MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO - 2

quarta-feira, 31 de maio de 2017
Júlio Monteiro: Já se devia ter respondido.
Almerindo Lessa: O outro problema, sobre as perspectivas de uma Civilização luso-tropical e da posição que o cabo-verdiano possa tomar na sua realização...
Presidente: Eu não falava só do cabo-verdiano, falava do luso-tropical, e punha o exemplo do cabo-verdiano por ter uma percentagem mínima de sangue europeu.
Almerindo Lessa: Eu creio, Dr. Aníbal Lopes da Silva, que é impossível prever qual é o povo que amanhã vai ser condutor dos outros povos. É imprevisível, porque muitas circunstâncias, desde um maior tecnicismo a uma maior ousadia, nisso podem intervir. Mas seguramente que não será o povo mais humano, mais compreensivo e mais poético. Será aquele que tenha mais petróleo e mais estrôncio. Mas eu acredito que quando chegar a altura histórica de realizar uma civilização intertropical, e dado que estas ilhas não continuem votadas ao abandono, o homem cabo-verdiano está destinado a dar-lhe uma forma própria e, sem dúvida alguma, também o homem de Angola, para a qual não é impossível prever, dentro de cem anos, uma posição atlântica semelhante à do Brasil.
Júlio Monteiro: Ainda sobre os Judeus. Pelo que eu ouvi, parece-me que o caso dos Judeus é mais um caso confessional do que um caso biológico. Será assim?
Almerindo Lessa Ele tem de ser também um caso biológico. A maior parte deles é, somàticamente, diferente dos outros indivíduos.
Presidente: Então o Dr. Almerindo Lessa acha possível fazer a determinação da percentagem da raiz branca nos cabo-verdianos? E fará esse estudo?
Almerindo Lessa: É possível e esse estudo foi feito.
Presidente: Das percentagens das diversas raízes.
Almerindo Lessa: Das que nos foi possível estudar.
Baltasar Lopes: Não há possibilidade de essas diferentes percentagens serem influenciadas por factores sociais?
Almerindo Lessa: Não há possibilidade. Só o poderão ser por um afluxo de novos factores genéticos.
Baltasar Lopes: E as percentagens maiores comandarão sempre fatalmente o comportamento do indivíduo perante as perspectivas da vida? Isso é que eu quero saber.
Júlio Monteiro: Era a pergunta que eu ia fazer.
Almerindo Lessa: Se estudos mais prolongados e volumosos confirmarem algumas ideias actuais, poderemos admitir também a existência de uma «razão bioquímica» no comportamento do homem. Mas não se pode prever a força respectiva de cada gene no sentido ou na eficiência dessa «razão», a qual, no entanto, não dependerá apenas de um simples jogo de percentagens, porque
haverá sempre genes dominantes e a possibilidade de novas mutações.
Baltasar Lopes: Exigem, portanto, uma observação muito maior, que a juventude do mestiço não permite.
Almerindo Lessa: Isso mesmo. Muito maior.
Baltasar Lopes: Muito bem. Sr. Doutor, queria também fazer uma pergunta. Nos seus estudos sobre a sensibilidade cromática, e bem interessantes, dividiu as suas observações por grupos, em brancos, pretos e mestiços.
Almerindo Lessa: Para nós, eram negros, brancos e mestiços.
Baltasar Lopes: Bom, não lhe parece necessário precisar o seu conceito de mestiço? Como é que classificou o mestiço? Pelo seu aspecto?
Almerindo Lessa: De partida, consideram-se negros aqueles que apresentavam o aspecto somático inconfundível de um negro; brancos; aqueles que apresentavam o aspecto somático dum branco; todos os outros eram considerados mestiços.
Baltasar Lopes: É que há um factor a considerar. Aqui em Cabo Verde observam-se, por vezes, famílias cujos filhos uns parecem brancos (brancarenas, como dizem os brasileiros) e outros mestiços. Ora não lhe parece então que será preferível alargar a área do mestiço?
Almerindo Lessa: Nós fizemos outra coisa. Temos os cálculos feitos em relação ao conjunto dos cabo-verdianos.
Baltasar Lopes: É o que me parece melhor. E estas observações darão indicações seguras para avaliar as percentagens de sangue europeu e não europeu?
Almerindo Lessa: Penso que sim.
Baltasar Lopes: Ainda mais uma pergunta. Parece-lhe que as suas observações coincidem com os resultados a que chegaram autores brasileiros (como Artur Ramos) sobre o mestiço do Brasil?
