POSTAL AMISTOSO

domingo, 29 de janeiro de 2017

 - À atenção do Professor da Língua Portuguesa do Ensino Básico, Secundário e Universitário de Cabo Verde -

Caro colega:
Cordiais cumprimentos. Decidi dirigir-me a si desta forma – em postal amistoso -  para assim entabularmos  um diálogo, cujos termos julgo eu, ambos bem conhecemos:
1 – Gostaria de delicadamente lhe perguntar se gosta da Língua portuguesa, se a usa na  sala de aula com os seus alunos e se nas conversas que com eles costuma ter fora do contexto das aulas, usa igualmente a nossa língua portuguesa. Se respondeu SIM  às três questões, merece as felicitações dos pais e encarregados de educação dos alunos, da sociedade cabo-verdiana que contribui para que exerça dignamente a função de professor de português e queira receber as minhas felicitações  aqui também incluídas.
Se não, ainda poderá estar a tempo de arrepiar caminho e ser melhor professor.
Releve-me esta maneira, a modos que de colega mais velha, de iniciar a relação epistolar.
2 – Sabia  caro colega que não pode ser isoladamente culpado da má preparação notória que os seus alunos revelam em matéria de expressão escrita e oral da Língua portuguesa, no final dos diferentes patamares de ensino?
 Pois bem, a si coube  e cabe certamente parte importante e fundamental desta calamidade linguística que  assistimos actualmente nas nossas escolas. Mas caberá igualmente aos professores de História, de Geografia, de Estudos Sociais, de Ciências Naturais, de Física, de Química, de Matemática, entre  outras disciplinas curriculares do sistema do ensino, uma grande dose de culpa, pelo desleixo, pelo desafecto, pela falta de cuidado que esses nossos colegas, de uma maneira geral demonstram em relação à Língua veicular  do Ensino em Cabo Verde; inscrita em alongado texto na Lei de Bases do Ensino, 1990 e nas leis que regulamentam os diferentes níveis escolares do sistema escolar do País. A Língua portuguesa. Língua aliás, através da qual aqueles docentes fizeram toda o seu percurso escolar e veículo linguístico dos livros científicos e técnicos por onde estudaram durante o curso.
3 – Reconheço também que a maior parte dos professores que sai munido de Diploma dos nossos estabelecimentos de Formação, traz do antecedente, o perfil de aluno medíocre  do sub-sistema secundário. É este perfil que regra geral, demanda formação superior no País. Infelizmente, é a realidade existente e a mais visível, na sala de aula das instituições médias e superiores de formação, tanto na ilha de Santiago, como na ilha de São Vicente.
Posto isto, a questão que se coloca é a seguinte: como podemos ter docentes e ensino de qualidade quando a base e a matéria prima são  más? Que esperar do saber e da cultura de um professor que nunca leu um livro por inteiro? E mais, que desaconselha (repare bem!) os pais e os alunos a adquirirem livros de estudo e manuais escolares? Que qualidade de ensino estamos a ter nestas ilhas, depois de mais de 40 anos de investimentos de alguma grandeza na Educação?... algo, ou pior, muita coisa está erradissíma!  
4- Eu sei caro colega, porque também tenho o mesmo sentimento de  vergonha e de tristeza profunda que possui  o comum do cidadão cabo-verdiano, mais velho, quando temos notícias de que o  actual e infelizmente grande insucesso académico dos nossos estudantes universitários, nas Universidades portuguesas e brasileiras se deve em grande parte ao não domínio da Língua comum.
Muitos estudantes cabo-verdianos, são aconselhados e avisados, por vezes, já em pleno funcionamento  das suas actividades lectivas de que não estão aptos a acompanhar as aulas e os trabalhos no âmbito do curso escolhido, porque não sabem expressar-se oralmente e nem escrever correctamente a Língua portuguesa.  Que calamidade! E note caro colega, trata-se de alunos que obtiveram médias, as mais elevadas em liceus nacionais! - altamente inflacionadas, é a conclusão a que se chega -  e por isso mesmo puderam candidatar-se a cursos fora do país.
5 – Por hoje, quedo-me por aqui, esperando sobre a mesma matéria, voltar em breve a contactá-lo. Até lá, prezado colega, medite mas medite mesmo, na enorme responsabilidade que sobre si impende e no grau de exigência que deve ter consigo próprio a bem do ensino da Língua portuguesa nas nossas escolas.
Ensine com gosto e com boa preparação a nossa bela língua veicular, são os meus votos sinceros.
Sempre colega:

Ondina Ferreira
sábado, 28 de janeiro de 2017
Considerando que o assunto é de relevante interesse para os falantes da Língua portuguesa e com a devida vénia ao Jornalista/autor da boa informação, e ao Jornal  «Público« de 28/01/2017, transcreve-se o texto:

Língua portuguesa
Nuno Pacheco
As alterações propostas ao acordo ortográfico são um documento aberto. A Academia das Ciências quer agora discuti-las.

