OS CEM DIAS (EM ESTADO) DE GRAÇA

segunda-feira, 25 de abril de 2016
Passei por uma banca de jornais e deparei-me num dos semanários da capital, estampado em grandes parangonas, com “LIVRAMENTO QUESTIONA O PERFIL DE JORGE SANTOS” sobre uma fotografia – como que a desmentir a afirmação – em que os dois se abraçavam amigavelmente e sorridentes. Esbocei um sorriso e disse para mim mesmo: Não obstante isto ser apresentado com a configuração nítida – à medida e para o regalo do PAICV – de mais uma sórdida e mesquinha intriga (mesmo que seja verdade) jornalística de que determinados media já se especializaram, este é o “MpD na sua plenitude!”. Nada de unanimidades resultantes do já “afamado” centralismo democrático, nem “pactos de silêncio” cúmplices, nem as normalmente brandidas “disciplinas partidárias”, mesmo em assuntos de consciência.
 
O MpD é um “movimento” concebido especificamente para derrubar a ditadura do PAIGC/CV e combater a ideologia que lhe está associada. Tornado partido, por imperativos legais, que o tempo materializou, não perdeu a sua característica frentista gerada na liberdade e na pluralidade de opiniões. Cada membro tem a sua posição livremente assumida que manifesta em órgãos próprios. Está no seu ADN. Não se pode duvidar da sua génese libertária e democrática. Muito mais autocrítico do que oponente, constitui sempre o primeiro núcleo da crítica à sua própria actuação. Por isto não me surpreendeu que alguém, dentro do MpD, questionasse o perfil de Jorge Santos para o desempenho de um tão alto cargo. O de Ulisses também já o foi, que ninguém duvide, e está, não direi sob suspeita, mas sob atenta vigilância até à satisfação das expectativas dos militantes e apoiantes. E dos membros do Governo? Quantos são alvos de questionamento pelo próprio MpD?

Pessoalmente, até acho, que Jorge Santos, em termos objectivos, pelo seu vasto currículo político, idoneidade moral e contínuo activismo, tem todas as condições para se candidatar e ser o que quiser ser na sociedade política cabo-verdiana. Não está nem aquém nem além dos que o precederam nestas altas funções de Presidente do centro político da democracia cabo-verdiana. Contudo, compreendo e também reconheço que não seja apenas o currículo objectivo que determina a escolha e a eleição do Presidente da Assembleia Nacional ou de quem quer que seja para um cargo político. Há que contar com outros parâmetros dos quais se destacam os interesses intra e extra-partidários que aconselhem que hajam arranjos internos, conveniências estratégicas, jogos de compensação e de circunstâncias que serão necessários não só para manter o equilíbrio e a harmonia internos do partido mas também para o preparar para os desafios que se esperam. Sobre isto, que nunca é pacífico, só quem lá dentro está …

No momento em que escrevo estas linhas, o Governo do MpD ou, mais correctamente, o Governo apoiado pelo MpD, chefiado por Ulisses Correia e Silva, inicia efectivamente as suas funções. É tradicional presenteá-lo com cem dias de estado de graça, em que se lhe concede o benefício da dúvida.

A composição do Governo é criticada por tudo o que é canto. Não apenas as pessoas, mas também a configuração. Diz-se que Ulisses não tinha qualquer necessidade de se autolimitar de forma tão rígida quanto ao número de membros do seu governo. Não é isto que ganha eleições ou que define uma governação. A palavra é de prata e o silêncio de ouro. Depende obviamente de contextos e de circunstâncias. Por isto, Ulisses Correia e Silva tem de ser mais parco nas palavras para bem gerir as expectativas… sobretudo fora do ambiente de campanha. Bastaria apenas dizer que o seu elenco governativo seria menor do que qualquer outro. Há-de convir que foi uma retórica inútil, imprudente e algo masoquista.

Por mim não me atrevo a pronunciar sobre a polémica existente quanto ao formato e à ligação entre certas áreas. Seria seguramente pretensão a mais, uma vez que me faltaria o conhecimento da estratégia que lhe está subjacente e que é determinante para qualquer juízo valorativo.

Porém, aparentemente, ao contrário dos seus antecessores “eleitos” – Carlos Veiga e José Maria Neves – nota-se que lhe falta um núcleo duro de protecção e de amparo para os primeiros embates. Aguardemos pelos resultados.

Dizem os “treinadores de bancada” que Ulisses devia rodear-se de “ministros de Estado” fortes politicamente, que o amparassem e dissipassem parte da carga que sobre ele impende. Isto é, dois ou, eventualmente, três ministros de Estado com autoridade política – um para a área social, outro para a área económico-financeira e, eventualmente, um terceiro para a área de soberania. Uma espécie de um conselho de administração de uma empresa que seria o Governo em que ele seria o presidente – primus inter pares. Tudo leva a crer que a governação seria mais partilhada, os efeitos de contestação/reacção (há-os sempre) amortecidos e o PM resguardado. Como gestor e político, sabe isto tão bem como ninguém.

Tivesse havido a descentralização constante do Manifesto do MpD que só o Ministério das Infra-estruturas (1991-1996) então realizou, o número de ministérios hoje avançado por Ulisses não chocaria a ninguém.

De todo o modo, e da minha parte, continuo a conceder um tempinho de graça ao novo Governo com a firme certeza de que pior do que o anterior não é possível. Um tempo que não pode ser igual para todos, diga-se em abono da verdade. É óbvio que o que se pretende ver não é a resolução imediata dos problemas, mas a estratégia, a orientação, as medidas de política e o modus operandi.