Almerindo Lessa: Em primeiro lugar, os trabalhos brasileiros sobre mestiços podem dividir-se em dois grandes grupos: os daqueles que são a favor e os daqueles que são contra o mestiço. Mas, que eu saiba, não há trabalhos deste género feitos no Brasil. Há no campo da Antropologia clássica e cultural. No campo da Biosserologia, da Bioquímica do Sangue, não há, com excepção dos da escola de S. Paulo sobre os grupos sanguíneos de brasileiros filhos de portugueses e de mestiços brasileiros. Aproximam-se dos nossos.
Júlio Monteiro: Quero fazer uma pergunta, que talvez explique as nossas origens da parte da raiz negra. Será possível o estudo das percentagens do sangue dos povos do continente negro, em relação à percentagem dos brancos? Como sabe, Cabo Verde e parte do Brasil foram povoados com gente vinda do golfo da Guiné. No Brasil o problema é o de se saber de quais dos povos do golfo da Guiné foram para o Brasil elementos de maior preponderância. Em resumo: os povos do golfo da Guiné terão já sido estudados do ponto de vista serológico a ponto de nos permitir saber qual foi o apport que cada um trouxe para a formação do povo de Cabo Verde?
Almerindo Lessa: Pode, sensivelmente. Até com o auxílio da distribuição da constituição falciforme, que varia com as diversas tribos, como demonstram estudos feitos particularmente pelos observadores do Instituto de Medicina Tropical de Lisboa por Salazar Leite, por Carlos Trincão, por Pinto Nogueira.
Ora os trabalhos que nós temos feito aqui sobre constituição falciforme parecem indicar que, possivelmente, os negros que vieram para Cabo Verde pertenciam aos primitivos habitantes. Quando essa percentagem for estudada nas ilhas mais negritizadas, como Santiago e Maio, será possível tentar saber quais as tribos que mais contribuíram para o povoamento de Cabo Verde.
Presidente: Como médico militar, uma das características que devo pôr na caderneta do soldado é uma classificação biotipológica, e por uma ligeira passagem que fiz pela Guiné notei que precisamente o fula e o mandinga são longilíneos, que é o tipo que predomina também na nossa população, enquanto que o balanta, o papel e as raças que julgo primitivas da Guiné são
mais do tipo mesolíneo.
Baltasar Lopes: Há outras diferenças. Os mandingas e os fulas estão islamizados. Até no Brasil, tanto eles como elas, eram escolhidos para os trabalhos domésticos, eram as mucamas. Ainda há ecos por cá da civilização Malê, de que ainda há restos no nosso folclore. O mandinga ficou no vocabulário comum.
Júlio Monteiro: Pus o problema a um dos membros da Missão Antropológica que foi à Guiné. Julga que dos mandingas, embora pudessem trazer um apport, não há sobrevivências notáveis. E até do ponto de vista histórico se levanta este problema: o mandinga, o fula, eram guerreiros, dificilmente aprisionáveis, e aquele que vendia escravos preferia capturá-los onde fosse mais fácil...
Baltasar Lopes: Bom, mas a verdade é que, por exemplo, para o Brasil...
Júlio Monteiro: Não temos raízes islâmicas.
Baltasar Lopes: Há ecos. É claro que esses ecos já desapareceram. Mas eu lembro-me, na minha infância, de ouvir falar de um velho, antigo escravo, que todos os dias orava voltando a cara para ...
Júlio Monteiro: Deve ser um elemento excepcional.
Baltasar Lopes: Esses ecos vão desaparecendo.

Mesa Redonda Sobre o Homem cabo-verdiano - 1

segunda-feira, 29 de maio de 2017

1ª Reunião
Princípios básicos da nova Antropologia. O problema da mestiçagem. Discussão.

Presidente: Está aberta a discussão.
Júlio Monteiro: Tenho dois problemas a pôr. Um é sobre uma dúvida, que se liga directamente ao que Sr. Dr. Almerindo Lessa expressou, quando disse que não havia um estudo ´sério sobre a qualificação do mestiço como elemento biológico. Salvo erro, eu li um trabalho do Prof. Mendes Correia, apresentado ao Congresso de Antropologia do Porto, no qual ele fazia um estudo psicossomático da população de Cabo Verde, em confronto com a população portuguesa da Metrópole. Esse confronto foi-nos desfavorável. O Dr. Mendes Correia lidou, ao que parece, com números restritos, alguns cabo-verdianos que tinham ido à exposição do Porto. O Sr. Dr. Almerindo Lessa conhece esse estudo? Gostava que me desse a sua opino sobre o seu valor científico.