Depois de aprovado na Academia das Ciências de Lisboa, na quinta-feira, por 18 votos contra cinco, o documento Sugestões para o aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi ontem divulgado à imprensa. Tem três pontos essenciais e estes dizem respeito à acentuação gráfica, às sequências consonânticas e ao emprego do hífen. A ACL diz, no documento, que se trata “de um primeiro trabalho”, no sentido de que se “avance com a sistematização de critérios e orientações visando “uma maior regulação” e “na defesa de um registo adequado à variante portuguesa.”
O presidente da ACL, Artur Anselmo, gostaria que este documento servisse de base a uma discussão mais alargada. “A Academia”, diz ele ao PÚBLICO, “propôs uma reunião de todas as organizações que trabalham com profissionais da escrita: PEN Clube, a Associação Portuguesa de Escritores, a Sociedade Portuguesa de Autores e seria bom que também participassem organismos representativos dos jornalistas.” Esta reunião, ainda sem data marcada, articula-se, diz, “com a audição a que eu serei sujeito, e com muito gosto, na Assembleia da República. Estou à espera que me digam quando.”
As alterações ao texto do acordo ortográfico de 1990 (AO90) propostas coincidem com as que já tinham sido parcialmente antecipadas na comunicação social: a diferenciação de pára e para; pélo (de pelar), pelo e pêlo; pôr e por; recupera-se a terminação -ámos no pretérito perfeito para distinguir do presente do indicativo, -amos (ex: falámos, falamos); aceita-se a dupla acentuação em palavras como oxigénio/oxigênio ou tónico/tônico, mas com delimitação geográfica clara (uns em Portugal, outros no Brasil); retoma-se o acento circunflexo na 3.ª pessoa do plural do presente do indicativo, crêem, lêemvêem, em lugar do creem, leem, veem imposto pelo AO90; nas sequências consonânticas recuperam-se as palavras que eram iguais em Portugal e no Brasil e que mudaram só em Portugal (concepção, recepção, etc), sugere-se a manutenção da consoante dita muda em certas palavras “para evitar arbitrariedades” (característica, por exemplo, em lugar de caraterística) e nos casos onde ela tenha “valor significativo, etimológico e diacrítico” (conectar, decepcionado, interceptar), mas sugere-se que continuem eliminadas em casos como acionar, atual, batizar, coleção, exato, projeto.
Por fim, no uso do hífen propõe-se a sua manutenção nas “expressões com valor nominal”, ou palavras compostas, como maria-vai-com-as-outras, em formas como luso-brasileiro, em vocábulos onomatopaicos (au-au, lenga-lenga), e propõe-se que se escreva pára-choques, pára-brisas ou pára-raios, mantendo-se escritas aglutinadamente palavras como mandachuva, paraquedas ou paraquedista. Há mais propostas, mas estes tópicos dão já uma ideia do que a ACL pretende sujeitar à discussão pública.
Artur Anselmo não tenciona deixar morrer o tema. “Isto é como uma campanha: se se silencia, cai no esquecimento. Precisamos de avivar a questão fazendo reuniões, trocando impressões, criando uma onda que vai crescer e perante a qual o poder político terá de tomar uma posição.” Mas conscientemente, acrescenta: “Tudo o que fizermos tem de ser feito com muito juízo: firme, mas apoiado na ciência e na cultura.”

nuno.pacheco@publico.pt
sexta-feira, 27 de janeiro de 2017
Nótula ao Leitor


José Fortes Lopes, natural da ilha de São Vicente, Professor universitário e estudioso da História contemporânea de Cabo Verde; dos acontecimentos que envolveram a independência, (1975) e da emergência do regime Democrático (1990) nas ilhas. O autor fixa neste ensaio um ponto de vista para o qual, convidamos o leitor a partilhar numa leitura que esperamos reflexiva e crítica.