Ao Ministro da Economia, por razões inerentes à dimensão do seu ministério e à integração do ministro é o que deve usufruir de maior tolerância. Ao Ministro da Administração Interna, por desejo meu, creio que também de toda a população, dava-lhe 24 horas dada a situação calamitosa e desastrosa em que se encontra a nossa segurança pública. Mas ficaria extremamente satisfeito se nos 100 dias do período do estado de graça desse indicações seguras e tranquilizadoras de que esta total incapacidade, ineficácia e ineficiência – excepto na caça de multas de estacionamento, entre os meus amigos e conhecidos, e são muitos já vítimas, não tenho notícias de um só caso de furto, roubo ou assalto resolvido – da nossa polícia e o desfile provocador, descarado, impune e até “protegido” dos meliantes (que até já tiveram a honra de serem recebidos – imagine-se! – por um Governo) iriam ter um fim.

Do lado oposto, estão as Ministras da Educação e das Infra-estruturas – técnicas de inquestionável competência nas áreas que ora tutelam, conhecedoras profundas das respectivas “casas” e dos respectivos sectores, quer na vertente pública quer na privada, ao que se deve associar, sobretudo à Ministra das Infra-estruturas – que melhor conheço – uma inexcedível capacidade de trabalho, bastarão 60 dias.

Sessenta dias apenas e uma lembrança para ter sempre presente: Um ministro não é um técnico, é um político!

A.   Ferreira

O Dia do Professor Cabo-verdiano

domingo, 24 de abril de 2016

 
Creio que se comemorou este ano, o Dia do Professor Cabo-verdiano, 23 de Abril, na maior discrição. Eu pelo menos, não dei por nada. Bem, se calhar, se eventos houve, aconteceram no interior das escolas. E se assim foi ainda bem!

Esta efeméride, para além de todo o simbolismo nela contido, é sempre um convite à reflexão. Uma reflexão sobre o perfil e o papel do professor aqui em Cabo Verde.

Sim, que papel ou papéis lhe estão e lhe estarão destinados nesta nossa tão desregulada sociedade? Apenas o de debitar a matéria como manda o programa da disciplina que tem em mãos?  De cumprir a totalidade dos itens semestrais, e/ou anuais? Sim, e não só, mas também o de deixar a sua marca de  mestre.

É isso mesmo que escrevi: a sua marca de mestre. De educador, de pedagogo, de Homem de cultura. Será pedir de mais? Voltamos ao antigamente da vida? Hão-de me perguntar. Na verdade era o que me apetecia. Sobretudo nesta altura em que sou apanhada por uma espécie de nostalgia bem negativista, dado o estado do nosso ensino, e o perfil de saída secundária e universitária dos alunos.  Excepções à parte. Mas o geral, deixa muito a desejar.

 Se pensarmos  no perfil de entrada dos alunos, a maioria provinda de família disfuncional e monoparental, com etapas queimadas em termos de socialização educadora básica, ausência gritante de muita informação que se obtém em seio familiar nuclear, a questão que se põe também ao  professor, à escola, será o como formar este perfil infanto/juvenil assim descrito e recorte maior na sociedade cabo-verdiana?

Mas na verdade a ideia de mestre surgiu-me por uma série de associações de ideias. Permitam-me a repetição.

Uma delas tem a ver com o passamento recente do professor António Saint’Aubyn, natural da ilha de S. Nicolau e catedrático das ciências matemáticas, da Universidade de Coimbra. Que terá deixado certamente, a sua marca de mestre. Lá voltamos nós.

Através dele, recuei até 2007, ano em que se comemorou merecidamente o centenário do nascimento de Baltazar Lopes da Silva, o patrono do Dia do Professor cabo-verdiano,. Recordemos que o nosso autor consagrado Baltazar Lopes da Silva, nasceu a 23 de Abril de 1907.

 Lembro-me dos vários eventos organizados pelo então Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Brava , Amílcar Spencer Lopes e a sua equipa. Foram momentos de altíssima qualidade. Com diversas intervenções  bem sucedidas, sobre o professor, o escritor, o poeta, o filólogo e o humanista, Baltazar Lopes da Silva. Intervieram entre outros,  Alberto de Carvalho, conhecido biógrafo de B.L.S. Leão Lopes, autor do livro, «Baltazar Lopes – um homem arquipélago, na linha de todas as batalhas».

Pois bem, coube precisamente ao antigo aluno de B. Lopes da Silva, António Saint’Aubyn, falar do perfil do seu saudoso professor.

E o Professor Saint’Aubyn fê-lo de uma forma em que combinou harmoniosamente a simplicidade e a magistralidade, numa oratória cativante.

É nessa linha de professor/pedagogo para o ensino básico, liceal e mais, educador no melhor sentido da palavra que a escola cabo-verdiana ainda necessita, pois infelizmente a pertença a um lar estruturador e estruturado para a formação da criança é  infelizmente, excepção nestas ilhas nos dias que correm.

Era apenas isso que me ocorreu recordar, no dia do Professor cabo-verdiano.

 

 

Capitão Ambrósio e Nhô Ambrose – o Mito e a Realidade

sábado, 16 de abril de 2016
Ao ler, por mero acaso, uma declaração de uma conceituada personalidade da cultura cabo-verdiana, onde apontava como seu herói de infância o “capitão Ambrósio” (sic), fiquei perplexo e algo desapontado com a pessoa pela expressão utilizada. Trata-se de alguém que domina muitíssimo bem o verbo e de quem não esperava uma tão flagrante e inoportuna imprecisão. É que “capitão Ambrósio” é uma genial criação de Gabriel Mariano de 1956, altura em que ele – autor da declaração – já não era propriamente um adolescente e muito menos criança. Estaria a referir-se a Nhô Ambrose personagem que protagonizou a manifestação de 1934 e que acabaria por ser deportado para Angola? Fiquei curioso com o jogo de datas, porque sempre pensei que Ambrósio teria falecido antes de 1940.

