Hoje voltamos a falar de Henrique Teixeira de
Sousa, romancista, contista, activista cultural, médico, nutricionista,
analista social, ensaísta, vulto de referência inquestionável na Literatura
cabo-verdiana, e, sobretudo da sua prosa literária.
Henrique
Teixeira de Sousa continua a
ser, no entender de muitos de nós, que o lemos e o apreciamos, como o escritor cabo-verdiano que pôde, pelo dom
da vida – note-se, que me refiro à sua longevidade intelectualmente activa, que
lhe permitiu com sabedoria e com intrínseca disposição, ditada por uma grande
compreensão – percorrer e entender os movimentos e, ou, os momentos mais
inovadores e mais transformadores da ficção e da poesia cabo-verdianas. Disso
deixou testemunhos.
Saliente-se, para exemplo, o facto de ele ter
presenciado o nascimento, em Março de 1936, da célebre revista Claridade na cidade do Mindelo.
Testemunha privilegiada por se tratar de algo que foi, é, e continua a ser,
talvez, o ponto mais alto da história literária cabo-verdiana do século XX. Era
então Henrique Teixeira de Sousa
aluno do antigo Liceu Infante D. Henrique. E sobre este facto conta o autor, em
alguns dos seus textos, resultado da longa colaboração que deixou no Jornal
«Terra Nova», a partir dos anos 80 até à sua morte, conta ele, entre outras,
duas memórias deveras interessantes que no-lo situam ao tempo, jovem liceal,
participante e interessado na vida cultural que se desenrolava na cidade do
Mindelo e mais tarde, em Lisboa.
Ei-las, passo a citar: “ (...) foi no meu quinto ano, corresponde hoje ao nono ano de
escolaridade que se deu o grande acontecimento do aparecimento da revista
«Claridade». Foi precisamente o momento em que despertei para o amor às letras,
e em que escrevi o meu primeiro Conto com o título em crioulo: «Chuba qu’é Nós
Gobernador»(...) Fim de citação.
O
conto destinou-se a um concurso lançado na turma dele, pelo professor de
Português e de Latim, Baltazar Lopes da Silva. O então aluno Henrique T. de Sousa ganhou o primeiro
prémio. In: «Doutor Baltazar Lopes da Silva e o nosso relacionamento» Jornal
Terra Nova, Julho/Agosto de 1889.
Outro episódio, interessante narrado, por
Teixeira de Sousa, a propósito de «Claridade», foi o seguinte: No Verão de
1940, estando ele em Lisboa, no curso de medicina, num encontro com Baltazar
Lopes da Silva este anuncia-lhe que ia ser brevemente, publicado o terceiro número
da revista “Claridade” e que se esperava um artigo de Teixeira de Sousa,
recordou o autor, então com 20 anos e, cito: “fiquei alvoroçado com a possibilidade de colaborar naquele órgão de
imprensa.” Preparou – em poucas noites e nos intervalos diurnos
que os estudos universitários lhe deixavam
– o ensaio: «A estrutura social da ilha do Fogo».
Só que, afinal o número 3 da revista, não foi
dado a estampa nesse ano de 1940, mas apenas em 1947. E concluiu Teixeira de Sousa lamentando:
“(...)
Não fora esse atraso, eu teria alcançado o título de claridoso, em 1940, isto
é, apenas quatro anos após a fundação da revista” (Fim de citação). Este ensaio: A Estrutura
social da ilha do Fogo, seria por ele reelaborado, melhor trabalhado e
publicado em 1958, num dos números do incontornável «Boletim Cabo Verde», agora
com o título «Sobrados, Lojas e Funcos».
De Lisboa ainda, Teixeira de Sousa, saúda o aparecimento do movimento «Certeza»
1941, através de um telegrama, e como resposta recebeu ele a notícia - dada por
Manuel Ferreira - que, por unanimidade, ele fora aceite como membro do grupo
«Certeza».
Gostaria de nesta oportunidade de vos dizer
algo, muito rapidamente sobre a aprendizagem/formação/literária, neo-realista
de Teixeira de Sousa e que no fundo o
terá munido também ideologicamente de instrumentos e de tópicos do modernismo
literário e de novos valores trazidos para a temática literária, com a II Grande
Guerra Mundial - de que a escrita de Teixeira de Sousa adaptada aos problemas
cabo-verdianos e com herança claridosa – é portadora e beneficiária. E é em
Lisboa, a par da sua vida de estudante aplicado, de medicina, que Henrique Teixeira de Sousa participa e
comunga de tertúlias e de actividades literárias, políticas e culturais, com
escritores, poetas e pensadores portugueses. Isto é, com o que de mais moderno
e revolucionário se vivia no meio intelectual de então, em Portugal, nos finais
dos anos 30 e meados da década de 40; e
onde pontificavam grandes nomes do romance e da teorização literária
neo-realista: Adolfo Casais Monteiro, Fernando Namora, José Cardoso Pires, Luís
de Sttau Monteiro, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho, Maria
Archer, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, entre outros nomes sonantes do
romance português neo-realista, da segunda metade do século XX.
