quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Como é bom revisitar os textos de Henrique Teixeira de Sousa! São pedaços da nossa cultura, caldeados em informações credíveis e bem fundamentadas que dão gosto (re) ler.
Desta feita, fui ao jornal «Terra Nova» nº 318 de Maio de 2003  - periódico onde o distinto médico e escritor foi colaborador assíduo – repescar o texto, que se segue.
PRIMEIRA MORNA
H. Teixeira de Sousa
NHÂ DIXA-M

Odjo di nhâ é más doce
Qui uba tchon di Môstero
Graça di nhâ é más fresco
Qui sombra di mamosêro.

Refrão
Ái câ châ spiaâ-m
Nhâ dixa-m
Ca nhâ dá-m
Baria na coraçã.

Odjo di nhâ tem quel lumi
Qui stâ dentro vulcã.
Nhâ tenê moços di bila
Co baria na coraçã

Atribui-se a letra desta morna a Jorge Barbosa e a música a B. Leza. Ela foi composta em S. Filipe na década de trinta. Em que data exactamente? Fiz diligências para a precisar, mas não cheguei a conclusão inequívoca, nem sobre o ano nem sobre os autores da letra e da melodia. A primeira vez que a ouvi cantar, foi numas férias escolares, em S. Filipe, entre 1936 e 1938. Nessa altura, nem Jorge Barbosa, nem B. Leza se encontravam já na ilha, aquele como funcionário aduaneiro e este como funcionário dos correios e telégrafo. Sempre relacionei o aparecimento da canção com o regresso do colégio Bom Sucesso (Lisboa) de Ilda Medina Matos, minha antiga colega da escola primária. Na verdade, e com todo o respeito, esse regresso pôs em alvoroço os moços di bila. Ela viria a casar-se pouco tempo depois com João Barbosa de Matos, distinto funcionário administrativo, que serviu na Guiné, Cabo Verde e Moçambique, onde atingiu o posto de governador distrital. No Verão do ano passado, entrei em contacto telefónico com a minha amiga Ilda para conseguir alguma informação sobre o assunto. Ela informou-me de que regressou definitivamente do colégio, no Verão de 1938, data em que parti para Lisboa para frequentar a universidade. Ela, ao mesmo tempo, disponibilizou-se para me ajudar nessa pesquisa. Dias depois, enviou-me pelo correio, a letra e a música de Nhâ Dixa-m, que conseguiu junto de Abel Pires Ferreira. Mais uma vez, muito obrigado, Ilda. Isso veio acompanhado da informação de que na realidade foram Jorge Barbosa e B. Leza os co-autores da morna em causa. Em Setembro do ano passado, nos Estados Unidos, falei no assunto ao meu amigo Armindo Barbosa Vicente ao qual me apontou aquele poeta e aquele trovador, como os co-autores de Nhâ Dixa-m. Mais me disse. Que foi uma rapariga de Chã das Caldeiras, descendente do tronco Armand Mont’Rond, a musa inspiradora da morna em referência.
Existe outra versão. Que a letra teria sido de autoria de Mário Macedo Barbosa, primo, aliás, de Jorge Barbosa. Confesso ter estado sempre inclinado para a hipótese dum autor de cepa foguense. Porquê? Por motivo do estilo dos versos, tão foguense, que faz lembrar a poesia crioula de Pedro Cardoso. As imagens, a linguagem, o lirismo rude à Ana Procópio, também caracterizaram as criações de Mário Barbosa. A menos que Jorge Barbosa, na estadia no Fogo, tivesse assimilado essa expressão poética da ilha. Neste caso, o registo de nascimento da morna, arrecuaria para antes de 1938. Esta é outra hipótese, apesar do que atrás ficou dito.
