BREVE OLHAR SOBRE A DEMOCRACIA CABO-VERDIANA

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Leiam o Artigo que se segue e que nos interpela, da autoria de Adriano Miranda Lima.  Publicado no «Arrozcatum» blogue de Zito Azevedo.

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 Não raras vezes, observadores internacionais apontam Cabo Verde como um paradigma em África. Relevam a paz social em que o país vive e, em particular, a observância do regime democrático vigente a partir das primeiras eleições livres e democráticas realizadas em 13 de Janeiro de 1991.
Relativamente a paz social, definamo-la, de um ponto de vista sociológico, como convivência harmoniosa entre os vários estratos sociais ou ausência de conflitos determinados por conturbação política ou sindical. Contudo, uma outra face da problemática social, acaso recôndita, pode revestir similitudes com uma verdadeira conflitualidade. É quando um governo naufraga na resolução dos problemas sociais, não impedindo que o desemprego, a marginalidade, a exclusão e a desesperança invadam o quotidiano das pessoas mais desprotegidas. Com efeito, ao olharmos para a forma galopante como vêm crescendo a delinquência e a criminalidade em Cabo Verde, com níveis preocupantes a assolar a capital do país, não podemos deixar de relacionar o fenómeno com a inépcia do sistema político. Vistas assim as coisas, não sejamos ingénuos para nos vangloriarmos de paz social quando fenómenos mais restritos mas não menos agudos nas suas incidências são capazes de perturbar o nosso viver, com consequências nefastas na tranquilidade dos cidadãos e até no funcionamento de alguns sectores da economia, como é o caso especial do turismo.

Quanto à democracia instituída no país, tem de se perguntar em que extensão a nossa práxis política reflecte as potencialidades virtuosas deste sistema de governação que Churchill considerou ser o pior de todos com excepção de todos os outros. Mas a pergunta não é inocente e implicará ir à génese da actual democracia cabo-verdiana, para procurarmos conhecer um pouco da sua natureza intrínseca. 

Ora, a democracia é como um jardim que se semeia, rega, aduba e poda, e se trata em permanência, sob pena de murchar e tornar-se algo ressequido e inerte, frustrando as expectativas. A nossa democracia não teve a fase inicial do seu cultivo, não se preparou o terreno, não se lançaram sementes, não se regou. A liberdade política foi devolvida ao povo em 1974, mas depressa ela foi sonegada por intromissão de um regime de partido único que afastou da concorrência outras forças que então se organizaram acreditando que a palavra seria dada inteiramente ao povo soberano para decidir em livre escrutínio sobre o seu destino. De facto, o sonho de uma sociedade plural não viria a realizar-se e, com a ascensão do PAIGC ao poder, foi suprimido o exercício da cidadania, morreu qualquer aspiração de associativismo cívico, instalou-se o medo na sociedade e a repressão política regressou em moldes idênticos aos dos tempos coloniais. Desta maneira, no período que decorre de finais de 1974 a 1990, a sociedade cabo-verdiana viu-se privada dos direitos e liberdades fundamentais, e, consequentemente, alienada da aprendizagem cívica e da pedagogia educativa essenciais à afirmação da democracia, com todo o seu escol de virtudes, em que os direitos se acotovelam com exigências e deveres. 

Em 1990, por alteração da conjuntura mundial, o partido único viu-se coagido a aceitar a abertura política e iniciou-se o processo de transição democrática. Mas, inevitavelmente, esta acontece de roldão, sem ser o corolário de um processo natural e evolutivo sustentado num quotidiano de vivências sociais e de práticas alicerçadas num sentimento partilhado de responsabilização colectiva. Do mesmo modo que um jardim sem húmus adequado e sem rega não produz flores, a nossa democracia era, no seu arranque, semelhante a um terreno árido, ainda por lavrar. A resposta dada então pelo eleitorado nas urnas, em Janeiro de 1991, terá consistido mais na rejeição do passado recente do que numa escolha clara e inequívoca. Desta maneira, não surpreendeu a queda do PAICV e a vitória do MpD, um partido neófito e criado por dissidentes do outro, que inaugura o primeiro governo eleito por sufrágio universal e viria a ganhar mais um mandato nas legislativas seguintes. Outras formações partidárias concorreram, nomeadamente a UCID, criada em 1977 por cabo-verdianos da diáspora, como movimento de oposição ao PAIGC/PAICV. No entanto, apesar da especial legitimidade política que poderia invocar, não teve um score eleitoral que impedisse o MpD e o PAICV de se perfilarem como os dois partidos mais destacados do arco do poder. E assim vem acontecendo, sem que se vislumbrem grandes alterações no espectro político-partidário.

Será, pois, pertinente perguntar se com a abertura política a partir de 1990 a nossa democracia passou a dispor de todas as condições básicas para se enraizar na sociedade, estimulando a participação cívica dos cabo-verdianos e envolvendo-os de forma dinâmica e interessada no processo de decisão política. Naturalmente que todas as condições formais foram asseguradas. No essencial, as liberdades cívicas passaram a ser respeitadas e desde então têm-no sido no plano jurídico-institucional, embora não venham faltando acusações mútuas entre o MpD e o PAICV de procedimentos tidos como fraude eleitoral em alguns escrutínios.

No entanto, contrariamente ao que era suposto, é um facto que as liberdades não despertaram desde logo as populações para a militância cívica que seria natural após tanto tempo de mordaça: o tempo da ditadura salazarista/caetanista acrescido do tempo do governo de partido único. É um fenómeno curioso que merecia ser objecto de estudo: procurar apurar as razões por que a cidadania cabo-verdiana parece ter ficado congelada em si mesma, inerte e descrente das suas virtualidades. Não escapa a esta crítica nem o cidadão comum menos informado ou escolarizado, nem a elite mais intelectualizada e socialmente responsável. Foram muito poucos os que puseram o dedo nesta ferida, a denunciar a apatia cívica e o conformismo da sociedade cabo-verdiana, e as vozes mais contundentes surgiram da diáspora, mormente quando um grupo de cidadãos (Grupo de Reflexão para a regionalização de Cabo Verde), a que pertenço, entendeu denunciar a excessiva centralização política do Estado, com a agravante de uma concentração dos órgãos de soberania num único lugar de um território de 9 parcelas descontínuas (habitadas). E quando o poder beneficia de maioria parlamentar reiterada em eleições consecutivas, mais abreviado fica o caminho para possíveis distorções na linearidade da conduta do Estado, e nesse sentido o Dr. Arsénio de Pina julgou bem quando, num dos seus artigos sobre a situação política e social do nosso país, afirmou: “centralismo democrático e maioria absoluta não se conformam”. Tudo isto ganha mais saliência se, efectivamente, uma mesma força política (o PAICV) obtém 3 vitórias eleitorais consecutivas, consolidando a política centralista e não dando o mínimo indício de reconsiderar a sua obstinada postura face a sinais claros oriundos de alguns sectores da sociedade, designadamente do Grupo atrás referido. Os efeitos têm sido perniciosos e são reflexivos, antes de mais, sobre os cidadãos, que vêem a inoperância da Justiça e a burocracia do Estado atrasarem ou obstaculizarem a fruição dos seus direitos ou a resolução dos seus problemas, e, numa escala mais vasta, são manifestamente letais sobre as legítimas aspirações de parcelas do território que se vêem prejudicadas pela assimetria criada pela política centralizadora.