Pois bem, em contacto com as ideias europeias
do tempo, e sem abdicar da sua cultura islenha Teixeira de Sousa, abraça de certa forma os temas e o estilo
trazidos pelo movimento literário neo-realista. Os seus escritos ilustram-nos
bem: os contos e os romances atestam o pendor e o cuidado que ele põe no
traçado do enredo e no agir das personagens, quando em conflito com a sociedade
em que se inserem, que para umas, se revela bem adversa e para outras, bem
favorável porque ela – a sociedade – é que as instrumentalizam e as comandam.
Daí o leitor se aperceber do peso da referida corrente literária –neo-realista
– no grande texto do autor.
Vale também dizer, que apesar de a escrita de
Teixeira de Sousa ser beneficiária,
em termos de conteúdo, de um dos mais importantes movimentos literários da
segunda metade do século XX, ele não deixou de ser também um lúcido crítico
daquilo que considerou ser os excessos desta escola literária, mesmo
reconhecendo que foi o Neo-Realismo, que tantos e extraordinários romances de
língua portuguesa enformou.
Ora bem, é nesse ambiente, acrescido pela bagagem
cultural que levava das ilhas, fruto da sua observada, estudada e sentida
cabo-verdianidade, que se completaram, se consubstanciaram e se fundamentaram o
grande contista e o emblemático romancista nosso, Teixeira de Sousa, que continuamos a celebrar.
Continuando, já em Cabo Verde – e a partir de
São Filipe, na ilha do Fogo, como clínico de boa fama, director do Hospital da
cidade e da ilha que nas mãos do Dr.
Teixeira de Sousa conheceu melhorias substantivas – o escritor iniciou uma colaboração regular no «Boletim
Cabo Verde» e quem se der ao gosto de consultar os números, de 1949 a 1964 e
foram cerca de 200 números, há-de verificar e, encontrará com toda a certeza,
em quase todos eles, artigos de Teixeira
de Sousa, versando diversos temas num leque de assuntos numa abrangência e
numa diversidade cultural que vão da medicina, passando pela literatura, às
questões de índole antropológica, etnográfica, histórica local e regional;
tendo como ponto de partida e pano de fundo, a sua ilha, a do Fogo. Também
versou temas outros, relacionados com os problemas que se punham para o
interesse e para a sobrevivência do Arquipélago. Mais, a escrita de Teixeira de Sousa esteve quase sempre
também ligada à descoberta de novos valores que despontavam para a literatura
cabo-verdiana; à crítica literária (de lembrar neste ponto, a excelente análise
que fez do poema: «Caminho» de Jorge Barbosa, numa desmontagem assertiva sem
nunca perder de vista, a beleza poética nele contida.).
Acresce-se, que foi também ele, num artigo no
Boletim Cabo Verde, quem revelou as qualidades literárias de Maria Helena
Spencer segundo ele, “escondida atrás das iniciais M.H.S. com que a jornalista
praiense assinava as suas crónicas também publicadas no mesmo Boletim.
Viveu o surgimento dos novos poetas do
«Suplemento Cultural» publicado no «Cabo Verde» em 1958. Foram também por ele,
saudados.
Como vêm, Henrique Teixeira de Sousa, prestou e dedicou uma atenção real e
interessada ao que de inovador em matéria literária ia surgindo nestas ilhas.
Nascia assim, no meio e num ambiente de
intensa e interessante actividade literária – pois que se movimentavam e
pontuavam os homens da Claridade – um dos maiores contistas do Arquipélago.
Estariam dessa forma, germinadas as sementes
para, mais tarde, se abalançar à criação desta preciosa colectânea de contos: Contra
Mar e Vento, a primeira obra que publicou (Prelo Editora, 1972). Mais
tarde, editada pelas publicações Europa/América a 2.ª edição; e a 3.ª e penúltima
edição pela mesma editora, em Maio de 1998. Esta edição, sendo a primeira edição
nacional, será em termos sequenciais a 4.ª.