Almerindo Lessa: Os trabalhos feitos durante a Exposição Colonial do Porto foram valiosos como demonstração do interesse que à Escola de Antropologia do Porto mereceram esses estudos, mas, do ponto de vista científico, têm um valor restrito, por causa da insignifincia do número de sujeitos observados.
Destacam-se apenas pela prioridade e porque demonstram que nessa data, como já em 1930, o Prof. Mendes Correia e os seus colaboradores estavam informados do interesse antropológico da Bioquímica. Mas, na realidade, não pode ser aceite sem grandes reservas um estudo feito sobre tão poucas unidades.
Júlio Monteiro: A segunda pergunta que desejo fazer é esta: eu li a tese do Prof. Tamagnini. Se eu compreendi o que ele escreveu, o Prof. Tamagnini entende que a Biologia não repele a mestiçagem. Todas as raças se podem cruzar e reproduzir; simplesmente, condena a mestiçagem por razões de ordem política. Qual foi a posição do Congresso do Porto. em relação à tese do Prof. Tamagnini? Fo a pergunta, porque na mesma altura um mestiço – Fausto Duarte – tinha publicado um livro - Auá - que mereceu um prémio literário e que provocou críticas acerbas, entre as quais uma do Prof. Luís de Pina, do Porto. Desejava
sabe
r qual foi a opinião da ciência portuguesa, reunida nesse Congresso, perante o problema.
Almerindo Lessa: Não posso dar uma resposta concreta. No entanto, não deve ter havido discussão, porque o trabalho do Prof. Tamagnini foi uma das conferências plenárias, e essas não eram susceptíveis de discussão.
Júlio Monteiro: Agora uma outra pergunta. O Doutor falou há pouco no mestiço como homem do futuro. Claro está, a mestiçagem não é recente. Parece-me que, sendo muito antiga, esses homens do futuro já deveriam estar formados. Ou quereria referir-se ao homem do futuro que o grupo luso-tropical apresentará no concerto das nações?
Almerindo Lessa: Sempre que eu falo no mestiço do futuro é evidente que me refiro ao mestiço luso-tropical, em que uma das raízes é um natural das regiões intertropicais, seja um amendio ou seja um negro, e a outra é, em princípio, um caucasóide da nossa metrópole.
Júlio Monteiro: Mas acredita nesse homem do futuro como predominando sobre o elemento europeu?
Almerindo Lessa: Acredito, em princípio, que esse homem vai oferecer outras possibilidades. Eu creio que, se se mantiver este sentido de equilíbrio genético, este sentido de adaptação, o homem novo das regiões intertropicais, o mestiço luso-tropical, terá melhores possibilidades de se adaptar e de subsistir nas regiões intertropicais e de aí criar uma civilização. A meu ver, por dois motivos: em primeiro lugar, porque ele vai apresentar, com equilíbrio, as características essenciais das duas raças mães; em segundo lugar, porque ele vai beneficiar neste momento do que faltou ao mestiço de outrora ainda quando teve o mesmo «tempo» mental: das possibilidades da técnica actual.
Júlio Monteiro: Nos seus estudos de agora fez quaisquer investigações de carácter psicossomático?
Almerindo Lessa: Não fiz. Não tinha possibilidade.
Presidente: O Sr. Dr. Almerindo Lessa falou há pouco nas raças superiores ou, melhor, naquelas que se consideram superiores. Estou absolutamente de acordo com a sua opinião de que não existem raças superiores, mas simplesmente povos que por circunstâncias várias, em determinado momento, comandam a civilização.
Há, no entanto, entre todas as raças, ou, melhor, entre todos os povos, um que pelas suas características especiais sempre me impressionou. Refiro-me ao povo judeu, que redigiu grande parte dos princípios da nossa Civilização, ao qual pertencem alguns dos maiores génios em todos os ramos do Saber e da Actividade.
Estou convencido de que eles mesmos, e com um pouco de razão, se consideram uma raça superior.