Uma pergunta se oferece com a pertinência que cada um lhe quiser dar, naturalmente conforme a filiação partidária; a saber. Em que medida a consecução de três vitórias eleitorais seguidas, com a última em tempo de crise generalizada, sublinhe-se, é mérito incontestável de quem a obteve ou é demérito declarado da oposição? Ou, num sentido mais lato, até que ponto é isso também consequência de uma cidadania demissionária ou acrítica, incapaz de um julgamento consciencioso da acção governativa?  

Um breve e despretensioso balanço do governo ao longo destes últimos quinze anos, dir-nos-á que houve uma aposta clara e assumida na infra-estruturação do país, o que ninguém pode de boa mente negar. Mas, em contrapartida, o crescimento económico abrandou consideravelmente, hoje bastante anémico, em parte devido à crise mundial, mas também por insistência num modelo económico esgotado, que pouco ou nada saiu ainda da reciclagem da ajuda externa. Por conseguinte, há uma reforma profunda do Estado e da administração pública que está por fazer e que os governos do PAICV não ousaram e da qual até fazem ouvidos moucos, mesmo quando se torna cada vez mais gritante que o peso excessivo do aparelho estatal e a burocracia emperrante são inimigos de um modelo económico que atraia o investimento externo e estimule o interno. Economistas de vários quadrantes de pensamento entendem que é imperioso melhorar significativamente o ambiente de negócios para que a economia cresça, o que exige inapelavelmente bom funcionamento da Justiça, um código do trabalho acessível e um melhor acesso ao crédito, sob pena de se tornar insustentável a nossa dívida pública, que, segundo o Banco de Cabo Verde, atingia em 2014 a cifra de 114% do PIB. Valor que é preocupante para um país pobre que não pode abdicar do financiamento externo da sua economia.

Neste momento, existe um ruído de fundo na sociedade cabo-verdiana a indiciar que as próximas eleições legislativas vão proporcionar alternância democrática, com a provável vitória do MpD. Note-se que este é um assunto em que procuro manter-me equidistante das formações partidárias, inibindo-me de outro juízo que não seja meramente analítico. Sabe-se que o MpD decidiu inscrever na sua agenda política a regionalização do país, questão que é muito cara ao aludido Grupo de Reflexão para a Regionalização de Cabo Verde. Tratando-se de uma matéria em que o PAICV agiu sempre com uma atitude de rejeição ou procrastinação, eis que o MpD parece sintonizado com o que não deixará de ser uma reforma orgânica de assinalável importância para Cabo Verde, tenha ela o alcance e a extensão que preconizamos nas nossas reflexões. Seja como for, será salutar para a democracia a alternância no poder nesta altura em que o próprio presidente da república afirmou que estamos numa encruzilhada e sugerindo que há medidas reformistas que não podem mais ser postergadas ou iludidas (entrevista dada à Lusa em 01/07/2015). A não alterar-se o cenário político, será a perpetuação do mesmo partido no poder, o que o colunista José Lopes receia ao afirmar, no seu último artigo, publicado no Cabo Verde Directo, que a “consagração por via eleitoral de um regime de partido único não será por certo a melhor solução para o país” (1). 

O que não será certamente do interesse nacional é que uma nova vitória absoluta do PAICV consagre e legalize um pseudo regime de partido único, por fazer lembrar estas palavras de Lord Acton: “todo o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Mas também não queremos vir a reconhecer que Giuseppe Tomasi di Lampedusa tinha razão quando disse que "é preciso mudar para que tudo continue na mesma". Ambos os desenlaces, a consumarem-se, seriam equivalentes a um enorme e fatídico tropeção nesta “encruzilhada” em que nos encontramos. Para evitar tanto uma como outra daquelas probabilidades indesejáveis, é importante que comecemos a dedicar mais cuidados a este jardim que é a nossa democracia. Tanto mais que a alternância no poder não é um princípio democrático, é a expressão da vontade popular, mas esta só é fonte genuína do poder se esclarecida e continuamente frequentada por activa e criativa cidadania.

 

(O autor escreve de acordo com a antiga ortografia)

 

Tomar, 19 de Fevereiro de 2016

Adriano Miranda Lima

 

(1) LOPES, José, “2016, o ano de mais uma encruzilhada para Cabo Verde”, jornal on-line Cabo Verde Directo.

 

CRÓNICAS PARA FAZER RIR, OU TALVEZ NÃO - 4*

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

* Lembrar que estas crónicas pretendem dar resposta ao artigo do jornal português Público (https://www.publico.pt/mundo/noticia/ser-africano-em-cabo-verde-e-um-tabu-1718673).
(Para esta, não precisa dum grande sentido de humor)
 
ALIENAÇÃO

 Cada ser humano tem o dever de verificar se o que os iluminados lhe dizem corresponde à realidade – pois poderá sempre haver uma lâmpada fundida!

-- M. Odette Pinheiro

Se na década de 50 ou 60 do século passado se perguntasse aos caboverdianos o que eram, responderiam que eram caboverdianos ou, alternativamente, que eram portugueses. E oficialmente eram, pois tinham aquele rectângulo de papel com o nome e a carinha estampada e impresso: Bilhete de Identidade, República Portuguesa. A primeira resposta era a identificação telúrica, o que nos definia como pessoas. A outra, a identificação oficial, que definia a nossa cidadania no país e no mundo, significando “cidadãos de Portugal”.

Claro que ninguém pensava que étnica ou culturalmente fosse como o português da Europa. Só os que não tivessem espelho. Mas, embora os chineses ainda não tivessem chegado com as suas lojas que liberalizaram as bugigangas, a maior parte tinha um espelho em casa, mesmo que fosse pequenino. E até havia algumas montras em que as pessoas podiam fingir olhar para as coisas expostas, enquanto contemplavam a cara e o penteado. Principalmente nessa altura em que os rapazes usavam muita brilhantina e tinham “muito luxo” com o cabelo! Tinham de ter espelho. Então as meninas!

Portanto, todos sabiam que havia diferenças (não só fenotípicas mas também culturais) entre os nacionais, nós os “autóctones”, e os que vinham da Metrópole, a quem até se chamava algo que ao tempo eu não sabia ser pejorativo e que usávamos com toda a naturalidade quando nos referíamos aos portugueses de Portugal (mandrongos, em crioulo). É que o caboverdiano é mesmo assim, especialmente o de S. Vicente: o seu hobby preferido é alcunhar os outros e brincar com tudo, embora geralmente sem maldade.

A consciência das diferenças por vezes era bastante sofisticada, atingindo até aspectos não muito evidentes, pois as mulheres caboverdianas vangloriavam-se de não terem “toco de mandronga”, uma diferença subtil (às vezes não tanto!) entre os seus tornozelos bem torneados e os das outras…

Agora, é verdade que o Senhor Reis, nosso professor de canto coral, nos ensinava a cantar: “Portugueses, celebremos o dia da Restauração, em que valentes guerreiros nos deram livre a Nação!” E sentíamos cá um orgulho por Portugal ter conseguido correr com os Filipes usurpadores! E vibrávamos com Aljubarrota e com Brites de Almeida que, com a pá do seu forno, havia apressado a ida de sete invasores castelhanos para o outro mundo! Até com D. Afonso Henriques, que havia roubado (Deus lhe perdoe!) um pedaço do Reino à mãe, para o declarar independente! E com o soldado que no terremoto de 1775 não abandonou o seu posto à porta da Casa da Moeda, mas ficou firme enquanto tudo ruía à sua volta!