Não estou a ver Jorge Barbosa a comparar a graça da diva com a sombra da árvore do mamão, espécie rara e apenas existente em zona muito restrita dos Mosteiros. Nem sei mesmo se ainda existe algum exemplar, após tantos e tantos anos de duras secas. Nem vejo, J.B. a tratar a moça por nhâ, tratamento tipicamente foguense, mesmo na abordagem amorosa, especialmente quando fosse grande a distância social entre o apaixonado e o alvo deste sentimento. Digo, fosse porque nos dias de hoje fica longe no tempo aquela sociedade classista doutrora. Ninguém, actualmente, dirige piropos a quem quer que seja, no estilo da morna em referência. Eis a grande evolução operada através dos anos.
Acaso tenha sido Mário Macedo Barbosa o autor da letra, e a melodia, outro natural da ilha, isso teria um significado muito especial para a história musical do Fogo. Até a década de 30 do século passado, não se conheceu nenhuma morna totalmente foguense, letra e música elaboradas por natural da ilha. B. Leza, mindelense de gema, compôs algumas mornas durante a sua estadia em S. Filipe, que teve início nos finais da década de vinte e se prolongou até os princípios da década de trinta. Mas ele não era foguense, culturalmente falando. As suas canções não mergulharam no húmus local. Está a parecer-me que Nhâ Dixa-m terá sido a primeira morna genuinamente foguense, feita por alguém retintamente vulcânico, tal como Brada Maria terá sido a primeira morna da Brava, pelo menos a mais antiga que se conhece, segundo Eugénio Tavares. As canções do Fogo eram o galope e a mazurca, e não a morna. Esta é a razão pela qual me interessei por Nhâ Dixa-m, cuja toada difere da de Nhâ Codé de Pedro Cardoso, ambas de estilo lírico sobreponível, porém de compasso musical diferente. Nhâ Codé é galope. Nhâ Dixa-m é morna. O ritmo paradigmático da ilha do Fogo é a Atalaia-a-Abaixo, canção que emerge do recesso mais fundo da alma daquele povo. Ouço-a sempre com muita emoção.
De resto, Eugénio Tavares, no seu livro MORNAS (cantigas crioulas) publicado em 1930, e no respectivo prefácio , diz:  ̶  «O poeta Pedro Cardoso, artista de mérito, não teve ainda a felicidade de ver as lindas letras das suas mornas, emolduradas em músicas originais.». Diz mais:  ̶  «Na ilha do Fogo, o compasso de polca serviu para cantar os amores de Nhô Dondon, nessa deliciosa toada de manchê, tão doce no ritmo quanto áspera e inexpressiva na letra». Em suma, em 1930, Eugénio Tavares não considerava o Fogo como ilha de mornas. Viria a havê-las mais tarde, quem sabe, como herança do estro de B. Leza cuja presença em S. Filipe terá sido decisiva nesse sentido.

