quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Ontem, 15 de Agosto, a Cidade da Praia celebrou a sua santa padroeira, Nossa Senhora da  Graça.  O texto que se segue foi escrito há 68 anos pelo então Pároco da Praia, Francisco de Deus Duarte e nele o autor nos dá conta da fundação da Freguesia em louvor da santa.

A FUNDAÇÃO DA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA DA CIDADE DA PRAIA
Pelo Padre Francisco de Deus Duarte
No dia 3 de Maio de 1460, as caravelas de Diogo Gomes e António da Noli, os descobridores de Cabo Verde, lançaram ferro, pela primeira vez, no pequeno porto da freguesia de Nossa Senhora da Luz desta ilha de Santiago.
Faço esta afirmação, sem receio de errar, porque os nossos antigos cronistas afirmam que os primeiros navegadores fundearam nesta ilha, num pequeno porto onde encontraram uma praia de areia branca. Se se der uma volta à ilha, se se percorrer as suas costas, não se encontra outro porto com baía de areia branca. Foi, pois, sem dúvida, na linda baía de Nossa Senhora da Luz, que os navegadores chegaram, pela primeira vez.
A caravela de António da Noli, mais veleira do que a de Diogo Gomes, avistou, primeiro, o ponto mais elevado da ilha, e os marinheiros, doidos de alegria, todos à uma, no tombadilho, gritaram: Um pico, capitão! Um pico, capitão!
Fica, assim, restabelecida a verdade dos factos. O pico chama-se «de António», em honra ao descobridor António da Noli, e não «de Antónia», como erradamente dizem os compêndios primários. O próprio vàdio, ainda hoje, sempre que se refere ao pico, diz: piqui’Intoni. Os navegadores, descobertas as ilhas de Santiago, Fogo, Brava e Maio, regressaram à Metrópole, a dar a boa nova ao grande Infante, ao Sonhador de Sagres. Dois anos depois, em 1462, e segundo outros, em 1464, voltaram a Cabo Verde e descobriram as outras ilhas. O grande Infante, como recompensa dos bons serviços prestados por António da Noli, nomeou-o primeiro donatário e capitão-mor desta ilha de Santiago, e foi ele fundador do berço da população caboverdeana. O seu túmulo jaz na actual igreja matriz da freguesia de Santíssimo Nome de Jesus, na capela-mór, do lado da epístola.
De início fundaram-se duas capitanias-móres: a do Sul, no sítio da Ribeira Grande da freguesia do Santíssimo Nome de Jesus, e a do Norte, no sítio denominado Alcatraz, freguesia de Nossa Senhora da Luz. A capitania do Sul progrediu muito civil, religiosa, militar, comercial e industrialmente sendo o seu porto muito frequentado. A capitania do Norte caiu em decadência, e os seus habitantes, em 1520, emigraram para o porto de Santa Maria, que era ao tempo, uma pequena aldeia de pescadores.
A nascente povoação progrediu tão rapidamente que 35 anos depois, isto é, em 1555, se edificou, no sítio onde, hoje, se constrói um parque infantil, uma igreja coberta de colmo, sob a invocação de Nossa Senhora da Graça, ficando assim fundada a freguesia, que foi provida de pároco.
Volvidos anos, artistas vindos da Metrópole, construíram por ordem superior, no mesmo sítio, uma igreja de pedra e cal, com dois corpos, coberta de telha, igreja que prestou serviços, durante muitos anos, mais de dois séculos, porque só em 1895 é que o ilustre Governador Serpa Pinto, sendo Director das Obras Públicas o General Torres, mandou construir a actual igreja, que serve de matriz à freguesia de Nossa Senhora da Graça da cidade da Praia. A bela e rica igreja concluída em 1900 e, no mesmo ano, exposta ao culto público, tendo celebrado nela, pela primeira vez, o ilustrado filho desta ilha, o falecido cónego António Duarte da Graça, orador, estilista e poeta.
