A Diocese de Cabo Verde comemora a 31 de Janeiro deste ano os 435 anos da sua fundação, pelo Papa
Clemente VII.
Daí a
oportunidade da publicação de um texto histórico de autoria de H. Teixeira de
Sousa sobre os primórdios da escola, da instrução em Cabo Verde e sobre o papel fundamental e relevante que a Igreja
católica teve nesse extraordinário empreendimento que é o ensino em Cabo Verde.
Trata-se
de um “original” (batido à máquina) que por um feliz acaso, encontrámos entre os nossos papéis e aqui transcrevemos. Posteriormente, pela
boa informação da nossa amiga Monique Widmer, tivemos a indicação de que este texto
vem mencionado como palestra, nas Actas do Colóquio internacional, Paris, 1984.
Igualmente foi publicado no jornal «Terra Nova» nos números 304 e 305 de Janeiro e
Fevereiro de 2002.
Como
o leitor verificará, esta pesquisa feita pelo grande escritor, ensaísta e
médico de profissão, Teixeira de Sousa, faz uma autêntica panorâmica do
percurso do Ensino em Cabo Verde desde a chegada dos primeiros mestres
franciscanos à ilha de Santiago ainda no séc. XV – afinal, poucos anos
(1466) após a descoberta das ilhas pelos navegadores e missionários portugueses
– até “praticamente” os nossos dias.
A IGREJA E A LITERATURA EM CABO VERDE
Henrique Teixeira de Sousa
Os primeiros mestres ou educadores terão sido
os franciscanos chegados à ilha de
Santiago em 1466, isto é, seis anos após o achamento do arquipélago de Cabo
Verde.
Em 1546 o rei autorizava expressamente que
alguns homens pretos e mestiços, devidamente qualificados, pudessem entrar nos
cargos públicos para os servir, sinal de que na primeira metade do século XVI
já funcionavam eficazmente as então chamadas escolas de ler e escrever, embora
em escala reduzida.
O bispo D. Frei Francisco da Cruz (1554-1571)
leccionou na própria residência muitos ignorantes (escravos), exemplo que se generalizou
por todas as paróquias, especialmente junto dos meninos de coro e de catequese.
A criação de mestres de latim em 1555, a
ordenação de sacerdotes entre os nativos, os quais passariam a ser preferidos
na provisão dos benefícios eclesiásticos, todas estas iniciativas e estratégias
da classe religiosa constituíram, sem dúvida, o ponto de partida da aventura civilizacional
do cabo-verdiano. Outras condicionantes históricas viriam juntar-se, através
dos séculos, às medidas tomadas pela Igreja no campo da instrução, Igreja cujo
contingente militante não chegava para a missão evangelizadora tão estendida
pela expansão ultramarina dos portugueses. Daí, a urgência na preparação de
pessoal para suprir as deficiências dos quadros religiosos. Deste facto, a que
outros fenómenos se somaram, resultaria em Cabo Verde o aparecimento duma
consciência nacional, muito anterior à respectiva independência politica.
Em 1772, quando foram criadas em Portugal as
primeiras escolas oficiais gratuitas, o Conselho Ultramarino autorizou a
abertura de escolas semelhantes nas ilhas de Cabo Verde, a pedido do então
Governador Saldanha Lobo. Tais escolas, porém, não chegaram a funcionar, mais
por falta de verba do que por negligência do poder civil.
Em 1811 mantinha-se a situação, isto é, as escolas régias autorizadas permaneciam apenas no papel, o que provocou
um severo reparo da Corte do Rio de Janeiro.
Simultaneamente, a mesma Corte, ordenava ao Governador e ao Bispo levassem
por diante com celeridade a criação de escolas públicas, tornando a
escolaridade obrigatória a partir dos sete anos de idade.
Só que, o orçamento de Cabo Verde não suportava tamanha despesa. Assim, no
ano económico de 1837/38, não funcionaram mais do que dez escolas régias de
ensino primário. Em 1842, nem todas as
trinta e três escolas previstas também puderam funcionar por falta de fundos.