In «Terra Nova» nº318. Maio de 2003.



Guiné-Bissau: 44 anos depois, 44 partidos e a independência que ainda não aconteceu

segunda-feira, 24 de setembro de 2018




Por se tratar hoje, de uma data marcante para a Guiné-Bissau, segue  -  com a devida vénia aos seus autores e ao jornal Público - um texto alusivo a esta data. 

Por  Braima Mané e Inácio Semedo*

1.Hoje, 24 de Setembro, dia apelidado de “vitorioso” por alguns, vão-se multiplicar cerimónias oficiais com declarações solenes e festas para celebrar a independência da Guiné-Bissau — que é neste momento o país mais atrasado de África e, consequentemente, do mundo.
Temos a palmilhar o nosso chão pátrio um milhão e quinhentas mil almas, divididas entre pobres e miseráveis. São excepção uns duzentos ou trezentos iluminados que nos têm mantido na mais completa servidão, numa nova forma de colonização bastante peculiar e cínica, porque é levada a cabo por quem deveria estar na primeira linha de defesa do povo.
Em 44 anos de “independência”, o Estado não foi capaz de cumprir com as suas funções essenciais para o bem comum: prover educação, saúde, assegurar segurança e justiça. Na educação, há toda uma geração que concluiu o ensino liceal que não sabe escrever nem falar correctamente o português, em resultado de greves sistemáticas desde os anos noventa e da falta de formação adequada dos próprios professores. Na saúde, a situação é de tal ordem dramática que muitos recorrem a curandeiros por receio das condições dos hospitais! Não há justiça nos tribunais porque os juízes ou são corruptos ou são condicionados. Os crimes de sangue não são julgados nem condenados. Os de lesa-pátria não são sequer considerados crimes e a impunidade reina solitária!
As contas públicas não têm controlo orçamental efectivo, e ocorre, com regularidade, o insólito de desvios de somas avultadas (que podem atingir milhões de euros!), sem que haja uma instituição idónea para investigar. Sem referir, ainda, que alguns senhores recebem de pensão de reforma até cerca de dez vezes o seu salário na vida activa! Um caso único no mundo e financiado, em certa medida, pela denominada “ajuda ao desenvolvimento” a um país que prefere ser um eterno mendigo.
A corrupção está institucionalizada, a droga chegou e não tem vontade de partir, a pedofilia está quase normalizada, a gravidez na adolescência é frequente. Os valores de referência na sociedade estão subvertidos e criminosos e bandidos tomaram o lugar de heróis — o crime passou a compensar. Os valores da família e identidade enquanto povo estão a ser aniquilados.
Com a sua agenda de iliteracia e pobreza, os senhores de Bissau forçam grande parte do povo a acreditar que a sua pobreza é destino de Deus, que o guineense está condenado a nascer, viver e morrer pobre!
 Além disso, somos, provavelmente, o único país a ter dirigentes analfabetos, constituindo um enorme obstáculo ao progresso. Como se tem visto, a mediocridade e a incompetência têm lugar cativo no topo da hierarquia daquilo a que chamam Estado e que, sem surpresas, se tem limitado a exercer uma gestão corrente letárgica, sem visão nem estratégia, durante estes 44 anos.
2. Nós temos recursos mais do que suficientes para vivermos desafogadamente e não continuarmos nesta indignidade de Estado pedinte.
Temos recursos naturais e marinhos, fauna e flora diversas, além de muita chuva, sol e solo fértil. Mas continuamos a importar grandes quantidades de arroz que, muitas vezes, é impróprio para consumo! A manga é abundante, mas não é exportada, nem processada, apodrecendo no pico do amadurecimento! A castanha de caju é exportada como matéria-prima, mas não há indústria transformadora, geradora de emprego e de mais valor acrescentado para a economia nacional.
Circulam nas nossas estradas esburacadas e pantanosas carros topo de gama, nascem vivendas de luxo como cogumelos em torno da capital, quase todos os governantes possuem bens no estrangeiro, enquanto a população vive na miséria absoluta. Bissau de 2018 é um inferno comparado com 1974!
3. Como foi possível chegarmos a esta situação?