E daí, perguntei a minha cara-metade – no meu caso específico acho mais assertiva a expressão inglesa better-half – se sabia em que datas teria regressado a Cabo Verde e falecido o Ambrósio, o nhô Ambrose, que tinha servido de referência a Gabriel Mariano para o magnífico poema “Capitão Ambrósio”, ao que ela me respondeu que não fazia a mínima ideia, enquanto me recomendava a consulta a Michel Laban. Disse-lhe, prontamente, que tanto quanto me lembrava – li-o há mais de 20 anos – não me parecia que Michel Laban pudesse responder à pergunta que lhe havia feito. Contudo, eu não tinha nada a perder em revisitar Michel Laban e o seu “CABO VERDE – Encontro com escritores”, uma edição em 2 + 1 volumes da Fundação Eng. António de Almeida.

Estava absolutamente convencido que a separação entre o mito e a realidade, entre “Capitão Ambrósio” e “Nhô Ambrose”, estava já perfeitamente esclarecida. Mas, também estava (ou ainda estou) igualmente convencido de que eram (ou são) necessárias atitudes pedagógicas no tratamento do assunto para não induzir os mais incautos, os menos informados, a uma ambiguidade que poderia (ou poderá) suscitar uma certa confusão entre a História e a ficção. Tanto mais que alguns, para se evidenciarem, até recorrem a “factos”, obviamente, urdidos – não será seguramente do caso em apreço – muito pouco honestos, na identificação e localização da personagem histórica dizendo ainda recordarem-se (imagine-se!...) do “mulato” Ambrósio.

Ao recorrer a Michel Laban e ao seu interessante “CABO VERDE – Encontro com Escritores” deparei-me com dois “encontros” – precisamente o primeiro e o último do seu I volume – onde o autor entrevista Baltasar Lopes e Gabriel Mariano, dois importantes protagonistas da saga do Mestre Ambrósio. Julgo pertinente transcrever no que ao assunto diz respeito, a posição clarificadora destas duas personalidades:

A esse propósito, disse Gabriel Mariano (G.M.) na entrevista concedida a Michel Laban (P.) em 1984 e transcrita no livro deste último (I volume págs. 296 a 378) a dado passo, o seguinte (pág. 352 a 354):

P. – Volto ao problema, humano também, do «Capitão Ambrósio», de 56. Pode contar o que sabia, nessa data, sobre o capitão Ambrósio?

G.M. – Posso. Em 56, quando eu… Antes de fazer o poema não tinha nenhum conhecimento do capitão Ambrósio. Do capitão, vírgula, do Ambrósio. Porque «capitão», eu é que lhe dei o posto de «capitão». Eu soube da história dessa sublevação popular em São Vicente, ocorrida em 1934, e dirigida, ao que suponho por nhô Ambrose – Ambrósio – , já em Lisboa, como estudante. Essa sublevação surgiu em 1934, eu tinha seis anos de idade; e eu soube disso em 53, 54, já adulto. Eu soube através de conterrâneos, infelizmente já mortos: Cristóvão Santos e o Carlos Alberto Leite. Eles é que me contaram a história desse levantamento popular que houve em São Vicente. Contaram-me a história, normalmente, em conversa de café: «Aconteceu isso…» E se eu fiz o poema, posteriormente, é porque a história me impressionou muito. Na altura o que senti foi raiva e orgulho. A história impressionou-me. E, bom, a partir daí, conhecendo a história de Ambrósio, e já com uma compreensão crítica dos fenómenos sociais, económicos, coloniais, etc. já, aí, eu pude distinguir, ao fazer o poema, as coisas. Enfim, o Ambrósio aparece no poema como um líder popular que, massacrado pela fome e pelas circunstâncias, lidera, conduz o povo à rebelião contra a ordem estabelecida, e deixa uma mensagem de liberdade. E no meu poema eu não condeno o Ambrósio – um juiz condená-lo-ia, um julgador, não… aliás, ele foi condenado. Foi condenado à prisão e cumpriu a pena em Angola. Quer dizer: um juiz condená-lo-ia, mas eu não o condeno… Nem sequer o absolvo, pois seria um insulto pôr-se o problema de absolver o Ambrósio. Eu limito-me a enaltecer o papel que o Ambrósio desempenhou nesta sublevação. E eu soube, para concluir, soube da história do Ambrósio, aqui em Portugal, porque, em Caboverde, nunca ouvi falar do Ambrósio… Nem aos mais velhos, nem aos mais novos. Eu sabia que tinha havido uma barulheira qualquer (isso contava-se) em São Vicente, e não só, em anos de crise. Agora, não sabia que isto teria ou não que ver com Ambrósio, porque nunca ninguém me falou do Ambrósio. Eu fiz o poema motivado pela história dessa movimentação e dei-lhe o título de «Capitão», que ele não tinha, nunca ninguém o tratou por capitão. «Capitão», eu é que lhe dei o posto de «capitão Ambrósio».