Entrando agora propriamente ao que aqui me
traz – a apresentação de «Contra Mar e Vento» – apenas breves palavras, para
não correr o risco de me repetir, uma vez que fui eu quem também elaborou o posfácio e a resenha biográfica para o livro; livro que, diria, de
quase imensurável valor literário, pela qualidade de escrita narrativa do seu
autor.
A colectânea que temos em mão contém 10
contos, qual deles o mais delicioso e o mais tocante para o leitor, em termos
da história contada? Qual deles o mais verossímil nos perfis das suas
personagens e na descrição terrunho/ilhéu/foguense, na sua ambiência e
cenários? Não o saberíamos afirmar. E
será bom para o leitor iniciante, descobrir na leitura dos contos, a qualidade
da maravilhosa ficção que terá em mãos.
O Conto literário, conheceu definição mais segura
e talvez mais definitiva no dealbar do século XX como sendo um episódio vivido,
relatando um caso singular, onde o autor interveio ou de que teve conhecimento,
e concebido literariamente como um romance curto ou prefiguração dum romance
eventual. Exemplo: o conto «Dragão e Eu» e «Encontro». Aqui inseridos.
Mais tarde estes núcleos, estes nódulos,
foram trasmudados, refeitos e desenvolvidos em cenas do romance «Ilhéu de
Contenda».
Continuando a colectânea, – «Contra mar e
Vento», – os contos nela inseridos são todos e sem uma única excepção,
delicadas e deliciosas narrativas, autênticas filigranas da arte ficcional
crioula, em que o contista aliou à mestria na arte de contar, uma profunda
sensibilidade, uma enorme humanidade num grande texto de uma rara beleza
poética no delinear das suas personagens, no escutar e fazer entender o leitor
as motivações que as levam a agir num determinado sentido – porque não poderia
ser de outro modo – e que lhes condicionaram o estar e o ser em
sociedade. Sociedade essa, a mais das vezes, bem hostil, em que a negação de
amor ao próximo, a recusa do pão, são partes evidenciadas de um conjunto, por
vezes violento, física e psicologicamente, de um desvio perverso do próprio
sentido cristão da vida.
Das histórias narradas nesta fascinante
colectânea que é Contra Mar e Vento
distingo “Menos Um”, “Dragão e Eu”, “A Raiva”, “Na Corte de el-rei D. Pedro” «Encontro»
apenas e tão-somente para me cingir, numa opinião de leitora, aos textos que
considero dos mais belos momentos saídos da pena do autor e os mais bem construídos
e conseguidos no conto nacional. Contos com um farto suporte memorialista.
Histórias reportadas à infância e à juventude dos seus fabulosos narradores e
das não menos fabulosas personagens num redescobrir, e num registo
discretamente autobiográfico do autor, da sua ilha natal e a idiossincrasia
peculiar da sua gente de então.
Em
termos cronológicos, o conto «A Raiva» deve
ser o mais antigo, uma vez que o autor o
publicou em primeira-mão, em 1960 num dos números do Boletim Cabo Verde; mais tarde – aprimorado e expurgada a nota
explicativa da publicação/estreia, o incluiu na colectânea de Contos, agora
reeditada. Este conto para o qual peço ao leitor uma leitura também simbólica e
significativa, regista aspectos
chocantes que estiveram presentes na tristemente célebre emigração dos mais
pobres de entre nós, para as ilhas de S. Tomé e Príncipe. A protagonista
regressa à ilha do Fogo, da sua mal sucedida emigração, alquebrada e doente. No Patim, localidade de origem e onde
viviam - o que restava de - familiares, ela é literalmente “enxotada” para a
cidade de S. Filipe, pois havia fome e ninguém tinha nada para dar a ninguém.
Vai para o albergue. Limpa e trabalhadora, cai nas boas graças do funcionário
da administração do Concelho, responsável pelo Albergue, mas em contrapartida,
ganha o ódio das companheiras. É esta tensão que persiste e anima o enredo da
narrativa, até ao desfecho trágico.
O livro abre com o conto «Menos Um» narrado
na primeira pessoa. O narrador é uma criança obrigada a partir da casa paterna
marcada pela crise de fome que amiúde se instalava nas ilhas. o protagonista
está prestes a viajar para a vizinha ilha Brava, para a casa da madrinha, esta,
menos minorada pela má sorte. Toda a narrativa, é percorrida por um tom dramático
e contido, que reforçam a violência da situação de saudade e de alguma
“orfandade,” pré vivida e expressa de forma dorida pela voz infantil e bem
emocionada do protagonista.