A luta armada contra o colonialismo estava no auge quando o líder e pai fundador, Amílcar Cabral, foi cobardemente assassinado, às mãos dos seus irmãos guineenses. Escrevia-se, assim, o primeiro capítulo do grande Manual de Ódio e Vingança que tem caracterizado o arco de governação da nossa Guiné.
O partido que reclama os louros da libertação nunca conseguiu fazer a devida separação entre um partido de guerrilha e um partido democrático. E alberga no seu seio gente sem competências, vingativa, e sem visão.
A alternativa tanto sonhada nada renovou, pois não passa da emanação do cancro político, em forma de dissidência e, muitas vezes, com pendor tribalista. Limita-se, em nome de interesses inconfessos, a deambular ao sabor de conveniências, sempre que o sistema se fragmenta, desvirtuando a vontade popular expressa nas urnas. Isto explica porque em 24 anos do que chamam democracia nenhum governo eleito conseguiu terminar o seu mandato!
A carta magna não é respeitada! Isso, a nosso ver, porque existe uma manta de retalhos chamada Estado, moribunda e corrupta, incapaz de assumir compromissos de pessoa de bem, e de garantir a dignidade do título e da população que representa.
As próximas eleições, de novo, dependentes de ajuda internacional, são mais um exercício de baralhar e ficar na mesma. São festas em que tudo e todos entram menos o debate de ideias e projectos. Só servem para os pseudopolíticos sorverem dinheiro em nome da democracia, cujos valores renegam no rescaldo do plebiscito, com a chancela (ou indiferença?) dos parceiros de desenvolvimento e da própria ONU. E mais de quatro dezenas de partidos políticos para tão diminuto eleitorado! Por isso, a haver eleições, ganhe quem ganhar, nós vamos perder sempre!
Conforme já mencionámos, temos um país rico, a começar pelas próprias pessoas, que vivem harmoniosamente no respeito mútuo das diferenças étnicas e culturais, caso único em África e, talvez, no mundo. Além da beleza natural do continente e a singularidade do arquipélago de Bijagós, uma das 200 reservas da biosfera do mundo, somos terra de artistas, escritores e desportistas talentosos. País berço do Kora, temos riqueza cultural e histórica ímpar, com o carnaval mais autêntico do mundo. E, ainda, a diáspora, sem dúvida a franja de população melhor qualificada e preparada, pode desempenhar um papel essencial no desenvolvimento do país.
Como povo, julgamos merecer gente honrada e disposta a servir com sentido de Estado uma nação erguida à custa de muito sangue, suor e lágrimas. Gente capaz de promover a democracia e o progresso, com um ideal nobre e não oportunista.
Por isso, apresentamos uma proposta, que constitui o projecto de uma nova nação, detalhada no documento “O que a Guiné fez dos seus 40 aninhos”, acessível nas redes sociais.
A solução que propomos consiste em estabelecer um Programa de Reforma Institucional e Desenvolvimento, sob a égide da ONU, pelo período de tempo necessário para a refundação do Estado e credibilização das instituições da República, promovendo o tão adiado desenvolvimento económico e social.
No âmbito deste programa, e obedecendo a critérios rigorosos de competência, experiência e idoneidade ética e moral, dever-se-á nomear um representante, guineense, para formar e dirigir o Governo de Refundação do Estado e criar um Parlamento ad hoc, com uma representatividade expressiva da sociedade civil. Dever-se-á ainda constituir uma Comissão de Verdade e Reconciliação, inspirada por Nelson Mandela, como via para sarar feridas profundas que alimentam o ódio; acabar com vinganças recorrentes e com o reino de impunidade, unindo o povo na sua caminhada em busca de paz e progresso.
4. Acreditamos que estabelecido um quadro institucional sólido, a nova nação guineense se pode lançar na empreitada de desenvolvimento, bem delineada no referido documento, podendo alcançar, em dez anos, o patamar de um país de desenvolvimento médio. Ou seja, mais do que se fez em mais de quatro décadas.
Findo o período do programa poderá ser possível lançar as sementes da alternância democrática por via de eleições verdadeiramente livres, justas e transparentes.
*Dirigentes da Associação Movimento Cantanhez
In “Público” de 24.09.2018