Pena é que não nos ensinaram a história dos nossos ancestrais do outro lado. Teria sido bom ouvir das glórias do lado africano, se esses relatos já estivessem disponíveis e tivesse havido vontade de os dar a conhecer. Isto poderia ter contribuído para uma ideia equilibrada e conhecimento do outro lado das nossas raízes. Não aconteceu e não somos os responsáveis.

Mas será que isso nos alienou, como pretendem alguns? Não, pois não é verdade que o povo caboverdiano tenha crescido a pensar que era branco como os europeus. Crescemos, sim, conscientes de que éramos tão capazes como eles e que com a mesma instrução e o mesmo treinamento e oportunidades poderíamos fazer tudo o que eles faziam e não lhes ficar atrás. Essa foi a nossa força, a certeza de que não havia em nós qualquer inferioridade, e que ser descendentes de preto e branco, qualquer que fosse a proporção, não nos desqualificava como seres humanos. Alguns de nós até achávamos (e ainda achamos) que ser moreno, até muito moreno, era muito mais bonito que ser branco deslavado.

Além disso, branco e preto adquiriram entre nós conotações económicas e sociais, independentemente da cor da pele. Um caboverdiano de pele muito escura, mas com um estatuto social elevado, era considerado como pertencendo à “classe dos brancos”, e o contrário também era verdadeiro: a cor clara não era necessariamente passaporte para a elevação social; a não ser o branco que viesse de fora, que era quase sempre aceite na sociedade sem questionamentos. Conscientes das deficiências na educação e instrução de alguns e algumas, costumávamos dizer que peixeiras analfabetas embarcavam em Lisboa e desembarcavam em Cabo Verde já promovidas a senhoras da sociedade. Mas se, por ignorância, ousassem ter atitudes de superioridade (o que acontecia, embora raramente), eram logo atalhadas, pois o caboverdiano sabia que não lhes era inferior. Foi o que aconteceu um dia na Loja da Lalocha (Casa Serradas). Umas “senhoras” da Metrópole entraram e a Lalocha continuou a atender as caboverdianas que já lá estavam. Ao que uma dessas perguntou: “Lalocha, por que atende as pretas primeiro do que a nós?” Com toda a serenidade, a Lalocha respondeu: “Porque as pretas chegaram primeiro!” Sem stress!

Compreendo que alguns dos caboverdianos que foram entrevistados para o jornal Público, e que confessadamente não sabiam do problema da discriminação racial por este mundo fora, tivessem sofrido um choque ao se sentirem discriminados em Portugal ou noutro país qualquer. Ao entrarem num mundo apostado em os inferiorizar, a realidade da discriminação rebentou na cara de muitos, roubando-lhes a inocência racial com que viviam em Cabo Verde.

Mas também é verdade que nunca devemos deixar que sejam outros a definir a nossa identidade, a mudar o conceito que temos de nós mesmos, a dizer quem somos. A discriminação vence-se com nobreza, impondo-nos pela postura e comportamento, pela força da inteligência e pela superioridade moral que advêm de sabermos quem somos e que temos a razão do nosso lado.

Infelizmente, parece que alguns ao serem discriminados passaram a pensar-se diferentes do que sempre haviam pensado; outros mudaram a sua postura e decidiram chocar completamente os que os discriminavam, adoptando os comportamentos inferiores que por ignorância lhes eram atribuídos. E parece que muitos passaram a projectar nos outros o seu próprio desconforto, achando que nós que nos sentimos seguros na nossa caboverdianidade e não temos ressentimentos, que não nos sentimos nem inferiores nem superiores (atitude I am OK, you are OK), é que somos complexados e alienados, porque devíamos, todos, passar a dizer-nos negros, anti brancos e revoltados com tudo que cheire ao antigo colonialismo (até a língua!).

A força de Martin Luther King é que nunca deixou que fossem outros a defini-lo; ao contrário de Malcolm X, e muito provavelmente devido à sua forte matriz cristã, não deixou que o ódio dos adversários lhe impregnasse a alma, que a discriminação o minimizasse, mantendo-se sempre superior a eles pela força da razão, do direito e do respeito pelo outro – a única que deve impulsionar o ser humano.

Foi o mesmo com Gandhi. Quando odiado, recusou odiar; quando batido, recusou bater – porque não há nada mais aviltante para o ser humano do que bater repetidamente num homem que nos olha com olhos de amor e não retribui na mesma moeda: produz uma vergonha tão profunda que leva o agressor a odiar a si mesmo e a retirar-se (isto era verdade pelo menos antes dos fundamentalismos actuais). E, assim, a Índia ganhou a sua independência dos ingleses, quase sem derramamento de sangue.

A força da nação caboverdiana é que já éramos uma nação muito antes da independência, mesmo que ainda inseridos num Estado muito mais vasto, Portugal, de que nos sabíamos diferentes.

Nação é a reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo étnico, que falam o mesmo idioma e têm os mesmos costumes, formando, assim, um povo. Uma nação se mantém unida pelos hábitos, tradições, religião, língua e consciência nacional. Os elementos território, língua, religião, costumes e tradição, por si sós, não constituem o caráter de uma nação. A característica dominante deve ser a convicção de um viver coletivo, ou seja, quando a população se sente constituindo um organismo ou um agrupamento, distinto de qualquer outro, com vida própria, interesses especiais e necessidades [realce acrescentado]. http://www.significados.com.br/nacao/

Quando nestas ilhas se desenvolveu uma comunidade distinta de qualquer outra, sem que nos pudéssemos identificar étnica ou culturalmente com Portugal ou com qualquer outro povo em África, adquirimos a nossa própria consciência identitária e nacional. Isto não é alienação, é viver uma verdade objectiva. Alienação é tentar ignorar qualquer um dos lados da nossa origem, jogar um contra o outro ou procurar voltar para trás, para tentar readquirir hábitos e características que ficaram lá muito para trás, como se ainda lá estivéssemos (o que não é possível). Como costumo dizer, a minha cultura é a que recebi no leite da minha mãe!

E crescemos como cidadãos ajustados, sem nos sentirmos afectados pela cor da nossa pele ou pela nossa pronúncia diferente e, muito menos, por haver uma possibilidade remota de que uma tetra, penta, ou hexavó negra pudesse ter sido violada por um branco, começando assim a nossa mestiçagem. Infelizes aqueles que não conseguem ultrapassar os seus traumas de infância, quanto mais os que ficam agarrados aos traumas de gerações muito anteriores, mormente quando esses traumas se esfumaram na bruma do tempo e na memória perdida de alguns séculos e até dos próprios antepassados — pois não houve entre nós histórias de violações contadas e repisadas de geração para geração, para ainda nos afectarem.

E não, não é verdade que tais factos sejam transmitidos inconscientemente de geração para geração, de modo a poderem influenciar-nos séculos depois. A capacidade do ser humano para a saúde e para a recuperação é muito maior do que isso! Se não, acabada estava a vida das mulheres que nesta geração estão sendo açoitadas pela violência doméstica, pela violação, pelo rebaixamento de qualquer espécie. Pois garanto-vos, minhas irmãs, que a recuperação é possível, e que há possibilidade de saúde mental e espiritual depois disso, mesmo possibilidade de vida abundante, apesar de qualquer tragédia ter querido roubar-vos a dignidade. E o mesmo para qualquer outro ser humano.