Era alto, moreno, tipo mulato, de olhos verdes. Por isso é que eu digo no poema… «corpo mulato e verde…» Dizem que ele fazia este comentário: «O bom português é como o bom bacalhau: só vem para o Ultramar de cem em cem anos e quando calha!» Mas que ele devia ter sido um homem de uma personalidade muito forte, devia ter sido… Porque aquilo que ainda me contam hoje, as pessoas mais antigas, dessa rebelião – Ambrósio à frente, com a bandeirinha preta, e quando a tropa saiu cá para fora para os reprimir, tiros… A coragem dele… A coragem ao ser, depois, preso e interrogado lá pelo militar português que foi encarregado de fazer o inquérito… A resposta que ele deu: «O bom português é como o bom bacalhau: só vem para o Ultramar de cem em cem anos e quando calha!» Isso, ao que me contaram, dito cara a cara, à sua excelência o oficial militar português que o interrogava… Isso revela uma personalidade muito forte, muito valente, muito corajosa… Nhô Ambrose, você sabe quem é que esteve envolvido no levantamento popular? Os intelectuais do grupo “Claridade”, designadamente Baltasar Lopes. Envolvidos como força propulsora. (Fim de transcrição; o “bold” e o itálico são meus):

Vejamos agora o que diz Baltasar Lopes (B.L.) sobre a mesma personagem (págs. 29 a 33) na entrevista (págs. 11 a 55 ), esta de 1985, também conduzida por Michel Laban (P.) com os mesmos propósitos e transcrita no mesmo livro:

P. – Mestre Ambrósio?

B.L. – O Mestre Ambrósio é um mito. É uma incertidão histórica… Eu vou-lhe contar o que é: eu morava na Praça Nova e um grande amigo meu, que está hoje na América do Norte, Jonas Wahnon, quase todos os dias ia lá, e ele andava – como todos nós – preocupadíssimo com a miséria que grassava em São Vicente: fome, fome, fome… Ele vivia perto do Monte Sossego, chegava lá e dizia: « – Olha para aquilo, nem o fumo se vê a sair! Miséria, miséria…» E a certa altura, não me lembro qual de nós se lembrou que nós precisávamos fazer qualquer coisa; mas para isso precisávamos dum pretexto, e um pretexto bom… E o óptimo seria se o povo saísse à rua numa manifestação. Mas é claro, saísse e depois voltasse imediatamente porque já sabíamos que quando o povo sai excede-se… E através dessas conversas, nós decidimos pensar quem seria que em São Vicente, com bastante ascendente sobre o povo, seria capaz de provocar uma saída do povo, um levante… E lá chegámos ao Mestre Ambrósio que era um indivíduo que eu já conhecia – conheci-o acidentalmente. – O Mestre Ambrósio era um indivíduo alto, muito alto, muito branco de olhos azuis, parecia um profeta…

P. – Branco?

B.L.Muito branco mesmo, muito alto. Era um ariano autêntico… Olhos claros… salvo erro azuis –, muito claros. Então com atitudes proféticas. Lembro-me perfeitamente quando o meu amigo Velosa foi julgado por uma prepotência do juiz que cá estava – depois do julgamento foi absolvido e nós todos fomos levá-lo a casa. Encontramos já lá o Mestre Ambrósio à porta e ele saudou a chegada do grupo com a mão levantada e exclamando: «E viva a consciência pública. A verdade é alta e a mentira é funda!»

Pensamos então no Mestre Ambrósio, que seria talvez o indivíduo…

P. - Mestre, porquê?

B.L. – Ele era carpinteiro, salvo erro. Mestre de ofício. Agora não sei se fui eu ou se foi…; o grupo pretendia – não é o grupo “Claridade”, o grupo…

P. - Que grupo então?

B.L. – Este grupinho, eu, Manuel Lopes, o Velosa e o Jonas Wahnon. Nós pretendíamos pura e simplesmente um pretexto para chamar atenção do Governo e falámos então ao Mestre Ambrósio que saísse com o Povo mas que imediatamente visse se o povo recolhia para evitar distúrbios. E assim se fez, ele saiu, mas pelo sim pelo não, promovemos – neste caso, neste ponto intervém também um cidadão, o senhor Augusto Miranda, um velho advogado provisionário que estava sempre onde houvesse uma causa digna a ser defendida, lá estava ele. Morreu, coitado, desemparado em Lisboa, no Hospital do Ultramar. Nós organizamos então um grupo e fomos àquela pracinha que fica em frente da Câmara, havia lá um coreto, fizemos um comício. Eu falei, falou o senhor Miranda e dissemos então ao povo que nós estávamos a par da situação e que íamo-nos pôr em contacto com o Governo para resolver a situação do povo, arranjar trabalho, melhorar aquela situação. Pedimos então ao povo que fosse para casa serenamente, sossegadamente, ordeiramente, que nós íamos tratar do assunto. Eles dispersaram, foram para casa e nós fomos à Associação Comercial e mandámos um telegrama ao Governo em que em nome da Associação Comercial… Já tínhamos mobilizado a Associação Comercial – eu até fazia parte da Associação Comercial, entrava lá, porque o meu pai era comerciante também, ele era proprietário, mas, de quando em quando, lá fazia o seu comércio. De maneira que – a Associação Comercial era uma força viva – para poder entrar nessa força viva, a minha militância levou-me a pedir ao meu pai que se inscrevesse na Associação Comercial; ele delegou-me a mim plenos poderes para o poder representar. De maneira que eu tinha lá… era a minha casa também. E, depois do comício, fomos a Associação, expusemos o assunto, que ia a Associação, ia mandar telegrama: redigimos o telegrama, dizíamos a situação do povo, etc., etc., pedimos providências imediatas porque a situação do povo era intolerável e perigosa e que a Associação se solidarizava com o povo. Sabe qual foi a reacção do Governo? Em vez de tomar providências, agravou com um imposto “ad valorem” de 3% todas as mercadorias que o comércio de São Vicente importasse porque ele é que se tinha solidarizado com o povo nos distúrbios do dia tal! A nossa militância foi isso… O governante que cá estava era um estupor, imagine! A única coisa que ele sabia era fazer discursos e beber whisky, nisso era “imbattable”…

P. – E o Mestre Ambrósio?

B.L. – E o Mestre Ambrósio depois foi julgado…

P. – Mas incidentes, não houve? Houve essa reunião na praça da Câmara, depois dispersaram… Não houve desfile com o Mestre Ambrósio?