Uma nota de Leitura

sábado, 22 de setembro de 2018

Eis aqui uma impressão da leitura do livro “História da Escravatura” de James Walvin, edição da Tinta da China. Lisboa, 2014. Gostei. Gostei muito! Penso que o título original – A Short History of Slavery  – traduz melhor o seu conteúdo do que o português. Na verdade o livro aborda, essencialmente mas não unicamente, o tráfico negreiro transatlântico no universo britânico – Inglaterra, América do Norte e as Caraíbas. Fá-lo de forma bem documentada envolvendo os outros mundos esclavagistas, sempre que necessário melhor esclarecimento. Recolhi dados interessantes.
O que me intriga mas não me surpreende é o tratamento dado  – não me refiro ao autor – aos africanos no triângulo África, Europa, Américas: “inimputáveis”. Penso que a cadeia de responsabilidade deve ser estudada sem paternalismos; estes, – paternalismos – podem ser tolerados com alguma compreensão na análise política mas inadmissíveis na análise Histórica. É claro que isto, nada tem que ver com as ignaras pretensões analíticas de Bolsonaro. E é interessante a observação do autor – James Walvin – quando diz: ” … Em 1888, a escravatura extinguira-se no continente americano.” E continua: “Porém o mesmo não se pode dizer de África. Aliás, na altura exacta em que os americanos abandonavam o seu apetite por escravos negros, devia haver mais escravos em África do que nunca, talvez mesmo mais do que aqueles que haviam sido transportados em toda a história da escravatura do Atlântico.” E a este respeito apela para um debate. E faz ainda uma outra, de entre muitas, observação relevante: “Os africanos continuam a ser levados para Norte através do Saará ao longo das rotas de comércio tradicionais, e para Leste , da África Oriental e do Corno de África para os mercados de escravos do mundo islâmico. “ E diz ainda:”Nesta região [mundo islâmico] a escravatura antecedia o sistema de escravos do Atlântico e manter-se-ia muito depois de este acabar, tendo sobrevivido durante mais de um milénio, até ao século XX, e tendo provavelmente subjugado mais africanos do que aqueles que foram levados pelos navios negreiros europeus.” Sintomático e esclarecedor!...
Pois bem, faço esta abordagem porque se tem silenciado a intervenção árabe (islâmica) nesta vergonha universal.
Recentemente e ainda envolto em polémica, fizeram-se denúncias  da censura, da intervenção por parte do canal de televisão Aljazira que pura e simplesmente não passou, subtraiu, eliminou na apresentação, um dos documentários de uma série de quatro, no caso, o primeiro exactamente aquele que demonstrava como os  árabes foram pioneiros e senhores do comércio de escravos, muito antes dos europeus.
Uma nota que me parece de interesse, enquanto lia a «História da Escravatura», na mesma altura li um artigo, ensaio da investigadora brasileira Armanda Rossi, sobre o mesmo tema. De esclarecer que fiz apenas uma leitura cruzada. E como estava a ler "História da Escravatura" pareceu-me que alguns dados se conflituavam. Uma aparência que ainda não deslindei mas que penso fazer quando tiver vagar. Até me sugeriu a avaliação dos conceitos "escravidão" utilizada no referido artigo e "escravatura". Não a análise semântica que me parecem sinónimos. Sem me ter debruçado ainda seriamente sobre este aspecto, pensei na questão de Hitler e mesmo Staline e o seu Goulag, que tinham sob "escravidão" milhões de pessoas o que poderá vir a configurar uma "escravatura" tão cruel e mais numerosa em termos de população envolvida, que a transatlântica. E ainda nesta dicotomia "escravidão" "escravatura" lembrei-me de um dado interessante que o livro me ressaltou: um tempo, ou um lapso de tempo - o autor explica - em que os escravos (ou a comunidade) tinha um tratamento humano - para mim, ausência de escravidão - não por humanismo ou generosidade dos seus donos ou proprietários, mas para a valorização do seu produto (escravo) que nessa condição não só haveria maior rendibilidade no trabalho como a fecundidade/fertilidade seria muito maior, o que era uma preciosa mais-valia económica... Uma distinção entre a "escravidão" e a "escravatura"? Não será seguramente do domínio estrito dos dicionaristas...
 Convém referir igualmente ao começo da escravatura africana portuguesa: ela teve o seu início em 1415 (?) com a conquista de Ceuta e constituiu, praticamente, um único produto dessa conquista para além de um posto avançado de "espionagem". E os árabes (ou islamizados) já a praticavam com estruturas montadas...
Mas aproveito também para me perguntar: E então onde fica o Brasil? Este país só abole a escravatura em 1888. 50 anos depois dos britânicos e mais de 60 depois da sua independência, período em que milhões de escravos foram ainda para ali transaccionados. Depois da proibição do tráfico transatlântico em 1908, ainda foram traficados mais de 3 milhões de escravos, a maior parte para Brasil e Cuba também este já independente havia mais de 60 anos.  Seriam os europeus (portugueses) ou seriam já brasileiros e cubanos?
De quase tudo isto alvitra o livro  de James Walvin, que apela o leitor para uma visão e um entendimento mais alargados do ignóbil fenómeno da escravatura que teve agentes e intervenientes de várias origens, raças e nações.
A.   Ferreira





Recado aberto, urgente e amigo para a Escola Secundária da melhor aluna 2017/2018 de Cabo Verde