Em 1848 surgiu a chamada Escola Principal, instalada na Ilha Brava, onde então
se achava sediado o Governo da Província por razões de ordem sanitária. Essa
escola visava os ensinos primário e secundário (humanidades) tendo durado
apenas dez anos.
Porque, entretanto, em 1846, fundava-se na cidade da Praia o Liceu Nacional que também teve pouca dura por
via do aparecimento do Seminário Liceu de S. Nicolau, estabelecimento de ensino
que se ficou a dever exclusivamente à iniciativa e persistência da classe eclesiástica, embora
apoiado pelo poder civil. Foi o bispo D. José Alves Feijó que exigiu este
estabelecimento de ensino ao Ministro do Ultramar. Conta-se que perante a
insistência do bispo aquele Ministro teria tranquilizado o ilustre prelado,
dizendo-lhe: – Vá V. Exa. descansado que tudo há-de lá ir
ter. Ao que respondeu D. José Alves Feijó: – Não sigo para Cabo Verde enquanto não for atendido em tudo; porque, em
passando a Torre de Bugio, mandam-me bugiar.
O Decreto de 3 de Setembro de 1866 criava efectivamente o Seminário Liceu
com o duplo fim de ordenar sacerdotes e de preparar mancebos para a vida civil,
ministrando-lhes para tal, a necessária educação literária e cientifica.
Com o
funcionamento do Seminário Liceu raiou uma nova época no âmbito sócio-racial,
escorada ainda noutros factores, estes, de natureza económica. Os quadros
religiosos começaram a passar para as mãos dos filhos da terra. Facto
semelhante viria a ocorrer na esfera administrativa, cujos cargos também foram
passando paulatinamente para as mãos dos cabo-verdianos saídos do
Seminário Liceu.
Pergunta-se: – A Igreja já visou essa promoção social ao criar o Seminário Liceu ou visou
tão simplesmente a preparação de quadros para a missão que se propunha? Evidentemente
que à Igreja interessava
prioritariamente a ordenação de sacerdotes. Mas, para que pudesse obter o apoio
financeiro do Estado, teria de contemplar o ensino laico, neste caso, o ensino
secundário. Com semelhante estratégia, obteve o patrocínio do Ministério do
Ultramar, e mais do que patrocínio, verba necessária para o empreendimento.
Fosse como fosse, até à sua extinção em 1928-29, pelo
Seminário de S. Nicolau passaram centenas de rapazes que se espalharam pelo
funcionalismo público, não só de Cabo Verde como ainda da Guiné e demais
colónias, sem contar com aqueles que abraçaram a carreira religiosa e se
ordenaram padres. Deste alfobre, surgiram os primeiros poetas e prosadores de
que o Boletim Oficial do último quartel do século XIX e mais tarde o Almanach
de Lembranças nos dão a conhecer. Na falta dum periódico, os arroubos
literários dos ex-seminaristas começaram a exprimir-se em letra de forma através
daquelas publicações até o aparecimento de jornais impressos em Cabo Verde, nomeadamente a partir do advento da república em Portugal. Na euforia desta nova
ordem politica, poemas, crónicas, etc, ficção, alinhavam-se garbosamente ao lado
de artigos doutrinários e outros, quase todos subscritos por ex-seminaristas,
numa retórica inconfundível a que não faltava a citação de sentenças latinas.
Graças ao Seminário Liceu, principia já nos fins do século XIX a esboçar-se a
existência dum escol intelectual entre os nativos, fenómeno que viria a tomar
corpo e a alargar-se na base com a criação do Liceu Nacional de S.
Vicente em 1917. O Liceu Infante D. Henrique surge na sequência dos magníficos
frutos colhidos do Seminário de S. Nicolau, revertendo-se logo numa instituição
de matiz profundamente democrático, onde filhos de criadas de servir se ombreiam
com filhos-família na ânsia de
aprender.
Não se pense, porém, que foi fácil a obtenção
desse Liceu. Ele foi exigido pelas forças vivas com o apoio entusiástico de
então Governador Fontoura da Costa que encontrou alguma resistência no Terreiro
do Paço.
