O meu “post” para o Fogo…

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pois é, passadas quase duas décadas, a última erupção foi em 1995, o “monstro sagrado” da ilha do Fogo despertou de novo. Isto é, “…nho Vulcão trazê sê spanto!” (...o senhor vulcão trouxe-nos o seu espanto) Como cantaram os versos da morna do falecido Enfermeiro Barreto, feita para a memória da grande erupção vulcânica de 1951.
Os foguenses já respiram mais aliviados, embora a situação dos desalojados ainda “corte o coração” pelas perdas materiais sofridas e pela mudança brusca de uma vida organizada numa pequena região, das mais férteis da ilha.
Infelizmente, houve danos materiais elevados – tudo é relativo – mas para muitas pessoas da Chã da Caldeiras o desastre soou como um quase “absoluto,” uma vez que perderam tudo o que ergueram para uma vida. E de entre as gentes daquela ilha, era das mais abonadas em termos da agricultura e da pastorícia uma vez que dadas as condições do solo, a natureza é aí mais pródiga do que noutras regiões da ilha. Os moradores cultivam duas vezes por ano, o que é quase milagre nestas ilhas secas. Têm gado e pasto garantido o ano todo. Quem observa aquele torrão queimado e escalvado, nem imagina que a agricultura e a pastorícia aí se dêem tão bem.
Interessante, volto a repetir, é que a gente da Chã das Caldeiras, mesmo a mais pobre, e relativamente à das outras ilhas, em igualdade de circunstâncias, não passa fome.
Creio não faltar à verdade, se disser que a generalidade dessas pessoas não está habituada a depender, a pedir e a ter privações demasiado básicas, por que agora estão a passar.
Daí que as autoridades não estejam a encontrar um “padrão” para lidar com o comportamento, aparentemente de “pobres e mal-agradecidos” daquela gente.
Trata-se de uma impaciência, não só gerada pela impotência perante uma catástrofe natural, como também oriunda de um certo padrão de vida, agora perdido.
Permanece até ao momento em que escrevo este “post” algum isolamento da ilha do Fogo, não só internamente, com algumas estradas queimadas, como também com o exterior.
A solidariedade internacional e nacional foi amplamente manifestada. Pena foi e é que as autoridades não souberam ou então não puderam (posso admitir) distribuir e acudir em tempo mais útil aos desalojados e necessitados, com as ajudas recebidas. Digo isso, pois fortes críticas se fizeram ouvir.
Outra coisa, já é tempo de nos esclarecermos, de que em muitas matérias não somos auto-suficientes, nem de longe, nem de perto. Não somos e mais do que nunca! Esta asserção é hoje global, mas para nós, põe-se com imensa e particular acuidade.
Assim sendo, são sempre bem-vindas as colaborações, as cooperações de fora das ilhas e sobretudo, de países amigos em circunstâncias adversas …
Enfim, de qualquer forma, graças devem ser dadas, pois não houve perdas humanas a lamentar.
A propósito da situação por que passa a ilha do Fogo, recebi – nos inícios deste mês – de uns amigos, um casal de profissionais da área vulcanológica, que cá estiveram connosco no Verão passado, uma mensagem que é também uma “memória” (agora já é) que conservaram dos lugares da Chã das Caldeiras por onde andaram. Por se tratar de um trecho interessante, pedi-lhes autorização para aqui transcrever a bonita descrição que fazem do que foi Portela e arredores: “Como devem imaginar todos os dias pensamos em vocês à medida que vamos acompanhando as noticias que nos chegam quase que hora a hora. Lembramo-nos logo das histórias que a Ondina nos contou de antigos episódios (51 e 95) como o que agora se repete em que a ameaça Mosteiros veio novamente a fazer-se sentir.
Como as noticias foram sendo muitas íamos "vigiando" o que se passava – alguns dos nossos amigos estiveram presentes nas equipas de acompanhamento da erupção.
Foi com tristeza, mas não com surpresa, que vimos a Portela ser engolida logo seguida da Bangaeira.
O museu que vimos em fase adiantada de construção, o hotel onde comemos um peixe delicioso, a cooperativa onde comprámos vinho e até a tasca do Montrond onde comprámos também o vinho doce que eles faziam, as igrejas – uma em frente da outra – e todas aquelas casas da povoação – tudo isso pagou o seu tributo à natureza.
Vá lá que não houve outros prejuízos para além dos económicos – o vulcão acabou por ser gentil – avisou e deu o alerta e foi manso na hora do maior aperto.” Fim de transcrição.
Para findar o escrito, expresso ao leitor, os votos de um novo ano melhor, com tranquilidade, paz e harmonia.



quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
 

O meu berço flutuante...

Eis acima o vapor «Guiné», o meu local de nascimento.
Mas vamos por partes. Os meus pais, e os manos mais velhos, partiram do Porto Grande de Mindelo numa cálida noite do mês de Agosto, rumo a Lisboa. Eu seguia na mesma viagem, só que bem aconchegada no ventre da minha progenitora.
Decorria o ano de 1946. De acordo com o narrado pelos meus pais, eles só contavam comigo  em terras lusas, já  desembarcados e instalados em Lisboa.
Surprendentemente, a 17 de Agosto e  em pleno mar alto, "na latitude norte vinte graus e cinquenta e um minutos e na longitude oeste de Greenwich,vinte e dois graus e um minuto" -transcrição do assento de registo a bordo - anunciei-me.
Houve algumas peripécias ocorridas durante a viagem. A tripulação não contava com nascimentos a bordo. O Comandante, de seu nome Ambrósio Pereira Ramalheira, para remediar a situação de toda inesperada,  decidiu "fechar" o salão do barco e transformá-lo em maternidade, instalando aí, mãe e filha.  Havia médico e enfermeiro no barco.
Aconteceu que os jovens que iam de férias ou, para estudos em Portugal, é que não gostaram nada da emergência. Entenda-se: era hábito haver bailes e festas no salão do barco, ao longo dos muitos dias em que decorriam as viagens Praia/Mindelo/ Funchal/Lisboa, e naquela viagem não puderam desfrutá-los.
Na ilha da Madeira, no porto do Funchal, o meu pai foi à terra comprar um enxoval para a bébé, pois segundo a minha mãe pensava comprar tudo em Lisboa. Logo, as minhas primeiras vestes foram madeirenses.

Bem, adiante, registada a bordo como mandavam as leis na época, a Companhia Colonial da Navegação, a que pertencia o barco, entregou aos meus pais um documento que dizia ter eu a partir daí, viagens gratuitas, a bordo do paquete portugês «Guiné». Infelizmente, nunca tal aconteceu, pois em 1949, naufragou o meu berço flutuante.

  P. S. Segue uma digitalização do meu Registo de nascimento.









Pequenos acasos em grandes vidas?...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014


Veio isto a propósito da recente atribuição do Prémio Nobel da Paz ao benemérito médico indiano, Kailash Satyarth, incansável activista pela causa do trabalho escravo infantil, e das crianças em risco na Índia.
Outra laureada com o mesmo galardão da Paz é a nossa conhecida Malala Yousafsi, uma adolescente extraordinária e fora de série, por quem tenho uma admiração enorme, que defende a educação de milhões de crianças sem escola. Dois rostos, que agitam afinal, uma grande bandeira – a integridade do ser infantil – que deveria ser a prioridade da chamada humanidade.
Pois bem, a historieta que a seguir narrarei tem a ver com o patrono dos prémios, Alfred Nobel.
Conta-se ou melhor, registaram os biógrafos de Alfred Nobel, famoso químico e inventor sueco (1833 – 1896) um facto assaz interessante e que transformou quase por completo a memória que a humanidade havia dele guardar.
Aconteceu que em 1888, faleceu o irmão mais velho de Alfred, Ludvig Nobel igualmente engenheiro químico, inventor e homem de negócios. No obituário que apareceu nos grandes jornais franceses, confundiram os manos e deram como falecido, o mais famoso deles, Alfred Nobel.
Um dos jornais mais lidos em França, trazia inclusivamente, em grande cabeçalho a seguinte notícia: “Morreu o mercador da morte».
Alfred Nobel pôde ler o seu obituário em vida e rapidamente apercebeu-se de como ficaria conhecido para a posteridade, como o inventor de dinamite que na realidade foi.
Produto bem conhecido, que embora seja ou, tenha sido grande auxiliar em notáveis obras de engenharia, foi também utilizado em larga escala, em guerras para a destruição de vidas e de bens…
Daí que o seu inventor, tenha reflectido e pensado bem. A humanidade iria lembrar-se dele como o “mercador da morte” tal com preconizado no jornal francês…
Então resolveu criar a Fundação Nobel com a instituição de cinco prémios, a saber: Química, Física Medicina, Literatura e Paz Mundial.
Algo grandioso que começou a funcionar na realidade, a partir de 1900.
Hoje, Alfred Nobel é de facto mais conhecido pelo prémio Nobel, instituído por ele, do que como inventor do “famigerado” dinamite que tantas vidas e património destruiu nas guerras e nos conflitos mundiais de então …
Para finalizar o meu escrito, volto ao título: pequenos acasos em grandes vidas. Foi sorte dele ter lido em vida, (perdoem-me o aparente pleonasmo) a própria notícia da morte.

"Façam um Reformatório na ilha de Santa Luzia (?)..."

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

E levem para lá, todos esses malfeitores e assaltantes, adolescentes e jovens que já tomaram conta da nossa cidade!”
Foi assim que gritou indignada e desesperadamente, aos microfones da comunicação social, uma cidadã, residente na capital do país.
De facto, isto já chegou a um ponto em que já não há mais argumentos justificativos para tamanha insegurança e tamanha violência que grassa a cidade da Praia!
Isto já atingiu um nível insuportável!
Infelizmente, o assunto tornou-se recorrente na rádio, na televisão, nos jornais.
Diariamente somos flagelados, ouvindo notícias trágicas em que as vítimas são sobretudo, mulheres. Assaltadas, agredidas, violadas e até assassinadas, em plena luz do dia, na via pública, à saída de casa, nas compras, no regresso do trabalho. Enfim, uma autêntica tragédia!
Trata-se de mulheres, são elas que os meliantes – muitos deles ainda adolescentes – têm na mira, nos assaltos frequentes nas ruas da cidade e dos arredores.
Ponham a polícia e toda a força armada nas ruas! Que vigiem os bairros e os becos altamente perigosos da Praia! Para além do efeito dissuasor que isso teria sobre os bandidos, traria certamente, alguma tranquilidade às moradoras da cidade.
Façam visitas e revistem os bairros periféricos desta cidade, onde se sabe que se encontram os bandidos e o seu arsenal diabólico de facas e de armas! Mostrem que ainda existe autoridade nesta cidade!
Por favor, façam algo que se veja que as autoridades estão preocupadas com a segurança dos cidadãos e dos seus bens!
É caso para se lamentar, dizendo que os assaltantes se tornaram verdadeiros «donos e senhores» da cidade da Praia e que nós estamos à mercê deles…
Ao que isto chegou! Valham-nos todos os santos!
Por outro lado, nota-se que há qualquer coisa que está muito desequilibrada, em termos de funções de policiamento, na cidade da Praia! Se não, vejamos:
Apenas dois pequenos exemplos, entre muitos que poderia expor neste escrito.
Aqui há dias uma amiga foi assaltada, (levaram-lhe a carteira com tudo dentro, arrancaram-lhe o anel, ferindo-lhe o dedo) agredida, apalpada lascivamente, por três jovens meliantes que a atacaram em plena via pública, ao fim da tarde, quando se dirigia à casa de um familiar. Após o incidente, ela chorava desesperadamente humilhada e violentada, à procura de um agente policial na rua. Não viu polícia alguma.
Outro caso: Estava eu a caminho duma Livraria, quando reparei numa cena que se passava nas proximidades, quatro polícias (duas agentes e dois agentes) rodeavam uma jovem senhora para multá-la (deduzi eu) por ter estacionado mal o carro.
Afinal, os polícias desta cidade serão apenas caça-multas? Só para estes casos é que aparecem prontamente?
Reparem na discrepância! Dois casos. Um, com total ausência de tratamento adequado, e o outro, com dose quadrupla de atendimento musculado, para um acto com configuração de tratar-se de uma "simples" transgressão cívica, a senhora terá estacionado mal o seu veículo. Convenhamos! Francamente!
A situação a que atingiu o banditismo na cidade da Praia, já clama que seja declarado “estado de sítio”! Com todas as observâncias inerentes ao mesmo! Os “direitos humanos” são para todos, e não apenas para os bandidos!
Chegou-se a um ponto que é preferível, uma medida drástica desse quilate, que evite mais perdas inúteis de vidas, mais agressões físicas e psicológicas de cidadãs e de bens dos residentes do que esta permanente e há muito em descrédito – na boca de todos nós – «moleza» inépcia, incompetência de quem de direito!
Para terminar, na mesma linha da senhora que pediu em desespero de causa, que se construa um reformatório, uma instituição correccional, ou algo similar na ilha de Santa Luzia e que sejam levados para lá, ao mais pequeno acto de violência, os bandidos e os malfeitores que pululam e andam com total à-vontade e impunidade na nossa cidade. Também, deixo aqui este registo, que não é senão o meu «grito» de indignação! A falta de segurança retira toda e qualquer qualidade de vida ao cidadão! Vivemos sitiadas nos nossos bairros. Basta!

