MEMÓRIAS, SONHOS E PREMONIÇÕES

sábado, 8 de abril de 2017
Cada um de nós carrega memórias pessoais, umas mais remotas, outras mais recentes, umas mais gratificantes, outras mais sombrias, mas todas entrecruzando-se e formando uma mesma unidade complexa, que passa a integrar o consciente e o subconsciente. Algumas das memórias que transportamos têm tenazes que nos aprisionam, e de algumas não nos conseguimos desenvencilhar.

Enquanto dormimos e sonhamos, a nossa mente recupera sensações de experiências vividas, e assim se liberta de pressões ou traumas, ou realiza processos de catarse.

Num sonho recente, surge aos meus olhos um cenário de África, a profunda, a invadir os meus sentidos, cenário em que me sinto incluso como actor e ao mesmo tempo como observador lateral. Há uma estrada larga de terra vermelha, espécie de terreiro, frente a uma povoação indígena com cubatas dispersas, em meio a sinais ténues de terra lavrada. De repente, uma ventania fustiga tudo em redor e o espaço é flamejado por um fenómeno luminoso. Acto-contínuo, surge uma força militar, vinda do nada e desfilando ao longo do terreiro. À frente vai uma fanfarra em que predominam tambores, muitos tambores.

Sinto que faço parte integrante daquela força, mas circunstancialmente estou diferido da sua existência. O que me impressiona é a vigorosa e dramática sonoridade dos tambores, como se isso fosse a peça essencial daquele cenário. Todo o dia seguinte o som dos tambores em rompida marcha marcial retiniu-se no meu espírito.

Durante o sonho, o ruído não me perturbava, pelo contrário, desejava-o como algo de impetuoso e sublime, transmitindo-me numa fina nostalgia. É algo de paradoxal porque é como querer regressar ao passado para o rejeitar ou para eliminar o que ele possa ter tido de trágico. E sem dúvida que verdadeiramente mau foi a perda em combate de homens sob o meu comando: Angola, alferes comandante de pelotão, perda de 1 cabo e 1 soldado; Moçambique, capitão comandante de companhia, perda de 2 furriéis, 2 cabos e 8 soldados.

Mas o mais perturbante do meu relato vem a seguir. Naquela formação em marcha, na primeira fileira e do lado direito, em que me encontro como observador excluso da realidade observada, marcha o cabo morto em Angola. Chamava-se Aníbal Esteves Macedo, e já lá vão 51 anos desde que, numa madrugada de Junho de 1966, tombou ferido de morte.

Por que razão o sonho me permite identificar apenas o cabo, ao passo que tudo o resto é uma formação compacta de militares em marcha, sem mais outra individualização fisionómica?

Vejo o cabo, quero correr para mandar suster a marcha por alguma razão que aparentemente não tem nada a ver com ele mas que certamente tem tudo a ver. No sonho, o que sinto é tremendamente ambíguo: atracção pela grandiosidade daquela vivência a que pertenci de parte inteira, e ao mesmo tempo desejo secreto de apagar o que há ali de irreversivelmente trágico. Apagar a morte do cabo que repentinamente parece emergir da eternidade para me vir interpelar? Certamente. A verdade é que quero interferir com o andamento da força militar, invadir-lhe o espaço, diluí-la na memória, e, no entanto, sentir necessidade de com ela prosseguir e atravessar o tempo e o silêncio, imune a qualquer conjectura ou julgamento.

E aqui é que talvez resida a explicação do sonho. Aqueles dois rapazes tombados em Angola, que eram da minha idade, ali ficaram enterrados, no pequeno cemitério duma povoação indígena, que certamente estará lá intacto mas sem manutenção. Naquele tempo, não havia trasladação dos corpos dos militares falecidos, a não ser que as famílias custeassem as despesas. Mais tarde, por evolução da logística e por necessidade de preservar o moral das tropas, além do respeito e consideração para com as famílias, os corpos dos militares mortos passaram a ser-lhes enviados em urna de chumbo. Foi o que aconteceu com os de Moçambique.

Ora, o sonho talvez tenha sido uma acidental revelação do meu subconsciente, lá onde paira e pairará sempre a recordação de companheiros mortos na flor da idade, cujos restos mortais não foram devolvidos às suas famílias.

A coincidência é que passados poucos dias, recebo um mail de um antigo camarada militar contendo uma notícia
(link http://ultramar.terraweb.biz/Memoriais_concelhos_Angola_VilaGagoCoutinho.htm) sobre o estado de abandono das campas dos nossos militares que foram enterrados em Lumbala N’Guimbo, antigamente chamado Gago Coutinho, Angola. Mostra fotografias de algumas dessas campas e, entre elas, a do cabo que me apareceu no sonho – Aníbal Esteves Macedo.
O meu sonho foi uma premonição?


