Madrigal ou a beleza das coisas simples...

quarta-feira, 23 de junho de 2010
De entre os poemas que mais gosto de ler e que nunca me canso de declamar, está o poema de Jorge Barbosa, intitulado: «Madrigal».
Acho-o simplesmente belo, de uma alegria comovedora e de uma beleza eterna que me leva quase que inevitavelmente, a tecer uma comparação entre seus versos e o conteúdo da parábola bíblica transcrita em Lucas 12:22-27: glór«Olhai os lírios dos campos…nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles…».

Pois bem, o poeta Jorge Barbosa consegue revestir de uma simplicidade – envolvida numa lírica terna e profunda – os versos, a que não falta um toque de sinceridade entretecida na declaração amorosa em que está implícita de que a grandeza do seu afecto não valerá, ou então, perderá o real valor, se demonstrada através de oferendas de artefactos, por mais sublimes e naturais que estes possam ser. Pelo contrário, o tamanho e a qualidade do afecto do sujeito poético por «você» só têm um equivalente: o «silêncio» do poeta, ou seja, a hora da sua inspiração e da escrita dos seus versos.

Mas minha gente, para quê “complicar” tecendo algum comentário estético/literário sobre «Madrigal»?...nem estaria assim a interpretar a sua verdadeira natureza e a sua simbologia que apresentam em estilo imagético muitas semelhanças com a arquitectura poética que Jorge Barbosa utilizou num outro poema: «…Rumores das coisas simples da minha terra! …»
O melhor mesmo é ler o poema. Em voz alta, ou apenas com a nossa voz interior:

Madrigal

Colhi uma flor no jardim
A mais pálida e a mais bela
A que tinha o mais discreto perfume
- para você…

Apanhei uma concha
pequenina e translúcida
que as ondas trouxeram
para o cimo da praia.
Uma concha que veio
do fundo do mar
- para você…

Escrevi
O mais lírico dos meus poemas
de uma ternura sem precipitação
- para você…

Mas não lhe dei
nem a flor do jardim
nem a concha do mar
nem o meu poema
Para quê?

Se você é jovem e eu não
se você tem decisão e eu sou
tímido
Se você gosta da vida
rumorosa e variada
e eu gosto do silencio!

O meu silêncio também é
- para você!

Jorge Barbosa (1905-1971)

Costume típico?

terça-feira, 22 de junho de 2010
Existe na ilha do Fogo, um costume bem antigo, quiçá interessante, e que ao que parece se vem mantendo inalterável ao longo do tempo.
Trata-se do seguinte: quando se encontram dois foguenses, em que pelo menos um deles se apresenta pela primeira vez, da parte do outro, sai inevitavelmente, a “sacrossanta” pergunta: «quem qui tenbo?» (crioulo, variante do Fogo) isto é, e traduzindo: «quem é a tua família?» «a que família foguense pertences?» A expressão pode variar na formulação, dependendo do contexto e do interlocutor; pode ser feita também em português, mas a significação e o objectivo são os mesmos.
Trata-se de um questão inevitável e incontornável em qualquer situação de apresentação. Esta curiosidade típica e genuinamente foguense (parece-me ser, não tenho a certeza se usual nas outras ilhas) parte regra geral, da pessoa mais velha na situação e no contexto acima descritos, quando frente a um co-ilhéu mais novo ou desconhecido.
Eu acho-lhe de um encanto especial, pois já aconteceu algumas vezes comigo, só que da minha parte sai primeiro uma gargalhada de cada vez que isso sucede – que reconheço, por vezes indelicada, porque eventualmente mal-entendida pela outra parte, mas irreprimível, não sei se por estar à espera desta formulação introdutória, acrescido do facto de achar nisso alguma comicidade, ou se, por (re) descobrir sempre que estou entre os meus – para logo de seguida justificar-me e situar-me no clã foguense donde vem a minha pertença familiar.
Aqui há tempos falando com uma familiar da mesma ilha, admirava-se ela de como este costume é de tal maneira arreigado e contagioso que até forasteiros, mais propriamente estrangeiros que vivam na ilha, com o tempo, acabam por agir da mesma forma em relação a um foguense que lhes é apresentado pela primeira vez.
Que razões explicam esta forma de apresentação que aqui chamei de uso tipicamente foguense (?)
Algumas afiguram-se-me à mente, embora assentes em bases que não me parecem muito certas para de facto, se constituir fundamento plausível para a situação.
Ora bem, uma delas – para além da curiosidade natural e normal, diria, de meio pequeno onde todos se conhecem ou julgam dever conhecer – poderá conter algum ressaibo de tipo “elitista,” ou seja, o de querer saber se o interlocutor apresentado possui alguma valia genética/social a qual, lhe será advinda se disser que: «é filho de… neto de…ou sobrinho de…ou irmão de…» A referência familiar deverá ser – assim espera quem dirigiu a pergunta – do membro mais ilustre e/ou mais conhecido de toda a família a quem ele ou ela pertença. Ora se tal corresponder às expectativas, o que perguntou já se mostrará, regra geral, afável e sociável, pois que não deu por mal empregados nem a questão colocada, nem o tempo que disponibilizará na conversa a haver, dado que encontrou «boa gente» “nos costados” do recém apresentado…
Acontecia isso também e sobretudo, quando se tratava de noivados e de casamentos. As duas famílias que pretendiam juntar-se – só se não pudessem – iam ao ponto de procurar “exaurir” toda a genealogia de ambos os lados, dos futuros cônjuges e se de um deles, nada que valesse a pena em termos de mais valia social/genealógica fosse encontrada, a família decepcionada, manifestava por vezes, o “desgosto” com o seguinte desabafo em que se dava por resignada:
- Paciência! Sina triste! Tem que ser! O que se há-de de fazer?...” (traduzido do crioulo, variante do Fogo. Atenção: a ser lida em crioulo deve sê-la com a entoação e o sotaque locais) (risos)
Mas não vá sem ser dito que algumas vezes esta curiosidade castiça da minha ilha, uma vez satisfeita e com agrado da parte questionadora, pode-se ganhar uma nova amizade, exuberantemente exibida e demonstrada de tal maneira, que para quem não esteja habituado, ou não seja conhecedor do costume, poderá parecer despropositada, ainda por cima vinda da minha gente que da “fama” – adivinhe-se a que “fama” me refiro… – não se livra…mas é mesmo só fama (?) Estou a brincar, claro!
Finalizo este pequeno texto rematando, como quem termina um conto oral: «quem souber mais que conte melhor! …»