Discurso Directo...

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Este escrito pode ser considerado a continuação do «post» anterior pois que trata o mesmo assunto.
Já dizia o célebre escritor e pensador francês, Camus que “não existe a verdade. Só existem verdades” Comungo por inteiro desta forma de pensar e de raciocinar, pois tudo é relativo, e sujeito a diversas e variadas leituras, diferentes ângulos de abordagem e de interpretações.
Ora bem, tudo isto vem a propósito de ter ouvido aqui há dias numa estação de rádio, a entrevista dada pelo médico e poeta santomense, Tomás Medeiros, a pretexto e à volta das comemorações dos 70 anos da antiga e já há muito extinta, Casa dos Estudantes do Império em Portugal, CEI. (1944-2014).
O que se segue deverá ser lido como uma espécie de transcrição por outras palavras, daquilo que disse sobre o assunto, Tomás Medeiros, no alto dos seus experientes e sabedores anos de vida. Conhecido pensador, escritor e antigo poeta militante. Ele fez parte do núcleo inicial dos fundadores do MPLA, do MLSTP. Dirigente estudantil, e activista político, Medeiros participou, colaborou com os outros movimentos e grupos que surgiram em Portugal, após a II Grande Guerra Mundial, com aspirações independentistas das então Colónias e Províncias Ultramarinas portuguesas de África.
Esclareceu que a CEI foi fundada em 1944. Salazar tinha então como ministro da Educação, Vieira Machado e como Comissário da Mocidade Portuguesa Marcelo Caetano, estes dois últimos foram o executivo e o legislador da recem-instituicionalizada CEI. Esta albergaria os estudantes universitários africanos em Portugal que deviam estar juntos e não, em reuniões separadas e assim melhor controlados, o que, ao fim e ao resto, era o pretendido pelo regime.
Tomás Medeiros foi um dos dirigentes da CEI.
Existiam na altura, e muito antes do aparecimento da CEI, várias e importantes Associações de jovens estudantes vindos de Angola, da Guiné, de Cabo Verde, de Moçambique, de São Tomé e da Índia.
As palavras conhecedoras de Tomás Medeiros, cujo conteúdo foi por ele vivido em directo, afirmaram que no que respeitava aos estudantes africanos, não todos, é certo, muitos andavam à procura, a indagar sobre quem eram? De onde provinham? E porque se sentiam diferentes? Estas questões existenciais sobre a procura da verdadeira identidade haviam sido começadas a debater, nas diferentes associações já referidas e em actividade, antes da CEI e continuariam nela a ser discutidas.
Daí que o entrevistado, considerou ser a Casa de Estudantes do Império, o verdadeiro aglutinador e um importante germinador de ideias e de estratégias para as lutas futuras pelas independências das Colónias portuguesas africanas. Por outro lado, a CEI foi também uma casa acolhedora, de convívio, de solidariedade, de tertúlias literárias que revelaram e descobriram poetas e escritores, os quais mais tarde, entre nós, consagrados.
O interessante, é que a determinada altura, a conversa radiofónica de Tomás Medeiros, foi muito esclarecedora quando afirmou que de entre os estudantes que – logo de início – frequentaram a CEI, exceptuaram-se os estudantes cabo-verdianos pois estes últimos – continuou Tomás Medeiros – viviam já e possuíam já plena consciência da sua caboverdianidade. Logo, da sua identidade e celebravam-na na Estrela (Bairro lisboeta) entre palestras, análises, “mornas e cachupa”…
Agora, volto a um dos últimos livros sobre A. Cabral. Este não havia ainda arribado a Lisboa. Tal só viria a acontecer em 1949. E por mão de Marcelino dos Santos, (moçambicano) ele entrou na Casa de Estudantes do Império. Nessa altura já faziam parte da direcção da CEI, dois outros ilustres estudantes universitários cabo-verdianos: Aguinaldo Veiga e Humberto Duarte Fonseca.
Retomando a entrevista escutada do poeta santomense, devo dizer que o que atraiu mais a minha atenção, foi a afirmação de que nos anos 30 e 40 do século XX – décadas de significativo numero e de boa frequência de estudantes universitários cabo-verdianos, em Portugal – era já sólida e bem expressada e revelada, a consciência da caboverdianidade, entre esses mesmos estudantes oriundos desta ilhas, na antiga Metrópole. Embora se trate de matéria bem conhecida e de tese já há muito demonstrada, tornou-se-me em contexto, mais iluminadora por ter sido proferida por uma testemunha intelectualmente válida a todos os títulos, e coeva desses tempos. A pessoa e a voz do poeta Tomás Medeiros.

Identidade cabo-verdiana? Uma falsa questão no século XXI? ... Ou manobra de diversão resultado da nossa pouca "destreza" cultural?

domingo, 19 de outubro de 2014

Antes de mais, e como justificação, devo esclarecer o leitor de que tenho clara consciência, de que estou ciente que o tema que pretendo ora abordar, não cabe num “post”. Ele é demasiado sério e profundo. É matéria para diversificada e substantivas abordagens.
Aqui apenas se aflorarão três ou quatro pontos de vista e que, como tal, mais não são do que isso.

1 - Identidade do latim, identitas, identatis, significa e abreviadamente, para este contexto, o conjunto de características próprias e exclusivas de uma determinada comunidade humana, que a podem por isso, distinguir de outras comunidades. Ou seja, tal como as ciências matemáticas a definem e aproveitando o conceito, transpondo-o para aqui, a identidade estabelece uma relação de igualdade verificável para todos os valores envolvidos e praticados por uma determinada comunidade humana.
Já na Grécia antiga os grandes pensadores e filósofos definiram-na tão cabalmente, como relação de semelhança completa e absoluta entre duas coisas que possuem as mesmas características essenciais – e isto aplicado a uma sociedade distinta – que chegou até nós, na sua puridade.
À identidade coloca-se a questão fundamental da diferença do “eu” em relação ao outro e vice-versa.
Ora bem, quando uma comunidade, imaginemos a nossa, a cabo-verdiana que comunga no essencial, das mesmas características, das mesmas crenças, usos, costumes, valores, língua, entre outros traços que a distinguem das demais culturas e sociedades e que a identifiquem una, estaremos neste caso, a falar da identidade cabo-verdiana, da nação cabo-verdiana que se formou segundo estudiosos, cerca de um século, antes deste arquipélago ser país.

2 – Interessante é que no caso de Cabo Verde, já o poeta e ensaísta de mérito, Gabriel Mariano, havia afirmado há mais de três décadas, de que a nossa identidade nasceu connosco. Ela procede da nossa mestiçagem negra/branca. Portanto, veio connosco. Logo à cabeça da nação. Isto é, a nossa identidade somos nós, é o nosso ser cabo-verdiano, este que forjou a nação cabo-verdiana. Não há, “pour cause,” necessidade de andarmos – nesta diversão – (desculpem o prosaísmo do termo) à procura dela, em patéticas divagações e interrogações, as mais das vezes, delirantes, inócuas, que a nada conduzem e mais se assemelham à discussão à volta do sexo dos anjos.

É nossa convicção e de muitos mais (sei bem que não estou a dizer nada que seja novo) de que a nossa identidade se forjou – reitere-se – nessa fusão rácica e cultural, de que somos formatados. É o nosso ser e estar resultantes de um cruzamento de raças e de culturas fundidas e neutralizadas naquilo a que demos o nome de caboverdianidade.

Logo, portanto, Não vale tentar “apagar” ou “apoucar” a nossa condição e cultura mestiças. Deve ser encarada como naturalidade. Como um processo histórico, cultural e antropológico.

Convém sempre lembrar que nem o branco e nem o negro (de per si) se deram bem por aqui. Aliás, o que se entende por natural. Se não, vejamos: as condições climáticas, a falta de água, de vegetação, e outros e muitos factores, deixaram-nos à deriva e bem desenraizados, com nostalgia e falta dos seus torrões de origem.

Só quando os dois se cruzaram nestas ilhas (entre si e miscigenadamente) e produziram o homem mulato, o branco, o negro, em suma e em resumo, o mestiço das ilhas. Estes sim! Estiveram «ab initio» intimamente ligados à terra e por ela moldados. A partir daí e doravante, é terra-mãe de um ser: o cabo-verdiano.

3 - Aproveitaria esta oportunidade para transcrever excertos de um texto que retirei do “blogue” «Arrozcatum» de Zito Azevedo “ (…) “na segunda metade do séc. XIX, Mindelo torna-se um pólo de atracção para camponeses sem terra, que fogem da fome e da miséria, para famílias de importantes proprietários agrícolas ou comerciantes que aqui encontram melhores oportunidades de negócio e também para aqueles que, por serem mais escolarizados, podem encontrar bons empregos na Administração e Serviços. Vêm principalmente das ilhas de Santo Antão e São Nicolau, mas ao longo dos tempos é todo o arquipélago que aqui se cruza. No dizer de Onésimo Silveira, S. Vicente é a única ilha povoada por cabo-verdianos.” In: «Arrozcatum» blogspot.com Zito Azevedo, “A Formação da Sociedade Mindelense “
Esta asserção a negritos da tese de Onésimo Silveira – e é aí que a transcrição tem sentido para este escrito – relativamente ao povoamento inicial da ilha de S. Vicente, com algumas tentativas conhecidas a partir do século XVIII, vem ao encontro da tese da identidade já completamente formada, cujos sujeitos povoadores, vindos de outras ilhas, maioritariamente, de Santo Antão e de S. Nicolau aportaram a S. Vicente – a última a ser povoada – O que só exalta o papel do mestiço, isto é, do filho das ilhas que pôde inclusivamente, povoar uma das ilhas do arquipélago cabo-verdiano.

4 - Outra observação que me surge a propósito. Como é possível que estudos feitos no passado sobre esta mesma matéria, por cabo-verdianos de então, sejam mais credíveis? Forneçam-nos instrumentos mais bem fundamentados do que os (alguns) feitos por cabo-verdianos hodiernos?
Lembremo-nos para exemplo, da célebre «Mesa – redonda sobre o Homem cabo-verdiano» em 1956. E outros e outros…
Será porque os de antanho não tinham reserva mental sobre o tema? Não estavam marcados “ideologicamente”? São interrogações que devem ser feitas…

Dito isto, e para finalizar este escrito que se pretendeu breve, não quero contudo significar que sobre ela – a nossa identidade – não se façam reflexões, análises e estudos sérios. Bem pelo contrário, o que se pede e o que se deseja é que essa reflexão identitária, não seja ideologicamente e politicamente marcada, como já aqui mencionada. Que ela seja cientifica e filosoficamente vazada em textos com a independência intelectiva, que é exigida para este tipo de estudo.


