação, e assim anestesiar os remorsos dos mais velhos. E a festa decorre naquele frenesim ensurdecedor de música e dança, sem outro propósito que não seja soltar a torrente impetuosa dos sentidos em direcção ao estuário onde jaz o supérfluo, o inútil e o transitório.

Mas, a dado trecho, há um momento em que a neta mais velha, frívola e despreocupada como a sua geração, abstrai-se do ambiente à volta, pára e emociona-se ao descobrir que afinal de contas está a perder para sempre algo mais valioso do que a princípio supusera. Algo retiniu subitamente no seu espírito, acordando-a, ainda que furtivamente, para a realidade de uma porta que se fechava para nunca mais. O momento da cena não é demorado nem é rebuscado com os habituais ademanes da dramaticidade. E no entanto dura uma eternidade.

Dir-se-á que bastou uma alma, a dessa jovem de tenra idade, para voltarmos a acreditar que a esperança no homem pode não estar definitivamente morta. A moça pareceu ressuscitar dos escombros de uma memória acabada de ruir para nos transmitir uma mensagem discreta mas significativa. E nessa altura lembrei-me do abandono a que está votado certo património arquitectónico na minha ilha de S. Vicente.

Tomar, 23 de Fevereiro de 2015

Adriano Miranda Lima