Por termos
achado interessante esta análise feita por José Gameiro Lopes sobre o livro
«Mulheres de Pano Preto» de A. Ferreira, e vinda através de mensagem
privada que uma velha amizade justifica; e porque o
texto contém uma descrição histórica comparativa às situações
ocorridas em igual período de tempo nas outras colónias
africanas então portuguesas, daí a nossa convicção do
interesse da sua publicação neste espaço.
NOTAS PRELIMINARES
Antes de mais, deixa que te diga que
em boa hora li o teu (esquecido) livro, porque teve desde logo uma grande
virtude: evidenciar a minha inimaginável indigência informativa sobre os
processos independentistas da Guiné e de Cabo Verde, sobretudo nos últimos anos
do colonialismo e nos primeiros anos de independência, em ambos os casos porventura
o período historicamente mais complexo, significativo e doloroso até agora da
ainda breve história daqueles países. E se àqueles países juntarmos, a título
meramente comparativo, os de Moçambique e Angola, a conclusão é igualmente
confrangedora.
Mas, por reflexo, teve ainda outra
virtude: dei por mim a repensar que ideia tenho hoje, à distância de um pouco
mais de quatro décadas, dos líderes que, a meu ver, marcaram (ou poderiam ter
marcado), para o bem e para o mal, aqueles acontecimentos, mesmo considerando
que dois deles morreram antes da independência dos seus países. E, como se
verá, o resultado não é mais animador.
De resto, atrevo-me a dizer que, para
a generalidade das pessoas da minha geração – que diabo, muitos deles, como
nós, por lá andaram a defender a fé (já muito abalada, é certo) e o império (o
que dele restava) – o nível de conhecimento não será substancialmente
diferente. Vejamos, pois, a traço grosso, os resultados de tão curiosa incursão
por esse passado que, porventura na melhor altura das nossas vidas, nunca mais
nos largou, não sem antes sublinhar que é uma leitura tão sumaríssima quanto profundamente
subjectiva (donde, discutível), seguramente eivada de muitos vícios – o alheamento,
a ignorância, a força das “verdades históricas oficiais”, a manipulação
induzida, o distanciamento, etc. Vamos lá, então, a esse exercício:
- O processo de Moçambique é o que, apesar de tudo, conheço um pouco melhor – a razão é que estive lá a maior parte do tempo de meados de 1980 a 1981 e, mais tarde, passei naquele país bem mais de uma dezena de períodos de tempo, com a duração de 1,5/2 meses de cada vez, ao longo dos dois mandatos (1993/1999) em que integrei a Administração desse grande elefante que foi Cahora Bassa. Sobre o líder de referência (insisto, para mim), Eduardo Mondlane, mesmo não tendo chegado ao 25 de Abril, tenho dele uma imagem cosmopolita, de cultura democrática, avesso às democracias populares tão em voga na altura – espero não estar a ser muito benévolo. Depois, a PIDE matou-o, a ele e porventura ao sonho de Moçambique construir de raiz um tipo de regime diferente. Ou, cercado por elementos - esses sim, defensores da via da democracia popular - talvez não, quem sabe? Do regime, o que dizer que não se saiba já? Bom, começou por ser uma democracia dita popular de partido único – para o que contou, também aqui, com a colaboração activa do MFA – com tudo o que isso representou de repressão brutal, de estado policial, de massacres, de prisões arbitrárias, de julgamentos sumários, de corrupção, etc. A que se seguiu uma inevitável e longa guerra civil – cujo estado latente ainda subsiste nos nossos dias. Hoje vive-se um regime que cruamente podemos classificar de uma espécie de democracia popular, é verdade que não sustentada num partido único - passe a relativa contradição – mas que na prática funciona como tal, pois que só formalmente, e sem quaisquer consequências políticas em termos de alternância e de pluralismo activo, as outras forças partidárias são consentidas. E tudo o mais que se conhece e sobretudo o que se não conhece. Sintomaticamente desconheço se, em Moçambique, tem sido feito ou se está em curso algum esforço de uma revisitação séria da história do período antes/pós-independência, mas não me parece que já estejam reunidas condições mínimas para uma tal empresa, tanto mais que seria inevitavelmente um processo marcado por fortes resistências e particularmente doloroso, que não deixaria de reabrir muitas feridas. E, de resto, o peso da verdade oficial imposta, guardada por fiéis guardiões da ortodoxia histórica prevalecente, é ainda uma condicionante muito forte, ou mesmo intransponível - pelo menos por ora.