B.L. – Antes, isso foi antes. Mas o desfile não foi mais do que a caminhada desde os lados da Salina. Porque o grosso da população trabalhadora é da parte sul da cidade…

P. – Da aldeia da Craca?

B.L. – É um dos bairros, sim. É na vinda para a cidade, propriamente.

P. – Foi então que houve esse desfile… E essa bandeira, viu-a ou foi uma coisa imaginada?

B.L. – Não, houve bandeira, a «bandeira negra da fome»… O Mestre Ambrósio, a imagem que se tem do Mestre Ambrósio é a imagem criada pelo poema de Gabriel Mariano: o Mestre foi julgado, foi deportado para Angola e nesta altura nós resolvemos… discutimos se devíamos ou não apresentarmo-nos para seguirmos o destino do Mestre Ambrósio já que nós tínhamos, ainda que indirectamente, responsabilidade do que se tinha passado. Se não estou em erro, o Manuel Velosa é que disse: «Assim é abrir caminho para… é deixar o campo da batalha sem guerreiros. Porque se nós vamos, quem fica cá para qualquer coisa de que o povo precise?» De maneira que lá foi…

P. – Até foi dito que havia, inscrita na bandeira, a palavra fome…

B.L. – Sim, fome.

P. – Lembra-se de tê-la visto?

B.L. – Sim, sim.

P. - E o «Capitão» depois voltou?

B.L. – Voltou, veio morrer em Cabo Verde.

(Fim da transcrição; o itálico e o “bold” são meus)

Das duas entrevistas fica claro que Ambrósio, Nhô Ambrose, sendo um herói, era na verdade um “soldado desconhecido”, como muitos outros que, na mesma ocasião, encabeçaram o assalto aos armazéns da Alfândega do Mindelo em São Vicente uma vez que só cerca de 20 anos após os acontecimentos que o marcaram, ouviu Gabriel Mariano, em absoluto, falar dele em Lisboa numa normal conversa de café. E sabe-se que quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto... E vai daí, o poeta Gabriel Mariano, idealizou-o e transformou-o num “mulato de olhos verdes”, num heróico e garboso “capitão” que marcha à frente das suas “tropas”. Num herói nacional. Ele «capitão Ambrósio» é uma obra toda sua… Aliás, a distinção entre Nhô Ambrose e Capitão Ambrósio é nítida. Inclusive fisicamente. Enquanto Nhô Ambrose é de tez branca e olhos azuis, Capitão Ambrósio é mulato e de olhos verdes. É uma criação poética que imortalizou Nhô Ambrose.

É preciso separar a ficção da História, o mito da realidade.
A.Ferreira

Obs. De acordo com a nota de Michel Laban, na entrevista a Gabriel Mariano, “Cabo Verde” foi escrito “Caboverde” por indicação do entrevistado.

Retomando o texto do Armindo, gostaria de acrescentar que na poesia de Gabriel Mariano, é recorrente a figura de “Capitão” enquanto sujeito poético e com a significação de líder popular, de quem está à cabeça de algo que há-de acontecer, uma revolução, uma sublevação, uma mudança, um novo dia. Semantema polissémico, “capitão” ganha igualmente estatura profética, pois ele é  anunciador de um futuro próximo diferente, para melhor, contido em desejo veemente na mensagem poética de G. Mariano.

 Assim foi em  Capitão Ambrósio” (1956) poema ícone, não só de um tempo acusatório de fome, de crise, mas também augúrio para tempos novos, para “madrugadas” de promessas e plenas de esperanças.

Ora, daí que surja o nosso Nho Ambroze – Mestre Ambrósio, carpinteiro de profissão, na explicação dada por Baltazar Lopes da Silva -  transfigurado poeticamente em “Capitão Ambrósio” um autêntico lider, capaz de galvanizar todo o Arquipélago, para um levantamento, pois ele ousou, porque o povo estava afrontado, e foi preso por isso mesmo. Pagou com o degredo e a masmorra o “crime” da sua coragem.

Gabriel Mariano, empresta ao seu sujeito poético: “Capitão Ambrósio uma projecção e uma dimensão épicas. Um herói popular, um profeta, um mártir. “Capitão Ambrósio” corporiza e antropormorfiza, a figura desejada, esperada, para que as ilhas entrassem em “trilhos verdes florindo” para que o povo pudesse “ plantar na dor nova flor” e “cantar na madrugada limpa”

Poema de tom empolgante e de ritmo em crescendo, “Capitão Ambrósio” assume-se hino, ode, canto e marcha triunfal, rumo à liberdade.

Outra nota interessante em Gabriel Mariano, é que  Ambrósio tinha que ser “mulato”. É que assim carrea a simbologia/antropológica do cabo-verdiano mestiço, ou, não fosse G. Mariano  autor do grande ensaio «Do Funco ao Sobrado – ou o Mundo que o Mulato criou»  (1959) perfigurando as ilhas de Cabo Verde. O ensaista exaltou sempre o papel do mestiço, o protagonista, o motor e “a força propulsora” da construção da sociedade cabo-verdiana. Logo, tanto para o poeta, como para o ensaísta, o mulato é o sujeito/objecto da própria caboverdianidade.