Como muito bem frisou o Sr. Dr. Almerindo Lessa, tem-se verificado que ciclicamente vão aparecendo povos ou raças que, mercê de especiais circunstâncias, assumem, em determinadas épocas, o comando de outros povos e que então se consideram superiores. Assim, alguns milhares de anos antes de Cristo, um observador poderia dizer que a raça superior era a raça amarela, pois a Civilização mais florescente correspondia aos povos dessa raça. Séculos mais tarde, dir-se-ia que o povo grego era o povo superior, criador dos princípios da nossa Cultura. Um pouco mais tarde, os Romanos impunham a sua Verdade de Civilização: eram um povo superior, detentor da Força. Séculos volvidos, seríamos nós, Portugueses e Espanhóis, os senhores do Mundo, possuidores da Riqueza. Depois, seriam os Ingleses, senhores do carvão. Actualmente, dois povos disputam essa hegemonia: de um lado, os Americanos e, do outro, os Russos: são os detentores do petróleo. Ora todas estas considerações servem para demonstrar que no plano da História não há povos nem raças superiores, mas simplesmente povos que em dado momento, por disporem de maior número, de maior força e de melhor qualidade, comandam os outros. Assim, os Portugueses e os Ingleses perderam o Mundo por lhes faltar a Força, e não a Qualidade. Ora é aqui que eu quero chegar para fazer uma pergunta ao meu amigo Almerindo Lessa: será possível, pelos métodos biológicos de que dispõe, determinar a percentagem de sangue negro e de sangue branco na constituição do cabo-verdiano? Parece-me que seria interessante o estudo, porque estou convencido de que, apesar de na nossa população não haver predomínio de sangue europeu, o povo cabo-verdiano é um povo absolutamente integrado na civilização Ocidental e é, e assim se considera, absolutamente português pelo Pensamento.
Como eu ia dizendo, se um mestiço com tal percentagem já sente e pensa como a cepa europeia que lhe deu origem, não terá razão Gilberto Freire quando afirma que aos luso-tropicais pertencerá o comando da futura Civilização, ou, pelo menos, da Civilização intertropical? Sim, porque: se ao Português o que lhe faltou para continuar, a partir do século XVI, a conduzir a Civilização foi o número; se o sangue português diluído a tal ponto no mestiço cabo-verdiano não degenerou nós, os luso-descendentes, devemos ter confiança no nosso futuro, pois nós compensaremos o número. É por isso que eu ponho estas perguntas: é possível determinar por meios biológicos a percentagem genética de cada uma das raízes a que pertencemos? Há alguma informação concreta sobre a serobiologia dos Judeus? Não acha que nós temos alguma coisa a dizer no futuro da Civilização?
Júlio Monteiro: Pode verificar-se até que ponto é que os Judeus interferiram na formação de Cabo Verde?
Almerindo Lessa: Nem eu, nem ninguém, que eu saiba, pode responder a todas essas questões. Mas direi aquilo que penso. Em primeiro lugar, há uma confusão que é necessário desfazer nos nossos espíritos: é sobre o que seja Civilização. Não se devem confundir Civilização e Técnica, Cultura e Tecnicismo. Eu nego-me terminantemente a aceitar que os criadores da Civilização actual sejam os povos dos Estados Unidos da América. Considero-os para isso demasiado incultos. São povos que atingiram um aperfeiçoamento técnico, uma riqueza, um poder material que nós, pobres povos da Europa, e vós, pobres povos intertropicais, estamos longe de conseguir. Que só isso seja suficiente para gerar uma Cultura, nego-me terminantemente a aceitar.
O problema dos Judeus é muito difícil, tão difícil como eles próprios. Pouco se sabe da sua Antropologia e o que se sabe é perturbador. Por exemplo: há maiores diferenças bioquímicas entre os judeus do Iémene e os judeus de Varsóvia do que entre certos povos judaicos e não judaicos. Os judeus estão assimilados; estão dissolvidos dentro das nações. Além de ser pequeno o seu número, não conheço características químicas, mensuráveis, que nos permitam diferenciá-los. É claro que é muito difícil saber o que é que leva um povo ou uma civilização a tomar o seu apogeu e depois cair numa fase de decadência. Mas creio que os factores aí podem ser externos, climáticos, alimentares, ou outros. Pelo menos não deixa de ser estranho que a decadência de Roma e a decadência da Grécia correspondam a duas das maiores secas geográficas que houve no norte do Mediterrâneo; não deixa de ser estranho que a invasão da Europa pelo bárbaro Gengis Khan tenha correspondido a outra grande seca e, possivelmente, à necessidade de deslocar povos para novas zonas de alimentação; não deixa de ser estranho que uma das maiores sociedades modernas, o que neste momento está a retomar uma posição decisiva no mundo, que é o Maometanismo, tenha nascido na altura de outra seca histórica, esta em Marrocos, quer dizer, quando os homens estavam a descrer de tudo, até dos deuses que tinham e os abandonavam; e surgiu um homem, dotado de extraordinárias qualidades de persuasão, de dialéctica e de comunicabilidade, que conseguiu canalizar noutro sentido essa crise religiosa. É possível que circunstâncias como estas expliquem o fim ou o começo de uma Civilização. Mas para a maior parte das actuais como a norte-americana ou a eslava nós não temos nem perspectiva nem serenidade que nos permitam avaliar o seu valor real. Sobre problema do mundo luso-brasileiro direi que é possível fazer cálculo das percentagens exactas das suas raízes, mas não está feito. Os dados que eu colhi em Cabo Verde, quando trabalhados, hão-de permitir-nos saber quais as percentagens presentes da raiz negra e da raiz branca, mas não da dos Judeus. Sobre o problema de o cabo-verdiano se sentir perfeitamente português e ocidental, nada sei dizer. Os meus dois meses de contacto não me parecem suficientes. Outros observadores, como A. Chevalier, têm negado essa tese, e terminantemente. Não me peçam que dê já a minha opinião. Seria apressada.