A prova de que o caboverdiano cresceu geralmente ajustado e com um bom grau de autoestima (ninguém a tem perfeita, mesmo em países desenvolvidos), é que nos demos bem onde quer que fomos no passado: nos países nórdicos, nos árabes, em toda a Europa, na América Latina, nos Estados Unidos, em África. Para onde escolhemos ir, fomos cidadãos adaptados, trabalhadores, cumpridores, que honrámos a nossa terra e não a envergonhámos nem nos envergonhámos dela. E a cor da nossa pele ia do branco ao negro!

Nas universidades e nas escolas médias, em Portugal e noutros países, marcámos pelo afinco ao estudo, pelo saber-estar, mesmo os que eram muito pobres, indivíduos feitos a pulso por não terem nascido em famílias abastadas (pouquíssimas em Cabo Verde): muitos que de meninos de recados ou de pequenos caixeiros de lojas insignificantes, conseguiram estudar à luz do candeeiro, fazer o liceu em três anos, singrar e alcançar um lugar ao sol, não só cá dentro como também noutros lugares do mundo! Sem grandes crises existenciais, sem problemas de identidade! Caboverdianos genuínos, qualquer que seja o sentido que quisermos dar à frase! Se há um problema de identidade, apareceu mais tarde, quando se tentou voltar a roda da vida para trás!

Como escrevi algures, é bom que esta nossa nação agora corresponda a um Estado independente, e que possamos andar pelos nossos próprios pés, embora ainda com a ajuda de algumas muletas. Mas precisamos recobrar ou não deixar que ninguém nos roube a consciência da nossa caboverdianidade, para avançarmos sem complexos de branco ou de negro no sentido da concórdia, com uma juventude ajustada, para que todo o seu potencial seja canalizado construtivamente para o bem e não para a revolta e para a instabilidade social, juntando todas as suas valências para fazer progredir estes dez grãozinhos de terra, cujo povo é uma comunidade distinta de qualquer outra no mundo. Nem superior, nem inferior a nenhuma outra! Simplesmente diferente, com as nossas especificidades!

É Preciso Refrescar a Memória?...

domingo, 14 de fevereiro de 2016

 
Cheguei a casa e encontrei-a mergulhada em papeis. À sua volta, ou melhor, à volta da cadeira, postada sobre uma carpetezinha, em que se encontrava sentada com uma prancheta azul à ilharga, junto a uma estante de livros, espalhavam-se jornais, revistas, livros e outros documentos não identificáveis (por mim) numa confusão indescritível. Aparentemente caótica. Mas eu sabia bem que a desordem era mesmo aparente – um caos organizado - e que depois tudo voltaria ao seu lugar. Na mão um exemplar do “Terra Nova”. Olhei para ela, não muito admirado, porque o cenário já me era familiar, – repetia-se amiúde quando ela tinha em mãos um trabalho que exigia alguma “investigação” doméstica – mirei-a interrogativamente e perguntei-lhe, de forma talvez um pouco abrupta: Que procuras desta vez?

Não respondeu à minha questão e com um olhar de clara surpresa estampada na cara – que me deixou em expectativa – os seus olhos claros muito mais abertos do que habitualmente reflectindo estupefacção, avançou-me, como se eu já estivesse contextualizado e sintonizado com ela: Chegaste a ler esta entrevista?

– Entrevista? Perguntei eu. Qual entrevista? Normalmente leio o jornal todo… acrescentei.

– Esta! A do ex-presidente da república! replicou.

– Devo ter lido, respondi de forma displicente, acrescentando: Qual é a data do jornal?

– Julho de 2013.

– Julho de 2013? Querias tu que eu me lembrasse de uma entrevista feita há dois anos e meio? Não te esqueças que já celebrei muitos aniversários. E a minha memória também. Não fez caso dos meus comentários e retrucou:

– Disto tinhas que te lembrar… São assuntos que normalmente não te escapam e ainda por cima é apresentado em grandes parangonas, disse-me enquanto apontava com o dedo a frase exibida na primeira página do jornal: ”HÁ UM PRECONCEITO* GRANDE EM RELAÇÃO AOS PARTIDOS ÚNICOS” afirmando: Isto é uma vergonha. Tira qualquer um do sério! Estou escandalizada!

Franzi a testa, levantei o sobrolho e disse-lhe:

– Tens razão, se calhar não a li… Essas nossas frequentes andanças para Lisboa, Praia, Lisboa fazem-me perder uma boa parte das informações... Outrossim, (observei a fotografia) … Ele tem um discurso passadista e uma exacerbada sede de protagonismo… Deixa-me ver o jornal! …

Sentei-me e pus-me a ler a entrevista. Procurava o enquadramento da tal frase que aparentava a lavagem da memória do passado e uma negligente justificação dos seus anos de governação, sem oposição, isto é, sem qualquer abertura para o contraditório. Na verdade não a tinha lido, a entrevista. Não era possível tê-la lido e ficado indiferente! A generosidade da jornalista em aceitar determinadas respostas sem contrapor era bem patente. Via-se ao longo da entrevista que, mau grado a organização das perguntas, se não era, parecia ser uma debutante em assuntos políticos. Parecia mais uma entrevista escrita onde não tinha havido complementação das respostas do que ao vivo como ilustram as imagens que a acompanhavam. Como aceitar a justificação das fraudes de Baluarte, Mãe Joana e Covoada comprovadas em tribunais, decisivas para a sua eleição com um simples: ”Tem de ver o meu comportamento. Eu não dei importância a isso porque não havia de estar a responder a todas as provocações. Tem de verificar o meu comportamento.” (Fim de citação e da resposta)

Era isto mesmo que a jornalista devia interpor. Sim, precisamente o seu comportamento, senhor comandante, que foi de silêncio absoluto, de acomodação às fraudes e do seu aproveitamento cúmplice. Responder a provocações? Que provocações? O que se esperava era que o senhor fizesse uma condenação pública das fraudes eleitorais e se demarcasse daqueles que as cometeram em seu nome. Toda a gente esperava que procedesse em conformidade com o que disse atrás, referindo-se ao assassínio de Amílcar Cabral, que as “assumisse” tendo em conta a quem o crime beneficiou ou interessou…

A entrevista está prenhe de fait divers e de subtil arrivismo. E também da glorificação de um passado, em muitos aspectos, de triste memória onde sobressaem a exclusão e a repressão. Com quem então preconceitos em relação aos partidos únicos?! Dizer-se isto em 2013 não é só preciso ser-se apenas um antidemocrata, é também declarar-se um convicto inimigo da democracia.   Compreendo a exclamação de “escândalo!” que me alertou para a entrevista. Partido único não combina com democracia e fazer a sua apologia, quais forem as circunstâncias é colocar-se contra a democracia o que, aliás, o entrevistado declara frontalmente na entrevista ao assumir que a prioridade não era a democracia, mas sim “pôr de pé o estado soberano e suas instituições” como se isto não fosse possível, e até desejável, em democracia. Este raciocínio de secundarização da democracia em proveito próprio e do clã define, por si só, a natureza do regime.

