O título acima, poderá fazer pensar em algo mais do que
aquilo que realmente pretende transmitir
o texto que se segue.
Antes de mais, esclarecer o leitor que este escrito foi-me
sugerido pela leitura do artigo de Manuel Brito-Semedo, “Porto Memória,”
evocativo dos “90 anos de Diário de
António Pedro” (1902-1966) e publicado no Jornal «Expresso das
Ilhas» de 10 de Abril do ano em curso.
Afinal, António Pedro participou ou não, teve ou não
influência, na efervescência do modernismo literário que então se vivia nas
Ilhas? .... Parece que sim, mas ao que disso restou, permitiu-nos aquilatar que
as suas ideias literárias, o seu surrealismo, a forma como encarava e praticava
exercícios poéticos - fundados na escrita automática, herdada da escola francesa,
mais tarde transposta para a poesia
portuguesa nos anos vinte do século passado - não terão sido tão bem aceites,
para a estruturação da modernidade poética das ilhas, projectada pelos seus pares cabo-verdianos.
Historicamente, Praia e Mindelo foram os palcos da
configuração, dessa profunda alteração dos cânones literários islenhos. À
primeira urbe, coube a modelação do projecto (que disso não passou) «Atlântida» sob condução de Jaime Figueiredo e
à segunda cidade, caberia o palco do programa de «Claridade» com os autores
Baltazar Lopes da Silva, Manuel Lopes, Jorge Barbosa, entre outros fundadores
entusiastas.
Pois bem, Brito-Semedo,
no artigo aqui já aludido, e citando
Félix Monteiro, expressou bem a forma como o “Diário” de António Pedro,
publicado em 1929, pela Imprensa Nacional, foi recebido em Mindelo. “...rasgado simbolicamente em auto-de-fé,
por um grupo...remetendo ao autor, pelo correio, os despojos da sua
intolerância.”
António Pedro da Costa, nasceu na cidade da Praia em 1902,
filho de pai português e de mãe inglesa. A família Costa era conhecida e
abastada em Santiago.
De acordo com Manuel Ferreira, António Pedro, criança ainda
foi para Portugal, onde fez os seus estudos, chegando a frequentar a Faculdade
de Letras de Lisboa. Activista cultural, homem de teatro, foi também Locutor da
B.B. C.
Aos 19 anos de idade, volta à Praia, sua cidade natal, numa
espécie de redescoberta da ilha de Santiago.
Seguindo-lhe os passos,
ei-lo de novo, em 1929, de visita à ilha de Santiago. Nessa altura, António Pedro frequenta a roda
de amigos cultos que se reúne em
tertúlias na Praça Alexandre Albuquerque, na cidade da Praia, os então
jovens poetas e críticos, nomeadamente, Jaime de Figueiredo, Jorge Barbosa,
José Osório de Oliveira, (este último, metropolitano, na terminologia da época)
entre outros. E quase todos possuídos por um desejo comum: o da renovação
estilística e temática da Literatura cabo-verdiana. O que acabaria por
finalmente acontecer, mais tarde, com a movimentação literária dos autores em
torno da revista «Claridade» em 1936.
Terá sido naquele ano (1929) que António Pedro deu a conhecer
o seu modernismo poético (surrealismo) aos seus conterrâneos na Praia.
De acordo com Manuel
Ferreira: “...com o seu livro «Diário» se
colocou no ponto de transição entre uma poesia de rotinice europeia... e a
verdadeira poesia cabo-verdiana.” In
Reino de Caliban, 1974. Vol. I.
Com efeito, os poemas
de António Pedro, «Morna», «Paisagem»,
«Batuque» «Chuva» entre outros, distinguem-se pelo toque do surrealismo
poético, que ele praticou de forma explícita, por um certo automatismo de
escrita, um alheamento e afastamento emocionalmente conscientes dos objectos
temáticos, sobre os quais, o poeta discorreu. Assim aconteceu nos poemas acima mencionados. De se concluir,
que terá sido na Praia, em Santiago, que António Pedro se inspirou e/ou terá
escrito os seus mais emblemáticos versos.
Apesar disso, os mesmos poemas, não foram reconhecidos
positivamente na temática das ilhas, preocupados e comprometidos como estavam
os seus outros poetas e prosadores de então, com o realismo dos dramas vividos
no Arquipélago, nomeadamente, os provocados pela seca e pela estiagem
constantes. Numa palavra, o surrealismo não teria lugar à época, na poesia das
ilhas.
Embora o texto aqui citado de Brito-Semedo, diga que Manuel
Ferreira fez discípulo de António Pedro e numa certa linha, o poeta claridoso,
Pedro Corsino de Azevedo. De facto, a construção do conhecido poema “Galinha Branca”
pode sugerir isso...
Aqui chegados conviria fazer - ainda que de forma breve - uma
retrospectiva das origens do Movimento Surrealista, nomeadamente na poesia e na
pintura. Comummente aceite o seu surgimento em França, nos finais da primeira
década do século XX (1916). A chamada “escrita automática ou, a exploração do
inconsciente,” integrou poetas como André Breton e Louis Aragon, como os mais
famosos, sem esquecer o seu fundador, o poeta romeno, Tristan Tzara,
prontamente acolhido pelo grupo surrealista de Paris, a partir de 1919.
Assim, encontrámos na escrita dos seus cultores, para além da
exploração do inconsciente, o aproveitamento do sonho e do sono hipnótico,
imediatamente transpostos e representados sob forma poética, como
“coincidências dos fenómenos do acaso.”
Igualmente, o chamado: “Humor negro” foi um dos temas
explorados pelos surrealistas, na exacta dimensão de um subversor da linguagem
Em Portugal, este movimento torna-se também conhecido e abraçado por alguns poetas, embora as polémicas em torno do seu interesse, do seu estilo e do seu
conteúdo, fossem também constantes.
O Surrealismo português, prolonga-se no tempo, quer na poesia e quer ainda na pintura. Percorre o
século XX revestido de um “ar marginal,” o que não desgosta – aparentemente -
os seus cultores e apreciadores. Distinguiremos: Mário Cesariny, Alexandre
O’Neill, José Augusto França, Herbert Hélder, entre outros notáveis surrealistas
portugueses.
Torna-se interessante verificar que António Pedro está
registado como um dos surrealistas portugueses mais significativos do primeiro
momento em que a chamada “escrita automática” se introduziu em Portugal.
E mais interessante se torna o facto para nós, quando a temática poética de António Pedro se revela transfigurada e recriada também das “coisas” das ilhas
cabo-verdianas.
Num texto sobre o Surrealismo português, da autoria de Maria
da Natividade Pires, ela afirma a determinada altura o seguinte:
“Uma obra de António Pedro, “Apenas uma
Narrativa”, publicada em 1947, será considerada o primeiro conjunto de textos surrealista-automático
produzido em Portugal. António Pedro, já em 1936, aderira ao grupo surrealista
inglês e publicara em Lisboa o “Manifesto do Dimensionismo.”
E para finalizar este escrito, reiterar que foi de todo
oportuna esta evocação - por ocasião dos 90 anos (1929-2019) da publicação da
livro “Diário” de António Pedro, obra de temática cabo-verdiana, formalmente de confecção surrealista - feita por Manuel Brito-Semedo, no texto recentemente publicado no «Expresso das Ilhas».