Djoca Pliu

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

(Joaquim António Ferreira, Jr.)

- Breves Memórias de um Bom Amigo -

O “e-mail” do Pepito a comunicar que o nosso Djoca nos havia deixado não me chocou nem me surpreendeu. Embora triste com tal notícia, era o anúncio de uma morte esperada.

Eu tinha estado com o Djoca no ano passado numa curta visita a Bissau por razões também pouco agradáveis – 1º aniversário do falecimento da minha Mãe. O seu estado de saúde (moral e físico) reflectia a vulnerabilidade e a fragilidade do País.

Não obstante não padecesse de nenhuma doença incurável – hipertensão arterial – era, como milhares de outros, vítima de um vazio de estado, inexistente serviço de nada mormente o de saúde.

Só, envelhecido, alquebrado, algo desiludido e saudoso, mas não passadista, dos bons velhos tempos dos quais ele era um dos últimos residentes, só tinha alguns escassos amigos a quem recorrer, e estes, também eles com problemas amplos e abrangentes, embora de outra índole, nem sempre o podiam satisfazer.

Com a partida do Djoca vai uma das últimas testemunhas da História vivenciada da cidade-capital da Guiné-Bissau, dos últimos 50 anos. Bem sei que o nosso também querido João Galvão no seu já famoso Tatitataia disso já falou.

Mas reitero que poucos, muito poucos, conheciam Bissau e a sua gente como ele, Djoca. Ele tinha vivido intensamente, sempre no mesmo sítio – Bissau – o antes, o pós e a própria Independência. Em cada canto encontrava uma história – ainda não me converti ao neologismo de inspiração anglófona “estória” – e também uma História. E em cada esquina uma personagem que com a sua perspicácia e invulgar sentido de humor lá fazia sair mais uma bem-humorada e mordaz “passada”.

Embora nascido em Bissorã, muito cedo foi para Bissau tornando-se numa das mais emblemáticas personalidades (latu sensu) da cidade. Completara no passado dia 24 (ou 25, já não me lembro bem) de Setembro 70 anos. Era já uma espécie de ex-libris da cidade. Urbano a cem por cento com uma esporádica passagem por Nhacra com funções administrativas – uma espécie de Chefe de Posto que no novo ordenamento territorial teria tido outra designação – que foram alvo de muito gozo e saborosas tiradas precisamente pela analogia e eventuais mordomias das mesmas funções na época colonial. Também fizera uma formação em Portugal de largos meses no domínio das pescas da qual tinha engraçadas e bem divertidas “passadas”. O Lotes (Carlinhos Almeida) e a Ana (sua mulher) que então o acolheram que as contem!...

Na infância e adolescência morávamos (as nossas famílias) em Pidgiguiti e não

Pindgiguiti como hoje sói dizer-se. Mais precisamente no “Quintal de Alfredo Neves” cheio de frondosas mangueiras e enquadradas nos seus limites por elegantes e sempre prenhes coqueiros. Atrás da Casa Gouvêa. Convivíamos com os marinheiros que faziam do “Quintal” um local para tratar das parafernálias dos navios sobretudo do remendo das velas. Eram momentos quase diários de galhofas com picardias sociais a que assistíamos com raras e muito tímidas intervenções mas com muito deleite. E sabíamos, mas sobretudo ele, o nome de cada um. Do lado de lá da rua estavam as Oficinas Navais defronte às quais fazíamos a nossa peladinha no asfalto a que chamávamos foladinha, por razões que parecem óbvias; peladinhas que eram um forte pretexto, um “leitmotiv” para nos encharcarmos em seguida em água de côco. Foi onde nasceu o Atlético Club de Foladinha – o único em que o Djoca jogou. Clube de bairro que não de Pidgiguiti – apenas local de reunião – pois com gente de vários bairros porque era de facto um clube de amigos, de existência efémera, porque não tardou em alimentar os grandes de Bissau de excelentes elementos, desaparecendo de seguida.

Voltando à minha última ida a Bissau, estava instalado num dos hotéis da ANCAR e o meu amigo Djoca era sempre o meu primeiro visitante e o último de quem me despedia ao subir para o quarto.