Apenas para o leitor se relembrar, transcrevo a seguir algumas estrofes do longo e épico poema:

CAPITÃO AMBRÓSIO

                                                                 (...)

O povo marcha na rua.

Vai na frente o Ambrósio

mulato Ambrósio guiando

leva nas mãos a bandeira.

Pesada e fria é a noite

injusta e amarga é a fome

mas vai na frente o Ambrósio

e há promessas de luz

para além da negra bandeira

novos caminhos de amor

de trás da negra bandeira

caminhos novos sorrindo

florindo novos destinos

Certos

Perfeitos

Abertos

Em olhos famintos abrindo

destinos claros na frente ...

                     (...)

Guiando o povo marchando.

                     (...)

Foi um minuto

veio o vento e passou.

Mulato Ambrósio foi preso

julgado e preso o Ambrósio

preso para longe o Ambrósio

mandado pra longe o Ambrósio

longe do povo o Ambrósio.

Mas a bandeira ficou.

Morreu e foi enterrado

mas a bandeira ficou.

Meu capitão

e a morte chega sempre indesejada.

                     (...)

Capitão! a voz vem dos mortos

- Vem nos ventos e na lua -

vem dos vivos sem rumo

vem nos famintos catando

o seu destino na rua.

Capitão! E a voz

esta voz somos nós.

Se o choro

Plantando na dor nova flor

renasce com novo calor ?

Capitão! Esta voz somos nós!

(...)

Capitão! volta no choro outra vez!

Chiquinha foi e morreu

Nhonhó partiu e ficou

Mas tu volta pra nós.

(...)

A gente grita cantando

Capitão Ambrósio chegou!

Chegou o Ambrósio chegou!

(...)

Na frente segue Ambrósio!

Meu pai: manda o povo cantar

manda o povo cantar na madrugada limpa

manda o povo cantar com tambores e búzios

Quando o Ambrósio chegar.

Lisboa, 1956

Ora bem, o simbólico “Capitão” tão ao gosto do poeta Gabriel Mariano, representa a força emotiva, que ultrapassa toda a adversidade. Prefigura a solidariedade, a voz messiânica que se sobrepõe ao passado/presente e galvaniza o ouvinte/povo a prestar atenção ao futuro outro e que vem a caminho.

Assim, vamos encontrar de novo a figura de “capitão” com a mesma simbologia dos versos anteriores,  no poema “Sabará Passará” que a seguir transcrevo:

 - Que homem é aquele que lá vem que lá vem?

É um capitão que vem meu irmão.

As ondas do mar

são altas são altas

Sabará passará!

As ondas do mar

São altas são altas

Sabará passará!

As ondas do mar são

São moles são moles

Sabará passará!

As ondas do mar

Não são de fiar

Pelas ondas do mar Sabará passará

- Que homem é aquele que lá vem que lá vem?

É um

Capitão

Que vem

Meu irmão!

( 12 Poemas de Circunstância, 1965)

Afinal, “Capitão” é uma ideia-força do também  insubmisso poeta que foi Gabriel Mariano.

José Gabriel Lopes da Silva Mariano, nasceu na Vila  Ribeira Brava, ilha de S. Nicolau, a 18 de Maio de 1928. Faleceu em Lisboa, Portugal, a 18 de Fevereiro 2002. Jurista de profissão, Escritor, poeta e ensaísta. Autor notável, uma das figuras de proa na galeria dos grandes pensadores e dos homens da cultura cabo-verdiana. Iniciou-se no «Boletim Cabo Verde» tendo ganho em 1950, o 1º prémio na modalidade Conto. Publicou neste períodico, poemas, contos e ensaios.Colaborou igualmente na revista «Claridade».

 Da sua vasta obra publicada, destacamos: «Amor e Partida na poesia crioula de Eugénio Tavares» ensaio, 1951; «A Mestiçagem: seu papel na formação da sociedade caboverdeana» ensaio, 1958; «Inquietação e Serenidade – Aspectos da insularidade em Cabo Verde» ensaio, 1959; «O Rapaz  Doente» conto, 1963;  «Uma Introdução à Poesia de Jorge Barbosa» ensaio, 1964; «12 Poemas de Circunstância» 1965; «João Cabafume» colectânea de contos, 1976; «Osvaldo Alcântara – O Caçador de Heranças» ensaio, 1991.  

Poeta e ensaísta de mérito, detentor de vários prémios literários e culturais, Gabriel Mariano figura em inúmeras Revistas e Antologias poéticas de Língua portuguesa e de língua francesa.    

 
terça-feira, 12 de abril de 2016

Codornizes um petisco à sua mesa
 
 
A semana começou sob o signo das aves com a inquietante pergunta da minha priminha Susana Loff se gostaria de ser ave. Está claro que lhe respondi que gosto de ser mulher e voar com uma propulsão vinda do interior.
 
Depois veio a ternura do pardalinho da Lica e a águia do Adriano, esta última uma espécie de Lili Caneças do reino dos pássaros.
 