Praia, 17 de Novembro de 1949
In Boletim Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação, Nº 4 – Ano I – Janeiro de 1950

O perfil actual do candidato universitário

terça-feira, 14 de agosto de 2018


Há dias escutando um debate televisivo, um dos intervenientes , o  Prof. Marçal Grilo, a propósito da Educação, dizia ele que antigamente quando se ia para a escola das primeiras coisas que o professor ensinava aos alunos era saber sentar-se e, levantar-se quando entrava uma visita na sala de aula.
Acontece é que os professores traziam isso na sua bagagem social, cultural, hoje os nossos professores, a maioria, não conhece regras, desconhece valores. Logo, não as poderá transmitir.
Aqui e agora refiro-me já à escola cabo-verdiana que infelizmente hoje está em colapso. Em quase tudo. Na transmissão científica de conhecimentos, na língua veicular do ensino, enfim em toda a edificação do saber, que é a dimensão primeira do ensino, obrigação transcendente da escola. Tudo isso  se encontra em derrocada total em Cabo Verde.
Li recentemente, num artigo no Jornal «Público» de 6/08/18 - intitulado: «Os Professores dos nossos netos» - assinado por João Cerejeira e Miguel Portela, um conceito de escola/ensino/aprendizagem sobremaneira interessante e fundamental. Dizia o seguinte: “... É reconhecido que nenhum sistema de ensino pode ser melhor do que os seus professores. (...) Quanto maior for a capacidade cognitiva do professor, melhor será a capacidade cognitiva dos alunos, nomeadamente para alunos oriundos de meios mais desfavorecidos para os quais o contexto familiar não compensa eventuais falhas obtidas na escola. É, pois, necessário planear o acesso à profissão docente, de forma a garantir a existência de muitos bons professores, porque deles depende o futuro da educação, enquanto base do desenvolvimento social e económico”. (...) O declínio do reconhecimento e da imagem social dos docentes enfraquece as aprendizagens, o ensino e a sociedade. (...) É, pois, claro que o reforço do prestígio e da cultura profissional docentes tem impacto na melhoria das aprendizagens, não só nos alunos actuais, mas também nos alunos futuros. Para ter bons professores, é preciso atrair os melhores alunos para a profissão.” Fim de transcrição.
O artigo referenciado, aludia ainda ao facto, para exemplo, de que deviam ser previstas entrevistas com os responsáveis para se aquilatar a motivação, a adequação dos candidatos à docência. A não realização deste rito, é à partida, uma falha, para se intuir de um futuro bom ou mau docente.
Pois bem, voltando ao que se passa entre nós, um dos assuntos mais controversos actualmente, andará à volta do perfil dos candidatos que Cabo Verde selecciona para  as vagas universitárias em Portugal.
Regra geral, são seleccionados os alunos com as melhores classificações - note-se: não são os melhores alunos de facto. São os que têm maior média de notas, estas por sua vez, altamente inflaccionadas, e dadas por professores, na maior parte, medíocres, tanto na formação, como na transmissão de conhecimentos. Esta é a realidade crua e dura por que passa  nos dias que correm o  ensino/escola/aprendizagem aqui nas ilhas.
Efectivamente, os alunos, candidatos com o 12º Ano do ensino secundário e com maiores classificações,  têm  preferência para as vagas  em Portugal, colocadas à disposição do Governo de Cabo Verde, nas universidades e nos institutos politécnicos. São as preferidas. As mais concorridas. Há uma grande procura. É natural, percebe-se a opção. Trata-se regra geral, de uma boa formação em país de língua e cultura muito comuns. Relativamente perto geograficamente. Quase todos, têm lá parentes e algum apoio, o que dá conforto. Tudo isso é entendível, perfeitamente compreensível para a procura competitiva de vagas para cursos superiores em Portugal. É um facto.