E na mesma linha, chega a ser confrangedora e caricata a resposta à pergunta: “Considera que houve ditadura em Cabo Verde?” Vale bem a pena reproduzi-la:

Eu acho que não. Ditadura como? Ditadura com a responsabilização das pessoas? As pessoas é que fizeram aquilo. Era Pedro Pires o grande ditador? Tem de pensar nisso. Porque a pessoa que está consigo aqui é a mesma que começou como Primeiro Ministro de Cabo Verde. Se for ver as minhas declarações, há-de chegar à conclusão de que se optou pela solução que eu acho mais eficaz, a que estava ao alcance. Mais. Há que ter em conta que fora o PAIGC, quem é que lutou mais para a independência de Cabo Verde? Eu acho que pouca gente ou ninguém. E apareceu gente? Sim. Depois de já termos a independência ou depois do processo encaminhado para a independência. Antes não passávamos de meros terroristas.” (Fim de citação, o itálico é meu)

Descodificando, era como se dissesse: “Este velhinho simpático, afável, com inquestionável bonomia que está à sua frente, poderia alguma vez ter sido um ditador? Ele é o mesmo de há 40 anos. Aliás, mesmo que tivesse havido ditadura, ela estava justificada primeiro porque eu [que sei tudo] achei que era a “solução mais eficaz” depois, porque só o PAIGC lutou para a independência, para a posse da terra e da gente, e os que vieram depois não passam de oportunistas e, por isto, sem direito a nada.”

Simplesmente patética, a resposta. Mas não ingénua nem despida de arrogância e paternalismo, pois quando a jornalista o confronta com: “Como explica, por exemplo, a lei da reforma agrária e a opressão dos opositores ao regime?” Diz umas generalidades sobre a reforma agrária apoiando-se (imagine-se!) numas hipotéticas intenções do regime colonial sem falar das consequências desastrosas e criminosas da que aplicou. E sobre a segunda parte da pergunta: “a opressão dos opositores ao regime” nem uma vírgula. Acabei de ler a entrevista, dirigi-me a minha interlocutora e disse-lhe:

– E tu, já leste a entrevista?

– Sim, dei-lhe uma passagem rápida… respondeu-me ela. E repliquei:

– Porque será que a jornalista não o “obrigou” a responder à questão dos opositores ao regime? Não compreendo a omissão a uma resposta tão clarificadora quanto aos eventuais preconceitos sobre os partidos únicos e as ditaduras que geram. Fiz uma pausa e continuei:

– Porque não lhe falou a jornalista das arbitrariedades da polícia política (DL 95/76); das perseguições aos opositores; da proibição de partidos políticos; da lei que criminaliza boatos (Dec. 37/75); da lei de prisão arbitrária apenas por suspeição; da lei (Decisão com Força de Lei nº 1/77) que estabelece a impunidade dos membros do Governo perante a lei; dos tribunais militares de génese totalmente político-partidária – combatentes da Guiné – (conjugação DL nº 121/77 e nº 8/75) para julgar todos os militares (e militarizados) e alguns civis; do juramento de fidelidade dos funcionários a um partido (binacional) – o PAIGC – e não ao Estado de Cabo Verde (Dec.4/76); da autorização de saída; do delito de opinião; das torturas; das mortes de opositores?

Se isto não configura um regime ditatorial que só pode ser gerado por um Partido Único (ou ausência de partidos), então não há ditaduras e não haverá qualquer razão para se ter preconceitos em relação a Partidos Únicos.

– Olha, o que me surpreende é como é que um homem que jurou defender uma Constituição tão democrática como a nossa e, obviamente, pluralista e defensora dos direitos, garantias e liberdade dos cidadãos, ousa falar tão apologeticamente de partidos únicos. Está visto que não bate a bota com a perdigota. Só pode ser compreendido, não justificado, no âmbito de uma estratégia de exaltação e glorificação de um regime que todo o País condenou de forma inequívoca no dia 13 de Janeiro de 1991. Parece que o regresso ao poder, dez anos depois, travestidos de democratas, fá-los pensar que o povo já se esqueceu do veridicto de 1991.

É preciso refrescar a memória!

A.   Ferreira

 

 

CRÓNICAS PARA FAZER RIR, OU TALVEZ NÃO - 3

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

 

(Para ler esta não precisa de muito humor)

 

MUDANÇA DE GUARDA

Por ser racional, o ser humano tem o dever de contextualizar tudo. Apresentar argumentos deslocados do seu contexto histórico e social é simplesmente um pretexto para desvirtuar a verdade e manipular a história a favor de interesses inconfessados.

- M. Odette Pinheiro

Não me lembro quando obtive o meu primeiro Bilhete de Identidade. Talvez tivesse sido quando ia entrar para o Liceu. Mas lembro-me que era um Bilhete de Identidade da “República Portuguesa”. Como o de todos os caboverdianos, na época. Aqui não havia essa discriminação oficial existente nas outras colónias, em que uns eram considerados cidadãos e outros não.

Dizem que Portugal nos considerava cidadãos para nos poder usar como capatazes para dominar o resto da malta (leia-se, povo das outras colónias). Não sei, pois não alinho nesta nossa mania crioula de atribuir motivações aos outros (a qual até está bem patente nos comentários aos meus artigos), como se alguém pudesse ler o pensamento alheio: tal e qual se ouve frequentemente no Parlamento (“vocês fizeram isto porque…” e apontam as motivações mais variadas, que podem estar bem longe da realidade). Eu… prefiro dar o benefício da dúvida, pois não sou Deus para saber o que vai no pensamento ou na alma de outra pessoa.

Como estas ilhas eram desertas quando os portugueses as descobriram ou acharam (conforme preferirem, embora alguns escolham acreditar em habitantes inexistentes, justificando, assim, uma certa linha de pensamento), começando só então a nossa história como comunidade (a outra começou, realmente, com Adão e Eva; e alguns podem querer ir até ao homo sapiens sapiens, ou mesmo antes), e tendo eles contribuído para a nossa matriz como povo, talvez tivessem por nós um certo… “carinho” – eles que são uns sentimentalões, caso contrário nunca cantariam o fado, que, se não estivermos de sobreaviso, nos põe todos a chorar e nos pode deprimir a pensar que todo o amor é infeliz, que só há traição e o mundo é tão triste…! Além disso, vejam a massa que têm mandado para cá, embora, como dizia o nhô Djunga, mandem também uns tubarões (não os Azuis) para levar parte dela de volta.

Mas a verdade é que Cabo Verde teve oportunidades que as outras colónias não tiveram, o que muito nos veio a beneficiar depois da independência, ajudando-nos a alcançar o patamar que já alcançámos, pois tivemos pontos de partida sociais e educacionais muito diferentes, e mesmo de desenvolvimento, apesar de toda a nossa pobreza. Hoje falamos como se o que conseguimos foi só mérito nosso, como se tivéssemos partido da estaca zero, o que não é verdade!

Tivemos oportunidades especialmente em matéria de instrução. Não foram tantas como gostaríamos, pois não havia escolas suficientes para todos, e não criaram cá nenhuma universidade, nós que já temos 10 (uma para cada 50 mil habitantes!), enquanto eles se contentaram por vários séculos em ter só uma. E já com 10 milhões de habitantes tinham umas escassas três, e por muito tempo.

Mas a verdade é que facultaram aos caboverdianos estudar nessas três, à nossa escolha (nem sequer havia numerus clausus, para se ter de entrar à dentada), ou nas suas muitas escolas médias, como as de Magistério Primário, Enfermagem, Regentes Agrícolas, etc. Para isso era preciso ter o “cacau” necessário ou conseguir uma das bolsas que davam aos alunos com melhores notas e que não tivessem condições financeiras (tal e qual hoje, mas em muito menor escala), à custa das quais muitos ganharam formação e a exposição às ideias do mundo lá fora – que lhes permitiu seguir os caminhos que levaram à luta pela independência. De Portugal, ou de posições no “mundo então português”, saíram para se dedicarem à luta.