SUBSÍDIOS PARA HISTÓRIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA DE CABO VERDE
Introdução:
Estes Subsídios (em duas partes) têm por objectivo contribuir para uma melhor compreensão da História Política Contemporânea de Cabo Verde.
Não sou historiador nem cientista político, mas as circunstâncias e o meu envolvimento cívico em prol de Cabo Verde, nomeadamente a minha ilha natal, S. Vicente, tem-me levado por vias que no âmbito da minha actividade normal nem imaginaria e nunca teria antecipado. Esta tarefa rouba do meu tempo, mas a situação de Cabo Verde chegou a tal ponto de degradação social, cívica intelectual e cultural que não deixa indiferente o menos justo dos cristãos, que no passado teve a felicidade de conhecer um país que tinha muito para dar certo, sobretudo boa gente, e encontra-se num impasse e em vias de se inviabilizar. Assim, se puder contribuir para alguma reposição de Verdades e do Bem, então a minha tarefa não é inglória. Este é o meu propósito e móbil.
Assiste-se hoje a manipulações grosseiras da história, a omissão de factos e dados, a exageros e inverdades e mesmo situações que configuram fraudes científicas do ponto de vista do tratamento de material histórico. Fruto da guerra civil ideológica e política ocorrida no arquipélago durante cerca de 60 anos, os protagonistas do sistema partidarizado tentam, em função das conjunturas, colar a realidade histórica às suas narrativas. A história política do arquipélago, reescrita segundo os novos cânones partidários, resume-se, hoje, a uma dialéctica entre os dois principais partidos, o PAIGC/CV e o MPD, que se consideram demiurgos da nacionalidade, da liberdade e da democracia cabo-verdiana. De acordo com os seus pontos de vista, a nação cabo-verdiana pura e simplesmente não existia antes da independência ou da liberdade, considerando-se os pais criadores. Criaram Homens Novos, numa Nova Nação que, usando a lógica das suas teses, emergiu de geração espontânea, po isso somente os militantes do PAICV e do MpD têm existência e legitimidade política e histórica. Factos, personagens e dados importantes da história de Cabo Verde, anteriores ou contemporâneos, mas não simpáticos para com as suas narrativas, são assim pura e simplesmente apagados. Cidadãos e comunidades que não lêem o mundo pelas suas narrativas são marginalizados ou desaparecem das narrativas. Mesmo os que
contribuíram para que tais partidos alcançassem o poder, podem cair na desgraça, ao passo que o número de heróis e participantes nas lutas é inflacionado para gerir as novas clientelas partidárias e impressionar os mais jovens, normalmente a faixa etária com menos de 40 anos. Acresce que o centralismo pretende resumir todo Cabo Verde à ilha de Santiago. ‘Faits divers’ locais transformam-se em eventos de dimensão histórica nacional, ao passo que outros acontecimentos que marcaram a história tornam-se irrelevantes e omitidos. Séculos da história de Cabo Verde não são revelados ou tidos em consideração. A este fenómeno chama-se Revisionismo Histórico, um aspecto típico de sistemas totalitários que pretendem manipular e moldar as mentalidades de acordo com obediências ideológicas. Participam nesta operação a sociedade inteira, mais precisamente, os médias, intelectuais e a classe política que daí tira dividendos. Estaremos ainda numa situação totalitária em regime demiocrático?
1- A mitologia oficial sobre a paternidade da fundação de Cabo-Verde, da independência e da democracia cabo-verdianas
Sobre a história de Cabo Verde, duas leituras exclusivas e antagónicas estão a perfilar-se no momento actual: a da Independência e do Patriotismo e seus Heróis; a da Liberdade e da Democracia e seus protagonistas. Ambas circunscrevem a história de Cabo Verde a um período bastante delimitado, cuja génese é o nascimento do PAIGC, que se reclama de partido fundacional da nacionalidade cabo-verdiana e consagra o seu protagonismo com a independência política conquistada em 1975, sob a égide da luta armada no mato da Guiné, denominada Luta de Libertação Nacional, embora em solo estrangeiro. Depois, com a cisão ocorrida no seio do PAIGC em 1980, nasce o PAICV, pondo-se termo ao utópico e contranatura projecto da Unidade Guiné-Cabo Verde, mas a perspectiva ideológica mantém-se inalterável nos seus princípios e na sua prática. Mais tarde, o ano de 1990 marcaria o fim da primeira leitura, a da Independência e dos Heroísmos, com a queda do famoso artigo IV da Constituição de Cabo Verde, que sustentava o regime do Partido Único, e consagrava o PAICV como luz e guia de Cabo Verde.
É a partir daí, com a liberalização do regime, que se abre o espaço para a outra leitura, a da Liberdade e da Democracia, e de que se reclama o MpD, o partido que se forma em 1990 com base em dissidentes do PAIGC original e uma maioria de militantes saída do
PAICV. É assim que, em oposição ao PAICV, o MpD considera-se o pai da “Democracia e da Liberdade”.