Só que nesta demanda, não são salvaguardados os aspectos essenciais para um razoável sucesso do aluno. A saber: se o aluno se expressa em língua portuguesa, se o aluno a fala e a escreve com o nível adequado aos anos de escolaridade, no pressuposto de a ter tido como língua veicular do ensino; se o aluno tem saber firmado do 12º ano das disciplinas científicas, e específicas para o curso para o qual se candidatou à vaga em Portugal.
Mas mais, a não salvaguarda desses factores essenciais, vem concorrendo para o enorme “desaire” dos nossos formandos em Portugal.  Um mau exemplo: narra-se que muitos dos estudantes enviados para os pólos de engenharia de uma cidade no interior de Portugal, dos melhores do país, mal-sucedidos nos primeiros anos, concorrem para bombeiros ou para empregos  bem precários. Enfim, à semelhança do que se passa nos pólos daquela cidade, o mesmo sucede noutras instituições universitárias portuguesas.
E assim temos jovens que acabam por entrar na chamada emigração clandestina.  Não regressam. Mas disso não há estatística. Resultado:  projecto inacabado. Compromete-se o futuro. Perde o formando. Perde Cabo Verde. Para além da eventualidade, do risco, de nos serem recusadas no futuro, vagas nas instituições de ensino superior no país de acolhimento.
Infelizmente, a situação que se desenha é esta: o galopante insucesso que tem havido com os estudantes cabo-verdianos nos últimos anos, pode contribuir para desaparecer também, essa boa oportunidade de formação no exterior para os nossos jovens.
Abro aqui um parêntesis para dizer o seguinte: pouco ou nada sei sobre o que se passa actualmente no Brasil, com os nossos estudantes que para lá vão. Creio - não tenho a certeza disso - correm rumores de que o Brasil resolveu  nos últimos anos, parte do problema, criando cursos, tipo “terceiro-mundo”, especificamente dirigidos aos mal preparados alunos cabo-verdianos. Será assim?? Dito isto assim, não estou a culpar o Brasil. Fecho o parêntesis, mas não a minha profunda tristeza!
Mas minha gente, recuemos um pouco no tempo. Após a independência, os nossos formandos demandaram também para estudos universitários,  países como a Espanha, a França, a Rússia, a Alemanha, entre outros, e em todos eles, aprenderam a respectiva língua veicular do ensino e formaram-se.
É imperativo que se repare que eles outrora levavam na sua bagagem académica, para além de conhecimentos científicos adequados ao curso almejado, haviam interiorizado, através da leitura e da escrita, uma sólida e rica estrutura linguística - a Língua portuguesa – para alguns casos de origens semelhantes (Latim) às línguas dos países para onde foram estudar.  O facto de saberem o português, tê-los-á na certa, ajudado na integração no meio académico estrangeiro.  Igualmente tinham do Liceu, o Francês e o Inglês.  
Para mal dos nossos pecados, tais pressupostos já não se verificam hodiernamente, com o saber e a consistência de então.
Não vá sem acrescentar a má notícia ouvida de que as ilhas Canárias, aqui ao lado, declinaram o acolhimento de estudantes cabo-verdianos, justificando-se com a incapacidade destes em aprender a Língua espanhola (?) possivelmente também ao lado da má preparação científica, que levam das escolas secundárias cabo-verdianas. Ao que isto chegou!
Com efeito, se bem ensinados estivessem na Língua portuguesa, se bem capacitados estivessem nos fundamentos científicos de cada disciplina, estudados em livros escritos em português – era o que acontecia ainda, há sensivelmente duas décadas  atrás – seriam portadores de uma boa e sólida estrutura linguística, cognitiva, capaz de fazê-los apreender com relativa facilidade a outra língua.