Língua literária, ponto de chegada dos níveis da língua?

sábado, 19 de junho de 2010
Tenho seguido, há umas semanas, por mero acaso, um diferendo de certa forma interessante, entre um finalista, em fase de estágio dos Complementos de Licenciatura de uma das instituições de ensino superior nacional e as suas orientadoras e supervisoras responsáveis pelos trabalhos finais que lhe conferirão o grau académico perseguido.
Andam as duas partes – de um lado o Formando e do oposto, os Formadores – verdadeiramente de “candeias às avessas” por causa da aceitação e da não-aceitação da existência formalizada do conceito de “Língua literária.”
Ora bem, o diferendo/debate que até podia ser deveras construtivo e interessante, pois que obriga as duas partes a estudarem mais atentamente o assunto e, de caminho abrir pistas a outras reflexões linguísticas/literárias; infelizmente, embora parcialmente, o caso já está a ganhar contornos tais, que o finalista – que me parece aplicado e com uma preocupação que já vai sendo muito rara entre nós, (formadores e formandos) que é o de se argumentar com base em pesquisas feitas, em estudos de autores abalizados na matéria em apreço – já receia uma “reprovação.” A acontecer será de certo modo “revanchista” do ponto de vista dele, porque, e continuo com a opinião dele, apenas por não concordar pontualmente com as professoras orientadoras sobre a não existência de “língua literária” enquanto conceito e registo como nível de Língua.
O que para mim é certo e muito claro, é que não quero e nem devo julgar, ou tomar partido, uma vez que apenas ouvi e escutei as razões de uma das partes.
De qualquer forma, ganhei um “mote” para escrevinhar umas linhas, o que tentarei fazer neste texto breve. Apenas isso. Longe de mim qualquer veleidade extra que não a de acrescentar mais uma opinião que nem sequer foi pedida, e que nem terá qualquer validade decisória. E ainda bem!
Mas vamos por partes que assim será melhor entendido o caso.
De uma maneira geral, entre os especialistas que sobre os níveis da língua arregimentaram conceitos, existe alguma unanimidade. Isto é, uma língua viva possui, e isso pode ser registado em termos da sua oralidade e da sua escrita, diversos níveis de língua, que se agrupam também em variações socioculturais da linguagem e variações geográficas da língua.
É assim que distinguimos numa mesma Língua, o nível corrente, o nível cuidado, o nível familiar e o nível popular. Também se observa nessa mesma língua a existência do calão, da gíria e das variantes regionais. Tomemos para exemplo, a nossa língua portuguesa que pode ser um exemplar perfeito do que se acabou de afirmar.
Fazendo agora um pouco a história da origem destes níveis de língua, a sua “paternidade” é atribuída de forma partilhada, ao “fundador” da Linguística como ciência, o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) ao «Círculo Linguístico de Praga» (1930) e a Roman Jakobson notável linguista russo (Moscovo, 1896 - Boston, 1982). Estes mestres históricos, estruturaram a Língua, criaram modelos hoje universais das funções da linguagem e fizeram aproximações entre os domínios da linguística e os da teoria literária. Todos eles fizeram escola, ganharam discípulos teorizadores, dos níveis de língua e das funções da linguagem.
Ora bem, existem também alguns autores que aceitam a conceptualização da chamada “língua literária” apenas como registo escrito, não oral, configurando-a como apresentando: “as características da língua cuidada, mas assume desvios da norma mais arrojados: figuras de estilo e palavras estudadas para criar ambientes emotivos e poéticos.” (fim de transcrição).