Mas de manhã muito cedo no meu passeio matinal tive um choque desagradável ao deparar logo à entrada do meu Jardim com aquele painel explosivo de uma espécie de ave-do-paraíso de rosto alienígeno e triste e cauda exuberante desfolhando-se como fogo de artifício em pétalas de sangue. Recuei instintivamente mas corajosamente continuei em frente. Outros tantos painéis expunham-se abrindo alas grafitando-me a consciência e ameaçando-me com os seus labirintos, setas, garras, bicos afiados gotejando sangue, punhais, granadas de mão, faróis amarelos de escondidos automóveis, entranhas de motores, setas, setas e mais setas num emaranhado de cores negras e vermelhas apontavam-me a saída daquele labirinto, mas não atinava com ela. Vi um pássaro dinossáurico sobrevoando numa sugestão humana uma mesa de mistura de sons em cores cinzentas num ambiente sufocante de um Disco-jockey corcunda. Uma rapariga de sonho com um cabelo emaranhado de setas e sangue exibindo uma bem desenhada flor cor-de-rosa na orelha. O painel de traços menos psicadélico delineava um militar de rosto oriental com um capacete tapando-lhe os olhos, tendo do lado esquerdo uma mão segurando uma granada e do lado direito uma espécie de pequeno cadafalso com um dedo engatilhado na corda.
 
E no meio desta inconformidade e revolta dos guetos urbanos destoava um jovem azul contorcendo-se numa calçada branca num rap ou quiçá numa capoeira baiana.
 
Semana da Juventude em Oeiras e a municipalidade tentando engodar este gueto aprisionando-o em painéis de madeira prensada.
 
Mas por detrás de um painel descubro que continuaremos a ter as paredes sujas por aí e que não passa de umas tréguas com o outro gueto a que pertenço.
 Nas costas de todas, as telas aliviavam-se com textos e www endereçando-nos para os seus sites e obrigavam-me a enfrentar a minha consciência. Não faça de konta ke não sabe kem somos!
Apesar de tudo que venham os Freuds e Hitchcoks da Praça desmontar esses pássaros, motores, velocidades, faróis, discotecas e essas setas que persistem em aparecer na variedade de autores, ou pertencem à mesma escola.
Quando cheguei à porta da minha casa, ainda me senti entusiasmada com o belo desenho da carrinha de distribuição do meu minimercado exibindo umas codornizes encantadoras que me sorriem sem ressentimentos convidando-me: Codornizes, um petisco à sua mesa. E garanto-vos que o desenho não continha gotas de sangue. Não há Hanniball que resista.

 
Paço de Arcos, 13 de Maio de 2006

 
Maria Margarida Mascarenhas

 

 
Uma Nota de agradecimento: O Blogue sente-se altamente honrado, por poder publicar estes escritos inéditos da nossa conterrânea e saudosa Contista, Maria Margarida Salomão Mascarenhas. Os agradecimentos vão direitinhos para o amigo e colaborador, Adriano Miranda Lima, que tão gentilmente os fez chegar ao Coral Vermelho.

Mais uma Crónica inédita da M. Margarida Mascarenhas


Bunda invejável

Agora que me decidi a assumir-me como "negra greco-romana”, descubro que no acordo lusófono acrescentou-se à lista dos elementos que definem a cabo-verdianidade: a bunda.
 
Oh tempo volta para trás…
 
Agora é que eu desejaria ser cabo-verdiana de corpo livre e carne rija de bunda ao vento, perseguida pelos machos dos PALOPS como um golfinho brincando nas águas. EVA, de Germano Almeida.
 
Ai Tarrafal, ai arquipélago que foi Colónia!
 
TRAGO MARCADA NA CARNE AS MARCAS DAS ÉPOCAS POR MIM VIVIDAS, DAS TORTURAS QUE ME FORAM IMPOSTAS, DA PRISÃO A QUE ME SUBMETERAM.
 
Quando cheguei em 1963 a Portugal com o meu corpo de “crioula constrangida” como fui cantada por um vate luso, com o meu rabinho (como se dizia então) soltinho e ondulando debaixo das linhas Saco que era o look de então, as professoras Higgins que me descobriram e protegiam ali na Aeronáutica Civil, transformaram-me na Pobre Elisa que teria de aprender as regras da Europa e enterrar a imoralidade das mulatas tentadoras.
 
Pois é! Transformaram-me nos cânones da My fair Lady. Além dos ditongos dos “erres” e dos “alios em vez de alhos” os “filios em vez de filhos” “o frio em vez de friu”, infligiram-me a pior das torturas. Aprisionaram a minha Bunda numa “CINTA DE CASTIDADE”. Obrigaram-me a usar cintas e meias de ligas sempre soltas nas minha volumosas pernocas….
 
Fui casta, como as belas chinezinhas de pés de dez centímetros. Não havia mãos violadoras que me arrancassem as cintas…
 
Tal como a viola aprisionada, esperei um habeas-cinta, que só a revolução dos Cravos me restituiu. Tarde demais. A minha Bunda transformara-se numa Bunda greco-romana, e que ROMANA! Tinha a bunda “enfaixada” das mondrongas, como diria a minha amiga Lilica Pires.
 
Nem morna, nem funaná, nem cachupa! Só queria ver a minha bunda cabo-verdiana restaurada e perseguida pelos olhares do século vinte e um.

 
Paço de Arcos, 7 de Abril de 2006

 
Maria Margarida Mascarenhas

 

Daniel Filipe – Poeta da solidão e do exílio

domingo, 10 de abril de 2016

O poeta luso-cabo-verdiano, Daniel Filipe, nasceu a 11 de Dezembro de 1925, na ilha da Boavista e faleceu em Lisboa, ainda novo aos 38 anos de idade, a 6 de Abril de 1964. Portanto há 52 anos.

 De acordo com os seus biógrafos, entre os quais, destaco e cito Manuel Ferreira, (vide «No Reino de Caliban», Vol. I 1975) é quem nos informa que o poeta Daniel Filipe, de seu nome completo, Daniel Damásio da Ascenção Filipe, chegou criança ainda – “com cerca de 2 anos de idade” – a Portugal, levado pelo pai, deportado na Boavista, Coronel médico, Gonçalo Monteiro Filipe. A mãe, Rita Maria Ascensão, era natural da  ilha das dunas.