Tomar, Abril de 2017

Adriano Miranda Lima

quarta-feira, 5 de abril de 2017
José Carlos Mucangana

Subsídios para a caboverdeanidade (5):  A nova linguística soviética e como foi que Estálhine esclareceu os camaradas desorientados, que misturavam política e ideologia com a linguística, na Universidade de Baku.  Estálhine parece ter aprendido com os seus erros, depois do gulague e do respectivo holocausto, tornou-se promotor da liberdade de opinião na ciência.


A experiência relativamente recente da União Soviética (URSS) mostrou-nos que, quando os cientistas e investigadores misturam a política com a ciência, esta última afunda-se.  O académico ucraniano Trofim Denisovich Lysenko (1998-1996) tornou-se célebre por ter defendido uma genética proletária, oposta à genética burguesa americana.  Para ele, os genes eram conceitos burgueses.  Desta maneira, por falta de genes, a genética soviética perdeu a sua razão de ser e definhou.  T. D. Lysenko, o membro da academia, que prejudicou a genética, desviando-a do campo da ciência para o campo da política, como escreveu o Doutor Almerindo Lessa (1960, Seroantropolgia das Ilhas de Cabo Verde, Mesa-redonda Sobre o Homem Caboverdeano, Mindelo, 21 a 24 de Julho de 1956, Junta de Investigação do Ultramar, Estudos, Ensaios e Documentos Nº 32, 159 p.), era bem conhecido em Cabo Verde e a sua genética sem genes foi discutida durante a mesa-redonda do Mindelo sobre o homem caboverdeano, em 1956, à qual participaram 23 investigadores caboverdeanos, 1 indo-português e 6 portugueses.

Disparates deste quilate surgiram também, na linguística soviética.  Após o golpe de estado do partido bolchevique, que ficou conhecido por grande revolução socialista de Outubro, um professor da Universidade de São-Petersburgo, Nicholas Yakovlevich Marr (1864-1934), decano do Departamento das Línguas Orientais, que era filho de pai escocês, e tinha nascido de mãe georgiana, na Transcaucásia, aderiu ao marxismo-leninismo, que estava oficialmente na moda, e quis interpretar a linguística à luz dessa doutrina política. Tratava-se dum profissional de mérito reconhecido, que, só depois da revolução, se tornou marxista-leninista.  Aderiu ao partido bolchevique, provavelmente a toda a pressa para defender a sua cátedra e não ser saneado, e depois tentou ser consequente, estudando o marxismo-leninismo, inspirando-se deste na sua actividade profissional, a que tentou dar um cunho original e criador, como todos os verdadeiros cientistas.  Estas tentativas levaram-no a misturar a política com a ciência, a sua obra científica ficou esterilizada pela política e deixou de ter interesse.

A partir daí, teve uma carreira brilhante e tornou-se o mandarim da linguística soviética com a sua “nova doutrina linguística”, segundo a qual a noção de protolíngua era fictícia e as línguas nacionais se tinham formado pela convergência de numerosos dialectos tribais, uma origem “sociolinguística” antes da letra (Manuel Monteiro da Veiga, 1995, p. 19, O crioulo de Cabo Verde-Introdução à gramática do Crioulo, Instituto Caboverdeano do Livro e do Disco, Praia, 490 p.  Ver Subsídio 9.).  A linguística comparada era “burguesa” ao passo que a sua “nova doutrina linguística” era marxista e proletária, porque, segundo ele, as línguas tinham evoluído, com as lutas de classe, como parte integrante da superstrutura ideológica.  Recebeu o prémio Lênine em Janeiro de 1934, ano em que morreu e teve funerais oficiais (René L'Hermitte, 1984, Science et perversion idéologique: Marr, marrisme, marristes, une page de l'histoire de la linguistique soviétique, Institut d’Etudes Slaves, Paris, 104 p.).

A linguística soviética foi dominada pela nova linguística de classe até que Marr e os seus discípulos da Universidade de Baku, Azerbaijão fossem criticados pessoalmente pelo primeiro tsar (= imperador) da URSS, Yosif Visarionovitch Djugachvili, conhecido pela sua alcunha Estálhine e caucasiano como N. Y. Marr (Joseph Staline, 1950, A propos du marxisme en linguistique, in Derniers Ecrits 1950-53, Editions Sociales, Paris, p. 11 – 59).

Estáline negou que a língua fosse uma superestrutura (institucional e cultural) acima da base social, que definiu como “regime económico da sociedade a uma dada etapa do seu desenvolvimento”.  Lembrou que quando o regime económico se modifica, aparece a superstrutura que corresponde ao novo regime, mas que isso não acontece com a língua.  Exemplificou com a língua russa, que se manteve essencialmente a mesma, enquanto que a sociedade russa tinha atravessado três regimes económicos diferentes, feudalismo, capitalismo e socialismo, assim designava ele o capitalismo de estado, com as respectivas superstruturas diferentes.  Sublinhou que a língua é radicalmente diferente da superestrutura.

A seguir vamos resumir os principais esclarecimentos feitos por Estálhine, no seu estilo pesado e repetitivo, como respostas a questionários e a cartas de linguistas e membros do seu partido único.  Começa por lembrar, que não sendo linguista, não poderia dar inteira satisfacção aos seus camaradas mais competentes do que ele em linguística, mas que podia falar com conhecimento de causa das relações entre o marxismo e as ciências sociais.  Era um autodidata, que mostrou, nos seus últimos escritos, ter espírito prático, aberto às realidades e pouco dogmático.

(1)    Contrariamente à superestrutura a língua “não é obra duma classe qualquer, mas de toda a sociedade, de todas as classes da sociedade, (…) é criada como língua do povo inteiro, única para toda a sociedade”.  É uma ferramenta de comunicação entre os homens e o seu papel “não consiste em servir uma classe em detrimento das outras, mas serve indiferentemente toda a sociedade, todas as classes da sociedade.”

Acrescenta, mais adiante, que a língua “serviu de igual modo os membros da sociedade, independentemente das suas condições sociais” e que

(2)    a língua “está directamente ligada à actividade produtiva do homem”, por outras palavras ao trabalho.

Foi como língua de trabalho que os caboverdeanos ensinaram a sua língua materna, primeiro na Ásia e na África, a seguir, no Brasil e depois nas Guianas e Antilhas, aos escravos que lá encontraram e aos que iam chegando numerosos de África.

Entre as outras opiniões e comentários de Estálhine para esclarecer os “camaradas desorientados”, interessa citar ainda mais dois.

(3)    “Não se pode compreender as leis do desenvolvimento duma língua, sem estudá-la em relação estreita com a história da sociedade, com a história do povo ao qual pertence a língua estudada, seu criador e falante.”

Infelizmente a longa e rica história do povo caboverdeano está insuficientemente conhecida e estudada dentro do Arquipélago e ainda menos conhecida e estudada está a história da nação caboverdeana espalhada pelo mundo, no império português e como ramo da diáspora da nação portuguesa portuguesa, porque a história oficial portuguesa, tem escondido e ignorado, até hoje, páginas e capítulos importantíssimos da história de Portugal e seu império.  Voltaremos a discutir mais demoradamente este assunto em subsídios que se seguem.  Ainda vamos a tempo de eliminar esta grande lacuna e desenvolver o estudo da história das diásporas caboverdeanas nas nossas universidades.

Infelizmente os crioulistas do século XX gastaram os seus preciosos recursos para tentar compreender a formação das línguas crioulas com a ajuda da sociologia, quando deviam ter estudado a história dos seus falantes.  Acumularam milhares de páginas de trabalho inútil.  Já não vamos a tempo de recuperar todos os esforços desperdiçados, esta lacuna e desorientação dos crioulistas deu como resultado, durante um século de abnegado trabalho intelectual, inúmeros disparates, meio século antes e meio século depois de Estálhine se ter debruçado sobre a glotologia ou linguística.

Estáline criticou mais do que a perversão ideológica da linguística.  Criticou também as escolas sectárias que se tinham formado nas universidades a partir dessa perversão e do culto dogmático prestado ao mandarim e suas teorias sem fundamento científico.

(4)    “Está universalmente reconhecido que não pode haver ciência a desenvolver-se e prosperar, sem uma luta de opiniões, sem liberdade de crítica”, escreveu ele.  Foi por isso, que Estálhine criticou a escola da nova linguística de classe, que se tinha tornado um grupo fechado à crítica, mas aberto aos privilégios burocráticos e mercantis, onde só progrediam e subiam na hierarquia os adeptos incondicionais do mandarim desorientado.

Parece que os marxistas-leninistas caboverdeanos foram melhores discípulos de Trotsky do que de Estálhine, cujas obras aparentemente desconheciam, durante o exílio político, fora do país.  Com a leitura dos comentários de Estálhine à nova linguística soviética poderiam ter evitado misturar a investigação científica com a política, como infelizmente fizeram, cobrindo carências de informação, estudo e investigação com conceitos políticos, nomeadamente a “resistência dos escravos sublimada”.

Porém, mais vale tarde do que nunca, ficam neste subsídio registadas as ideias mais importantes, que Estálhine, marxista-leninista convicto, exprimiu sobre a linguística, em geral e sobre a nova linguística soviética, em particular.

Nos próximos subsídios tentaremos compreender e discutir mais detalhadamente as teorias da nova linguística caboverdeana baseada na sublimação da resistência dos escravos.

Antes de terminar, queríamos ainda confirmar que o tsar autodidata da URSS não deixava de ter espírito prático, aberto às realidades e pouco dogmático e até parece que aprendia da sua própria experiência, praticando a auto-crítica!...

No apocalipse terrestre da URSS, as vítimas contam-se aos milhões, entre elas muitos cientistas, como o grande economista russo Nikolai Dmitriyevich Kondratiev, nascido na aldeia de Galuevskaya, província de Kostroma, ao Norte de Moscovo, aos 4 de Março de 1892 e fuzilado aos 17 de Setembro de 1938, em Suzdal, perto de Moscovo.  Era filho de camponeses da nacionalidade komi.  Foi preso em Julho de 1928, depois de ter visitado a Universidade de Minnesota e outras universidades americanas.  Depois de ter cumprido a pena foi novamente julgado, condenado a dez anos de prisão incomunicável e logo fuzilado antes de ter começado a cumprir a nova sentença.  Tinha 46 anos, escreveu os seus últimos livros na prisão e correspondia-se com sua esposa e sua filha Elena.  Não foi enviado para a Sibéria e a proximidade de Moscovo da prisão, onde estava, indica que Estálhine queria ler o que ele ia escrevendo e que a ordem para ser fuzilado veio directamente do secretariado do comité central do PCUS.  Antes de ser preso, Kondratiev trabalhou no ministério da agricultura soviético e foi um dos promotores da nova política económica (NEP, em russo) adoptada por Lênine.  Tinha proposto um plano quinquenal para a agricultura.  Pensava que se devia começar por desenvolver o sector agrícola, seguindo-se a indústria.  Estálhine decidiu que a industrialização forçada, tirando recursos financeiros à agricultura, era o caminho mais rápido para chegar ao “socialismo” num só país.  Kondratiev elaborou a teoria dos grandes ciclos económicos, que tomaram o seu nome (ciclos de Kondratiev ou ciclos K), para explicar o desenvolvimento económico e as crises cíclicas do capitalismo, ciclos de 60+/-15 anos, aos quais o capitalismo de estado da URSS não podia subtrair-se.  Stálhine mandou fuzilar Kondratiev, que tinha ousado pôr em causa o mito da construção do socialismo a desembocar no comunismo.




Fig. O economista Nikolai Kondratiev com sua filha


Dois anos depois, foi assassinado, no México, Lev Davidovich Bronstein, mais conhecido pela sua alcunha Trotsky, que nasceu aos 7 de Novembro de 1879, na aldeia de Bereslavka, Ucrânia, no seio duma família de agricultores abastados e morreu a 21 de Agosto de 1940, na cidade de México, um dia depois de ter sido agredido pelo assassino (https://en.wikipedia.org/wiki/Leon_Trotsky).  O KGB tinha organizado três grupos independentes de assassinos e um célebre pintor mexicano do partido comunista também tinha tentado assassiná-lo.  Com os seus capangas do Partido Comunista Mexicano metralhou a residência descarregando as munições todas.  Com Trotsky, Estálhine queria enterrar a teoria de que não era possível estabelecer o socialismo num único país, mas só ajudou a criar o mito do seu camarada, que tinha fundado o Exército Vermelho, militarizado o trabalho (Ver Subsídio 6.) e a quem se pode reconhecer um olhar de psicopata, mesmo em fotografias tiradas há dezenas de anos. 

Os ciclos Kondratiev fizeram implodir a URSS.  Em 26 de Dezembro de 1991, a URSS dissolveu-se.


Depois de ter mandado assassinar um brilhante economista russo e muitos outros homens e mulheres de ciência, durante grande parte da sua vida, foi nos seus últimos dias, que o primeiro tsar soviético escreveu o que citámos mais acima:  “Está universalmente reconhecido que não pode haver ciência a desenvolver-se e prosperar, sem uma luta de opiniões, sem liberdade de crítica”.  Como interpretar esta sua frase?  Aprendeu dos seus erros?  Desculpava-se?  Estava arrependido?  Todos os seus assassinatos seriam, para ele, ossos do ofício dum político?  Mesmo com espírito prático e aberto às realidades e pouco dogmático, não passava dum típico marxista-leninista convicto e realizado…