Num dos dias em que já terminara o meu programa saímos a passear sem rumo definido, à deriva. Naturalmente, fomos contornando o Hotel e descendo para o porto, aí perto, para o cais de Pidgiguiti, ao sabor do vento, para apanhar um pouco de fresco e matar saudades. Parámos no nosso “Quintal” e localizámos apontando com alguma nostalgia os locais de comezaina das mangas verdes com sal, às quais, por vezes, acrescíamos malagueta; do velho limoeiro de “limão francês” – na altura ninguém os utilizava – que nos fornecia munições para batalhas campais e algumas diatribes; a goiabeira que dizia pertencer-lhe porque junto à sua casa; e o parapeito de betão que fazia de cerca, em que descascávamos os cocos retirados com varas bem compridas brandidas por vezes por duas ou mais pessoas que lhes davam na queda trajectórias erráticas bem perigosas. O “Quintal” obviamente já não era o mesmo e grande parte da história era apenas um regresso ao passado que o tempo não apagara e que naquele momento enfatizava, quiçá, com alguma imaginação à mistura.

Continuámos o nosso percurso e paramos defronte das antigas Oficinas Navais e lembrámos dos bons velhos tempos de “Foladinha”. Das características futebolísticas de cada um de nós e dos nomes sonantes do futebol mundial a que nos assumíamos ou éramos apodados. Dos muitos de nós que já nos tinham deixado e de outros dos quais nunca mais ouvíramos falar.

Djoca era um bom falador, um narrador inato que temperava as suas passadas” com um misto de sarcasmo e de ironia que lhes conferiam um incontornável e irresistível sabor humorístico. E era dotado de uma memória de elefante que lhe permitia cultivar pormenores que nos criava embaraços em saber se eram do domínio do real ou do imaginário.

Ao chegarmos à entrada do Cais de Pidgiguiti, fomos naturalmente transportados para 3 de Agosto de 1959. Estávamos juntos e juntos tínhamos assistido à revolta dos estivadores, fez ele questão em me reavivar a memória:

Eram férias grandes e estávamos na segunda metade do dia. Tinha eu sido enviado pelo meu Pai para ir buscar um documento nas “Obras Públicas”. Convidara o Djoca, com quem estava em quase permanência, para me acompanhar. Saídos do “Quintal” vislumbrámos um aglomerado de pessoas na esquina da Casa Gouvêa (actual Armazéns do Povo) todas viradas e olhando para o cais. Rapidamente nos juntámos a elas – escassos trinta quarenta metros nos separavam. Encostámos ambos pachorrentamente na parede a presenciar no cais de Pidgiguiti um grande rebuliço com pessoas armadas com catanas e paus de pilão, excitadas e ameaçadoras que ensaiavam danças guerreiras. No meio uma autoridade marítima (patrão-mor ou cabo do mar?) esbracejava e berrava.

Passados muito escassos minutos chega um camião militar de tropas indígenas (assim eram conhecidas) de onde saltaram soldados equipados com a velha Mauser comandados pelo Tenente Simões e não Castro que nem sequer tinha chegado a Guiné e que algumas narrativas protagonizam. Os revoltosos não recuaram um milímetro, bem pelo contrário, avançaram. Ouviram-se tiros e uma grande debandada das pessoas que se encontravam no cais correndo em todas as direcções e atirando-se à água. Nisto vislumbramos o meu Pai que andava à minha procura. Ao chegar perto de nós e vendo-nos abulicamente instalados, com impropérios arremessou a mão direita para a minha cara – foi a primeira e última vez que o meu velho fizera esse gesto para mim. Era apologista de que às crianças (filhos) nunca se devia bater na cara para não banalizar um gesto que retira dignidade – e, segundo o Djoca, em jeito de gozo, que eu agira como Floyd Patterson (um famoso pugilista de então) tal fora a agilidade e a eficácia do meu esquivo.

Recolhidos ao “Quintal” – cada um foi para a sua casa com portas e janelas trancadas – continuando a ouvir tiros, embora cada vez mais espaçados. Depois veio o silêncio.

Contudo, à noite recomeçou a agitação. Eram rajadas de metralhadora das vedetas (ou apenas uma) que patrulhavam as zonas com holofotes, eventualmente, como intimidação ou à procura de eventuais fugitivos escondidos nos mangais. Estava uma noite de breu. A cada rajada a minha Mãe que era manjaca (os marinheiros eram na sua quase totalidade manjacos) dava um grito, suspirava fundo e fazia preces. Assim foi toda a noite.

No dia seguinte nenhum marinheiro esteve no “Quintal” e ficamos apreensivos e em expectativa. Havia pois, uma grande reunião dos manjacos debaixo de um poilão situado algures da qual a minha Mãe era espaçadamente informada do seu andamento.