segunda-feira, 17 de setembro de 2018



Transmitida na RTC, (televisão nacional) a conversa entre a aluna do 12º- Ano que obteve a média de 19,5 valores e uma Jornalista (para o que se segue convém referir que a Jornalista reportou em português, o conteúdo da entrevista).
A aluna teve Bolsa de Mérito, naturalmente. Até aqui tudo bem. As minhas felicitações.
A Bolsa de Mérito é dada para medicina a ser feita em Portugal. Òptimo!
Agora a parte a um tempo hilariante e revoltante, a nossa menina, não se expressa em Língua portuguesa. Foi significativa a amostragem que disso ficou registado no programa televisivo em que ela foi entrevistada. Expressou-se apenas em crioulo.
Fiquei preocupada com o que vi e ouvi e coloquei a mim própria as seguintes questões:
 1 – Como é possível que a melhor aluna do ensino secundário de Cabo Verde, chegue ao final dos 12 anos de estudos, com a média de 19,5 valores e não saiba expressar-se em Língua portuguesa? (pelo menos foi isso que ficou demonstrado na entrevista da RTC,  num dos Jornais da noite de Domingo, do mês em curso). Simplesmente constrangedor!
2 – Como é possível que os responsáveis da Educação de Cabo Verde, cientes e mais do que sabidos sobre aquilo que se passa com o ensino nas escolas aqui nas ilhas, seleccionem e enviem alunos para Portugal, para cursos como medicina e outros, sabendo que eles não se expressam na língua de ensino que doravante irão enfrentar?
Assim feito, não será condená-los “ab initio” ao fracasso, à frustração, à emigração clandestina,  logo no 1º-  Ano dos estudos universitários?
3 – Será que esta candidata a médica e mais ainda, melhor aluna de Cabo Verde no ano-lectivo transacto, estará apta a escutar e a descodificar o que dirão nas aulas teóricas e práticas, os  seus professores da Faculdade de Medicina?
4 - Dito isto, não estou a culpá-la. Ela é a menos culpada de todos. É a nossa Língua oficial e de ensino, a Língua portuguesa que devia ter sido estudada e falada na escola, pelos seus professores e por ela, aqui em Cabo Verde.  
A culpa está na escola, está nos professores que ela teve e que a não expuseram  suficientemente à língua portuguesa, a qual, até sinal contrário, continua a ser a língua veicular do ensino em Cabo Verde. (consultem senhores professores, a Lei de Bases do Ensino).
Chegados a este ponto, peço-vos senhores professores que me expliquem como é que a vossa aluna, recentemente saída da escola onde ensinais, vai dialogar com os colegas? Tirar dúvidas com os professores? Será em Crioulo? Sim, como é que ela estudará em livros mais complexos conceptual e cientificamente, se não foi exposta à língua que se pratica – oral e escrita - na Faculdade de medicina portuguesa, que irá frequentar?
Deixo aqui manifesta a minha indignação veemente! Não há direito! Estar já a condenar ao fracasso, (infelizmente já vem sendo recorrente em Portugal com alunos universitários oriundos de Cabo Verde) uma jovem cheia de sonhos e de expectativas, na realização dos seus estudos universitários.
Outrossim, isto é chocante pois que daquilo se trata, diz respeito à nossa Língua também. A Língua portuguesa. Ausente e esquecida  na escola cabo-verdiana.
Pois bem, a nossa escola precisa ser denunciada publicamente. O que se está a passar e na minha opinião,  é um verdadeiro crime sem aspas, que o ensino nacional está a cometer actualmente com os nossos jovens que atingem o 12-º ano do ensino secundário, sem serem capazes de se expressarem minimamente, em Língua portuguesa, a língua segunda e oficial deste país  - e isto para não falar também dos fracos conhecimentos das cadeiras científicas com que muitos terminam o ensino secundário -  e que querem prosseguir no exterior os estudos universitários,  sobretudo em Portugal, país para o qual ganha bolsa e/ou vaga, de uma maneira geral, o aluno com melhor média atingida no 12º Ano.
Reitero o que aqui escrevi em tempos, sabemos todos que as notas estão altamente inflaccionadas, que os professores mal ensinam - excepções hão-de existir, estou certa. Mau seria se assim não fosse... -  Logo, a equação bom aluno/melhor média das notas, nem sempre corresponde à realidade do que se passa nas escolas secundárias do País. Uma verdadeira falácia!
Na hora actual, e ao ponto a que a falta de qualidade de ensino, entre nós chegou tudo isso é um autêntico logro! Uma fraude cometida  pela escola pública cabo-verdiana aos alunos.
Para terminar, desejo que a jovem que obteve a Bolsa de Mérito de Cabo Verde e que para Portugal se dirige, aprenda rapidamente e fale com à-vontade  - lendo, ouvindo, escutando rádio vendo tv; conversando com jovens portugueses, com colegas lusófonos; indo ao teatro, entre outras formas de contacto e de aprendizagem de uma  língua viva, de que ela vai necessitar com premência. Só assim conseguirá resultados positivos nos seus estudos de medicina.
  Boa sorte!