Júlio Monteiro: Chevalier é derrotista.
Almerindo Lessa:. É derrotista? Bom, eu abro um parêntesis para dizer que estranho profundamente que não tenha aparecido ninguém para responder a Chevalier. Considero esse livro, o único que se encontra correntemente nas Universidades da Europa, um texto muito mau como informação, como juízo
e como descrição da Cultu
ra e do homem de Cabo Verde.
Foi como botânico que Augusto Chevalier se interessou por estas ilhas: como botânico, ou seja, como biologista. Daí não ter podido abstrair-se de observar as terras onde se criavam ou desapareciam essas plantas e os homens que as comiam ou as queimavam. Correu a maior parte delas, tirou apontamentos e deixou sobre a sua geografia observações cheias de' razão e de pertinência, embora profundamente contundentes para a nossa posição histórica. Cabo Verde ainda era naqueles anos de 1930 uma das regiões mais ignoradas no campo da biogeografia. Apesar de manter o, atractivo de ser «a mais antiga colónia tropical do Mundo» e dotada de um «clima de paraíso terrestre», o explorador de Paris sentiu-se desolado, afirmando que séculos de exploração irracional e destrutiva tinham transformado as terras num país de ruínas e num arquipélago de males irreparáveis. Alguns dos seus períodos[1] têm o cheiro de um responso: «o português julga ter marcado o negro cabo-verdiano e o mestiço com uma impressão profunda. Julga ter-lhe imposto a sua religião, ter-lhe feito perder os seus costumes africanos, seu feiticismo, seus ritos, suas danças, sua magia, seus costumes livres. Tudo isso não passa duma aparência. O negro cabo-verdiano continua o negro bon enfant que conhecemos em África. Só se transformou à superfície. Mais: o branco e o quase-branco que vivem à sua volta é que foram, muitas vezes, ao encontro dos seus costumes.
Os cabo-verdianos têm, na sua maioria, sangue português, mas não pensam em português. São mais vivos, porém menos empreendedores; a maior parte dos jovens sonha navegar e gosta da aventura, mas, se se expatria fàcilmente, mais fàcilmente regressa ao país natal. Guardaram da raça negra o carácter versátil e a puerilidade. Ao contrário dos negros do Norte de África, são muitas vezes taciturnos e mornos. Esta última palavra faz até parte da língua crioula, muito diferente do português. São por vezes bastante inteligentes, mas infelizmente indolentes. Não é duvidoso que mentalidade africana predomine».
Júlio Monteiro: É a introdução.
Almerindo Lessa: Sim, é a introdução. Eu não discuto as suas informações botânicas. Agora, o que lá diz do homem cabo-verdiano não é um bom serviço a Cabo Verde. Os seus juízos já influenciaram mal muitos políticos e sociólogos: «ilhas desertas, irrecuperáveis, desoladoras, para as quais seria necessário um trabalho recuperador de milénios, ilhas para abandonar»… eis a tese de Chevalier.
Júlio Monteiro: Parece que ele falou em nome de Dacar.
Almerindo Lessa: Então, lamento que não haja um homem de Cabo Verde que fale em nome de Cabo Verde.
Júlio Monteiro: Já se devia ter respondido.



[1] Auguste Chevalier – «Les Iles du Cap Vert.», in Rev. Botan. Appliquée, 15 :733, 1935