Não perdêramos nenhum dos nossos amigos marinheiros.

Hoje, apesar de toda a especulação e natural aproveitamento no passado, sem querer diminuir a importância e gravidade da ocorrência, sabe-se que se tratou de uma questão meramente laboral e que, com o cruzamento de dados oficiais e oficiosos, o número de mortos situou-se entre sete a nove pessoas. De tudo isto falamos no nosso regresso ao passado em Fevereiro do ano transacto pela simples circunstância de estarmos no “local do crime”.

Fomos conversando, e conversa puxa conversa, lá me lembrou ele dos longínquos anos 60 quando me convidou para ser seu explicador. É claro que não podia sequer pensar em recusar. E o nosso Djoca lá se muniu dos livros e cadernos para fazer o 2º ano dos liceus. Diga-se, em abono da verdade, que a sua literacia era bastante superior às suas habilitações literárias.

O nosso “negócio” durou muito pouco. Nem sei se chegou a duas semanas. Ele

delirava a lembrar-me a cena. Tínhamos chegado aos sólidos geométricos. Depois de umas explicações, pus-lhe entre as mãos uma caixa de fósforos e pedi-lhe que me identificasse o sólido e me dissesse de quantas faces, vértices e arestas era composto.

Trocou-mos todos. Lá voltei a explicar-lhe e a fazer-lhe as mesmas perguntas. Voltou a enganar-se. E na minha intolerância e impaciência não me passou pala cabeça que o erro podia estar em mim que não me explicara bem e, num gesto de abuso de confiança com alguma camaradagem à mistura, disse-lhe: “Tu és burro ou quê?...”

Pousou de imediato a caixa de fósforos, pôs-se de pé e em tom desafiador, disse-me (em crioulo): “A explicação acabou aqui. Falta de respeito não! “Lantâ pabia nu na fende ‘m otru cadêra gosse!... Catchôr d’mangu!” E pôs-se em guarda debruçado sobre mim com os punhos cerrados.

É claro que não deu em nada. Lá me expliquei com qualquer coisa e dissipei a tensão.

Nunca mais houve explicação. E nem a nossa amizade se arrefeceu por um instante que seja. E todas as vezes que falamos em estudos ele lembra-se da cena e conta-a com pormenores e humor que só ele sabia fazer. Não se pense que ele alguma vez se encolheu por via disso. Altivo e “atrevido” como eu carinhosamente o provocava nunca deixou de ombrear connosco e tomar parte das discussões de igual para igual.

Mesmo que eu quisesse não poderia contar as inúmeras peripécias que com o Djoca vivi ou delas tenha tido conhecimento.

Não resisto contudo a contar uma pelo insólito da situação e pela excentricidade revelada do nosso querido Amigo: O nosso Djoca resolve casar e convida para padrinho o Lotes, o nosso Carlinhos Almeida, fazendo dele ao mesmo tempo seu procurador. O Lotes, generoso como sempre não se perguntou, e sendo procurador pensou que por qualquer motivo o Djoca estaria impedido de estar presente.

No dia do casamento, tudo preparado para a cerimónia e enquanto esta se processava o nosso amigo Djoca de calções passeava de moto de modo ostensivo pela cidade tendo tido o descaramento de antes passar pelo Lotes avisando-o da hora do evento e pedindo-lhe para não se esquecer. É claro que o Lotes ficara furioso mas já nada podia fazer e a Aida, a nubente, não merecia, pois era um amor de pessoa.

Anos depois, poucos, a morte prematura e repentina da Aida, marcaria de forma indelével a vida do Djoca que nunca mais foi a mesma pessoa apesar da sua aparente permanente boa disposição. Quem o acompanhou de perto sabe bem disso. O casal não chegou a ter filhos. Mas o Djoca tinha, que eu saiba, duas meninas e um rapaz. Este último no estrangeiro.

Não obstante ser ‘Ferreira’ como eu, nenhum laço familiar nos ligava. Apenas uma profunda amizade. Era sim, primo-irmão do lado paterno do médico ginecologista e obstetra Rui António Ferreira, falecido há cerca de 3 anos em Coimbra e, do lado materno, do deposto primeiro-ministro Carlos Gomes, Jr..

Muito mais podia falar do nosso querido Djoca mas as limitações de um texto desta natureza não deixam espaço para o fazer…

Ficam a imensa saudade e a memória de um Bom Amigo. E como disse o Pepito no seu e-mail “a vida, mais pequenina, continua”.

Que descanse em paz!

A. Ferreira