- Sobre Angola, o meu conhecimento é ainda mais rudimentar, mas a leitura parece-me aparentemente mais facilitada – o que não quer dizer menos complexa, sobretudo, também aqui, durante os primeiros anos pós-independência, porque depois, com o fim da guerra civil, foi a vitória esmagadora, e mesmo obscena, de um partido e literalmente de uma família desse movimento, que se prolongou por uma eternidade (até há poucos meses). Uma vez mais o favorecimento patrocinado pelo MFA reverteu a favor de um dos movimentos – o que era apoiado pela então URSS, Cuba, etc. (MPLA) – em detrimento dos que eram apoiados nomeadamente pelos EUA (FNLA) e pela África do Sul (UNITA). A ideia que tenho do (meu) líder de referência, Agostinho Neto, é que não passou de uma marioneta no meio do turbilhão interno de lutas fratricidas e das pressões e “cobranças” dos “países amigos”, até que, já esgotado física e animicamente na voragem dos acontecimentos, morreu envolvido em denso mistério. Se politicamente não deixou sementeira, outro tanto não podemos dizer no plano da escrita, pois que neste campo legou alguma poesia de qualidade – de resistência, mas também lírica. É agora o momento neste novo (?) tempo para rever a história daqueles anos de chumbo? Afigura-se-me uma hipótese, pelo menos por ora, de duvidosa verificação – a menos que as movimentações em curso indiciem efectivamente uma mudança profunda da política e da sociedade angolanas, que criem condições para que se abra com coragem as portas do passado. Falece-me autoridade para fazer previsões nesta matéria, mas sempre direi que, bastas vezes, a história nos diz que a transmutação de regimes ditadoriais ou paraditadoriais, ou opera pela via revolucionária e pode escancarar as portas do passado mais ou menos recente (como, em traços gerais, aconteceu em Portugal), ou por uma transição pacífica normalmente protagonizada a partir do interior do regime, em que essa viagem ao passado é percorrida com pinças, não esgravatando muito para não acordar os fortes poderes instalados, ainda subsistentes (como em Espanha). Em todo o caso, permitir-se hoje uma revisitação da história dos primeiros anos pós-independência de Angola, quando quase todos os que detêm neste momento o poder são homens profundamente ligados ao regime da família que politica e economicamente dominou com mão de ferro o país até há pouco tempo, representará uma autêntica caixa de pandora.
- Sobre a Guiné e Cabo Verde (tanta prosa para aqui chegar e, ainda por cima, com tão parcos resultados), estou literalmente em branco – ou estava, porque agora já colhi do teu livro algumas pistas, mas que não deram para mais do que para abrir o apetite. E sobre Amílcar Cabral – para mim, como para a maior parte dos portugueses, ainda o líder de referência, que por aqui ainda vai sendo considerado o mais aportuguesado dos líderes africanos, um humanista (?) e um chefe carismático que, uma vez mais, a PIDE liquidou (?) - o que posso dizer depois do teu livro? Na verdade, uma mão cheia de nada. Surpreende-te decerto que nem sequer tenha historicamente presente as circunstâncias que rodearam a ruptura entre a Guiné e Cabo Verde (os irmãos desavindos?), levando-os a optar por caminhos independentes, ao arrepio da unidade que o nome “PAIGC” prefigurava – ou que talvez já há muito não passasse duma sigla semântica. Mas, claro, enquanto um dia – se houver oportunidade para isso, porque as oportunidades no inverno da nossa vida são escassas – não conversarmos sobre o assunto, proponho-me ir investigando alguma coisa por conta própria. Como vês, o que a tua obra veio despertar! O teu livro – já lá vamos - deu para perceber que algum trabalho vai sendo produzido (talvez mais em Cabo Verde do que na Guiné?) tendo em vista destapar, parece-me que ainda cautelosamente, a realidade história dos anos antes/pós-independência daqueles dois países. E, se bem intuo alguma dinâmica nesse sentido, pressinto que tu estás na primeira linha desse desígnio – o que, de resto, não me surpreende.
O LIVRO
Bom, agora o livro. Finalmente,
pensarás tu.
Antes de mais, gostei
muito sinceramente do teu livro, que considero muito interessante, sob vários
pontos de vista. Breves notas que retive.