Estas são, pois, as duas narrativas oficiais que, aparentemente, tendem a prevalecer na actual historiografia cabo-verdiana, cobrindo um curto período de 60 anos no máximo, desde 1960 (data do nascimento de movimentos nacionalistas na Guiné que incorporavam Cabo Verde no seus propósitos, à actualidade). Todo o período histórico anterior fica omisso ou encoberto em especulações de cariz demasiadamente ideológicos. No entanto, entre as duas narrativas não há sequer espaço para inserir a mais fina folha de papel. Acresce um fenómeno recente, as narrativas revisionistas do Fundamentalismo originário de Santiago, estribado no Centralismo Político e Cultural em voga em Cabo Verde, que vem ocupando progressivamente todo o espaço das narrativas políticas, reescrevendo uma versão da História, que usa ‘faits divers’ locais, trasformados em factos históricos de dimensão nacional, ao mesmo tempo excluindo a contribuição do Norte de Cabo Verde, nomeadamente a ilha de S. Vicente, o palco da História contemporânea de Cabo Verde, dos últimos dois séculos. Eventos, factos e personagens oriundos destas regiões são censurados e omissos deliberadamente e mesmo boicotados.
Há, pois, de artificioso e falso nas narrativas actuais, já que demasiado restritivas na interpretação da história e na análise sociológica do processo de consciencialização político-cultural do homem cabo-verdiano. De resto, costuma-se dizer que a história é escrita, ou reescrita, pelos vencedores e os detentores do poder, e é por isso que o PAIGC/PAICV, o MpD e os Fundamentalistas, cada um reclamando o seu quinhão de vitória, se julgam com direito à sua própria narrativa fundacional e de tentar impô-las.
Sem querer recuar muito no tempo para uma clarificação conceptual, bastará citar o sociólogo, especialista da Emigração/Diáspora, Luiz Silva, quando afirma que Cabo Verde não nasce no 5 de Julho, mas existiu muito antes. Silva defende que Cabo Verde como nação, como conceito ideológico, nasceu na emigração /diáspora com núcleos autónomos que cultivavam a sua cabo-verdianidade do local de origem. Na realidade esta construção ocorreu durante várias etapas, ao longo dos 500 anos da História de Cabo Verde, desde que se descobriu e povoou o arquipélago.
Pode considerar-se como acontecimento inaugural e simbólico do processo de construção da nacionalidade cabo-verdiana, a criação da Cidade Velha na ilha de
Santiago, a primeira fundada por europeus nos trópicos e que foi o pivot do tráfego de escravos africanos. Cabo Verde cresce e floresce, pois, a partir do comércio transatlântico entre a Europa e a América, contribuindo para o povoamento deste continente. Todavia, as vicissitudes históricas, as condições climatéricas desfavoráveis e a escassez de recursos naturais, não propiciaram as melhores condições para que o arquipélago progredisse economicamente e crescesse demograficamente.
Na verdade, até inícios do século XX, a população de Cabo Verde apenas atingia as 100 mil almas. Com a queda da Cidade Velha, nunca mais se constituíram centros populacionais expressivos em Santiago até inícios do século XX. A própria cidade da Praia, a capital administrativa, onde residia o governador e o seu staff, até à data da independência não passava de um pequeno burgo com algumas ruas, onde residia a burguesia local afecta à máquina administrativa, sem infra-estruturas adequadas. Todo o resto consistia em populações rurais vivendo na mais extrema pobreza, habitando povoados dispersos pela ilha e sem significado.
Espanta obviamente que a cidade da Praia fosse ainda em 1975 algo precário e carente de vitalidade urbana, sendo ela a capital da colónia, onde residia o governador e estavam sediadas as estruturas da governação colonial. Mas a única razão plausível é que a cidade não possuía uma sociedade civil dinâmica, imaginativa e produtiva, situação a que se acomodou o governo colonial. A cidade vivia basicamente da empregabilidade assegurada pela administração pública à sua elite, e a ilha subsistia dos magros recursos da agricultura de sustentação em regime de sequeiro, num arquipélago no seu todo fustigado por secas e emigração.
Em meados do século XIX, com o povoamento de S. Vicente, a cidade do Mindelo, graças ao Porto Grande e à presença britânica, torna-se o mais importante centro populacional, económico, político, intelectual e cultural de Cabo Verde, a metróple cabo-verdiana, com o reconhecimento da administração colonial e da ex-Metrópole. O arquipélago torna-se de novo viável e autosufiente graças a actividade económica desenviolvida no Porto Grande. A ilha de S. Vicente, à escala de Cabo Verde, adquiria uma actividade económica, comercial e industrial que lhe permitia o desenvolvimento de fenómenos tipicamente urbanos: lutas sindicais, sociais e políticas, assim como actividades culturais e intelectuais relevantes. Para ela afluem gentes de todo o arquipélago e da Metrópole, assim como
estrangeiros, nomeadamente italianos e judeus, que passam a incorporar uma sociedade civil dinâmica e criativa. É por mérito exclusivo desta, que a ilha passa a destacar-se consideravelmente no contexto do arquipélago, abrindo-se para o progresso e para o futuro e introduzindo a modernidade no território. É nela que ocorrem os movimentos literários e políticos do século XX, de que é exemplo mais destacado a Claridade. S. Vicente é em todos os sentidos uma ilha de cultura liberal, não sendo por acaso que é no seu chão que o 25 de Abril encontra eco no arquipélago, acolhendo-o com incontidas explosões libertárias, enquanto o resto de Cabo Verde passa praticamente ao lado dos acontecimentos. Desta maneira, com o contributo activo do MFA, S. Vicente é que proporcionou as condições para a instalação prematura em Cabo Verde do PAIGC e para a montagem do palco do discurso libertador que haveria de condicionar o futuro do território e influenciar a sua história (Continua em 2- Contestação da alegada paternidade da independência e da democracia cabo-verdianas).
Janeiro de 2017