Tanto mais tratando-se de duas línguas próximas uma da outra. Ambas filhas do Latim em hiper - estratos etimológicos, e com outros semelhantes substratos e adstratos etimológicos vindos do grego, árabe, entre outros, que formataram tanto o espanhol como o português. Infelizmente, sejamos realistas e directos: mais uma vez, aqui se revelam a grande falta, os enormes estragos e os rombos causados e devidos ao mau ensino ou, ao não ensino de todo, da língua segunda e oficial do país, na preparação da vida futura dos estudantes cabo-verdianos.
Uma autêntica erosão cultural, uma calamidade! Um empobrecimento! E acima de tudo: um retrocesso!
Para amenizar esta tragédia, narro aqui uma situação, no mínimo caricata, vivida ainda recentemente por uma colega professora que embora já das mais antigas, ainda se encontra no activo. Contou-me ela que estando na Biblioteca Nacional, na cidade da Praia, foi-lhe pedido - pela funcionária da sala de leitura - se podia ajudar um grupo de alunos em apuros para encontrar uma obra de consulta em matéria antropológica, cultural.  Encontrado o livro, ela dispôs-se a ajudá-los e, quando começou a explicar um pouco da matéria sobre a qual eles indagavam, foi abruptamente interrompida por um deles, que disse em crioulo: “Explique-nos isso em crioulo, pois em português não  a entendemos.”  Admirada, interrogou a minha colega: “...Espera aí! vocês são alunos de que ano?” Responderam: “Somos do 1º Ano do Curso, Estudos Portugueses e Cabo-verdianos da Universidade de Cabo Verde.”  Ela indignada, já ao rubro (subiu-lhe à face o “lume vulcânico” como me disse) ripostou: “Francamente! O que os vossos professores e vocês estão a precisar é de cadeia!! Imagine-se! Futuros professores de português, já em formação! Com o 12º ano feitos! E nem percebem uma explicação dada na língua veicular do ensino? ..."  Foi um momento e tanto! Desabafou a minha amiga.
 Note-se que  tudo isto vem sendo o quotidiano do ensino, a rotina instalada nas nossas escolas.
Quando é que paramos para reflectir sobre isso? O fingir que isto não está a acontecer, é escandaloso e em nada ajuda.
Assim procedendo, estamos a cavar despudoramente o nosso retrocesso em termos de quadros e de recursos humanos capazes, tanto para a realização pessoal dos próprios jovens escolarizados, como para o desenvolvimento do país.






quarta-feira, 1 de agosto de 2018

À volta dos contos de Baltazar Lopes

A colectânea de Contos intitulada «Os Trabalhos e os Dias» de Baltazar Lopes, que me serviu de apoio para este escrito, é uma edição de 1987, do extinto Instituto Cabo-verdiano do Livro, antecessor do actual Instituto da Biblioteca Nacional.
Trata-se de uma colectânea que traz uma nota biográfica sobre o autor assinada por Manuel Ferreira, que terá sido o organizador desse conjunto de contos, e prefácio do poeta Arménio Vieira que fez uma análise de pormenor bastante interessante e assertiva, de cada história.
São dez, os Contos compilados nesta edição, a saber: «A Caderneta», «Dona Mana», «Balanguinho», «Muminha Vai Pa ra a Escola», «Egídio e Job», «Nocturno de Dona Emília de Sousa», «O Construtor», «Pedacinho», «Sileno» e «Os Trabalhos e os Dias».
Pois bem, os Contos de Baltazar Lopes, conheceram publicação de estreia sob forma dispersa em revistas à época prestigiadas, tais os casos de Claridade, Vértice, Boletim Cabo Verde, Raízes, entre outros periódicos de teor literário e cultural. Daí também o mérito desta compilação de há mais de três décadas que reuniu num único volume estas peças singulares, saídas da pena maravilhosamente culta e poética de um grande vulto das Letras cabo-verdianas, que foi um “caçador de heranças”, no poema homónimo de Osvaldo Alcântara – que serviu de título a um ensaio de Gabriel Mariano – em que o sujeito poético acompanha o enterro de um capitão das ilhas, como quem enterra simbolicamente, um tesouro, uma arca de memórias, cujos eflúvios procura captar.