Da Cultura mediatizada à «Civilização do Espectáculo - Uma leitura -

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O escritor peruano e Nobel da Literatura, Mário Vargas Llosa, descreve de forma magnífica – analisa e polemiza profundamente – no seu livro: «A Civilização do Espectáculo» (edição Quetzal, 2012) o modo como se alteraram, se baralharam e se transtornaram, nos dias de hoje, as noções, os conceitos de cultura, de literatura, das artes, e da política.
Em linhas gerais, e de acordo com o autor, esses conceitos são hoje entendidos como entretenimento. Apenas isso. Para além de ocuparem na escala hierárquica dos media, patamares inferiores, desde que não sejam espectáculos como é o caso do tratamento da política que só vale neste século enquanto espectáculo.
Numa análise extraordinária, o autor demonstra como por exemplo, o “inconformismo” contra os poderes instituídos, gerou na Europa e por reflexo, no resto do mundo, a base da liberdade que é uma marca da cultura ocidental e a criação de condições para o surgimento de uma civilização sustentada no “questionamento”.
Sobre isso transcrevo do livro:
“ (…) Porque, na verdade, a tradição mais viva e criadora da cultura ocidental não foi nada conformista, precisamente o contrário: um questionamento incessante de tudo o que existe. Ela foi, sim, inconformada, crítica tenaz do estabelecido e, de Sócrates a Marx, de Platão a Freud, passando por pensadores e escritores como Shakespeare, Kant, Dostoiévski, Joyce, Nietzsche, Kafka, elaborou ao longo da História mundos artísticos e sistemas de ideias que se opunham radicalmente a todos os poderes instaurados. Se fôssemos apenas as linguagens que o poder impõe sobre nós nunca teria nascido a liberdade, nem teria havido evolução histórica e a originalidade literária e artística nunca teria brotado.” Fim de transcrição. (pág. 84/85).
Enfim, o livro pede-nos leituras e mais leituras. É um convite muito sério à reflexão sobre aquilo em que se tornaram os pilares fundamentais da sociedade, ou melhor, os fundamentos da civilização mundial, pois que se fala do mundo globalizado.
Seguindo o ensaio de Vargas Llosa, diz ele que tudo, mas tudo se transformou, nos dias que correm, em espectáculo lúdico para entreter e di-lo de forma monumental, através dos vários exemplos e das definições que apresenta ao longo do livro. De tal sorte, que sem esse carimbo infelizmente, ninguém lhes prestará atenção.
Assim, destarte, o ponto que o autor acentua o seu enfoque (no meu entender de leitora) é na situação em que vive a cultura contemporânea, de forma pindérica e deprimente. Segundo ele, e entre as várias razões e causas que vai apresentando ao leitor e que conduziram ao que actualmente chegou a cultura, figuram: a “invasão” e o facilitismo das redes sociais; a pressa da difusão dos acontecimentos; os atropelos à ética cometida pela imprensa, e pelo jornalismo deste espectáculo; a confusão e o “forçar a igualização” de um Investigador e de um “Chefe gourmet”; de um Compositor e de um “Discjockey” “DJ”; sendo que os primeiros sujeitos das duas comparações, de acordo com o livro de Vargas Llosa, têm menos importância, nesta civilização do espectáculo, em que tudo é diversão…
Na verdade, trata-se de um olhar, a um tempo, exaustivo, crítico, interrogativo, assustado, e triste do autor, perante o estado a que chegou hodiernamente, o entendimento da cultura, da literatura e das artes.
Não me furto a também transcrever: “ (…) A raiz do fenómeno está na cultura. Melhor dizendo, na banalização lúdica da cultura reinante, em que o valor supremo é agora divertir-se e divertir, acima de qualquer outra forma de conhecimento ou ideal. As pessoas abrem um jornal, vão ao cinema, ligam a televisão ou compram um livro para passar o tempo, no sentido mais ligeiro do termo (…) A imprensa sensacionalista não corrompe ninguém; nasce corrompida por uma cultura que, em vez de rejeitar as intromissões grosseiras na vida privada das pessoas, reclama-as (…) Na civilização do espectáculo talvez os papéis mais vexatórios sejam os que os meios de comunicação reservam aos políticos. E esta é outra das razões pelas quais no mundo contemporâneo há tão poucos dirigentes e estadistas exemplares – como Nelson Mandela e uma Aung Sam Suu Kyi – que mereçam admiração universal. (…)” Pág. 132
E remata de forma superior:
“ (…) A cultura contemporânea faz com que tudo isto, em vez de mobilizar o espírito crítico da sociedade e a sua vontade de o combater, seja encarado e vivido pelo grande público com a resignação e o fatalismo com que se aceitam os fenómenos naturais – os terramotos e os tsunamis – e como uma representação teatral que, ainda que trágica e sangrenta, causa emoções fortes e emulsiona a vida quotidiana”. Pág. 134. Fim de transcrição.

Enfim, só mesmo a leitura da obra, isto é, a comunicação estabelecida com o seu conteúdo é que o leitor se envolverá no valor informativo e formativo do livro: «A Civilização do Espectáculo» de Mário Vargas Llosa.
Estamos perante uma obra que nos interpela e que nos inquieta.
Vale a pena lê-lo!

P. S. Aqui há dias li e vi (num canal televisivo) a passar em rodapé a notícia do casamento, note-se: do casamento, do actor George Clooney, como parte do bloco noticioso, sob epígrafe: “Cultura.” Ao que se chegou! Um acto da vida privada de um actor, por mais famoso que ele seja, é uma notícia mundana, mas nunca um acto de cultura! Convenhamos! Como Mário Vargas Llosa tem razão!

A nossa História: Uma pausa para a pensar!

quinta-feira, 2 de outubro de 2014
O grande desígnio de pôr a nossa História ao jeito dos que sempre mandaram – mandar, e não apenas governar – neste País, continua em marcha. É aquela História que legitima e confere um regime especial a um punhado de “iluminados” que fazendo jus ao seu estatuto usufrui de uma panóplia de privilégios e vantagens que o coloca acima de todos os outros cidadãos. Estranha e surpreende o facto de, alegadamente, essa aura de heróis ter sido ganha e conquistada não em solo cabo-verdiano mas nas matas da Guiné.

É no mínimo bizarro! Mais bizarro e surpreendente se torna quando se sabe que ela não se apoia em nenhuma façanha de “tropas expedicionárias” em serviço no exterior mas apenas na sua presença (reduzida) não mandatada, na sua inscrição voluntária, note-se, sem qualquer aval do povo cabo-verdiano. Um acto que podia ter sido (e se calhar foi) de abnegação e generosidade mas que afinal se revelou e se revela hoje como um investimento social e financeiro lucrativo que o cabo-verdiano vem pagando e, como sói dizer-se, com juros e correcção monetária. Até quando?

Essa História que teimam em fazer crer que nasceu em 1974, ou melhor, em 1956, com a suposta data da fundação do PAIGC, está sendo perenizada porque inculcada de modo acintoso e meticuloso nas nossas crianças e na nossa população contando para o efeito com a complacência e a “indiferença” popular e o apoio indispensável dos seus homens de mão bem colocados nos media e, pasme-se! nas instituições académicas e de ensino, mesmo superiores. É aqui que reside todo o mal pela ausência de um debate sério.

Não resistimos, em contar aqui, de forma muitíssimo breve, um episódio, porque está no contexto, que se passou com uma amiga nossa muito chegada que vive na Europa e que viera visitar a família. É uma pessoa culta, muito erudita que segue de perto tudo o que se passa em Cabo Verde. Entrou numa repartição para tratar de um documento e viu encaixada numa moldura uma fotografia de Amílcar Cabral pendurada na parede. Estranhou e perguntou, contou-nos ela, de forma já agastada porque já antes a vira em outras instituições do Estado: O que é que aquela fotografia está aí a fazer? Isto não é uma repartição pública? Não é Jorge Carlos Fonseca quem foi eleito? Bem, disse-nos ela, gerou-se uma pequena troca de argumentos em que a ideologia misturava-se com a ignorância da História e da própria Constituição.

A democracia e o estado de direito exigem escrupuloso respeito pela Constituição e não consta que a fotografia de quem quer que seja que não a do PR possa, legítima e legalmente, ser colocada em repartições públicas.

E tudo isto traz à colação, o recente livro de Daniel dos Santos – “Amílcar Cabral, Um Outro Olhar” – lançado publicamente no passado dia 5 de Setembro. Uma semana depois, era o aniversário natalício de Amílcar Cabral. É sem dúvida um livro controverso porque não panegírico, como habitualmente. Foi praticamente ignorado pela Televisão Pública nesse aniversário enquanto outros livros, sobre o mesmo tema, “velhos” e sobejamente conhecidos eram repescados. Até a RDP África de que se esperava uma postura, uma atitude de equidistância, no seu programa “Debate Africano” do dia 12, uma semana depois do lançamento, “confessava” não saber se o livro tinha sido ou não apresentado. Uma imagem que não abona muito para um painel que se impõe bem informado.

A classificação do autor desse livro, Daniel dos Santos, como “não é apaniguado de Amílcar Cabral” caracteriza bem o espírito com que o livro foi recebido e tratado colocando muito mal o programa e o painel – ferido na sua seriedade e credibilidade – que tão bons momentos de “tertúlia” já nos proporcionaram.

Não se pede isenção. Não é possível. Exige-se verdade e honestidade intelectual. O comportamento da RDP África, talvez sem o pretender, configura uma cumplicidade silenciosa com o actual poder na prevalência de uma visão monista da nossa História recente.

A ideia, as orientações que dimanam das esferas superiores são para silenciar o livro. Não falar dele. E quando se tiver de falar, diabolizá-lo. Evitar o debate que ele (o livro) propõe que poderá dessacralizar determinados mitos da nossa História, derrubar determinados dogmas e ilegitimar determinadas propostas, posturas e comportamentos.

Felizmente que estamos em democracia onde o lápis azul da censura salazarista já não existe e a proibição de circular livros já não tem lugar. Mas sabemos que o poder tem e utiliza outros instrumentos, mais subtis mas nem por isso menos eficazes. O que não há dúvida é que para o actual regime cabo-verdiano, “Amílcar Cabral – Um Outro Olhar” é um livro proscrito.

Estamos no século XXI. Conhecer a nossa História é muito importante. É compreender o caminho que nos trouxe até aqui. Não apenas o passado relativamente longínquo, mas também o recente, o recentíssimo. Aquele que construímos todos os dias. A nossa prioridade não pode ser estudar os “fósseis” da História. São importantes sim. Muito importantes mesmo. Mas não prioritários! Estiveram adormecidos durante séculos e podem assim permanecer por mais algum tempo se for caso disso. Não sofreriam qualquer alteração. Ou podiam mesmo ser tratados em simultâneo com a História recente. Não se excluem mutuamente. Mas enquanto uma é para se ir fazendo – a rota dos escravos –, o outro é para se fazer já – o debate sobre a nossa História recente.

Não comungamos das palavras justificativas do PM quando diz (citamos): A rota dos escravos é fundamental para a construção do futuro de Cabo Verde”. E reforçamos a nossa posição, quando ele afirma que para a “construção desse futuro” torna-se importante saber (citamos): "Como é que os escravos circularam aqui internamente, como é que conseguiram resistir, onde é que foram os quilombos cabo-verdianos, quais os caminhos feitos”. (O negrito é nosso).

Não resisto a perguntar: Que futuro queremos nós construir com base na rota dos escravos? Ou o PM aguarda a rota dos escravos para dar um rumo à sua governação?

Para quê preocupar, já e agora, com Quilombos – fenómenos da escravatura brasileira – se aqui ao lado, na nossa vizinha Mauritânia, para não nos afastarmos muito, no nosso mundo global, a abolição ainda não chegou? A escravatura é um problema da Humanidade e não apenas da memória histórica cabo-verdiana. E infelizmente não está extinta para falarmos dela apenas como passado.

Porquê tanta preocupação e exaltação com a rota dos escravos quando temos por esclarecer assuntos – pendentes, inadiáveis e vivos da nossa História e da da Humanidade – recentes? Ignorar essa prioridade poderá tomar a forma de uma manobra de diversão, de uma artimanha dilatória.

Façamos todos, uma pausa para pensar e priorizar a nossa História recente. Esta sim, poderá ajudar-nos a construir o futuro.

A. Ferreira

P.S. Por falar em História, ocorreu-nos que alguns estudiosos de Amílcar Cabral insistem na tecla de que ele na sua deslocação para a Guiné, depois de terminar o curso, fez questão de fazer escala em Cabo Verde para mostrar o diploma à mãe. Um gesto sem dúvida muito bonito. Que seria efectivamente carinhoso e afectivo se fosse apenas para a cumprimentar, para a abraçar e lhe dar um beijinho. Aliás, que outra alternativa teria? Não havia ligação directa. O normal era apanhar um barco de carreira. E ao tempo (1952) a única ligação Lisboa – Bissau era feita pelos navios (“Alfredo da Silva”, “Ana Mafalda”, “Rita Maria” entre outros) da “Sociedade Geral” que faziam a carreira regular Lisboa – Mindelo – Praia – Bissau e Bissau, Praia, Mindelo – Lisboa. Ou será que o Governo de Lisboa lhe tinha posto um barco à disposição?

O improviso é uma arte?! Um dom?!

domingo, 21 de setembro de 2014
Se o título interrogativo deste escrito estiver certo, o saber improvisar quando se fala em público e para o público, para além de ser uma arte, poderá ser também um dom, reservado a alguns. Infelizmente, é mesmo assim: reservado a alguns. Acrescente-se que a arte e o dom não se excluem mutuamente. Antes se associam, uma vez que a arte, não obstante exigir trabalho, traz sempre consigo uma forte componente vocacional.

O “improviso” é, por definição, «tudo aquilo que é dito ou feito sem preparação, sem ensaio prévio». Por isso, o verdadeiro improviso é aquele que surge em circunstâncias inesperadas, repentinas, que obriga o actor, o protagonista, o comunicador, a fazer intervenções impreparadas e, normalmente, sem grandes profundidades, a menos que sejam situações recorrentes em que só o contexto é circunstancial.

Daí que, em cerimónias formais e institucionais, previamente datadas, em que os oradores são conhecidos, não se espera que nenhum deles faça um verdadeiro improviso sob pena de mostrar um menor respeito pelo público-alvo. Sabemos contudo, que muitos políticos experientes, inteligentes e astutos recorrem ao “improviso” previamente ensaiado com vista a levar o público a pensar que se trata de alguém eloquente cujas palavras são sinceras porque saídas de forma espontânea e directamente do coração, da alma, sem qualquer reserva mental. Aqui o “improviso” ganha os contornos de um “marketing” político.

Sabe-se, por exemplo, e ele não é seguramente, nem de perto nem de longe, o único, que Charles De Gaulle (antigo PR da França) levava horas e horas sem conta defronte a um espelho a preparar os seus “improvisos” em que todos os seus gestos e palavras, designadamente o tom, eram meticulosamente estudados.

Por isso, atenção! O “improviso” não é para todos os oradores. Requer informação, conhecimento e capacidade (dom) de comunicação quando é autêntico, e muita memória e muita arte de representação quando é teatralizado. Em qualquer dos casos deve ter, sobretudo, substância, ir ao encontro do fundamental.

Mandam a prudência, o senso-comum e a consideração que merecem as pessoas que se previna sempre, com o clássico “papelinho” bem escrito ou, no mínimo, com os tópicos, para não cometer “gaffes” e honrar e prezar devidamente a audição (a capacidade de escuta) de cada um.

A palavra escrita disse (não era preciso ser ele a dizê-lo…) um nobel da literatura «tem possibilidades de calar mais fundo na análise dos problemas, de chegar mais longe na descrição da realidade social, política e moral e, numa palavra, de dizer a verdade».

Afinal, todo este arrazoado, vem a propósito de ouvir com alguma frequência, altos responsáveis políticos e figuras públicas destas ilhas falarem − atabalhoadamente (perdoem-me a franqueza) e muitas vezes com pouco nexo − de improviso para os seus concidadãos e em presença de estrangeiros, o que constitui não só uma temeridade, como também, por vezes, deixa subentender, por um lado, a impressão de uma inadmissível negligência, por outro, desconsideração e falta de respeito por aquele que o escuta.

Mas o que verdadeiramente preocupa é que parece estar a configurar-se algum modismo. E se a moda pega!...

A este propósito, recordamos o constrangimento, ou mesmo vergonha, usando as suas palavras, por que passou alguém amigo, ao ter de escutar, perante um público da mais alta literacia, porque de professores e de reitores universitários (alguns convidados estrangeiros) se tratavam, na apresentação, pública, há já alguns anitos, da então novel Universidade de Cabo Verde, em que um altíssimo dirigente do país, resolveu falar de improviso no discurso que encerrava a cerimónia desse acto público. Sem dom de orador, sem papel e sem preparação prévia, o discurso foi um autêntico fiasco − atabalhoado, desorganizado e sem substância. Enfim, terá sido mesmo constrangedor, ainda segundo a nossa fonte, para quem o escutou, deixando a todos, ou quase todos, os seus concidadãos presentes no acto, envergonhados pela má prestação.

Um político com a experiência que então esse tinha, devia ter tido mais cuidado, ser mais avisado, por maior que fosse a sua presunção. Evitaria dessa forma o que acabou por ser uma vexatória exposição.

Na realidade, o que conta é o conteúdo, a organização mental, a comunicação. O modo como é veiculado – de improviso ou escrito − por si só, não valoriza mas pode diminuir e comprometer.

Nestes casos convém ter sempre presente a velha máxima: “Mais vale prevenir do que remediar!” E não esquecer que «o seguro morreu de velho!...»

Declarações de Amor - Entre o Português e o Crioulo

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Eis uma história de amor acontecido num baile. Vamos directamente ao diálogo entre dois apaixonados que dançam num baile na cidade da Praia, no século XIX:
“ (…)
-Sente-se muito fatigada, minha senhora? – Perguntou ele um pouco perturbado.
- Nhor não – respondeu ela suspirando.
- Mas… V. Ex.ª parece estar um pouco incomodada. Se não fosse por me julgar importuno, pedir-lhe-ia um favor.
- É cusé?
- De me dizer o que sente.
- É câ nada, é só coraçon qui estan fadigado…
- Quer que lhe dê um remédio magnífico para esta fadiga que diz ter no coração?
- Paquê? A nhó é ca dotor.
- Bem sei que não sou médico, mas pode ser que os meus conselhos tenham o privilégio de curar a V. Ex.ª do mal de que talvez esteja sofrendo…
- Bé! Nhó ca capaz…
Porque é que não sou capaz?
-Pamode nada – Disse ela sorrindo.
- V. Ex.ª é caprichosa… continuou ele torcendo o bigode – Sei que sofre e sem razão por que sabe que a amo.
- Ami?
- Sim, a si minha senhora.
- Ami mé tambe gosta di nhô.
- Também gosta de mim? Não creio!
- Bi! Câ nhu fla si…si ca sim, m’tâ graba di nhó!
- Então jure.
- Pa alma di nha pai quis ta dibaxo de sete mon de tera…
- Oh! Sou feliz, dancemos minha senhora.

Neste comenos rompe a orquestra com uma polka, os dois jovens namorados desapareceram no meio do turbilhão. (…)” Fim de transcrição.

Maria Adelaide das Neves
Almanaque de Lembranças (1854-1932)

O leitor reparou certamente que este texto antigo conseguiu partilhar o afecto,a paixão, nas duas falas do cabo-verdiano: o português e o crioulo sem qualquer hesitação. Um diálogo de apaixonados. Um momento amoroso muito bem captado. Tanto uma língua, com a outra, a portuguesa e a cabo-verdiana foram muito eficazes para a finalidade pretendida entre os enamorados.
O conto de Adelaide Maria das Neves de 1889, (do qual tomei a liberdade de modernizar ligeiramente a escrita para facilitar a leitura) sugeriu-me este escrito, pois tenho escutado ditos “non sense,” como por exemplo, dizer-se que só o crioulo (com exclusividade) é que é língua que transmite afectos e sentimentos em Cabo Verde. Falso.
Cada um que fale por si e que seja menos absolutista. É o mínimo que se pede a gente com responsabilidade, naquilo que diz em público.
É que alguns tiram isso da “boca para fora” (relevem-me este prosaísmo) assumindo um ar de verdade absoluta que se tornam quase dogmáticos.
Até parece que o circuito linguístico cabo-verdiano só começou a partir deles.
Isto é muito mais complexo, e muito mais remoto do que julgam, meus senhores! Depende da literacia e da classe social a que pertence o falante cabo-verdiano quando faz a sua declaração de amor.
Conheço muitos casos de gente que me é próxima e trata-se de cabo-verdianos de quatro costados – como sói dizer-se – cuja declaração de amor foi feita em língua portuguesa. E os afectos em família são profundamente reiterados em português,por a língua portuguesa ser também, a língua doméstica, de casa.
E que me dirão estes iluminados sobre as particularidades das duas línguas de Cabo Verde, a portuguesa e a cabo-verdiana, sobre as cartas e bilhetes de amor de outrora que circulavam com enorme frequência, do amado para a amada e vice-versa? Eram escritas em português e eram um meio de comunicação, o mais difundido e utilizado entre nós, para o tempo de namoro.
Portanto, solicita-se encarecidamente a quem vá à comunicação social “botar faladura” sobre este tipo de assunto que o faça, lembrando que deve usar as conclusivas sob formato relativo. Deve ter sempre presente e recordar sim, os casos que lhe são próximos, o seu meio ambiente social e não generalizar abusivamente, tornando no todo absoluto, aquilo que é bastante relativo.
Ah! Deve também ligar sempre o seu “desconfiómetro” que é um instrumento muito útil para estes actos elocutórios e assim evitar que o desconhecimento – que prega muitas partidas! - que é muito atrevido e temerário, em “bocas incautas,” venha ao de cima. Nós outros agradecemos!


Sobre a Apresentação de um livro

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

A propósito da recente apresentação do livro de Daniel dos Santos, «Amílcar Cabral – Um Outro Olhar» recebemos de alguém muito amigo e não menos crítico, uma apreciação que achámos muito interessante e oportuna para ser aqui publicada.
O que chamou a nossa atenção, no texto que se segue é a maneira como o autor do comentário “classifica” o tipo de “Apresentante” e a “responsabilidade” que lhe atribui.
Leia e repare como pode ser também fina, subtil e algo irónico, a percepção do ouvinte, do participante numa apresentação pública de um livro.

“Caríssimo Armindo
(…)
Bom, quanto à apresentação do livro.
Da minha modesta experiência como participante nestes eventos – mantenho um certo culto por apresentações de livros que me interessem – costumo distinguir 3 modelos de intervenção dos apresentantes (claro que há mais):
1. Aquilo a que eu chamo os apresentantes "mestres de cerimónia" – muitas vezes não leram o livro, tendo-lhe dado, quando muito, uma vista de olhos. Fazem da apresentação um mero evento pouco menos do que social. Conheço alguns – e aí não me apanham;
2. O apresentante interessado em mostrar que leu atentamente o livro e, não obstante, com avisada distância e passividade, resumindo ali, sublinhando acolá, considera que cumpriu o mandato – a partir daí o leitor que faça pela vida.
3. O apresentante envolvido que leu e sobretudo sentiu a "história" do livro, que, para também envolver os ouvintes, nela não receia assumir mais ou menos protagonismo e mesmo riscos, ora fazendo o papel de advogado de deus, ora o de advogado do diabo, sublinhando e até apimentando as partes mais controvertidas e polémicas e mesmo, porventura, lançando ali e acolá dúvidas sobre certos aspectos (factuais ou outros) ou conclusões do autor. Na apresentação de um livro gosto de sentir que os ouvintes ficam como que a "salivar" pelo seu recheio, fruto de uma intervenção apelativa, controversa, desalinhada do seguidismo, não pacífica, provocatória, até. A tua apresentação de um livro como o que te coube – até pela figura (quando se trata de uma "vaca sagrada", sans offense, é sempre mais problemático) e a sua circunstância que aborda – constitui uma excelente manifestação deste modelo, de que gosto particularmente. Parabéns por isso.”




Cuidado com as traduções literais...!

quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Esta vai para a minha querida amiga Dulce Irene crioulista estudiosa e investigadora séria e quem a entenderá melhor…
Há coisas que só se podem contar a partir da chamada terceira idade, a idade da sabedoria, da calmaria, e de outras “sagesses” que esta fase de vida traz aos seus portadores.
Pois bem, a historieta que me proponho contar passou-se aqui há alguns anitos…
Estava eu num aeroporto internacional, à espera da chegada de um familiar. Tudo acontecido. Recepção feita, eis que me preparo para regressar ao carro, quando oiço alguém gritar por mim, da seguinte maneira: “Ondina! Nha cretcheu!” Tradução literal para nós falantes do Crioulo: “Ondina! Meu amor”!
Mas aqui e entre nós, “cretcheu” significa o amor que une os namorados, o casal, “Nha cretcheu” significa também a especificação da amada ou do amado escolhido e pertencido. Logo, com um contexto e significado reservado ao par/casal, de todo conhecido e identificado, por nós falantes das variantes do Crioulo das ilhas de Cabo Verde.
Pois bem, saio do carro parto em direcção a essa voz, que reconheci vinda de um amigo e colega de profissão, também professor, a quem já não via há largos anos. Cumprimentámo-nos efusivamente, como é natural, entre pessoas amigas e que há muito não se viam.
Eis que volto ao carro, encontro a minha cara-metade com uma expressão facial, a revelar contrariedade e que sentado ao volante e ainda antes de arrancar me interpela claramente enciumado (pareceu-me…): “ouve lá, este teu amigo, chama-te de “nha cretcheu>?” Onde é que ele arranjou esta intimidade?”...

Abreviando, com esse chamamento, o meu amigo (que é anglófono) quis mostrar-me que tinha aprendido, ou estaria a aprender o crioulo de Cabo Verde
Conversa troca conversa, a minha cara-metade, já mais racional, como costuma ser, chegou à conclusão de que o crioulo do professor do meu colega é que seria eventualmente o culpado pelo equívoco do “nha cretcheu” alargado a todos os contextos amigos. Afinal, ele podia ter dito também em crioulo: “Ondina, nha querida! (minha querida, my dear) Porque neste caso até se subentendia “querida amiga”. Agora “nha cretcheu”!!??
Enfim, perante este equívoco, “sofrido na pele”, como sói dizer-se, fica o alerta e o aviso aos que ensinam crioulo aos não falantes da Língua cabo-verdiana. Existe a expressão em crioulo “nha querida”, que pode ser empregada em contextos de fala entre amigos. Agora, “nha cretcheu” é que é somente e exclusivamente, tratamento de namorados.
Vamos lá fazer esta destrinça…não vá o Diabo tecê-las! …

P. S. Este post sciptum é dirigido ao leitor não falante do Crioulo da Cabo Verde. A palavra “Cretcheu” (comum a todas as variantes do crioulo das ilhas) resultou da aglutinação de: “cre”= querer e “tcheu”= Muito (cheio, pleno). A tradução em contexto, será a de amar, de gostar muito,de querer bem e de bem querer.

Como podem ser diferentes as perspectivas históricas...

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Serve o texto que se segue para demonstrar de como se percepcionam, dependendo da cultura e da história, heróis versus bandidos e/ou piratas malfeitores.
No último Verão, a minha filha mais a família, marido e filhos visitaram Londres. Eis que de entre visitas interessantes feitas a monumentos magníficos daquela grande cidade europeia, entraram na Abadia de Westminster, onde se encontram sarcófagos de grandes heróis ingleses.
Durante a visita, a atenção da minha primogénita ateve-se no túmulo do nosso muito conhecido e tristemente célebre, Francis Drake. Faz um alto para os filhos e explicou-lhes sucinta e assertivamente: “Este aqui, pode ser herói para os ingleses, mas para nós é um bandido, pirata, que saqueou e destruiu no século XVII a Cidade da Ribeira Grande, hoje conhecida por Cidade Velha na ilha de Santiago, por sinal considerada a primeira cidade construída pelos portugueses, o mesmo que dizer, europeus, e, obviamente, pelos africanos em terras tropicais. Mas mais, continuou a explicar a minha filha: nas ilhas, por onde ele passava, Francis Drake e os seus homens pilhavam, matavam, saqueavam e violavam mulheres. Era assim o “modus operandi” deste inglês, glorificado na terra dele e elevado à categoria honorífica de “Sir” porque grande parte do seu saque era entregue à coroa britânica que desta forma o incitava a continuar os seus actos de barbárie e de banditismo …”
Em traços gerais e historicamente, assim esclareceu a mãe aos filhos, o porquê que, para ela, o sepultado na Abadia de Westminster e na óptica dela, nunca poderia ser classificado de herói!

Interessante é que dias depois, estando eu a ler uma revista que trazia uma longa separata sobre a história das guerras entre espanhóis e portugueses para a restauração da independência portuguesa (1640), compreendi que a expressão popular “amigos de Peniche,” sinónimo de falsos amigos, tinha por detrás a “assinatura” de Francis Drake. Supostamente, o papel dos aliados ingleses – numa guerra que se estendeu até 1668 – era ajudar os portugueses a saírem da ocupação espanhola. Mas tanto destruíram e saquearam, sob comando do terrível Drake, que merecidamente levaram o epíteto de “amigos de Peniche”, nome da localidade onde se situa o porto de onde desembarcara F. Drake. Li ainda nesse mesmo documento, que a cidade de Faro no Algarve, por exemplo, foi completamente pilhada e destruída por Francis Drake e os seus homens, sempre abençoados pela Rainha inglesa…
Enfim, tudo isto para dizer que podem ser muito relativos, diferentes e até opostos a percepção e o entendimento de herói e de bandido. Infelizmente, os interesses falam mais alto do que valores…
Francis Drake é nisso um caso paradigmático.

Apresentação do livro "Amílcar Cabral - Um Outro Olhar" de Daniel dos Santos

sábado, 6 de setembro de 2014
Nótula Explicativa

Após uma pausa longa, eis-nos de volta ao “Coral Vermelho”… já sentia a falta do contacto, sempre querido, com o leitor e destes pequenos exercícios de escrita que mal não fazem…pelo contrário! Animam a mente.

Pois bem, para reiniciar, aqui vai um texto de autoria de A. Ferreira e que serviu de apresentação pública, no dia 5 de Setembro corrente, na Biblioteca Nacional, na cidade da Praia, do livro: «Amílcar Cabral – Um Outro Olhar» (Chiado editora, 2014) de Daniel dos Santos, politólogo e professor universitário.

O interessante é que este texto de apresentação, que a seguir se publica, acabou por ser de certa forma, não só um ponto de vista de um leitor, como também se constituiu numa espécie de ensaio, sobre o conteúdo da obra de Daniel Santos.
Daí querermos partilhá-lo com o leitor.

Apresentação:

Amílcar Cabral – Um Outro Olhar.

Amílcar Cabral - Um Outro Olhar” é um ensaio sério, honesto, que tem na figura de Amílcar Cabral um eixo condutor. O título sugere, uma certa biografia. Mas não uma biografia do género "Longa Marcha para a Liberdade" de Nelson Mandela nem “A Face Oculta de Kennedy” de Seymour Hersch. Cito estes dois grandes estadistas e estas duas extraordinárias biografias porque estão uma nos antípodas da outra. A primeira é epopeica e panegírica descrevendo um percurso honroso e dignificante enquanto a segunda é escabrosa e indecorosa narrando os subterrâneos da vida de um político e do seu clã – vergonhosa, imoral e pouco digna.

A obra de Daniel Santos não é uma coisa e também não é outra. Não glorifica nem denigre. Não é isento – não gosto desta palavra porque ela, a palavra, é desprovida de conteúdo, não tem substância, nem é real. Despiria o autor do seu saber, da sua formação, do seu pensar, do seu cunho pessoal. É objectiva, seria a expressão certa para a classificar.

Mas diria mais! Diria que “Amílcar Cabral – Um outro Olhar” é denso, é substantivo, é real, por isso potencialmente polémico. É também equilibrado, porque rigoroso e profusamente documentado.

Escrito numa linguagem simples sem ser simplista, escorreita, desprovida de qualquer gongorismo ou sociolecto, Daniel dos Santos convida o leitor despretensiosamente a uma permanente reflexão. Na verdade faz uma TAC (Tomografia Axial Computadorizada) centralizada na figura de Amílcar Cabral (AC) em que escalpeliza um homem, um partido e um tempo. Fundamenta-se na vida multifacetada de uma das maiores figuras de África do seu tempo – Amílcar Cabral – para descrever o homem, o político, o diplomata, o chefe militar, bem como social, cultural e historicamente esse tempo – o das independências das colónias portuguesas de África.

O autor divide a sua obra em três partes. O nome que dá a cada uma e as razões que estão na base desta sua organização são explicadas e descritas nas 1ª páginas. Em contrapartida separa a vida do “biografado” em cinco fases cronologicamente estabelecidas, a saber: Conformista; Contestatário; Revoltado; Nacionalista e Revolucionário desfazendo desta forma a ideia de que Cabral “nascera” político, ao mesmo tempo que deixa intuir que ele se tornara político por efeito das circunstâncias e da sua sensibilidade porque na verdade o que ele sonhava, era ser um poeta de mérito e um reconhecido engenheiro, segundo confessaria.

Para descrever estas fases, o autor percorre a vida de Amílcar Cabral desde o nascimento em Bafatá, Guiné-Bissau em 1924 passando pelo seu assassínio em Conacry em 1973, indo para além da sua morte com a proclamação da independência da Guiné-Bissau e até quando, diz ele, um grupo declarando-se herdeiro do seu legado político e reivindicando a legitimidade histórica da sua luta, instala em Cabo Verde, (cito-o): “… um modelo de Estado da mesma igualha que o de Oliveira Salazar.” E explica (continuo a citar): “As semelhanças são enormes: ambos se baseavam no partido único, no chefe, na polícia política, na estatização da economia, na ideologia, no monopólio das forças armadas e dos meios de comunicação social.” (Fim de citação).

Nada escapou ao olhar atento do investigador político e do antigo jornalista. Do país ele aborda com clareza e com rigor científico o seu achamento, o seu povoamento, a sua colonização, o seu “colonialismo”, cruzando e confrontando inteligente e assertivamente teorias, doutrinas e conceitos − jurídicos, sociológicos, históricos, culturais − concluindo convergentemente com Cabral de que Cabo Verde era uma colónia sui generis porque “tecnicamente sem colonização e sem colonialismo”. Cabral diria para culminar uma intervenção a este propósito: ”Os tugas adoptaram outra política: [Em Cabo Verde] todos são cidadãos.” Isto tudo para enquadrar e distinguir, diferenciar, as razões da luta em Cabo Verde e na Guiné.

Ao percorrer a vida de Cabral, Santos não esquece, antes, realça o facto de AC não obstante ser filho de um homem culto e professor só ter feito a 4ª classe aos 13 anos, na Escola Central da Praia. Aqui abro um parêntese para um comentário pessoal, extra-livro, e fazer o ingrato papel de advogado do diabo: Juvenal Cabral, pai de Amílcar, teve cerca de 3 dezenas de filhos – 18 com as suas 3 principais mulheres – o que seguramente não lhe dava tempo para cuidar deles todos. Isto deve ter marcado profundamente o menino e depois jovem, e mesmo o homem, Amílcar Cabral, o que o leva a manifestar (poesia e cartas) uma permanente protecção e um exacerbado carinho pela mãe e a condenar com uma violência inaudita, até com alguma deselegância e falta de tacto diplomático, a poligamia, quando diz: “Que está de facto, profundamente convencido de que é indigno para a espécie humana um homem ter várias mulheres.”

Ofendia desta forma, pela linguagem que utilizou e não pela condenação da poligamia, o povo do País que o acolheu, o mundo muçulmano e a cultura generalizada de África. Cabral viajava com dois nomes falsos (ambos com passaportes de países muçulmanos, um de Marrocos em nome de Mohamed Benali, outro da Guiné-Conacry em nome de Ousman Keita). Não me vou alargar sobre este facto. Fecho o parêntese.

Pois bem, AC lá fez o Liceu com distinção – 17 valores – no Gil Eanes de S. Vicente para onde se deslocara com os seus três irmãos e a mãe que teve que trabalhar duramente – ganhava 50 centavos por hora na fábrica de conserva de peixe, quando havia peixe – para manter a família monoparental uma vez que o pai durante todo o tempo – 7 anos – absolutamente nada enviara.

Depois de um ano a trabalhar na Praia, segue para cursar agronomia. Daniel dos Santos aproveita com muita oportunidade o tempo em que Cabral se encontra em Lisboa para descrever com suficiente minúcia o ambiente estudantil dos oriundos das então colónias bem como a sua relação com a Casa dos Estudantes do Império – CEI – que dava os seus primeiros passos.

Cabral chegou a Lisboa em 1945 – com 21 anos – pouco mais de um ano depois da criação da CEI. Também fim da 2ª Grande Guerra, que, como se sabe, traria alterações significativas na situação das colónias; ano da criação da ONU. E já agora, acrescente-se – e não é despiciendo – auge da repressão salazarista.

E foi seguindo o seu percurso, as suas relações com a “CEI” e com os principais protagonistas do ambiente estudantil africano do qual Daniel faz uma bem articulada exposição da evolução da “Casa” como espaço criado pelo Estado Novo (Ministro do Ultramar Vieira Machado e Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa Prof. Marcello Caetano – autor dos estatutos da CEI) para integrar e controlar os estudantes ultramarinos – dispersos em inúmeras associações – evolução, dizíamos, primeiro para um centro de consciencialização da cultura africana, isto é, como disse Tomás Medeiros como um local de “busca da re-africanização da identidade e das raízes” ou como avançou Frantz Fanon «quebrar a máscara branca» uma vez que o antilhano considerava que o colonialismo é um processo de alienação que inferioriza o colonizado porque faz dele cópia, em termos culturais, do colonizador e, posteriormente, de politização das consciências.

Assim dito, parece que tudo começou com a CEI. Não, nada disto. E Daniel dos Santos expõe-no com clareza e oportunidade. Vai mais atrás, insere na sua análise toda, e não é pouca, actividade africanista que se dá com a queda da monarquia e o advento da república.

Refere-se ao surgimento de uma actividade político-jornalística intensa e muito abrangente, com a criação de várias associações e organizações que lutam pela igualdade de negros, mestiços e brancos, por uma “Uma África para os Africanos”, aproveitando-se do pan-africanismo de Garvey e Du Bois e dos protagonistas dessas actividades em Portugal e colónias, salientando o papel dos cabo-verdianos Augusto Vera Cruz e dos irmãos Luis e Martinho Nobre de Mello.

A passagem de AC pela CEI não foi relevante. Por um lado porque a princípio AC estava muito mais focado nos seus estudos do que em qualquer outra coisa. E a sua aparição na Casa, diz-nos Daniel dos Santos, só se dá em 1949, quase no fim do curso, pelas mãos de Marcelino dos Santos e depois da chegada de Mário de Andrade (1948). A CEI, nessa altura, segundo Mário de Andrade [apenas] se preocupava com problemas que estivessem ligados à geografia, à linguística e à história da colonização. E parafraseando o autor que cita Óscar Oramas: “Amílcar não tinha formação nem preparação teórico-ideológica para rejeitar os valores e a cultura portuguesa”. (Fim de citação).

O surgimento (na clandestinidade) em 1951, do Centro dos Estudos Africanos (CEA), na Rua Actor Vale, 37, em Lisboa, veio dar seguimento ao trabalho cultural iniciado na “Casa” e que não podia continuar porque ela era dominada pelos filhos dos ricos colonos, sobretudo angolanos, que, obviamente, não deixavam espaço para essas actividades. O CEA era dominado pelo santomense Francisco José Tenreiro que era de entre todos, de longe o mais bem preparado, com obras já publicadas. É este o período em que Daniel dos Santos classifica AC de “contestatário”.

E para terminar esta fase da vida de Amílcar que o autor descreve e analisa de forma exaustiva, não posso deixar de referir, muito rapidamente, como começou, segundo Daniel Santos: Amílcar considerou-se sempre GUINEENSE durante toda a guerra para a independência. E os senhores perguntar-me-ão: E não era guineense? Claro que era! Mas só foi estudar porque o reitor do Liceu de Gil Eanes, Dr. Luis Terry, lhe concedeu (discricionariamente) uma pequena bolsa de 350$00 mensais que era manifestamente pouco. Chegado a Lisboa, a CEI que tinha na sua direcção Humberto Duarte Fonseca, um cabo-verdiano e a chefiar a sua Secção de Cabo Verde, obviamente, outro cabo-verdiano, Aguinaldo Veiga abriu concurso para uma bolsa para os naturais de Cabo Verde a que Amílcar Cabral concorreu e ficou em primeiro lugar. Era uma bolsa de 450$00 que iria acumular com a de 350$00 do Liceu. Humberto Fonseca ainda faria várias diligências junto do Instituto Superior da Agronomia e do Ministério da Educação para que lhe fosse concedida isenção de propinas que não era compatível com a condição de bolseiro, conta-nos Daniel dos Santos. E foi, graças ao empurrão destes dois cabo-verdianos, e ao seu fechar de olhos à sua naturalidade que ele ganhou condições para fazer o curso tendo depois escolhido a Guiné para começar a trabalhar. Aliás, ele nunca trabalhou em Cabo Verde depois de formado.

Antes de partir, ainda no ano em que se formou, 1952, com 15 valores, publicaria o “Apontamentos Sobre a Poesia Cabo-verdiana” no Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação onde estabelece um paralelo entre os Claridosos e os predecessores. Dizia que o advento dos Claridosos tinha tirado a poesia cabo-verdiana dos céus e tinha-a colocado na terra: “Cabo Verde já não era o Jardim Hesperitano mas um país real, de gente com problemas” e, continuo a citar: «onde as árvores morrem de sede, os homens de fome, a esperança nunca morre» … «e o mar a estrada da libertação e da saudade». (Fim de citação)

É ainda nesse ano de 1952 que Mário de Andrade e Francisco Tenreiro publicam “Os Cadernos da poesia Negra de Expressão Portuguesa” que para alguns constitui um marco na afirmação da personalidade africana em terras portuguesas. Foi altura, diz-nos Santos, em que Cabral descobre o Pan-Africanismo de Du Bois e Washington e o Movimento Negritude de Senghor, Césaire, Anta-Diop e outros.

Na Guiné, Cabral desenvolve um extraordinário trabalho técnico merecendo a apreciação do Governo da Guiné do qual teve sempre boas referências. Mesmo depois de tentar fundar uma Associação, espante-se (!) em que exclui cabo-verdianos e europeus. Longe devia estar a ideia da unidade!...
É claro que os estatutos não passaram apesar da simpatia que o Governador Mello e Alvim, um homem de ideias liberais, tinha por ele. Mais: Mello e Alvim tê-lo-ia repreendido e dado conselhos de que Cabral mais tarde agradeceria e dos quais nunca mais se esqueceria.

Cabral deixa a Guiné em 1955, evacuado com paludismo e não expulso como se tenta fazer passar, di-lo e prova-o Daniel dos Santos. Durante o tempo que esteve na Guiné teve oportunidade de assistir a espancamentos, torturas, maus tratos de indefesos «indígenas». Numa palavra: De viver e testemunhar a violência do colonialismo. É a fase de revoltado, segundo Daniel dos Santos, que a explica com pormenores.

Até 1959, esclarece-nos Daniel dos Santos, «a folha de Amílcar Cabral na PIDE estava completamente limpa».

Da Guiné salta para Angola para onde fora trabalhar num projecto ligado ao mapeamento de solos. Ali ele tem contactos com activistas e nacionalistas angolanos, mais politizados (numa fase mais madura) e mais bem preparados. Toma consciência da luta que é necessário travar, merecendo de acordo com a entrevista concedida por Tomás Medeiros a Daniel dos Santos o seguinte comentário (cito): [AC] «só começa a falar de independência quando foi a Angola trabalhar em Cassiquel. E Mário de Andrade fez-lhe ver que a «vida não é só solo, é mais qualquer coisa.» E acrescenta Tomás Medeiros: «perdeu as ilusões do solo e passou a perceber que o problema estava na organização e no combate.»

Isto, e explicações mais acabadas que encontramos ao longo do livro desfazem o mito, engendrado e alimentado no seio do PAIGC de que AC esteve na fundação do MPLA. AC nada tem a ver com a criação do MPLA. Ele, AC, politizou-se em Angola, com angolanos e não o inverso como o demonstra Daniel dos Santos. É o período em que o classifica de nacionalista.

Quando se dá a revolta dos estivadores do cais de Pidgiguiti em 1959, Cabral estava em Angola, de regresso para Portugal tendo tomado conhecimento da ocorrência pelos jornais. Visita a Guiné passado um mês, em Setembro, não lhe faltando informações sobre os acontecimentos, uma vez que o seu amigo Aristides Pereira por onde passavam as mais secretas e confidenciais informações era, sempre de acordo com Daniel dos Santos, o homem de confiança do Governador e do Inspector da PIDE.

Pidgiguiti é mais uma das falácias do PAIGC que durante anos o reivindicou como obra sua, sem nada, absolutamente nada ter a ver com ele. Até porque, como se verá ao longo da obra, PAIGC nem sequer existia.

Em Janeiro de 1960, Cabral viaja para Tunes integrado no MAC (Movimento Anticolonial) fundado em 1957 por um grupo de militantes de luta anticolonial – o 1º compromisso político de AC – para assistir ao II Congresso Pan-africano realizado para os movimentos africanos organizados. Não foram admitidos uma vez que o MAC era uma organização de cidadãos de várias colónias – Viriato da Cruz e Lúcio Lara de Angola, Amílcar Cabral da Guiné, Hugo de Menezes de S. Tomé – e não uma associação de organizações nacionais, como se exigia. Foram obrigados por esse motivo a “inventar” o MPLA e o PAI para poderem participar, aliás indo ao encontro dos desejos e das recomendações de Viriato da Cruz. Ao contrário, Holden Roberto era integrado e já conhecido através da UPA, uma organização nacional angolana que ele presidia. Daniel dos Santos fala então da transformação do MAC para FRAIN (Frente Revolucionária Africana Para Independência Nacional das Colónias Portuguesas) depois para CONCP (Conferência das Organização Nacionalistas das Colónias Portuguesas) e explica com pormenores como foram “criados” e não “fundados” os dois partidos – MPLA e PAI.

Quanto ao PAI ele descreve com toda a minúcia a fabricação da data de 19 de Setembro de 1956 como data da fundação do PAIGC. Apenas para levantar o véu e não tirar-vos o prazer da leitura, direi que, dos chamados fundadores – nomes que variam conforme a fonte – não há duas declarações coincidentes. Apenas dois exemplos de dois alegados fundadores: Aristides Pereira disse que Cabral achou, no acto da fundação, que não era preciso assinar nenhum papel de compromisso. O seu cunhado Fernando Fortes, ao contrário, não só disse que assinou um documento, como também disse que falou com Cabral sobre a sua militância no MLG. Acontece, porém, que em 1956, pretensa data da fundação do PAI, o MLG não existia. O MLG só foi fundado em 1958. Como podia ser?

Depois da Conferência de Tunes – um marco importantíssimo não só na vida de Cabral como na luta das colónias – em que ele assinara com o pseudónimo de Abel Djassi, um compromisso, não havia mais condições de Cabral regressar a Portugal onde tinha deixado a família e teve que abandonar a clandestinidade e lançar-se na luta.