Quando as dificuldades se reduziram apenas à inexistência de edifício para instalar o
Liceu, Augusto Vera Cruz, abastado comerciante e armador de S. Vicente, e
natural da Ilha do Sal, deixou a sua magnífica vivenda para nela terem inicio
as aulas do curso secundário. O gesto generoso deste concidadão, que ainda como
senador por Cabo Verde muito lutou por outras melhorias, foi devidamente
reconhecido pelo Município do Mindelo, o qual deliberou dar o nome de Augusto
Vera Cruz a uma das principais artérias da cidade, nome que foi substituído
pelo de Kwame N’Krumah após a
independência. Nessa vivenda funcionou o Liceu durante alguns anos.
Foi com os padres que o Cabo-verdiano começou
a assimilar os valores da cultura europeia. No ambiente da miséria em que
sempre viveu, foi sob a sombra da Igreja que ele encontrou o seu primeiro
espaço de libertação, espaço mais tarde ampliado pela instrução laica e pela emigração.
Fenómeno idêntico ocorreu nos Estados Unidos da América do Norte, onde o negro
transladado do continente de origem descobriu no cristianismo a filosofia da
sua revolta silenciosa, ao mesmo tempo esperançosa.
Salvo alguns dos sermões do Padre António
Vieira, proferidos no Brasil, não conheço nenhum texto da época, firmado por
bispo ou sacerdote, que condenasse o esclavagismo. Estou mesmo em crer que a
Igreja não experimentou tormentos de consciência face ao negócio de escravos.
Se o não aceitou, também não o combateu. Todavia, por motivo da sua acção
evangelizadora, teve de tomar medidas que resultaram benéficas ao nível de
instrução das suas ovelhas. Em Cabo Verde, por exemplo, o arranque para a
alfabetização e promoção intelectual se ficou a dever à actividade pedagógica do clero desde o inicio do povoamento. Daí
que não possamos esquecer o contributo da mesma Igreja na formação duma inteligenzia regional.
Factores de natureza geo-económica
facilitaram essa acção pedagógica da Igreja. Ilhas de fracos recursos agrícolas
e outros, nelas o colono não prosperou em nenhum sector económico, acabando por
se fundir na mestiçagem e na pobreza com os descendentes dos antigos escravos.
As secas, a inexistência de minérios, a insularidade, a emigração maciça, ao
lado da miscigenação intensa, afastaram desde logo a tendência para a
estratificação da sociedade baseada em privilégios de raça, como aconteceu nas
restantes possessões ultramarinas. Em Cabo Verde, brancos, mestiços e negros
deram-se as mãos para arrostar com
adversidades climáticas e o abandono administrativo por parte duma Metrópole
distante e insensível.
Daí que foi precisamente em Cabo Verde onde
eclodiu o primeiro movimento literário africano de expressão portuguesa com
características regionais acentuadas e inconfundíveis, embora influenciado pela
mensagem da literatura brasileira dos anos 30. A receptividade às obras dos
poetas, romancistas e ensaístas brasileiros daquela época, explica-se
simplesmente pelo paralelismo dos respectivos processos culturais, e pela ânsia
de afirmar uma identidade nacional, que para o caso de Cabo Verde seria muito
anterior à independência politica. Os
fundadores da revista Claridade, em 1936, e a literatura que então se seguiu,
expressaram essa aspiração nacionalista que a luta pela independência viria
mais tarde a imprimir carácter
político.
Cabo Verde constituiu-se, pois em nação ainda
sob a administração colonial.
Voltando à instrução,
um dos factores primordiais de promoção social, direi que ela não esteve somente
nas mãos dos agentes da Igreja ou nas do poder civil (mais tarde). Também
esteve nas mãos de mestres particulares, estes naturalmente preparados, na sua
maioria, pelos párocos e seus auxiliares. Entre os séculos XVIII e XX existiram
110 escolas particulares espalhadas pelo arquipélago, período em que a
população não atingia a ordem dos 100.000 habitantes. Esses mestres
particulares, cujos honorários ou eram pagos com moeda sonante, ou pagos com
géneros alimentares, desempenharam um papel na alfabetização de meninos e
adultos, não menos valiosos que o das escolas de padres e as escolas régias.