Nessa altura, os poucos que tivessem a sorte e a oportunidade de fazer o liceu e terminar o antigo 5º ano (melhor ainda se fosse o 7º), e não podiam ir estudar fora, concorriam ao Banco, à Alfândega ou à Administração Pública, pois o comércio local só podia abranger poucas pessoas e eram mal pagas. E preenchiam cá os quadros, ou iam para o sul servir nas outras colónias, ganhando a vida dessa maneira, já que as oportunidades de instrução para os habitantes dessas colónias eram ainda menores. Aquando da independência, a maior parte dos cargos públicos em Cabo Verde, mesmo os de chefia, eram preenchidos por caboverdianos.

Mas a quem tinha pouca ou nenhuma escolaridade restava a vida difícil de trabalhar a terra. E quando vinham os anos de seca, viam-se obrigados a “dar nome” para Angola ou São Tomé, o Caminho Longe, donde muitos não voltavam, a ponto de se cantar em Santo Antão que “terra longe tem gente gentio, gente gentio ta comê gente, ta comê gente até os osso”! Reminiscências de tempos remotos em que ainda havia canibalismo a que, exagerada e até “deslocadamente”, se associava essa Terra Longe, medonha para tantos! Mas Terra Longe era a única esperança de sobrevivência. Ficar era morrer. Ir dava uma possibilidade de escape, embora não garantida. É como quando o cirurgião, confrontado com a necessidade de uma operação arriscada, está perante o dilema: operando, pode morrer; não operando é morte certa.

Quanto às condições de vida, pensávamos que em Portugal viviam à grande e à francesa, enquanto em Cabo Verde se curtia a fome. Pensávamos… até chegar lá e ver o analfabetismo, a pobreza e o subdesenvolvimento que grassava. Claro que não havia as secas como cá, e por isso não havia a quantidade de mortes pela fome. Mas pão com uma sardinha era o almoço de muitos trabalhadores no Metropolitano de Lisboa. Trabalhando duro e ganhando muito pouco.

Entretanto, Salazar dizia: “Ao português, basta saber ler, escrever e contar”, o que era pouquíssimo numa Europa industrializada que avançava a olhos vistos. E os portugueses emigravam aos montões para a França, para fazer os trabalhos servis que os franceses já não queriam fazer. E lá viviam nos bidonvilles, como nas favelas que há nos subúrbios de Mindelo, Praia, Espargos e Sal Rei. Era um povo também sofrido, embora não tanto como o nosso! Só que tínhamos a vantagem do clima, ninguém morria de frio ou calor!

Mas Salazar sofria daquele orgulho incompreensível de se contentar com estar “orgulhosamente só”. De maneira que, enquanto ligados a Portugal, quando as secas nos atingiam não havia possibilidade de haver campanhas de solidariedade a nosso favor, como escreveu Jorge Barbosa. O nosso destino era morrer sozinhos, a solidariedade internacional não era procurada nem permitida. O orgulho não deixava estender a mão para pedir socorro, nem para eles mesmos, quanto mais para uma parcela do “império” donde não lhes vinha nada (nem petróleo, nem ouro, nem diamantes), este Cabo Verde (que ironia de nome!) de “rotcha nu, sima menine ta nacê”.  

Mas, voltando atrás, quando estudante em Portugal pude compreender o que uma mentalidade retrógrada no poder pode fazer a um povo (até a um Império, de norte a sul!). Não era simples crueldade para connosco, era mais uma certa inépcia misturada com arrogância, essas coisas que por vezes atacam alguns políticos e não os deixam ver claramente. Era também descaso e teimosia, tudo institucionalizado, que impactava negativamente a própria Metrópole. Importava mudar! Precisávamos de encontrar alternativas! Tanto nós como o povo português, o de ginjeira!

E a mudança chegou. Chegou para o povo português na Revolução dos Cravos, esse quase milagre que fez com que em poucas horas a ditadura fosse deitada pela janela fora, sem derramamento de sangue, embora seguido de um período conturbado, em que de novo o totalitarismo tentou assenhorear-se do país. E nesse período Portugal tornou-se economicamente ainda mais pobre, embora tivesse conseguido segurar a liberdade.

Mas a libertação da ditadura em Portugal, que certamente teria um reflexo em nós, ainda não nos garantia a resolução de outros problemas. E eram essencialmente três: o grande problema das secas, fome e falta de desenvolvimento, que Portugal não havia resolvido; a falta de autodeterminação para dirigirmos o nosso próprio destino como nação com características culturais e linguísticas muito próprias que, nunca deixo de vincar, já éramos havia muito; o racismo existente em Portugal – que alguns, indevidamente, tentam transpor para cá, quando a maior parte de nós crescemos sem noção de que havia diferença entre pessoa preta e pessoa branca (a que, por brincadeira, chamo respectivamente de castanho e beije, variantes da mesma cor, justamente para desvalorizar a questão racial que se centra na dicotomia preto/branco). Esse racismo (aspecto cultural enraizado num povo, que não muda dum dia para o outro) tenderia a fazer com que em Portugal os caboverdianos de pele mais escura se sentissem ainda discriminados, como que cidadãos de 2ª, o que seria inaceitável dentro do mesmo Estado.

Mas, para nós, a mudança também chegou com a independência, aspirada pela maior parte mas temida por todos que eram realistas (confessadamente até por aqueles que a fizeram), por não se saber das possibilidades de sobrevivência da nossa nação sem estar ancorada em algo (leia-se outro Estado ou comunidade internacional). O que teria acontecido se, no dia da independência, os Estados Unidos da América não tivessem oferecido a Cabo Verde cinco milhões de dólares em ajuda alimentar, o que era impensável durante o domínio de Portugal? E, mutatis mutandis, as ajudas continuaram e ainda continuam a vir de todos os lados: EUA, UE, Luxemburgo, Portugal, China, etc., etc., único modo de equilibrar as nossas contas e conseguir alguns extras: palácio do governo, palácio da assembleia nacional, novos liceus, residências estudantis, hospitais, “casas para muitos”, palácio presidencial, estádio nacional, campus universitário e muito, muito mais, que não vale a pena enumerar, pois é conhecido de todos (ou quase!); além de todo o tipo de programas que vão ajudando socialmente a sociedade caboverdiana.

Temos de reconhecer que muito ajudou a gestão criteriosa dos recursos das ilhas e das ajudas recebidas naqueles primeiros anos em que importava estabelecer os alicerces do novo Estado; e também que até agora todas as etapas da governação contribuíram para que Cabo Verde se firmasse e ganhasse o prestígio que tem na comunidade internacional. Avançou-se muito, não há dúvida, e o Cabo Verde de hoje tem muito pouco a ver com o de há 40 anos. Por isso, bem-haja a independência!

VI Encontro de Escritores de Língua Portuguesa. Cidade da Praia. Fevereiro 2016.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

 Antes de entrar propiamente ao que aqui me traz, e uma vez que é sobre “Arménio Vieira, o cultor da Língua de Camões” chamava aqui as palavras do escritor Germano Almeida, quando reitera e afirma a sua ligação à Língua portuguesa, ao retratar bem o seu ambiente linguístico/cultural: (…) eu cresci alimentado por ambas (a língua portuguesa e a cabo-verdiana) sem nunca diferenciar qual das duas era mais suculenta pois que as usava indiferentemente, e por isso ambas fazem parte do que eu sou, razão por que não quero viver sem nenhuma delas, sei que perder uma me amputaria em metade. (…)”.