Chegou a Conacry em Maio de 1960. Já existiam no terreno muitos partidos (MLG, MLGC e UPGB entre outros) pelo que teve de lutar duramente – nem sempre com elegância e elevação (troca de panfletos e de insultos, conspirações, intrigas) com os partidos concorrentes – para que o seu PAI, que acabara de sair de Tunes – sem expressão, sem quadros e sem estruturas – fosse reconhecido como única força representando Guiné e Cabo Verde.

Em 1963, o PAI já PAIGC dá o seu primeiro tiro. É o início da Luta Armada. E os problemas no seio do PAIGC ganham outra natureza. É a fase de Cabral revolucionário. Tinha sido nomeado Secretário-Geral do PAIGC fora do quadro estatutário por uma Conferência de Quadros em Dakar. A partir daí alterou os estatutos como quis, sem nunca convocar um único congresso e foi-se assenhoreando do Partido.

Em 1964, com a “Conferência de Quadros de Cassacá” mais tarde tornado Congresso, do qual se saíra muito bem, mas deixando atrás “um rasto de um número indeterminado de condenações e fuzilamentos de combatentes e de militantes”.

Reforçou os seus poderes e assumiu-se como senhor absoluto do PAIGC. Passou, desde então, a coleccionar inimigos e adversários internos, todos movidos por um único interesse: o de o eliminar.

E à medida que a luta se ia desenvolvendo mais poderes chamava a si. Tornou-se, diz-no-lo Daniel dos Santos, primeiro, uma espécie de semi-deus em que, cito Maurice Duverger citado pelo autor: “toda palavra que sai da sua boca constitui a verdade; toda a vontade que dele emana é a lei do partido”, e depois em próprio deus que decidia da vida e morte dos militantes e em que até os casamentos careceriam da sua autorização.

Diz um documento do PAIGC, reproduzido no livro, que ele estava acima do Partido e podia por este facto aprovar ou reprovar qualquer decisão tomada por qualquer órgão do Partido inclusive da sua própria Comissão Permanente. Passava a todos, sem excepção, uma certidão de incapacidade e de incompetência.

De tudo isto e do que adiante virá nos dá conta o livro.

Ao mesmo tempo que crescia o seu autoritarismo, o seu absolutismo alegadamente iluminado, engrossavam as fileiras internas dos que o queriam eliminar. Bastas vezes foi posta em causa a sua liderança inclusive pelo seu próprio irmão Luis Cabral, como poderão ver na obra.

Apresento uma lista dos atentados, conspirações, intrigas, intentonas mais importantes de entre os que Daniel dos Santos elenca no seu livro:

• Revolta de Boé (Junho de 1967); - todos fuzilados. As causas residem, alegadamente, na protecção que AC dava aos cabo-verdianos. Nino estaria envolvido mas recusou-se a comparecer ao julgamento para que foi convocado.
• Novembro de 1967, um atentado perto de Ziguinchor
• Em Dezembro de 1967 são os mandingas que se manifestam devido ao número de baixas que sofriam…
• Em Janeiro de 1969 um grupo de balantas em Boé recusa-se a combater exigindo a presença de Cabral.
• Um outro movimento de revolta surge chefiado por Mário Gomes, Braima Sissé e Sena Camará.
• A 3 de Maio de 1968, 150 mandingas chefiados Injai Bá da região de Oio traçaram um plano de deserção para o exército português. A deserção era punida com fuzilamento.
• A 30 de Dezembro de 1968, os mandingas e os manjacos juntam-se e criam a Junta Militar dos Patriotas da Guiné-Bissau com vista a transformar o PAIGC em PAIG. Propunha-se eliminar AC e os seus homens de confiança que, para eles, só vivem roubando o partido. A Junta era dirigida por Mamadu N’Daie, Mamandim Iafa e Bobo Keita, todos Comandantes supremos.
• Em Fevereiro de 1969 atentado contra Osvaldo Vieira desta vez, (supostamente) à ordem de AC que estava convencido de que Osvaldo Vieira e Lourenço Gomes pretendiam derrubá-lo da Chefia do PAIGC.
• A 31 de Março de 1969 um militante de nome Jonjon é surpreendido pelo próprio AC no seu Gabinete com uma granada no bolso para o eliminar como mais tarde confessaria. Foi fuzilado com os seus cúmplices.
• Em Outubro de 1969, Malam Sanhá, Seco Baio e outros guineenses reuniram-se em Simbeli com o propósito de urdir um atentado para eliminar AC quando este para lá se deslocasse;
• Um outro plano para eliminar AC é conhecido em 1969;
• Em 1972, um ano antes da morte de AC também um conluio (Cabi de etnia balanta e Caetano). Tratava-se de uma cilada que consistia em minar a estrada por onde AC iria passar.
• Carta do Nino Vieira a Rafael Barbosa que foi interceptada e os seus efeitos: Conselho de Guerra para Nino demitido de todas as suas funções e 40 militantes presos para averiguações.

Perante esta enumeração (elencagem), que peca por defeito, hoje, podia-se perfeitamente ter pedido emprestado a G. Garcia Marquez o título de um dos seus mais famosos livros: “Crónica de Uma Morte Anunciada”, morte esta que viria a acontecer a 20 de Janeiro de 1973.

O que intriga, e Daniel é absolutamente claro quando o insinua, é que perante os factos e o historial, ainda permaneça em certas pessoas a fixação de que os autores morais do bárbaro assassínio tenham sido apenas a PIDE e o Gen. Spínola quando não faltavam agentes e motivos internos. Ou é comodismo, preguiça de pensar ou é ignorância sobre o que se passava no interior do PAIGC, o que seria natural dada a situação de guerra e natureza estalinista do Partido. Ou então seria mais uma fabricação do real como veremos adiante.

Para chegar ao assassínio de Cabral, Daniel percorre a luta e o Partido de lés-a-lés: a sua génese, o seu desenvolvimento, os seus sucessos, os seus fracassos, as suas estratégias e tácticas, as suas falácias, os seus momentos de elevação mas também de indignidade.

Nada, absolutamente nada, escapa ao olhar de lince, perspicaz, cuidadoso e abrangente do político e politólogo, olhar este que se projecta para além da vida do criador do PAI.

Desde a maneira autocrática, despótica e absolutista como Cabral conduziu o seu Partido, até à criação de um poderoso e bem organizado exército passando pelas intrigas, conspirações, choques, oposições de que atrás falámos.

Daniel dos Santos confronta ainda, com subtileza, a presença de cabo-verdianos na luta armada, segundo ele, de 30 a 40, com a dos cubanos que chega a atingir os 500 no ano de 1967, bem como os mortos em combate – 2 da parte dos cabo-verdianos e 17 da parte dos cubanos.

(A srª Ministra das Finanças que se cuide!…Se os cubanos reivindicarem também terem lutado na Guiné por Cabo Verde não haverá erário que aguente…).

Daniel faz também uma oportuna e bem articulada incursão pela História comum de Cabo Verde e Guiné abordando a questão da “fraternidade” entre os dois povos deixando ao leitor a incumbência de concluir que, se os dois povos são irmãos, então são os bíblicos Caim e Abel – os irmãos desavindos, uma vez que se trata de uma relação histórica, como ele próprio observa, entre “dominador e dominado”. Daí se poder inferir que a dogmatização da unidade Guiné - Cabo Verde, maquinada e sustentada por Amílcar Cabral ou é um desafio à História que foi sempre adversa a essa solução ou não passou de um instrumento habilmente urdido para a consecução da luta para a independência da Guiné-Bissau.

A questão identitária não foi também esquecida. Sem entrar em grandes pormenores, direi que Daniel dos Santos assume uma posição que considero salomónica, de equilíbrio: Não temos que nos re-africanizarmos nem de nos re-europizarmos. Somos cabo-verdianos, fruto do encontro dos dois continentes e respectivas culturas.

Lembrando o grande poeta, ensaísta e jurista Gabriel Mariano: Não temos que procurar as raízes, “nós somos as nossas raízes!

Retomando o conteúdo da obra é importante salientar que o livro de Daniel dos Santos é construído como se de um puzzle se tratasse. Um puzzle cujas peças se encaixam de múltiplas maneiras. Tantas, quantas as conclusões a que cada leitor poderá chegar. Um puzzle em que cada peça que se coloca é um mito que se desfaz na nodulosa edificação construída no aconchego de um conceito marxista-leninista de ideologia que Daniel dos Santos tão arguta e inteligentemente repescou de Mário de Andrade e que consiste na “fabricação do real para fazer passar uma verdade” que se deseja ou que convém. É isto, diz-nos Daniel dos Santos, cito: “que serve para explicar, por completo, a apropriação, umas vezes, a falsificação, noutras, de muitos acontecimentos que marcaram a evolução de alguns processos políticos nas antigas colónias portuguesas." (fim de citação).

É neste quadro que situaremos a falácia da data de criação do PAIGC; a apropriação da greve dos estivadores de Pidgiguiti; a mentira do controlo dos dois terços do território; o embuste do recenseamento da população da chamada zona libertada; a apropriação da autoria da queda do helicóptero onde viajavam deputados portugueses quando a causa tinha sido unicamente meteorológica; a teatralização (publicidade enganosa) da audiência pública do Papa Paulo VI tornada privada; a exultação em Conacry dos irmãos Cabral pelo bárbaro assassínio dos três majores portugueses; a proclamação da independência da Guiné-Bissau pretensamente (há fortes dúvidas do local) em Boé; e a alegada legitimidade histórica transferida para Cabo Verde por um grupo de cabo-verdianos que lutaram para a independência da Guiné-Bissau entre muitos outros assuntos cirurgicamente inseridos.

Daniel dos Santos é lógico, sem ser silogístico no sentido aristotélico do termo. No geral evitou conclusões. Diria que é socrático quanto à metodologia de exposição; mais propriamente maiêutico pois fornece dados e convida o leitor a tirar as suas próprias ilações. Daí que as minhas não são unívocas. Um outro leitor aportará seguramente a outras inferências. Contudo há sempre algumas que se consideram (ou parecem ser) consensuais, não unânimes. E são a estas, sem quaisquer pretensões de estar certo, que me vou rapidamente referir:

> Amílcar Cabral viveu apenas 10 anos em Cabo Verde – dos 11 aos 21 – anos que, como é lógico, poderiam ter (e terão) sido de algum enriquecimento intelectual e social mas dadas as limitações e as circunstâncias que se viviam é de pouco ou nula relevância social – apenas um ou outro exercício literário. É esta a fase que Daniel classifica de conformismo;

> Surge [AC] em Cabo Verde, para o povo cabo-verdiano, (não para a elite informada) trazido pelo “25 d’Abril” e pelas mãos de um punhado de homens e mulheres que tinha todo o interesse em endeusá-lo e mitificá-lo para se legitimar como herdeiros do seu alegado “extraordinário” legado histórico colocando-o directa, mas sobretudo convenientemente, no “Panteão” por uma unanimidade imposta e sem um debate sério sobre ele, que promovesse, no mínimo, um consenso; (estatisticamente, a unanimidade é quase sempre uma imposição enquanto o consenso é uma construção).

> Consenso de que ele não gozava como líder – é bom que se diga – entre os dirigentes guineenses como a obra de Daniel dos Santos revela; e do qual, pelos vistos, só se redimiu com a morte, que o resgatou. Basta ver a quantidade de responsáveis guineenses implicados no seu assassínio.

> Que a luta desenvolvida na Guiné-Bissau, utilizando as justificações e os discursos de Cabral, tinha muito mais um cunho, um cariz, anticolonialista, de mera luta pelo poder, do que nacionalista – defesa de um ideal, de valores.
> Amílcar Cabral não teria lugar no Cabo Verde de hoje. A concepção monolítica que ele tinha de poder, da sociedade e da política são absolutamente incompatíveis com a democracia (sem adjectivos), com os valores e as actuais aspirações do povo cabo-verdiano;

• O livro de Daniel dos Santos reclama de nós uma profunda reflexão sobre a verdadeira contribuição desse homem – Amílcar Cabral – no processo político cabo-verdiano;

• É também um convite a um debate sério sobre o mérito ou demérito do seu lugar no “Panteão” e sobre a “fundação” de uma nação que há mais de 450 anos existe e que como tal, como nação, fez a 1ª reivindicação dos seus direitos cívicos em meados do seculo XVI no longínquo reinado de D. João III.