Em memória de um professor - uma singela homenagem –

segunda-feira, 3 de setembro de 2018


Falar de professor culto entre nós actualmente, soará ao mesmo que evocar uma “espécie em extinção,” uma “avis rara” aqui nas ilhas. A nossa outrora prestigiada classe sócio-laboral, anda hoje – no geral - mal afamada entre nós.
Ultimamente – reconheço - tenho dito muito mal dos meus actuais colegas de profissão no activo,  salvaguardando sempre as raríssimas excepções, que felizmente ainda restam. Mas de facto tenho sido  muito crítica e por alguns razões em que nelas distingo: a falta de leitura, de estudo porfiado, a ausência de cultura, ausência do saber científico e pedagógico que revelam quando se expressam publicamente e, sobretudo, o não dominarem a língua veicular do próprio ensino que é a Língua portuguesa.  Tudo isso somado e acumulado, tem resultado num enorme e calamitoso prejuízo para os alunos.
Sim, reconheço que tenho “batido” com alguma frequência nesta tecla lamentável para a classe docente no activo, em Cabo Verde. Mas que fazer? Infelizmente a realidade tem sido este quadro nada animador da escola pública cabo-verdiana.
Abro aqui um pequeno parêntese para lembrar o seguinte, antigamente o professor era entre nós considerado e com toda a naturalidade, um agente de cultura. Hoje, quem assim o denominará em sã consciência?... Fecho o parêntese.
Ora, bem ao contrário, o professor a quem dedico este escrito, era exactamente a antítese daquilo que foi referido nos parágrafos acima.
 Esta minha singela homenagem é dirigida à memória de Carlos Alberto Mendes Fonseca, que foi professor do Liceu da Praia. Aposentado e recentemente falecido.
Beto, assim o chamávamos carinhosamente, familiares e amigos mais chegados, pertencia ao tipo de professor sabedor e erudito na disciplina que ministrou ao longo da vida, no caso, Geografia.
Fazem unanimidade os testemunhos de antigos alunos, sobre a forma como o professor lhes explicava os conceitos geográficos de cada ponto programático da disciplina.
Contou-me uma colega e também familiar do Beto que este era muito cuidadoso nas revisões que fazia e que uma ocasião lhe pedira para rever (o português) de  um texto sobre matéria histórica que ela escrevera. Quando vai reaver o seu trabalho, ela encontrou o Beto com vários dicionários abertos, entre eles o de Latim, pois assim melhor corrigiria o escrito. Assim era este professor, cuidadoso e estudioso.
 Bom comunicador nas aulas, Beto Fonseca era tido pelos seus alunos, como rigoroso e assertivo nas suas explicações, e alguém que procurava aprofundar os conceitos explicados indo até ao étimo latino ou grego  de onde provinham os vocábulos que enformavam o conceito que ele queria transmitir à turma.
Dizia-me a minha filha, sua antiga aluna e recordando o querido professor de Geografia, dizia ela que de entre muitas outras definições e conceitos geográficos que aprendera nas aulas de Geogrfia, uma delas -recorda com graça - foi a de pronunciar Florida, sem  articular de forma esdrúxula, o nome daquele estado norte-americano, pois aprendera com o professor de que antes de os ingleses tomarem conta dos Estados Unidos, já os espanhóis haviam-no baptizado como “Florida” e não “Flórida”. Pequenas coisas embora, no entanto  reveladoras do cuidado e da minúcia histórica, geográfica  que ele punha nas suas explicações.
Comigo, sua prima, amiga e colega, tínhamos ele e eu, implicitamente (um não dito, mas sabido por ambos) uma espécie de fraterna competição e/ou desafio semântico, quando nos encontrávamos (com muito menos frequência do que aquela por nós certamente desejada) que era qual de nós se expressava  melhor, indo  ao termo mais correcto e à variante mais culta das palavras que no contexto da nossa conversa surgiam. Um jogo divertido e antigo que fazia parte de uma espécie de rememorar, um tempo antigo da nossa  convivência ainda adolescentes.
  Normalmente o Beto levava-me os pontos...
Aliás, quando com ele dialogava, sabia eu que ele estava sempre certo quanto à precisão contextual de cada vocábulo ou semantema trazido à conversa.
 Os amigos, os familiares dele ressaltam as qualidades de um ser sem artificialismos, naturalmente muito correcto, gentil, estóico e sempre calmo nas suas explanações e nos diálogos entre amigos.
  Luís Fonseca, escreveu um texto na rede social,  com o título:“Na despedida de um amigo...” Com efeito, amizade de longa data, Luís Fonseca guarda dele esta memória que é também nossa e que aqui tomo a liberdade de a transcrever:
“ ...um dos seus traços mais marcantes era a enorme bondade do seu ser, a sua calma e atenção para com as pessoas, uma capacidade fora de comum de suportar situações difíceis, a sua profunda afeição para com os amigos.”
 Na mesma linha, e bem achadas para rematar este escrito sobre Beto Fonseca, foram as palavras do nosso amigo e colega, Óscar Ribeiro. Palavras emblematicamente simples e criteriosamente definidoras do perfil de Carlos Alberto Mendes Fonseca: “...dedicação, trabalho, seriedade e honestidade, levas contigo...”
Até sempre, querido Primo! Lá iremos ter todos. Apenas uma questão de vez.