Creio que a geração a que pertenço se revê  se não na totalidade, em parte significativa, nesta afirmação em que ouso incluir também o poeta Arménio Vieira.

E porque também a linguagem poética de Arménio Vieira é construída substantivamente através deste seu ser cultor da Língua portuguesa, evoco a propósito, as palavras do conhecido poeta Manuel Alegre, que chama à Língua portuguesa, «a música secreta» e a determinada altura escreve: “Há na minha língua uma página chamada Atlântico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas. (…) Nas suas harmonias, nas suas dissonâncias, nas suas vogais azuis e verdes e nas suas consoantes sibilantes. Tem a cor do mar e o assobio do vento. Amo essa cor, esse assobio, esse murmúrio. E o cheiro a alga e sal (…)” (Fim de citação)

Posto isto passo ao tema.

Sobre Arménio Vieira

Falar sobre Arménio Vieira é sempre um prazer. Acrescido do facto de ser uma grande honra  trazer para aqui tão grande poeta! O nosso prémio Camões!

Arménio Vieira, Poeta, escritor, jornalista, professor, crítico de cinema.

Ora bem, a sua poesia e a sua ficção de há muito que ultrapassaram as nossas fronteiras geográficas e, hoje, são pertença não só da cultura cabo-verdiana, como da literatura lida, estudada e analisada em Língua portuguesa, no espaço da lusofonia, como ainda traduzidas para outras línguas e culturas.

Costumo dizer que o poeta,  nasceu na cidade da Praia, cabo-verdiano de origem e de vivência e, (aqui também caberia um “mas”) de pena universalista.

Sim, os textos de Arménio Vieira, quer sejam em poemas ou em prosa e esta última é quase sempre poética, fazem jus a este “universal” que existe e que caracteriza o seu ser poeta.

Com efeito, a sua formação poética, cultural e histórica – na minha opinião, opinião aliás, de uma leitora aficionada dos textos – poemas de Arménio Vieira – revela-se quase toda ela “bebida” fundada na cultura dita europeia ocidental. Ele parte da clássica greco-latina, passa e passeia-se (o poeta) pela história e pela literatura europeia, a mais erudita, com ênfase na portuguesa, na francesa russa, inglesa, alemã, entre outras, indo até à americana e, algumas vezes, num jogo simbólico muito peculiar deste poeta, consegue prefigurá-las, transferi-las e contextualizá-las para as ilhas desta “macaronésia” atlântica sempre indecisa e adiada.

Senhor de uma erudição e cultura portentosas, Arménio Vieira dá-se ao luxo de “jogar” de “brincar” de construir e de desconstruir também, através de “trocadilhos” poéticos com essa cultura imensa que possui, e que reelabora numa constância e em profundidade, como aliás, prova tudo o que vem escrevendo. No fundo, e à boa maneira dos eleitos, aos quais ele pertence, intelectualmente falando. Os seus textos como que extraem a essência filosófica, desse lastro cultural que o sustenta, como também reflectem a mundividência experimentada e teorizada por um observador de todo especial. Para além de aliar a isso tudo, a poesia que parece que lhe é inata.

Ora é o próprio poeta que dita o «Ser Poeta» (pág. 91 de «O Brumário», edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013)."Sem cuidar do tempo / que os ponteiros gastam / Entre a débil consoante / (Pela qual o navio Se faz ao mar) E a exausta vogal / Com que termina / A viagem / Me dou ao ofício / De escrever poesia.”

 Pois é, entre o “tempo” ou a ausência dele, no início e no final da “viagem”; com a habilidade tecedeira de uma “aranha”; a beleza da “rosa;” e a (im) precisão de um “número”, simbólicos e alegóricos, assim o poeta cria e escreve o seu poema. 

 Mas igualmente num poema inserto num dos seus últimos livros da trilogia do Brumário, e em jeito de situar o leitor, o autor prevê  e justifica o destino dos seus versos. A poesia é o “baralho do poeta” com que “…os loucos tentam o póquer que os salve”. ( pág. 18 de «O Brumário») “ Estes versos acerca dos livros / e da gente terão o destino / com que os deuses selaram as criaturas, / incluindo quem, pelo melhor / de todos os poemas, / previu o fim da tabacaria em frente / mais a tabuleta e o dono dos cigarros, / e de quantos loucos, dos quais, / pelo mágico baralho do poeta, / tentam o póquer que os salve.”                                                                                                                                                                                                                                                
O poeta munido com estas preciosas “ferramentas” chamemo-las assim, mais a estilística que ele auto-recria em estética própria e original; com isto tudo interligado e interdependente, o poeta configura os seus poemas – textos prodigiosamente melódicos e poéticos, que nos deliciam.
Na escrita de A. Vieira há também questões de sempre, inquietantes e existenciais com que o poeta nos interpela. A morte, por exemplo.

 Por outro lado, e do que mais gosto e aprecio na poesia de Arménio Vieira  é a sua assombrosa capacidade de, através da comicidade da linguagem, parodiar, em tom jocoso, irónico, por vezes mordaz, temas vários, personagens e personalidades reconhecidas no mundo das artes, do cinema e da Literatura e utilizar amiúde a chamada linguagem de carnaval, da paródia ou a menipeia que ele tão bem desenvolve e aplica na sua linguagem criativa literária. Esta linguagem sobre a qual teorizou e bem Júlia Kristeva, aliás autora curiosamente  conclamada pelo poeta e trazida à cena poética num dos textos incluídos no Brumário.

  De facto e retomando, há um riso paródico e uma finíssima ironia em muitos textos de Arménio Vieira cujos sentidos porque plurissignificativos residem no tornar comum ou no chamado “destronamento” de quase tudo que é tido por elevado, dogmático ou sério. Repito que fortes influências desta discursividade carnavalesca são visíveis, em muitos dos textos de A. Vieira.

O poeta por vezes, brinca e/ou ironiza com a chamada poesia épica, laudatória que narra em versos, heróis, os seus feitos ou cometimentos bélicos.

 Em sentido oposto, aquilo que há de elevado e humanamente comovedor nas pessoas, nas criaturas, temo-lo bem descrito e sentido, pelo poeta em muitos dos seus poemas narrativos e/ou, dialogados. Apenas uma ilustração disso. O exemplo que achei muito terno, muito afectivo e solidário foi aquele com que Arménio Vieira brindou os mais velhos da literatura e da cultura cabo-verdiana, se quisermos, e generalizada numa frase: os Homens da Claridade. Vamos encontrá-lo exactamente no texto “Bisca Tropical”  (página 31 das «Derivações do Brumário» . Edição da Biblioteca Nacional de Cabo Verde e Publicom, 2013)

  “Imaginem este quadro, surreal e jocoso: Praça Nova (1936). Jaim Figueiredo jogando a bisca versus Rendall Leite, o douto germanista.

Subitamente, Figueiredo joga o ás sobre um duque. Nhô Djunga Fotógrafo, fingindo-se irritado, exclama: Homessa! Será que o Pavão de Lata foi quem o mandou jogar o ás?

Manuel Lopes diz: Não respondo à pergunta, que eu não vi nada.

Baltasar Lopes solta uma estrondosa gargalhada. “Vá lá que o Jaime nunca soube o que é um jogo a doer”, pensou mas não disse.