José Fortes Lopes

Os políticos cabo-verdianos e Os desafios Semânticos

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017
Há bem poucos meses, um político de topo desabafava aparentemente pesaroso, numa animada conversa não propriamente restrita, que já estava farto do pessoal do MpD – seu partido – e acrescentava: preguiçosos e incompetentes. Não é que eu esteja em desacordo total com ele, mas penso que houve algum excesso e alguma arrogante presunção. Fizesse ele antes, uma introspecção, breve que seja, baseada na análise das funções que já exerceu, seu desempenho e desfecho, teria verificado que correria sérios riscos de alguém o classificar de modo muito semelhante. Então, recorreria a Ortega y Gasset – “o Homem é ele e suas circunstâncias” – para se justificar e não chegaria a tão patéticas conclusões acerca do militante do MpD. Faria seguramente uma análise de contexto, que é tão somente uma variável múltipla da multifunção “circunstâncias” e obteria outros resultados ou, no mínimo, particularizava-os. As suas afirmações fazem lembrar as de um “super-ministro” que alcandorado no alto do seu pedestal usou a comunicação social e toda a sua jactância para demitir um gestor público, por sinal de excelente formação académica, proclamando a sua incompetência. É esse ministro, já na condição de gestor público, que protagonizou, um par de anos depois, a mais desastrosa e vergonhosa gestão verificada em Cabo Verde após a independência. 
Mas, pergunto-me, o que terá levado o político, com responsabilidades elevadas, a fazer tal “desabafo”? Justificar, perante o seu eleitorado, a colocação dos seus amigos da actual oposição ou outros, completamente desconhecidos em lides políticas (não se sabe o que pensam…) em determinados lugares cobiçados por militantes que deram “suor, sangue” e alguma ambição para que ele lá estivesse e que se julgam com capacidade para desempenhar esses lugares? Tendo sido um general de campanha, o que o levou a conduzir as suas tropas para uma vitória se já sabia que não tinha gente para a “ocupação e administração do território”?
E o paradoxo é, sem dúvida, a anunciada nova orientação do seu partido que pretende criar inúmeras incompatibilidades entre funções de Estado e de partido, o que exigirá dessa associação política abundância de quadros i.e. de muita gente – em quantidade e qualidade – para os preencher desertificando a administração pública dos seus militantes de qualidade. Aliás, esta medida ou pretensa orientação só fará sentido, a meu ver, (e se calhar seria até desejável) se fosse estendida por um pacto alargado a todo o Estado. Uma medida do Estado. Do género da assumida pelo Reino Unido em que nenhum funcionário público pode filiar-se ou militar em partidos políticos.
Acreditar que, feita de forma unilateral, será um exemplo ou uma medida moralizadora da ética política é pura ingenuidade e promoverá, sem qualquer dúvida, ou a desertificação do Partido – seguramente agravada com o eventual advento da regionalização – ou a ocupação da administração de topo do Estado pela oposição. Somos um País de 500 mil habitantes e temos todos os órgãos partidários que têm os países de muitos milhões de habitantes e, quase sempre – o “quase” cartesiano – em maiores proporções.
As pessoas públicas devem ter sempre muito cuidado com as afirmações que fazem. As suas conversas nunca têm natureza privada, mesmo em ambientes tidos como informais. A sua valoração e o seu aproveitamento são feitos sempre em circunstâncias que lhe são adversas ou em situações exploratórias.