Dos contos seguintes, particularizava também
o conto «Dragão e Eu». Trata-se de uma história igualmente contada na primeira
pessoa. O narrador ainda criança teve um cão, o “Dragão” que passou a ser o seu fiel amigo e companheiro de quase
uma década. Juntos cresceram. Como diz o próprio narrador “...mais ele do que eu”.
Os leitores vão-se dando conta da
cumplicidade criada, da passagem e das complexas mudanças do protagonista de
criança/adolescente/jovem e finalmente homem feito. Por várias vezes ao longo
do conto as duas vidas (a do protagonista e a do cão) se tocam e quase se confundem,
no plano ontológico. Este conto que a princípio pode parecer destinado a
crianças, torna-se a determinada altura, muito adulto, nas peripécias que vai
narrando e à medida que o “Eu” (protagonista) entra na vida adulta também.
Chegados ao fim da longa história das duas vidas, ficámos com a nítida
impressão de que o autor quis fazer de «Dragão e Eu» uma novela, ou uma
narrativa mais alargada, em relação aos de mais contos da colectânea. E isto,
tanto no plano cronológico, como também, através dos vários episódios que
«Dragão e Eu» contém.
«Na Corte
de el-rei D. Pedro» é percorrido por um simbolismo e por uma dramaticidade
singulares, pois que o autor condensou no enredo, as causas da ascensão e da
queda da personagem principal de uma
forma excepcionalmente sublime e que ilustra
muito claramente o lado errático da riqueza material conseguida pelo pai
do narrador Vicente Cardoso e o seu
posterior esbanjamento justificado em complexos desvios, que acabam no
empobrecimento dos descendentes da outrora família rica de Jerónimo Cardoso, agora apenas relembrada na voz do pobre louco Raimundo, que todas as noites gritava do
alto de S. Pedro, na cidade de S. Filipe, ser ele “el-rei D. Pedro”.
No conto «Encontro» iremos revisitar, um dos
temas mais caros e recorrentes na ficção de Teixeira de Sousa, – o
posicionamento e os conflitos de classe vivenciados pelas personagens da
história. O enredo gira à volta de Miguel, personagem protagonista, aspirante
dos serviços aduaneiros de São Filipe, apaixonado e correspondido por Ilda.
Ilda representa o típico social de filha-família do Fogo, sobretudo da cidade
de São Filipe, que ia para Portugal, estudar em colégios e disso temos notícias
reais, factuais, de moças, jovens mulheres do Fogo, que frequentaram em Lisboa,
o Colégio «Bom Sucesso», o das «Doroteias» em Sintra, dentre outros, à época
prestigiados estabelecimentos de educação feminina. A personagem Ilda voltou à
ilha natal, agora exímia pianista e comunga com Miguel o gosto pela música
clássica cujos sons ele os escuta ao largo, na rua, vindos do piano que ela
toca.
Contudo, o namoro de Miguel e Ilda não é benquisto
e nem bem visto pela família dela sobretudo. A chamada lei de “feijão-mistura”
está primorosa e humoristicamente tratada pelo autor, e isso permite ao leitor
retornar à sociedade foguense de antanho.
Prestes a terminar, gostaria de reiterar que Henrique Teixeira de
Sousa foi sem margens para dúvidas, uma das mais gradas e relevantes figuras do
círculo literário nacional que se iniciou com o grande escol da Claridade. As Letras cabo-verdianas e as de Língua
portuguesa, garantiram com o seu estilo de contista e de romancista, com a sua
arte de narrar, com a sua sabedoria na abordagem literária, com o seu modo de
transpor para a ficção, as complexas vicissitudes com que o bem e o mal
desafiam o Homem; garantiram, dizia eu, um
legado literário bem fundamentado, porque Teixeira de Sousa pôs ao
serviço da literatura, uma longa, experimentada, rica e generosa actividade
humana, – profissional e cultural, a par de uma bem conseguida criatividade
ficcionista.
Teixeira
de Sousa a par de Baltazar Lopes
da Silva, de Manuel Lopes, de Gabriel Mariano e de Maria Helena Spencer –
trouxe seiva e vigor ao conto, o que até então não tinha; e outorgou a este
género literário uma certa autonomia e grandeza literárias dentro da Literatura
cabo-verdiana.
Para finalizar gostaria de felicitar a Academia
Cabo-verdiana de Letras pela oportunidade da reedição desta colectânea de
primorosos contos e que irá contribuir para o acesso dos estudantes, da
comunidade de leitores no geral, agora, sob formato de livro, como desejado, de
uma das obras mais belas e bem conseguidas do nosso universo ficcionista.