Na antiga Metrópole, Daniel Filipe  fez  os seus estudos e foi funcionário do Minstério do Ultramar. Esteve destacado na Agência – Geral do Ultramar e, daí dirigia o programa radiofónico: Voz do Império, da Emissora Nacional.

Figura em várias antologias poéticas de Língua portuguesa. Tendo aparecido na 3ª edição da Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa, publicada em 1971, edição Círculo de Poesia, Livraria Moraes Editora e que abarcou poetas  do período 1945-1971 . Mas já antes desta importante edição, Daniel Filipe publica  em 1965, na  «Poesia Portuguesa de após-Guerra de 1945 – 1965».

Interessante é que nela, na Antologia citada, já  aparece impresso o poema mais famoso e conhecido de Daniel Filipe que é a «Invenção do Amor», então muito declamado, nos anos 60 do século XX  ainda que sob censura e ameças da polícia política em saraus poéticos e em manifestações nas Universidades portuguesas e nos teatros de intervenção, como um dos poemas ícones de protesto ao então regime salzarista. De recordar que o seu autor, foi perseguido e torturado pela PIDE.

Para além desse emblemático poema que marcou uma época, e que foi publicado pela primeira vez em 1961, sob forma de opúsculo; Daniel Filipe, deixou extensa e densa obra (se pensarmos na brevidade vivida. Morreu aos 38 anos de idade) marcada pela sentimento de solidão, de bloqueio e de pátria como lugar de exílio. Tópicos marcantes na escrita poética dita de intervenção social, na linha da literatura portuguesa neo-realista, então vigente.

Da sua poesia conhecida e publicada, no tocante a Cabo Verde, distingue-se:  «Missiva» (1946); «Marinheiro em Terra» (1949); «A Ilha e a Solidão» (1957) este último, mereceu o prémio Camilo Pessanha. A evocação da mãe-ilha, atravessada por uma melancolia em que a  saudade e a morna, mais um certo sentimento de orfandade pela ausência materna, acabam por ser neste livro, os sujeitos poéticos saudosamente mencionados pelo autor. No fundo e tal como disse Manuel Ferreira, “retomando a caboverdianidade.”

Pois bem, Daniel Filipe traz-nos no poema Ilha a seguir transcrito, a lembrança/saudade, que guardou da sua ilha, ainda que através de num exercício de reminiscência:

Ilha

No azul líquido é somente

um ponto anónimo da carta.

Ô minha fala inconsequente!

Saudade morna do ausente,

distante ainda que não parta!


O horizonte é linha de àgua

por estrelas-peixe enodoada.

Se me recordo em bruma e mágoa,

 à solidão da ilha trago-a

dentro de mim petrificada.

(A Ilha e a Solidão, 1957)

Eis mais um poema de Daniel Filipe. Nele o poeta evoca a aventura/desventura da pesca da baleia:

Romance de Tomasinho-Cara-Feia

Farto de sol e de areia,

que é o mais que a terra dá,

tomasinho-cara-Feia,

vai prá pesca da baleia.

Quem sabe se tornará?


Torne ou não torne, que tem?

Vai cumprir o seu destino.

só nha Fortunata, a mãe,

que é velha e não tem ninguém,

chora pelo seu menino.


Torne ou não torne, que importa?

Vai ser igual ao avô.

Não volta a bater-me à porta;

deixou para sempre a horta,

que a longa seca matou.


Tomasinho-Cara-Feia,

(outro nome, quem lho dá?)

Farto de sal e de areia,

foi prá pesca da baleia.

- E nunca mais voltará.

(A Ilha e a Solidão, 1957)


 Em Cabo Verde os seus poemas foram publicados no antigo «Boletim Cabo Verde», nos anos 60 do século passado, periódico dirigido por Dr. Bento Levy. 

Daniel Filipe, colaborou na revista literária «Távola Redonda» onde figuraram os mais distintos poetas portugueses de então. Foi co-Director dos Cadernos Poéticos,  «Notícias do Bloqueio», título sugestivo e bem significativo para a época.

Para além das obras já referidas, temos deste autor: O Viageiro Solitário (1951); Recado para a Amiga Distante (1956); O Manuscrito na Garrafa (romance, 1960); Pátria, Lugar de Exílio (1963).

Daniel Filipe foi um poeta do seu tempo e os seus textos reflectem o contexto  sócio-político em que viveu. Poeta culto, marcado por uma indagação inquieta e constante sobre o presente em que é negada ao Homem a fruição da liberdade, e sobre o futuro que se apresenta presumivelmente bloqueado. Carrega o poeta um sentimento de uma angústia existencial permanente que vai percorrer grande parte da sua escrita. Esta angústia apresenta-se envolta em revolta (s) sugerida (s), que acabam  transmudadas na mais profunda poesia. E isto acontece em grande parte dos seus textos.

Para terminar este escrito - que mais não pretendeu  que  relembrar um grande nome da poesia de língua portuguesa, que foi Daniel Filipe - deixo ao leitor, à guisa de fecho, as páginas que contêm a infausta notícia da morte do poeta, ocorrida em Abril de 1964 e enviada por Humberto Duarte Fonseca, ao «Boletim Cabo Verde» foi publicada no número de Abril-Junho do mesmo ano, aproveitando o períodico cabo-verdiano  a ocasião para prestar homenagem ao poeta luso-cabo-verdiano prematuramente desaparecido como se ilustra nas páginas que se seguem: