À volta dos contos de Baltazar Lopes
A colectânea
de Contos intitulada «Os Trabalhos e os Dias» de Baltazar Lopes, que me serviu
de apoio para este escrito, é uma edição de 1987, do extinto Instituto
Cabo-verdiano do Livro, antecessor do actual Instituto da Biblioteca Nacional.
Trata-se
de uma colectânea que traz uma nota biográfica sobre o autor assinada por
Manuel Ferreira, que terá sido o organizador desse conjunto de contos, e
prefácio do poeta Arménio Vieira que fez uma análise de pormenor bastante
interessante e assertiva, de cada história.
São
dez, os Contos compilados nesta edição, a saber: «A Caderneta», «Dona Mana»,
«Balanguinho», «Muminha Vai Pa ra a Escola», «Egídio e Job», «Nocturno de Dona
Emília de Sousa», «O Construtor», «Pedacinho», «Sileno» e «Os Trabalhos e os
Dias».
Pois
bem, os Contos de Baltazar Lopes, conheceram publicação de estreia sob forma
dispersa em revistas à época prestigiadas, tais os casos de Claridade, Vértice,
Boletim Cabo Verde, Raízes, entre outros periódicos de teor literário e cultural.
Daí também o mérito desta compilação de há mais de três décadas que reuniu num
único volume estas peças singulares, saídas da pena maravilhosamente culta e
poética de um grande vulto das Letras cabo-verdianas, que foi um “caçador de
heranças”, no poema homónimo de Osvaldo Alcântara – que serviu de título a um
ensaio de Gabriel Mariano – em que o sujeito poético acompanha o enterro de um
capitão das ilhas, como quem enterra simbolicamente, um tesouro, uma arca de
memórias, cujos eflúvios procura captar.
Entrando
agora na teia das diferentes histórias narradas na Colectânea, começaria pelo
conto «Muminha Vai Para a Escola», na minha opinião, o mais bem urdido e
conseguido neste conjunto.
O
interessante é que consigo filiá-lo na linha directa do tipo e da arte de
narrar de «Chiquinho», romance emblemático do autor.
É que
Baltazar Lopes da Silva, trabalha com primor as memórias infanto-juvenis, levando
o leitor de volta, de certa forma, à sua própria vivência, agora sob forma de
reminiscência, através de uma linguagem densamente poética e maravilhosamente
tecida. O narrador deixa-nos entrar no universo da intriga ficcionada a que não
faltam nem a crueldade, nem a generosidade muito próprias e peculiares nas
crianças.
A
narrativa prende e enleia o leitor numa leitura emotivamente solidária. O
narrador condu-lo (o leitor) ao drama de “Muminha” o protagonista, aparentemente
bafejado pela sorte material, motivo de alguma inveja entre os colegas
pertencentes a um estrato socio-económico menos favorecido, mas o final da narrativa
encarrega-se de nos esclarecer acerca da conduta introvertida e apenas
defensivamente “aristocrática,” do protagonista.
Efectivamente,
estamos perante um belo conto exemplar. «Muminha Vai à Escola» é dedicado a
Bento Levy, Director do célebre «Boletim Cabo Verde», (1949/1964) onde o conto
foi publicado pela primeira vez, num dos números daquele periódico, nos anos 50
do século XX.
Logo a
seguir, nesta hierarquia classificativa e obviamente, subjectiva, vem o já
considerado clássico, «A Caderneta», um primor de monólogo em que o leitor
pressupõe o diálogo que subjaz entre a protagonista que recusa o apodo de
prostituta, que a caderneta lhe conferiria e o advogado “senhor Doutor” que ela deseja que a defenda com aquele saber e a
generosidade que ela lhe conhece do antecedente.
Abro
aqui um pequeno parêntesis, para recordar a peça de teatro do Mindelact baseada
na «Caderneta» e apresentada em São Nicolau, em Abril de 2007, aquando das
comemorações do centenário do nascimento de Baltazar Lopes da Silva e a que
tive o prazer enorme de assistir porque maravilhosamente interpretada pela
actriz Mirita Veríssimo desse Grupo teatral. Fecho o parêntesis e volto aos
contos.
Relativamente
às duas histórias – “Dona Mana” e “Nocturno de Dona Emília de Sousa” – embora
diferentes e distintas nos enredos, mantêm, no entanto, um ponto comum: ambas
as protagonistas, estão em desgraça social e familiar no momento histórico
narrativo e encontram-se a viver na ilha de São Vicente.
Mas do
passado, da ilha de origem, São Nicolau, guardam marcas e ainda vestígios de um
tempo, de uma vivência mais bonançoso, mais farto, no qual elas eram
socialmente bem enquadradas.