É minha opinião que a definição de uma “língua literária” como nível de língua – não como linguagem que a meu ver ela tem cabimento – talvez esteja mais assente, enquanto tese, entre os estilistas brasileiros da língua portuguesa, uma vez que os falantes desta variante da língua portuguesa possuem uma oralidade muito diferenciada e distinta da língua escrita. É muito mais notória a “décalage”, o desnivelamento entre a oralidade e a escrita do português, variante brasileira do que entre a oralidade e a escrita entre nós, falantes do português (euro-africano) em que, por vezes, as fronteiras entre o nível da oralidade e o nível da escrita são bem ténues.
Daí talvez tenha havido entre alguns estudiosos e estilistas da língua, a necessidade do acentuar uma existência de «língua literária» enquanto nível de língua. O que é bem capaz de eventualmente poder enriquecer, porque aumenta as variações, a distinção entre os níveis de língua, mas não deixa de ser “uma abstracção” dado que à linguagem literária concorrem e podem concorrer ao mesmo tempo, vários níveis de língua por ela absorvidos, fundidos, neutralizados e recriados. Consequentemente, pode parecer “redutora” e “limitativa” a existência de “per si” da língua literária enquanto registo autónomo como nível de língua.
Com efeito, na nossa permanente e vital necessidade de comunicação, estamos sempre a usar um nível de língua, ora o familiar, ora o cuidado, ora o corrente, e até mesmo a gíria e/ou o calão, importando apenas o contexto em que nos encontremos, os interlocutores de ocasião e a natureza e o conteúdo do assunto a tratar.
Por vezes, nos nossos actos elocutórios, em que, a “linguagem pensa o discurso e articula a fala” – que me seja permitida esta espécie também de abstracção aparentemente confusa – juntam-se num mesmo acto elocutório, o nível cuidado (culto) e o nível corrente (informativo) da língua. Imagine-se, por exemplo, o cenário de uma conferência, ou de um debate científico, entre outros, em que o rigor do pensamento e a formulação das ideias são chamados a par. Nestes casos usamos mais do que um registo da língua veiculada e com alguma ênfase no nível cuidado, na língua culta que acabam por ser sinónimos e que engloba também a linguagem científica e técnica.
Por outro lado, se se está perante um texto literário – prosa ou poesia – está-se perante um consciente “desvio” de tudo isto na perspectiva de uma linguagem criativa, original, simbólica perfigurativa, artística e poética, sem perder os limites, por vezes em última instância, da linguagem comunicativa. Por isso é que se fala em “literariedade” de um texto enquanto ficcional, poético e fundamentalmente criativo e estilístico.
E o texto literário é, por vezes, um ponto de chegada, uma convergência reelaborada, transformada, em que se encontram os vários registos dos níveis de língua, da cuidada à popular, passando pela familiar, pela gíria, numa perfeita simbiose distintiva em contexto, ora nas falas das personagens socioculturalmente distintas, ora nos descritivos do narrador e/ou no expressar emotivo do sujeito poético.
Eu fico-me – falando o nível corrente da língua – pela suposição de que existe em grau acentuado, alguma existência virtual e não verificável – enquanto nível de língua – da chamada “língua literária” sobretudo se agrupada aos níveis já aqui referidos. Mas é apenas a minha opinião.

Voltando ao início deste escrito, espero e faço votos sinceros de que o diferendo entre o estagiário e as supervisoras, responsáveis pela finalização do seu percurso académico, seja bem resolvido, com bom senso, com abertura na análise dos pontos de vista de cada lado e que haja uma discussão paritária com aceitação e compreensão na divergência de opiniões divergentes. Pelo contrário, não desejaria que o assunto fosse resolvido transmitindo algum sinal, alguma suspeição de que a solução esteve do lado da “força” de quem tem (?) a superioridade conferida do alto do estrado da sala de aula, ou da irreverência por se ter acesso a variadas informações hoje disponibilizadas pelas novas tecnologias de informação.
Finalizo reiterando o desejo que neste caso, impere a abertura intelectual e o saber, mas um saber baseado numa argumentação séria e honesta conferida através do estudo e da pesquisa sobre a matéria.