Jorge Barbosa diz: Figueiredo precisa de óculos, é só ir ao João Lopes.

Aurélio Gonçalves conclui indulgente e filosoficamente: Figueiredo distraiu-se, acontece aos melhores.

Para terminar, falou Jaime Figueiredo: Alucinação alcoólic, sou um barco ébrio.

Rendall Leite de pé: - game is over, adieu sweet Prince.

Manuel Ferreira, o cronista, chegaria ao Jardim de Epicuro, ou seja, à referida praça quando rebentou a guerra de todas as guerras, razão por que de tal bisca a céu aberto não fez menção nem registo. Em tempo: faço-o eu, nascido Cinco Anos Depois, por coincidência a única fita que Marlon Brando assinou.

P.S. – O Pavão de Lata, um hipotético romance de J. Figueiredo, continua a ser um mistério. João Cleofas Martins (Nhô Djunga), à semelhança de Juan Rulfo, era prosador e fotógrafo. O restante, excepto as pessoas nomeadas, é pura ficção.

Nota final à guisa de epitáfio: à data eram personagens em busca de um palco. Quem nos dera tê-los de novo, ainda que seja para a bisca do adeus.”

 Ora bem, com o estilo a que nos habituou, o poeta inscreve nos seus textos, em larga medida, duas das suas múltiplas dimensões: uma, a de jogador de xadrez, o qual, no seu ambiente, na cidade da Praia, já tem lugar cativo. E a outra, a de crítico de cinema que Arménio Vieira fora outrora. É assim que nos traz à ribalta (através de memórias inscritas em alguns poemas,  grandes clássicos e eternas fitas cinematográficas que nos ficaram inesquecíveis, com os nomes dos seus realizadores e dos actores celebrizados pela memória fílmica. Há um trecho muito interessante que é um pequeno documentário ou mesmo, um “take” qual realizador de filme que A. Vieira nos dá em: “Post Scriptum”. (página 93, de «O Brumário»):

“ Imaginemos a seguinte bizarrice: Quelha de Londres, cerca de 1918. Em vez de Jack o Estripador matando senhoras, vêem-se três terríveis tigres – Adolf Hitler, Benito Mussolini e Vladimir Lenine, de cassetete e apitos à Gestapo, correndo atrás de Charlot, o Judeu vagabundo, o qual, tremendo, tal um coelho entre a parede e o pau, é salvo por Fernando Pessoa, da guarda-chuva em riste e de cigarro na boca.

Coincidências: os cinco, sem exclusão usam brilhantina e cuecas de nylon made in England. Pessoa, porém, é o único que perfuma as cartas de amor e fuma tabaco.

Filme de quinze minutos, mudo é claro, dirigido por Charles Spencer Chaplin, segundo uma ideia do Conde Silvenius.”

Do mesmo modo, o tal jogador exímio de xadrez, que é A. Vieira quando simbolicamente transplantado para a escrita poética, e poeta, ele faz-nos perceber, de forma subtil, através de peças colocadas num tabuleiro quase cósmico, que nos está a transportar para um xadrez mais complicado, que é afinal, a própria vida.

Arménio Vieira ao longo dos seus poemas, como que desafia o leitor para uma revisitação, de que ele dá o exemplo; ou mesmo para uma leitura inaugural das obras dos grandes nomes da literatura e de vultos da História universal e neste ponto, sou tentada a dizer, que o poeta emerge aqui neste particular, com uma dimensão pedagógica. Ele faz isso, não só  citando-os  mas também fazendo-os interagir em imaginados diálogos,  entre  personagens  e, entre os entes históricos (escritores) que as criaram e que o poeta constantemente convoca nos seus textos-poemas.

 Não obstante toda essa abrangência e esse todo panorâmico no modo de ver, no olhar, e no fazer poético que Arménio Vieira possui, mesmo assim,  e de forma diferenciada, Arménio Vieira faz-se acompanhar no seu caminhar poético, de alguns distintos companheiros  que ouso dizer, mais presentes, mais constantes, mais próximos da sua senda poética, os quais, ele ora cita, alegoriza, os metaforiza, ora os recorda num real quase vivenciado. E isto, em vários textos. Apenas para exemplificar, mencionarei, distinguindo, Camões, Borges e Fernando Pessoa, e a propósito deste último, no dizer de Luís Carlos Patraquim (Mitografias, Poemas na Vertical) e cito: “ Percebemos que o homem e a obra, mais o formidável desdobramento heteronímico...é uma presença na poesia de Arménio Vieira. Não uma influência angustiante... com ele A. Vieira, dialoga, glosa, recombina, sacoleja em mordaz ou empático novo lançamento de dados” (Fim da citação).

De facto, encontramos em muitos textos de A. Vieira, esta intertextualidade pessoana transfigurada.

Outros poetas há também, que foram seus  compagnons de route”) os quais, de forma real e vivida são  recordados, em alguns poemas. Um deles é  sem dúvida, Mário Fonseca.

Com este último, vale também dizer que são ou foram – uma vez que M. Fonseca nos deixou – poetas de uma mesma geração e que de certa forma, juntos iniciaram a que depois seria uma  longa e profícua caminhada poética, que teve os seus inícios no antigo «Boletim Cabo Verde», no «Seló». Juntos participaram em colaborações dispersas em várias revistas literárias, apenas para citar «Imbondeiro» «Vértice» entre outros periódicos.

 O Mar e as Rosas” é o poema dedicado exactamente à memória do saudoso poeta Mário Fonseca. Tratou-se de um facto. Passou-se na vida real. M. Fonseca perdera os manuscritos do livro e andou um ror de anos em busca deles. Creio que assim Arménio Vieira o celebriza e o imortaliza neste quase soneto e através do título homónimo da obra perdida. Outro poema em que Mário Fonseca é evocado ao lado de um grande nome da poesia portuguesa, Fernando Assis Pacheco também já desaparecido do mundo dos vivos; é o poema “Epitáfio,” na página 30 das «Derivações do Brumário».

 Pois bem,  a poesia de A. Vieira corporiza-se numa tal subtileza imagística, que a plurissignificação das palavras  escolhidas, a linguagem metafórica, culta, multifacetada, a beleza rítmica, a musicalidade versatória, entre outros atributos, que distinguem os bons textos poéticos, são tidos em plena valorização, nos poemas de Arménio Vieira.

Mesmo para terminar e perceber o “estar” e o “sentir do poeta, temos o poema “o estar só entre muita gente.”  (pág. 14 «O Brumário»):

“Estar só entre as gentes / magnífica antítese, / nada melhor do que isto. / Quem o disse e na pedra  o gravou/ foi um Camões errante e amoroso. / Venha agora a nave que me leve / a uma ilha (...)  ...Alternância e não antítese / é quanto pude achar, / já que, das muitas rosas / que eu vi em nove ilhas e no resto / nunca fui a metade.” 

Pois bem, usando o mote camoniano, o poeta expressa  as suas emoções, ora doces, ora amargas,  o seu isolamento interno, o seu sentir-se incompleto.

O poeta afinal, - numa espécie de fio condutor dos seus poemas - releva com ironia e com alguma complacência, as partidas pregadas por algo que pode ser nomeado  de  Destino. Assim, Arménio Vieira nos conduz ao seu mundo interior,  à consciência da sua solidão, às suas ilusões e decepções e à maneira como ele percepciona e vê o mundo.

 
Praia, 3 de Fevereiro de 2016.