Vicissitudes
várias, e bem explicadas pelo narrador, levam-nos a entender o presente das personagens
principais, reflexos de uma migração de gente de São Nicolau para Mindelo num
tempo de seca e de carestia de vida. Recordo-me de que li algures (suponho que
na “Mesa-Redonda sobre o Homem Cabo-verdiano,”1956) numa das excelentes intervenções de Dr. Baltazar, de ele ter
afirmado que vira pessoas em S. Vicente, pobres, mal-nutridas, com vergonha da
sua penúria, e que outrora as havia conhecido,em São Nicolau, a viver com
algum desafogo económico.
No
fundo, a tragédia antiga das ilhas agrícolas, retratada também nestes dois
contos. O final de «Nocturno de Dona Emília de Sousa é nisso claramente
ilustrativo: de “Dona Emília de Sousa”, acaba em “Nha Milinha”.
O
Contista transpõe para algumas das suas histórias a sua experiência de advogado,
(pro bono) defensor dos mais pobres e dos mais vulneráveis. O drama exposto em
«Dona Mana» desenrola-se numa sala do tribunal da cidade do Mindelo.
Uma
nota também interessante da parte do autor, é que ele partilha os espaços e os
cenários dos seus contos para além da sua ilha de eleição, S. Nicolau.
E é
assim que vamos ter a história de «Balanguinho» e a de «Os Trabalhos e os Dias»
a terem por cenários, espaços e zonas da ilha de Santo Antão. Já o conto
«Sileno» desenrola-se na ilha da Boa Vista. S. Vicente constitui o cenário e o
espaço em que circulam as personagens dos contos: «Dona Mana», «A Caderneta», e
«Nocturno de Dona Emília de Sousa».
A terra
no seu sentido cosmogónico e telúrico do qual o homem se sente parte
inalienável, e unitário, está muito bem configurada em «Balanguinho», a propriedade
agrícola, dos antecessores da protagonista, Mamã
Marcelisa, cujo amor por essa parcela de chão, simboliza, por um lado, a
profunda ruralidade que acompanhou outrora o habitante de ilha agrícola, e, por
outro lado, a maternidade, a fecundidade da boa terra que não trai - pelo
contrário - recompensa com grãos e com frutos, quem nela pensa e cuida com
esperança e com perseverança.
E essa
mesma relação que ouso denominar de “uterina,” vamos de novo encontrá-la num outro
conto desta colectânea, «Pedacinho». A bela sombra, o local de acolhimento e de
recolhimento do narrador/protagonista, que tem naquele chão, a paz e uma
espécie de reconciliação consigo próprio e com o mundo.
Na
esteira dos contos inseridos na colectânea, temos a loucura criativa, que
confunde a realidade e a imaginação, e que está soberbamente contada na
narrativa «O Construtor». O protagonista, o Sr. Alberto, já idoso, armou no quintal,
da sua residência um verdadeiro estaleiro, onde intenta construir, dois barcos
– o “Estrela da Manhã” e o “Arlequim”. Chegados ao enredo, o leitor é convidado
a transpor fronteiras deslizantes e sem balizas divisórias, entre a realidade e
a imaginação. Um conto excelente enquanto temática ligada ao mar e pertencente
ao domínio do fantástico.
A
metáfora e a paráfrase estão representadas e bem, no conto «Egídio e Job», que
recria o episódio bíblico, transfigurado em cenários e personagens ilhéus.
Aproveitaria
a oportunidade para aqui registar em jeito de síntese, o comentário final do
prefácio de Arménio Vieira à edição de 1987, da obra em análise: “(…) o acto de escrever, quando assumido com
seriedade, é uma espécie de viagem, apaixonante, por certo, mas com alguns
escolhos pelo meio e tormentosos por vezes” (…) e continua:“(…) Baltasar Lopes, o contista (…) sabe
dos riscos que correu ao longo dessa travessia. Mas isso já não importa, uma
vez que a nave foi conduzida a bom
porto.”(Fim de citação).
Não
poderia estar mais sintonizada com as palavras de Arménio Vieira. Daí também o
meu desafio à Editora Pedro Cardoso, que tem feito obra notável em matéria de
edições, de reedições de clássicos nacionais, para que tome em mãos este
encargo frutífero de trazer para as novas gerações os contos de Baltazar Lopes
– memórias sociais e históricas das ilhas genialmente efabuladas – os quais,
merecem ser (re)lidos por leitores dos tempos hodiernos, enquanto passagens de
um testemunho, não só da condição de ilhéu, mas também de um passado que moldou
a nossa idiossincrasia.
Chegados
ao fim da revisitação dos contos incluídos nos «Trabalhos e os Dias», é tempo
de convidar o leitor a fazer o mesmo ou, a conhecer – porque vale a pena – o
lado contista do grande e multifacetado autor, poeta, romancista e filólogo que
foi Baltazar Lopes da Silva.
Nota devida: este Artigo foi publicado na Revista «Leituras» nº- 2 Abril/Junho 2018 da editora Pedro Cardoso.