Entrando agora na teia das diferentes histórias narradas na Colectânea, começaria pelo conto «Muminha Vai Para a Escola», na minha opinião, o mais bem urdido e conseguido neste conjunto.
O interessante é que consigo filiá-lo na linha directa do tipo e da arte de narrar de «Chiquinho», romance emblemático do autor.
É que Baltazar Lopes da Silva, trabalha com primor as memórias infanto-juvenis, levando o leitor de volta, de certa forma, à sua própria vivência, agora sob forma de reminiscência, através de uma linguagem densamente poética e maravilhosamente tecida. O narrador deixa-nos entrar no universo da intriga ficcionada a que não faltam nem a crueldade, nem a generosidade muito próprias e peculiares nas crianças.
A narrativa prende e enleia o leitor numa leitura emotivamente solidária. O narrador condu-lo (o leitor) ao drama de “Muminha” o protagonista, aparentemente bafejado pela sorte material, motivo de alguma inveja entre os colegas pertencentes a um estrato socio-económico menos favorecido, mas o final da narrativa encarrega-se de nos esclarecer acerca da conduta introvertida e apenas defensivamente “aristocrática,” do protagonista.
Efectivamente, estamos perante um belo conto exemplar. «Muminha Vai à Escola» é dedicado a Bento Levy, Director do célebre «Boletim Cabo Verde», (1949/1964) onde o conto foi publicado pela primeira vez, num dos números daquele periódico, nos anos 50 do século XX.
Logo a seguir, nesta hierarquia classificativa e obviamente, subjectiva, vem o já considerado clássico, «A Caderneta», um primor de monólogo em que o leitor pressupõe o diálogo que subjaz entre a protagonista que recusa o apodo de prostituta, que a caderneta lhe conferiria e o advogado “senhor Doutor” que ela deseja que a defenda com aquele saber e a generosidade que ela lhe conhece do antecedente.
Abro aqui um pequeno parêntesis, para recordar a peça de teatro do Mindelact baseada na «Caderneta» e apresentada em São Nicolau, em Abril de 2007, aquando das comemorações do centenário do nascimento de Baltazar Lopes da Silva e a que tive o prazer enorme de assistir porque maravilhosamente interpretada pela actriz Mirita Veríssimo desse Grupo teatral. Fecho o parêntesis e volto aos contos.
Relativamente às duas histórias – “Dona Mana” e “Nocturno de Dona Emília de Sousa” – embora diferentes e distintas nos enredos, mantêm, no entanto, um ponto comum: ambas as protagonistas, estão em desgraça social e familiar no momento histórico narrativo e encontram-se a viver na ilha de São Vicente.
Mas do passado, da ilha de origem, São Nicolau, guardam marcas e ainda vestígios de um tempo, de uma vivência mais bonançoso, mais farto, no qual elas eram socialmente bem enquadradas.
Vicissitudes várias, e bem explicadas pelo narrador, levam-nos a entender o presente das personagens principais, reflexos de uma migração de gente de São Nicolau para Mindelo num tempo de seca e de carestia de vida. Recordo-me de que li algures (suponho que na “Mesa-Redonda sobre o Homem Cabo-verdiano,”1956) numa das excelentes  intervenções de Dr. Baltazar, de ele ter afirmado que vira pessoas em S. Vicente, pobres, mal-nutridas, com vergonha da sua penúria, e que outrora as havia conhecido,em São Nicolau, a viver com algum desafogo económico.
No fundo, a tragédia antiga das ilhas agrícolas, retratada também nestes dois contos. O final de «Nocturno de Dona Emília de Sousa é nisso claramente ilustrativo: de “Dona Emília de Sousa”, acaba em “Nha Milinha”.
O Contista transpõe para algumas das suas histórias a sua experiência de advogado, (pro bono) defensor dos mais pobres e dos mais vulneráveis. O drama exposto em «Dona Mana» desenrola-se numa sala do tribunal da cidade do Mindelo.
Uma nota também interessante da parte do autor, é que ele partilha os espaços e os cenários dos seus contos para além da sua ilha de eleição, S. Nicolau.
E é assim que vamos ter a história de «Balanguinho» e a de «Os Trabalhos e os Dias» a terem por cenários, espaços e zonas da ilha de Santo Antão. Já o conto «Sileno» desenrola-se na ilha da Boa Vista. S. Vicente constitui o cenário e o espaço em que circulam as personagens dos contos: «Dona Mana», «A Caderneta», e «Nocturno de Dona Emília de Sousa».
A terra no seu sentido cosmogónico e telúrico do qual o homem se sente parte inalienável, e unitário, está muito bem configurada em «Balanguinho», a propriedade agrícola, dos antecessores da protagonista, Mamã Marcelisa, cujo amor por essa parcela de chão, simboliza, por um lado, a profunda ruralidade que acompanhou outrora o habitante de ilha agrícola, e, por outro lado, a maternidade, a fecundidade da boa terra que não trai - pelo contrário - recompensa com grãos e com frutos, quem nela pensa e cuida com esperança e com perseverança.
E essa mesma relação que ouso denominar de “uterina,” vamos de novo encontrá-la num outro conto desta colectânea, «Pedacinho». A bela sombra, o local de acolhimento e de recolhimento do narrador/protagonista, que tem naquele chão, a paz e uma espécie de reconciliação consigo próprio e com o mundo.
Na esteira dos contos inseridos na colectânea, temos a loucura criativa, que confunde a realidade e a imaginação, e que está soberbamente contada na narrativa «O Construtor». O protagonista, o Sr. Alberto, já idoso, armou no quintal, da sua residência um verdadeiro estaleiro, onde intenta construir, dois barcos – o “Estrela da Manhã” e o “Arlequim”. Chegados ao enredo, o leitor é convidado a transpor fronteiras deslizantes e sem balizas divisórias, entre a realidade e a imaginação. Um conto excelente enquanto temática ligada ao mar e pertencente ao domínio do fantástico.
A metáfora e a paráfrase estão representadas e bem, no conto «Egídio e Job», que recria o episódio bíblico, transfigurado em cenários e personagens ilhéus.
Aproveitaria a oportunidade para aqui registar em jeito de síntese, o comentário final do prefácio de Arménio Vieira à edição de 1987, da obra em análise: “(…) o acto de escrever, quando assumido com seriedade, é uma espécie de viagem, apaixonante, por certo, mas com alguns escolhos pelo meio e tormentosos por vezes” (…) e continua:“(…) Baltasar Lopes, o contista (…) sabe dos riscos que correu ao longo dessa travessia. Mas isso já não importa, uma vez que a nave foi conduzida a bom porto.”(Fim de citação).
Não poderia estar mais sintonizada com as palavras de Arménio Vieira. Daí também o meu desafio à Editora Pedro Cardoso, que tem feito obra notável em matéria de edições, de reedições de clássicos nacionais, para que tome em mãos este encargo frutífero de trazer para as novas gerações os contos de Baltazar Lopes – memórias sociais e históricas das ilhas genialmente efabuladas – os quais, merecem ser (re)lidos por leitores dos tempos hodiernos, enquanto passagens de um testemunho, não só da condição de ilhéu, mas também de um passado que moldou a nossa idiossincrasia.
Chegados ao fim da revisitação dos contos incluídos nos «Trabalhos e os Dias», é tempo de convidar o leitor a fazer o mesmo ou, a conhecer – porque vale a pena – o lado contista do grande e multifacetado autor, poeta, romancista e filólogo que foi Baltazar Lopes da Silva.
Nota devida: este Artigo foi publicado na Revista «Leituras» nº- 2 Abril/Junho 2018 da editora Pedro Cardoso.