Tiveram ainda outro mérito, esses agentes do ensino particular. Houve-as também
do sexo feminino – as
mestras com quem as raparigas de todos os estados aprendiam costuras e lavores.
Semelhante tipo de ensino foi muitíssimo útil numa terra onde o orçamento geral
do Estado não conseguia satisfazer as necessidades públicas correntes.
Essa ânsia de aprender que foi inicialmente
insuflada pelos homens de batina (é um
dado histórico que não se pode ignorar) viria mais tarde a conhecer um
incentivo mais pragmático: A emigração para os Estados Unidos da América do
Norte que arrancou na segunda metade
do século XIX , viria a experimentar no primeiro quartel do século XX, a sua primeira
dificuldade. O Governo Americano proibiu a entrada dos emigrantes analfabetos.
Logo à chegada lhes faziam um teste de
leitura na linguagem de origem. Quem não soubesse ler correctamente era
recambiado para o país natal. Assim,
semelhante afã de aprender se alargou mais, sobretudo entre os adultos. Mais
uma vez o factor miséria, a emigração se achava e se acha ligada, favoreceu a
escalada social em Cabo Verde. O que nas restantes colónias foi até
recentemente um privilégio do colono branco, em Cabo Verde, esse privilégio, ou
seja o ensino, se revelou desde cedo uma preocupação da classe eclesiástica
para com o nativo colonizado. Apraz-me aqui citar o que escreveu o padre
António Vieira aquando da sua passagem pela cidade da Ribeira Grande, na ilha
de Santigo, em 1652: – " Vim encontrar clérigos e tão negros
como azeviche; mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes
músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá
temos nas nossas catedrais ."
Resumindo
e Concluindo: –
a) A Igreja necessitou desde logo de utilizar o
material humano africano para criar quadros destinados à ocupação religiosa. Assim, começou, desde cedo
(1466) a ministrar instrução literária e religiosa a pretos e mestiços,
devidamente seleccionados, e a ordenar sacerdotes entre os mais aptos
(docilidade e inteligência).
b) Na sequência dessa preparação literária e
religiosa, viria a mesma Igreja a conseguir
em 1866 criar o Seminário Liceu de S. Nicolau, com o duplo fim de ordenar
sacerdotes (agora em maior escala) e de habilitar os mancebos para a vida
civil.
c) A breve trecho, os cargos religiosos e
públicos começaram a povoar-se de elementos nativos, principiando também a
surgir um escol de letrados com outras ambições
que não apenas as dum púlpito ou da banca duma repartição
pública.
d) A partir da segunda metade do século XIX,
ouvem-se os primeiros vagidos literários dos ex-seminaristas, cuja poesia e
prosa se publicam no Boletim Oficial, depois no Almanach de Lembranças.
e)
Ainda na sequência dessa sede de aprender e desses pruridos literários,
exige-se e consegue-se o primeiro Liceu de ensino laico, em 1917.
f) Daí
em diante, os cursos superiores passam a ficar cada vez mais ao alcance da
pequena burguesia, facto que viria a possibilitar a consciencialização politica
dos futuros “fundadores” da nacionalidade, estes filhos dos homens que através
da literatura revelaram a existência dessa mesma nacionalidade.
BIBLIOGRAFIA
BRAZIO,
ANTÓNIO (padre) –
Monumenta Missionária Africana – Africa
Ocidental segunda série, Vol. III, Lisboa,1964.
CARREIRA, ANTÓNIO – Migrações nas Ilhas de Cabo Verde - Lisboa,
1977.
MONTEIRO, FELIX – A Ilha de S. Vicente de Cabo Verde,
Relatório de Joaquim Vieira Botelho da Costa – Rev. Raízes, Praia,1980.
SILVA, FRANCISCO FERREIRA (deão) – Apontamento para a História da Administração
da Diocese e Organização do Seminário Lyceu Lisboa,1899.
SOUSA, HENRIQUE TEIXEIRA DE – Cabo Verde e a sua Gente Boletim de
Informação
e propaganda de Cabo Verde- Praia,1956.
/H. TEIXEIRA DE SOUSA/
(escritor cabo-verdiano)