Na sequência do uso excessivo da palavra pelos políticos vem à colação uma afirmação de um outro político de topo que ao ser confrontado com as afirmações do Mestre Baltazar Lopes quando este diz que “não somos nem africanos nem europeus, mas sim cabo-verdianos” ele terá contraposto de forma veemente e acabada, como se fosse o dono da verdade: “Não, somos africanos!”. Não teve nem a deferente humildade nem a tolerância intelectual de separar as águas, conhecendo o autor da tese. Baltazar Lopes era um intelectual do mais alto gabarito e, referia-se, obviamente, em termos culturais, não obstante, como também disse o também renomado Mestre Victorino Nemésio, – açoriano – complementando Ortega y Gasset e particularizando a insularidade: “o Homem é também ele e a sua geografia”.
Não está em causa se Baltazar Lopes tinha (tem) ou não razão. O que é certo, é que ele não tinha que ser contraditado, se não usando os mesmos instrumentos e os mesmos métodos de análise ou, pelo menos, ao utilizar outros, defini-los e clarificá-los de forma a chegar a tal conclusão diferente e peremptória. Presumo que aqui também houve um excesso e uma certa precipitação, sobretudo diplomática, porque se exauriu nela.
Ninguém duvida que somos geopoliticamente africanos. É um dado objectivo. É uma opção estratégica ou outra, – sempre circunstancial – uma vez que não nos situamos no continente africano. Nem geologicamente nem geograficamente. É apenas o continente mais próximo. Não me lembro de ter ouvido um caribenho gabar-se americano. E é-o de facto. E daí pergunto-me porquê tanta obsessão no nosso africanismo? Somos ilhas atlânticas. Se tivermos alguma dúvida pensemos nos arquipélagos das Canárias e da Madeira, que mais perto do que nós estão da plataforma continental africana, e deduzir se alguém os considera africanos. Ou será que ser africano é a cor da pele? Também isto esbarraria nos, p.e., tunisinos.
Outra palavra que se vem usando de forma abusiva, é “chefe” referindo-se aos políticos de topo. Não me parece muito simpático em política e em democracia falar-se de “chefe”. As palavras não são inócuas. E a sinonímia raras vezes é perfeita e rigorosa. “Chefe” não é necessariamente “líder” ou vice-versa. Não são sinónimos. E muito menos o são, na política. Vem isto a propósito, de uma conversa que tive com um político de topo em que eu tentava mostrar-lhe a minha discordância em relação a uma determinada orientação do seu partido e ele, em vez de a defender com a argumentação eventualmente esgrimida no seio do Partido, rematou-me e encerrou a conversa com “o que é que queres: o “chefe” quer assim!”. Deduzi e, não podia haver outra conclusão que ele se referia ao presidente do seu Partido e retorqui-lhe: estou a ver que ele é mesmo teu “chefe” e não vosso “líder”. E isto é grave!... É, em tese, o regresso ao “centralismo democrático” de má memória: O Chefe disse, o Chefe quer…
Por vezes chego a pensar que o que realmente existe na nossa classe política não é incompetência nem propriamente falta de conhecimento específico ou, como disse o outro, preguiça. O que é gritante, é um enorme défice de cultura geral. Não a informação “internética” ou o domínio do “economês”. A básica.
Muitos outros casos de utilização inapropriada de expressões passam quase todos os dias pela nossa comunicação social. Uns mais graves, outros compreensíveis… Por isto, toda a atenção com a linguagem política é pouca porque ela requer redobrados cuidados semânticos.
A.Ferreira