• É (o livro) um desafio à mitificação, ao culto da personalidade, idiossincrático dos regimes totalitários e ditatoriais de que guardamos evidentes resquícios e produzimos primárias e grotescas manifestações;

• É ainda (o livro) um forte apelo a uma discussão urgente, há mais de 40 anos adiada. Não apenas das teorias ou do pensamento de Cabral mas do seu efectivo papel na independência do País.

Parabéns, pois, a Daniel dos Santos pela ousadia de “UM OUTRO OLHAR” sobre Amílcar Cabral, um olhar que desacomoda, um olhar através deste importante, interessante e, desde já, incontornável documento para o conhecimento da História de Cabo Verde. Uma contribuição que acaba de preencher uma boa parte de uma grande lacuna que teimosamente se tem conservado e que nem o advento da liberdade e da democracia, onde não há temas tabus, nem personalidades ou figuras inquestionáveis, conseguiu colmatar.

É este o livro de Daniel Santos que tenho o privilégio e a honra, e também o prazer, de vos apresentar – uma tarefa difícil dada a sua extensão (quase 600 páginas) e densidade – cuja leitura, a todos, recomendo vivamente.

O João e o seu violão - A saudade...

sábado, 12 de julho de 2014


Conheci o meu cunhado João - de seu nome completo: João de Deus Maximiano - nos anos 60, do séc. XX, quando ele chegou aos Mosteiros, na ilha do Fogo, e aí fora colocado como Chefe do Posto Administrativo. Ele era funcionário da então Administração Civil.
João entrou para a família em 1965, quando se casou com a minha mana mais velha, Maria Tereza. A partir daí foi mais um irmão que adquirimos. Isto faz unanimidade ente nós irmãos, e seus cunhados.
Mas antes de continuar, gostaria de recordar, a propósito do João, de uma exclamação feita com graça, por uma tia nossa, nos Mosteiros, quando desembarcou o então jovem Chefe de Posto da região. Ela, a tia, virando-se para o marido (irmão do meu pai) disse: “Que interessante! Uma coisa estranha, Armando! Este novo Chefe de Posto desembarcou com o seu violão!”
Mais tarde, esta “estranheza” da tia ganharia para mim, uma dupla significação, a um tempo real e simbólica.
Explico-me melhor: de facto, era assim o João, uma pessoa simples e discreta no seu estar. Muito cordata no trato social. Era também alguém desprendido, em termos de bens materiais.

Para além do mais, o João era de uma seriedade à toda prova, naquilo que respeitasse ao seu trabalho, à função, ou cargos que ele desempenhou ao longo da vida, com altas promoções por mérito do seu empenhado labor. Entre outros cargos, destacarei os de Administrador do Concelho e presidente da Câmara da ilha do Sal, na década de 60 do século passado. Mais tarde, nos anos 80, o de Secretário – Geral do Governo e o de Secretário de Estado da Administração Pública, já com Cabo Verde independente. Uma vida feita e dedicada ao trabalho!
O que me admirava também no meu cunhado era a sua arguta inteligência. Sempre bem preparado para escutar, discutir, analisar e opinar com o seu bom senso, assuntos de natureza vária. Um homem que se cultivava através da boa leitura. Aliás, os presentes por ocasiões especiais e que trocávamos entre nós - eram regra geral, livros.
Outrossim, havia nele, fazia parte da sua maneira de ser, um permanente desejo que demonstrava em encontrar a conciliação, o ponto de equilíbrio, quando o assunto assim pedia ou, porque se apresentava de difícil solução, ou de delicada negociação. Ele era um conciliador nato!

Mas hoje queria aqui recordar a sua faceta de homem amante da música.
O João e o seu violão. Uma imagem de marca para nós, a família. Ele tocava violão e não o dispensava quando estava em família, nos nossos convívios, nas nossas celebrações, entre amigos. Não sei se isso seria um traço dos rapazes de S. Nicolau da geração dele e da nossa sociabilidade, pois que quase todos tocavam ou tocam violão. Daí que diria, ou seja tentada a dizer, que os homens dessa ilha cultivavam esse instrumento musical.
O meu cunhado, como já o disse aqui e volto a reiterar, era aficionado tocador de violão. Creio que desde muito novo. Ele era um dos tocadores indispensáveis nas festas familiares, nas nossas tocatinas. O João que com mais amigos e familiares músicos, se juntavam para, não só executarem instrumentalmente, mornas, canções brasileiras, fados, e outro tipo de melodias, como também, para acompanharem os cantores e as cantoras ou melhor, as cantadeiras de ocasião, em que me incluía.
De modo que foram muitos anos, a cantar, acompanhada ao violão pelo João e demais amigos, qualquer deles, grandes violões.
Claro, que me custa ainda falar e recordar tudo isto. Um ano se passou que ele já não se encontra entre nós! É que a morte fez calar também os acordes que ele tirava do seu violão, com que muitas vezes, nos brindava quando íamos à casa dele, ou ele à nossa...
Ficam as boas memórias que do nosso João conservamos! A partida dele deixou uma grande saudade em toda a família! Uma ausência que não se colmata. Alguém que recordaremos sempre com um grande afecto!


Aprendendo sempre...E todos os dias!

terça-feira, 8 de julho de 2014



Aqui há dias assisti na Biblioteca Nacional da nossa capital, um Fórum sobre a “Morna na sociedade cabo-verdiana” (uma achega à sua candidatura a património imaterial da Humanidade). Devo informar que o Fórum foi organizado pelo Orfeão da Praia. Trata-se de uma Instituição privada que tem feito um trabalho deveras interessante sobre a nossa música, ênfase para a morna, através de espectáculos e de eventos musicais pelas ilhas e fora do país, sob a batuta do Maestro e musicólogo, Eutrópio Lima da Cruz.
Desafiada pelo convite da minha querida amiga e colega Maria Cândida Gonçalves, infatigável, diligente e entusiástico elemento do Orfeão da Praia, lá fui. Fui e confesso: gostei. Gostei do que escutei dos conferencistas da mesa e gostei igualmente de algumas intervenções havidas e saídas da plateia, que foram acrescentos, mais-valias, ao tema em debate. Dessas intervenções, o «Coral Vermelho» já registou uma, por amabilidade do seu autor, Carlos Filipe Gonçalves.

Ora bem, daquilo que escutei dos oradores da mesa e dos músicos que da plateia assistiam e participavam no fórum, alguns temas prenderam a minha atenção, que aqui vou abordar sem quais quer preâmbulos:

1-O meio-tom da estrutura básica da morna: Sobre o tal “meio-tom” no compasso da morna, cuja existência se vem atribuindo ao longo do tempo, ao genial B. Léza, esclareceu-nos Henrique Oliveira, o nosso Djick, que não há autoria para tal. Isto é, o chamado meio-tom da morna, ou tom de passagem, é uma exigência do próprio ouvido humano. Logo, não se trata de descoberta alguma de qualquer compositor. E exemplificou: já muito antes, na Brava, as mornas de Eugénio Tavares, na dupla, letra do poeta e música de José Medina, esse compasso já lá estava. Mais acrescentou Henrique Oliveira, Djick, que a distinção de B. Léza, neste particular, é que ele praticou com a mestria que se lhe conhece, usando e, por vezes; “abusando” com frequência e excelência do meio-tom, cujo exemplo máximo é a morna «Talvez». Lindíssima, mas também de difícil interpretação vocalizada, exactamente, por causa dos muitos “meios-tons” que a melodia comporta.

2-O desaparecimento da coreografia O desaparecimento da coreografia que acompanhava a morna dançada, no “antigamente da vida” que hoje já não se vê nos bailes que, aliás, Carlos Filipe Gonçalves, no texto aqui publicado, tão bem explicou. No entanto, sempre acrescentarei das minhas memórias da juventude que, quando num baile se tocava a morna, esta, era a dança reservada aos “crectcheus.“ Isto é, o par masculino, ía logo à procura da sua dama querida, noiva ou namorada, ou ainda, pretendida. Para a «pôr ao peito». Porque a dança da morna supõe alguma intimidade, algum deleite poético, acrescentado pela proximidade dos corpos do par. Pois é, parece que actualmente já não vigora nas festas. Aliás, questiono se ainda se dançará a morna(?) entre nós…

E a propósito do modo de dançar da morna, o Djick, contou-me uma historieta muito engraçada que se terá passado na ilha Brava e que ele presenciou.
Regressado em férias, à ilha natal, vindo de S. Vicente, onde estudava, foi levado por um tio a uma festa em Nova Sintra. Entrados na sala do baile, no momento em que se tocava uma morna (um conjunto de violino, viola braguesa, violão, e cavaquinho - era música ao vivo - notaram ambos, um par jovem, estudantes, igualmente regressados de Mindelo que ocupavam um largo espaço da sala, fazendo ele e ela, uma estranha coreografia ao dançar a morna. Um misto de “rock and roll” e de foxstrot” como que para mostrarem aos locais, que eles sim, eles sabiam outras danças aprendidas em S. Vicente, a ilha mais “adiantada” e cosmopolita, com cinema, vapores na baía, estrangeiros em terra e tudo que a Brava não possuía…
Passados uns segundos, o Djick, vê o tio zangado, a dirigir-se ao par. Tomou a dama, “pô-la ao peito” e mostrou ao jovem, falando e exemplificando numa lição de passos, como se devia realmente dançar a morna. A lição de dança foi dada em crioulo: “um pé diante, um pé trás, trá pé, pô pé, pára pé, deixa’l fica la mé” e assim por diante… numa tentativa de impor algum respeito pela coreografia da dança da morna ao dito par, que acabou por acatar o saber do mais velho.
3 – As três toadas: Outra questão trazida aos participantes do Fórum foi as três toadas distintas da morna e já aceites pelos músicos nacionais. A saber: a toada da Boa Vista, a toada da Brava e a toada de S. Vicente.
O músico Eutrópio Lima da Cruz, que na minha modesta e quase ignorante opinião (apenas canto em casa, claro! mornas antigas) tem vindo num refinamento e numa sofisticação, percebe-se isso no canto do orfeão da Praia, a aproximar as mornas que executam a um tom de música considerada clássica. Explicou ele que a morna sofreu uma evolução notável. Terá feito uma espécie de “caminhada” musical, vindo de melopeia ou de melopeias, passando por várias fases e atingindo a fase de melodia dita clássica, tal como nós hoje, a conhecemos.

3-S. Vicente e os seus músicos: Humberto Bettencourt Santos, o nosso Humbertona, conhecido e apreciado violão, trouxe a questão da música desenvolvida em S. Vicente, destacando os grandes músicos de um tempo passado e falando sobre a influência da música brasileira na época (anos 40 e 50 do séc. XX) em Mindelo. Claro, que as referências ao incontornável B. Léza, não faltaram.
Sobre o caso particular do músico, Luiz Rendall, afirmou Humberto Santos que se ele é conhecido e se tornou mestre no violão, foi por causa dos seus célebres “choros” de violão muito ao compasso e numa linha de interpretação, ao estilo do “choro” brasileiro. Claro, com a adequação, a adaptação e a já originalidade, do grande violão que foi Luiz Rendall.

4 – Unanimidade: A unanimidade das intervenções recaiu na questão do grande “trabalho de casa” que terá de ser feito em Cabo Verde, para que a morna atinja o tão almejado reconhecimento. Todos, ou quase todos os intervenientes, lamentaram que as nossas rádios e televisões, passem ou transmitam muito pouco, a morna! Que a nova geração não tenha sido educada musicalmente no gosto pela morna! Quase que a não ouvem em solo nacional!
Enfim, foram apresentadas muitas e boas achegas à causa da morna para a sua candidatura a património imaterial da humanidade.