Camões e a lírica do Amor

quarta-feira, 9 de junho de 2010
Estou convicta de que não é tarefa fácil falar de Camões e da sua lírica amorosa, pois que, se há campo poético em que ele mais se agigantou, e que quase faz unanimidade entre os seus críticos e estudiosos de maior peso, foi exactamente no campo do amor. Com efeito, foi através da temática do Amor que Camões melhor exercitou a sua pena.
E convém explicitar, acrescentando desde logo que, sobre essa temática – a do amor – tudo ou, quase tudo outros maiores já se pronunciaram sobre Camões “escalpelizando-lhe” os versos. Que me seja permitida esta imagem que pretendeu significar as análises literárias, sociológicas e históricas, algumas de indiscutível valor já feitas ao longo de séculos sobre a poesia de Camões, na parte em que versa o Amor.
Logo, abordar a sua imensa poesia amorosa feita em mil poemas de que se destacam os versos sob forma de sonetos, de redondilhas, de esparsas, de cantigas, de canção, de epigramas, de elegias, de odes, éclogas…eu sei lá! Abordá-la, dizia eu, constitui sempre uma enorme temeridade de que em consciência e perante vós, gostaria de dizer que dos seus versos me aproximo sempre em reverente e maravilhada postura pois que são verdadeiras filigranas, daquele que é considerado um dos gigantes de todos os tempos da poesia feita em língua portuguesa, Luís de Camões.
Mas vamos por partes, e comecemos por uma breve cronologia da vida de Luís Vaz de Camões.
Nasceu em Lisboa, em 1524 ou 1525 (o ano e o local do seu nascimento dividem os seus biógrafos) de qualquer forma a cidade de Lisboa é-lhe dada com maior frequência como terra natal. Cedo fica órfão de pai morto em combate. Criado pela mãe, descendente de família fidalga, embora arruinada, assim o afirmam muitos dos registos biográficos do poeta, e mais, dizem que Camões estudou humanidades, letras clássicas graças a um tio materno que era Chanceler da Universidade de Coimbra e que teria descoberto a superior inteligência e muita curiosidade por saciar do sobrinho, ainda criança. Da sua vida jovem, passada na cidade de Lisboa, para além de compor poemas e até os compor a pedido de outros, ele fez poesia por encomenda para assim angariar alguma subsistência; destaca-se a sua faceta de soldado, aventureiro; de vida boémia e um pouco marginal das noites dos bares de bairros de rixas frequentes; de jovem de brigas, e de duelos por amor, por ciúmes e por rivalidades várias e de ter conhecido a prisão, algumas vezes por causa disso. Conhece por um lado, alguma fama de bom poeta ainda muito jovem e em Lisboa, mas por outro lado, não chega a ser convidado para poeta do rei, dado a “má fama” em termos de comportamento social rebelde de que gozava entre os fidalgos da Corte portuguesa.
A primeira expedição militar e guerreira foi feita em Ceuta, Marrocos, onde perde um olho.
Mais tarde, e como parte de uma pena que lhe fora comutada, embarca para a Índia, como soldado, numa das naus que na época quinhentista partiam com regularidade de Lisboa para o Oriente.
Ora, é no Oriente – onde permaneceu largos anos fundamentalmente na Índia (Goa e Malabar) e na China, em Macau, onde exerceu alguns cargos e onde numa gruta, a célebre gruta de Camões em Macau, hoje, ponto de visita obrigatória da cidade, ele escreveu grande parte da sua obra.
Com efeito, foi no Oriente que ele redigiu o livro, considerado o maior entre as suas obras, “Os Lusíadas” cujos versos são considerados de inimitável valor épico até então, realizados na Literatura portuguesa. Os Lusíadas constituem-se como um louvor aos Descobrimentos e aos feitos levados a cabo, pelos portugueses, com destaque para os feitos acontecidos nos séculos XV e XVI. Organizado em 10 cantos, o livro descreve em verso a viagem de Vasco da Gama, na descoberta do caminho marítimo para a Índia. Desde a partida de Lisboa, das aventuras, naufrágios, lutas, doenças e mortes até à chegada ao porto de destino (Calecut) em 1498. Os Lusíadas revelam de forma soberba o saber renascentista de que Camões é um expoente acabado pois o poeta inscreve neles o seu imenso saber sobre a História portuguesa e a universal, sobre a ciência náutica, sobre a mitologia clássica greco / latina, sobre os fenómenos naturais, marítimos, astronómicos, climáticos, entre outros. Claro que na obra existe também a imitação de um grande mestre clássico, no caso de Virgílio (séc. I A. C.) poeta latino, e da sua obra a “Eneida”. Imitação no sentido clássico. Camões terá tomado de Virgílio os moldes e o formato para sua obra épica. Aliás, essa imitação era tida como positiva, pedagógica e formativa do poeta renascentista.
Ora Camões escreveu muito, de tal maneira o fez, que disso tem perfeita consciência quando num dos seus conhecidos versos disse: “numa mão trago a espada, (aludindo à vida de soldado e da defesa pessoal) noutra mão trago sempre a pena” significando a produção dos seus poemas. É também no Oriente que ele experimenta a dureza da vida, passando por miséria, perseguições, naufrágios, aflições e tormentos, de vária ordem. De tudo isto, Camões dará conta nos seus versos os quais ele próprio classifica como sendo escritos: “cum saber só de experiência feito”( do Canto IV dos Lusíadas), A fala do Velho do Restelo, funciona aliás, um pouco como o alter-ego do poeta no relato das desgraças e dos infortúnios que esperam os que partem na aventura do além-mar. Aventuras e experiências dramáticas foram a própria vida de Luís de Camões no Oriente.
Regressa a Lisboa, acompanhado de um escravo javanês, o jovem Jau. Em Lisboa apresenta Os Lusíadas, lendo-os ao rei D. Sebastião que como reconhecimento lhe promete uma pensão pecuniária que o sustentaria mas que infelizmente dela pouco usufruiu, uma vez que o rei partiu logo de seguida para a célebre batalha de Alcácer-Quibir, no norte de Africa, onde perdeu a vida.
Camões vive os seus últimos anos com muita penúria e não menos dificuldades em angariar o seu sustento. Conta-se que ele sobrevivia, graças à dedicação do seu escravo Jau, que pedia esmolas para o grande poeta, nas ruas e às portas das casas de Lisboa.
Entremos agora na parte que constitui o tema que aqui trago que é Camões o lírico do Amor.
Convido-vos para juntos seguirmos alguns momentos bem significativos, ainda que a infinitésima parte, da grande viagem amorosa de Camões expressa através de alguns sonetos. Diz ele que a desdita nessa matéria cedo começou e não mais o deixou, aliás o poeta diz-nos que três desígnios lhe configuraram a vida, a saber: “Erros, Má Fortuna e Amor Ardente” quando ele afinal, apenas queria o Amor.
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças
!