- Considero muito sugestiva a arquitectura que desenhaste, reflectida numa estrutura assente em dois planos: a narrativa histórica – ou, se quisermos, de uma certa realidade histórica, sobretudo da Guiné; e a representação ficcionada dessa realidade histórica, expressa na vivência figurada de protagonistas com as suas histórias pessoais de amores e desamores (e não só da Alice e do Tomás, ainda que se afirme como polo central de outras relações adjacentes), encantamentos e desencantos, medos e inquietações, perplexidades e dúvidas. Ou seja, ao mesmo tempo que convocas os leitores para a revisitação histórica dos anos de brasa da agonia do colonialismo e dos primeiros anos da independência da Guiné e de Cabo Verde, colocas no palco da vida (ficcionada) os protagonistas com os mais diversos estados de alma, caldeados com intensos e acalorados debates e discussões de cariz ideológico. Vejo aqui, de algum modo, uma gizada relação dialéctica entre a realidade histórica e a sua representação ficcionada.
- A um ignorante como eu nesta matéria não faz sentido dizer alguma coisa sobre o plano da realidade histórica – seria juntar ao desconhecimento a irresponsabilidade - a não ser que, por si mesma e pelas fontes citadas, parece oferecer credibilidade bastante. Mas tenho o cuidado de falar de realidade histórica, e não verdade histórica – diz-se que esta não existe ou, a outra luz, não constitui mais do que outra forma de representação.
- O plano da representação – que, se bem o captei, sintomaticamente tem como principais protagonistas os filhos da pequena e média burguesia (de funcionários públicos, comerciantes, empregados de empresas privadas, alguns militares, etc.) – espraia-se por três tempos de representação: o tempo nostálgico que teve como epicentro o Liceu Honório Barreto, que, camonianamente falando, correu ledo e ameno – e aqui não resisti a registar a tua localização geograficamente estratégica (está aqui o estratega avant la lettre?) na cadeia das idas e vindas dos protagonistas para e do Liceu; o da guerra colonial, em que coabitavam o medo e a ansiedade que foram crescendo com a intensificação da guerrilha e, apesar disso, uma pulsão da fúria de viver intensamente os anos de juventude ; e os primeiros anos de independência em que, a breve trecho, o sonho do homem novo(ou do homem renascido) virou pesadelo com a brutal subversão dos valores e ideais que, durante os anos negros do colonialismo, alimentaram o sonho. Ou de como a conquista da independência matou, tão perversa quanto implacavelmente, o sonho da liberdade.
- Ainda neste plano, realce para a tua capacidade de efabulação, sobretudo ideológica, de que dás sobejas provas, nomeadamente por via de discussões e debates de grande dimensão política em torno dos momentos mais marcantes do período imediatamente anterior e sobretudo posterior à independência. É, de resto, para mim, um dos pontos altos do livro. O que quer dizer – ilação inteiramente da minha lavra – que, para além do mais, o teu percurso nos meandros da política não passou em vão.
- Finalmente, uma questão de pendor mais marcadamente literário: romance histórico, sim ou não? Para além do significado e limites do romance histórico darem pano para mangas, de tão controvertidos que são – Saramago ficava especialmente irritado, para não dizer furioso, quando consideravam, por exemplo, o “Memorial do Convento”, a “História do Cerco de Lisboa” ou o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, como romances históricos – a verdade é que o teu livro tem um fundo histórico que se tem de considerar como tendencialmente verdadeiro. Para além de que, a meu ver, a vertente mais significativa e simbolicamente mais rica é a ficcionada. Donde, no meu modesto parecer, é uma classificação algo forçada e excessiva – e, pior, redutora. Mas esta é uma questão menor – para não dizer inútil.
Para terminar, a mensagem central
que, para mim, leitor, sobreleva subliminarmente no teu livro – diria, afinal,
que o seu fio condutor:
- A história real da independência,
sobretudo no último período colonial e nos primeiros anos da independência – a
contrapor à história oficial - está por fazer, mesmo entrando em linha de
contas com alguns contributos que já vêm sendo dados.
- A história (oficial) que ainda hoje
vai colhendo vencimento, reescrita com toda a sorte de factos e acontecimentos
historicamente inverdadeiros ou falseados, não contribui para a pacificação das
comunidades cabo-verdiana e guineense – que, neste aspecto particular,
continuam a viver uma paz podre (a Guiné nem isso) - e tolda, porventura
irreversivelmente, a moldura identitária de ambos os países.
- Urge, pois, abrir as portas desse
passado desapaixonadamente e sem preconceitos e com espírito aberto para acertar
contas com a realidade histórica desse período. E o teu livro, na linha de
outras intervenções que, segundo julgo saber, tens tido, constitui, sem dúvida,
um depoimento oportuno e precioso.
Dezembro/2017
José M. Gameiro Lopes