Para falar sobre o amor, com conhecimento de causa, o poeta revela o entendimento que disso tem; entendimento esse, feito de longa e continuada experiência; logo, conhece o sentimento profundamente. Conhece-o tão completamente que é capaz de o descrever e de o definir nos contrastes, nos paradoxos e nas antíteses mais subtis que o mesmo sentimento pode provocar no ser humano:
«Amor é um fogo que arde sem se ver;/É ferida que dói, e não se sente;/É um contentamento descontente;/É dor que desatina sem doer.//É um não querer mais que bem querer;/É um andar solitário entre a gente;/É nunca contentar-se e contente;/É um cuidar que ganha em se perder;//É querer estar preso por vontade;/É servir a quem vence, o vencedor;/É ter com quem nos mata, lealdade.//Mas como causar pode seu favor/Nos corações humanos amizade,/Se tão contrário a si é o mesmo Amor?»

Mas mesmo assim, ele tem uma proposta que faz à vida. Aliás, para sermos mais correctos trata-se mais do que simples proposta, é uma promessa, um juramento: o de cantar o Amor, não só para ele, mas como algo que o transcenderá pois que é pertença de todos. Fá-lo, dando o seu exemplo, através do seu caso particular de amor não correspondido e cantando a beleza da amada.
Camões fez também do Amor um templo de perfeição, um ponto de chegada à Beleza espiritual, muito na linha renascentista e no caso dele também «bebido» no cancioneiro medieval:
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena, ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho, e arte
.

Mas o Amor não foi brando, nem generoso com o poeta. Entregou-o à má sorte, ao destino. Fê-lo sofrer e passar por mil tormentos, chegando ao ponto de, já não havendo mais como torturá-lo, permitir que a Fortuna inventasse outros tantos sofrimentos expressamente para ele:
Depois que quis Amor que eu só passasse
Quanto mal já por muitos repartiu,
Entregou-me à Fortuna, porque viu
Que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que ele só me reduziu,
O que para ninguém se consentiu,
Para mim consentiu que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando,
Copioso exemplário para a gente
Que destes dois tiranos é sujeita;

Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente
!

Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que coisa era viver ledo.

Mas minha Estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizeram de gostos haver medo


Apesar disto, ele não se afaste do Amor e nem desiste de amar, apesar de tudo louva-o embora reconheça a sua inconstância em questões de fidelidade e de juras de amor…Em várias flamas variamente ardia” (de muitas paixões simultâneas e diferentes se constituiu a vida do poeta/ amante)
No tempo que de amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse n’um só fogo não queria
O Céu porque tivesse experimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co’o peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou

Este meu tão cansado sofrimento!

E volta o poeta numa espécie de cantiga de Amor a revelar a tormenta por que passa por causa do Amor que não cessa de o maltratar ao provocar-lhe diferentes e desencontrados estados de alma e levando-o quase ao desvario insano aparentemente sem causa mas de tal estado ele tem uma suspeita: “…suspeito que só porque vos vi, minha senhora.”

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Num’ hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um’ hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.

Nessa linha, tal é o “desvario” provocado pelo seu estado de enamorado que o poeta fica com uma espécie de “ressaca” de amor na alma que nem ele próprio a entende. Eis os versos que no-lo dizem:
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde;
Vem não sei como; e dói não sei porquê
.

O Amor é por vezes em Camões comparado ao mar bravio de ondas indomáveis e de iminente naufrágio a que não escapará o mais valente marinheiro, mas uma tormenta da qual ele sobreviverá, jurando embora que de novo, o oceano não o apanhará e que irá para o sossego em terra. Fatalmente para o mar voltará ainda que dele tendo medo:

Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De um naufrágio cruel saindo a nado,
Só de ouvir falar nele está medroso;

Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire sossegado;
Mas esquecido já do horror passado,
Dele a fiar se torna cobiçoso;

Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;

Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me torno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.


A força do Amor é de tal monta que já não se contenta com dois sujeitos em que um ama e o outro é amado. Não, para ser Amor na plenitude deve o “amador transformar-se na coisa amada” Um só ser aninhando os dois amantes. Desta forma talvez cessem o desejo e as outras inerências de natureza carnal/material do amor, com a transmutação dessa parte da amada – intuída na obsessão dele que a ama – para o espírito do amador.
De novo a herança do cancioneiro e das cantigas de amor do antigo trovador. Igualmente, esta composição poética possui na sua configuração e dentro da temática camoniana do amor, o intertexto clássico de uma certa postura do amador perante a endeusada amada.

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co’a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma
.

Este sentimento (o Amor) que o poeta, como poucos, soube retratar, é por vezes uma longa provação. Assemelha-se a uma quase expiação a que o amador tem de se sujeitar para merecer e ter finalmente a recompensa almejada. Mas mesmo sofrido o “calvário” por amor, é-lhe negada a recompensa que o seu sentimento pretendia e a expiação volta ao início por vontade de quem ama. Assim se expressa o poeta no soneto que a seguir se apresenta e que vai buscar no texto bíblico o mote que o emoldura:

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prémio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: − Mais servira, senão fora

Para tão longo amor tão curta a vida

A vida amorosa de Camões encontra-se abundantemente documentada pelos seus inúmeros biógrafos e pressentida grande parte dela, através dos poemas que o poeta legou. Amou muitas mulheres/musas dos seus versos. Assim foi o caso da Bárbara, segundo alguns biógrafos, a companheira dele no Oriente e que terá perecido no naufrágio em que Camões se salvou e salvou também os manuscritos dos Lusíadas.
«Endechas a Bárbara escrava/Aquela cativa,/que me tem cativo,/porque nela vivo/já não quer que viva.//Eu nunca vi rosa/que em suaves molhos,/que para meus olhos/fosse mais fermosa.// Nem no campo flores,/nem no céu estrelas,/me parecem belas/como os meus amores.//Rosto singular,/olhos sossegados,/pretos e cansados,/mas não de matar.// üa graça viva/que neles lhe mora,/para ser senhora/de quem é cativa.//Pretos os cabelos,/onde o povo vão/perde opiniãoque os louros são belos.// Pretidão de Amor,/tão doce a figura,/que a neve lhe jura/que trocara a cor.//Leda mansidão/que o siso acompanha:/bem parece estranha,/mas bárbara não.// Presença serena/que a tormenta amansa:/nela enfim descansa/toda a minha pena./Esta é a cativa/que me tem cativo,/e, pois nela vivo,"é força que viva.»
Conta-se que quando ela morreu teria o poeta em sua memória composto o célebre soneto que é dos versos de Camões dos mais conhecidos:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te
,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou
.

O que restou afinal para o Poeta do grande Amor perdido? Diz-nos que são memórias que o têm perseguido «do doce bem passado e mal presente»:

Se quando vos perdi, minha esperança,
A memória perdera juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.

Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.

De cousas de que apenas um sinal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memórias perseguido
.

Ah dura estrela minha! Ah grão tormento
Que mal pode ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que é já passado?

A demanda do Amor torna-se cada vez mais penosa para o Poeta. Ele visitou o templo do Amor, dizem-no os seus versos: «Amor co’a esperança já perdida teu soberano templo visitei (…)»
Mas agora não resta muito tempo, a idade avança e a experiência desengana.

Minguando a idade vai, crescendo o dano;
Perdeu-se-me um remédio, que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda aparece,
De vista se me perde, e da esperança
.

Finalmente Camões resume o que foi a vida dele num verso lapidar e exemplar e que nos interpela:
«Este meu breve e vão discurso humano
Camões morreu a 10 de Junho de 1580 aos 56 anos de idade, pobre e doente. Um dos seus últimos poemas dizem-no amaldiçoando a sua vinda ao mundo e nele deixa gravado também, como se percebeu a si próprio:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar;
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu
.

Para finalizar direi que tal como ele antes dissera em versos acerca daqueles que ficam para além da morte através das suas criações e legados, também ele próprio (grande e acabado poeta) se integra totalmente nesses seus versos: “e aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” … Portanto, Camões permanece entre aqueles cujas obras ficam na memória dos Homens.

Mulheres em tempo de guerra...

segunda-feira, 7 de junho de 2010
Com este título é natural que vários intertextos de outros escritos nos acudam à memória. Mas este particularmente foi-me sugerido pela recente leitura do livro: “ A África no feminino – As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial” de autoria de Margarida Calafate Ribeiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Um ensaio interessante pois que acaba por ser ao mesmo tempo um testemunho em directo de mulheres, que no período compreendido entre 1961 e 1974 – quase todas então nos vinte anos, bem jovens – acompanharam os maridos que então prestavam serviço militar nas três frentes de guerra, Angola, Guiné e Moçambique.
A autora conseguiu reunir um punhado de depoimentos, que parecerão reais e sinceros ao leitor, pois que despidos de qualquer veleidade ou de pose de heroicidade ou similar, mas também sem grandes lamentos. Antes, muito lucidamente, algumas delas lançam um olhar sem preconceito e sem diabolismos sobre esse fenómeno chamado “guerra colonial” que marcou toda uma geração que foi também a minha.
As entrevistadas ou depoentes, falam dos seus medos, dos medos que sentiram pela iminência de perderem os maridos, os irmãos, os amigos, todos militares. Uns de carreira, outros cumprindo o serviço militar obrigatório. Tudo isso numa guerra a que muitos foram forçados a ir e que quase todas afirmam podia ter sido evitada. Jovens mulheres, alegres e confiantes que deixaram o conforto das suas vidas em Lisboa, Porto, Coimbra e outras cidades e terras portuguesas para estarem ao lado dos maridos em locais inóspitos as mais das vezes, pois que nem sempre ficavam em Luanda, Bissau, ou Lourenço Marques. Mas nenhuma, das depoentes, se sentiu automaticamente heroína ou diferente. Embora muitas tivessem ficado marcadas pelo drama da situação, pelo que viveram, ouviram e assistiram do horrendo de uma guerra. E algumas, por causa dela, a guerra, interrogam-se e questionam se hoje seriam as mulheres que são se não tivessem tido este período anormal, numa fase de vida tão bela como é a da juventude.
Possivelmente a autora fez uma selecção para o livro, dos depoimentos ouvidos. Nisso foi muito feliz, pela excelência de alguns deles e que dão ao leitor testemunhos maduros e inteligentes de uma época histórica das mais importantes, se não a mais importante da história recente de Portugal e das suas ex-colónias no século XX.
Como alguém, que me é muito caro, costuma dizer: só quem não fez a guerra é capaz de lhe entoar loas e remata que a guerra não é nenhum passeio romântico. Cometem-se atrocidades e por vezes algum humanismo dos dois lados dos contendores.
Voltando ao livro, a autora, na introdução fala do silêncio que pairou sobre a guerra colonial, uma guerra sobre a qual mal se falava ou então não se falava, pois que era assunto tabu enquadrado num ambiente sem liberdade de expressão. Diz ela que “o silêncio sobre a guerra seria assim uma forma equivalente ao discurso sobre a guerra, ou seja, numa forma de resposta ao trauma um sentido individual e colectivo” e remete o leitor a uma perspectiva metafórica da guerra nas palavras de uma personagem do romance de Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios: “Se ninguém fotografou, nem escreveu, o que aconteceu durante a noite acabou a madrugada – não chegou a existir.”
Interessante e coincidente para mim, ao ler o livro, “África no feminino – As mulheres portuguesas na Guerra Colonial,” veio-me à memória que aqui há algum tempo iniciei um texto, a que dei o título: “Conacry no feminino – Um tempo e várias Histórias.” O texto andou esquecido um ror de tempo. Felizmente que o computador o guardou. Fui relê-lo.
Afinal, também tivemos as nossas mulheres na guerra da independência na Guiné. Muitas não foram só acompanhar os maridos, também muitas delas participaram quase em directo no teatro de guerra.
E se essas mulheres começassem realmente a falar? Sim, as que lutaram também. E se elas começassem a escrever, a (des)confidencializar, a registar as memórias. Enfim, a fazer um pouco da catarses, do muito-dito e do não-dito que lhes carregam as lembranças de um tempo muito marcante, muito complexo e com o seu quê de glorioso e de traumatizante ao mesmo tempo. Seria bem interessante, para a nossa geração e descendentes, conhecer – com verdade e sem “pinças” – tudo aquilo por que algumas delas, passaram durante o tempo vivido em Conacry ao serviço do Paigc, perseguindo um ideal, que na altura era a independência de Cabo Verde, acoplada à da Guiné? Sim, já imaginaram o que seria? Se elas pegassem na pena? …
Alguma estará a fazê-lo? Seria óptimo!

Elas, as tais mulheres, jovens na altura, no meio de muitos outros homens igualmente jovens, num ambiente de guerra, de permanente desconfiança, de muito medo e, quiçá, de algum assédio. Numa proporcionalidade desequilibrada e desconfortável. O que não terão passado? Elas e alguns dos “seus” homens.

E se nos contassem essas memórias? Com verdade e sem preocupações louvaminhas ou de agradar, ou mesmo ainda do “parecer bem” ou do “parecer mal”. Que nos deixassem saber da perspectiva delas face a uma guerra em que foram por ela apanhadas numa determinada conjuntura histórica. Talvez surgisse uma outra face da mesma moeda…
E se de facto alguma decidisse narrar, cronicar e até mesmo historiar o que por lá passou? Alguma coisa mudaria o nosso entendimento da História recente de Cabo Verde? Do seu processo de independência? Dos seus homens? Dos que lá andaram. Alguns, bem formados moralmente, outros, nem tanto…
Todos heróis? Todos santos? Todos imorais? Claro que não!
E se nos falassem dos seus medos, dos seus terrores, de que como era viver entre muitos homens, cada um com a sua virilidade por desfrutar e em tempo de guerra? Se nos contassem também como era viver no meio do mato ou acantonadas, nos arredores de Conacry, no espaço que Sekou Touré permitiu?
De alguns domingos na capital do país que as acolheu, em que não raro aconteciam espectáculos públicos macabros de enforcamentos de intelectuais, de artistas, de políticos cuja única culpa era a de pensarem diferente do Ditador?
Como imaginar, o dia-a-dia desse punhado de mulheres, dos seus trabalhos, dos seus silêncios e das suas dores. Algumas que para lá foram de “motu próprio” por sua vontade e outras – se calhar a maior parte – apenas por terem de acompanhar os maridos, os companheiros? Sim, e se alguma resolvesse escrever sobre isso? Dos temores sentidos quando pairava a eventualidade do seu homem (porque era sobretudo sobre eles que caía o machado directo da guerra) cair em “desgraça” face à estrutura militar e de comando da luta? Como viver o dilema da solidariedade ou do isolamento?
Enfim, seriam sem dúvida histórias de um tempo de guerra e como tal deverão (ou deveriam?) também ser percebidas.
E se alguma a isso se abalançasse? Ora bem, são já passadas três décadas sobre os acontecimentos. As que participaram na guerra na Guiné são hoje, quase todas, respeitáveis avós, mas ainda lúcidas e em boa idade de pôr cá para fora essas memórias de forma mais pensada, mais interiorizada e melhor elaborada, sobretudo sem fingimentos porque hoje desnecessários e sem o afã de agradar ou de desagradar quem quer que seja, apenas com o belo intuito cívico de um depoimento histórico no mais amplo sentido do termo. Talvez tivéssemos belas surpresas… Quem sabe!
Digam-me lá, se não seria interessante termos a perspectiva feminina da luta na Guiné, pela independência da Guiné e de Cabo Verde? Sim, porque manda a verdade que se diga que até agora o que a contraparte masculina já escreveu, pelo menos no que me foi dado ler, não passa de uma história muito colorida, recheada do já esperado que fosse dito e substancialmente prenhe de heróis… Como se aquela guerra tivesse sido algum filme daqueles bem à maneira americana.
Tal como o realizado pelo livro de Margarida Calafate Ribeiro, também projectei em tempos idos, bater à porta de algumas das minhas patrícias que vivenciaram a guerra e pedir-lhes que nos contassem em depoimentos honestos – não estamos à procura de heroínas, com todo o respeito que disso se possa ter – como foi do ponto de vista delas…
Nunca é tarde!...

Nota actualizada – Este texto foi escrito e já publicado há algum tempo. É minha opinião que o assunto não perde actualidade. Daí voltar a editá-lo.