Permitam-me o desabafo: esta é uma
cidade (Praia) que por vezes, me faz pensar que não merece os ilustres filhos
que teve pois, deles se esquece completamente, passando ao lado da sua
história. Não os relembra, não os homenageia, sequer uma simples placa numa
avenida, numa rua, ou num beco.
Vem isto a propósito do esquecimento, creio
que por infeliz ignorância, (no sentido vernáculo do termo) ou por puro
desleixo atávico, da única Cronista que até
hoje - até ao momento em que escrevo estas linhas - amou com desvelo e escreveu
com igual cuidado sobre a sua cidade, a Praia, que todos dizemos mal-amada.
Perdoem-me esta forma, algo desabrida,
de expressar a minha indignação.
Pois bem, trata-se de Maria Helena
Spencer, (1911-2006) praiense, Jornalista, é ela merecedora desse tributo dos
munícipes e dos Edis praienses, estes últimos, tão distribuidores de nomes (alguns de lógica duvidosa, em
relação à cidade) pelas artérias da cidade, mas nunca se lembraram desta mulher/Repórter,
que aqui nasceu, brincou, viveu, amou,
trabalhou e muito escreveu - com real afecto - sobre a Praia e os seus
problemas sociais.
Nas linhas que se seguem, vai um registo
apenas, do muito que Maria Helena Spencer escreveu sobre a cidade da Praia nos
idos da década de 50 do século XX e que curiosamente, chega até aos nossos dias
com muita actualidade.
Maria Helena Spencer
- A
Cronista e a Cidade –
“ Confesso que a ideia de ir ao campo
não me sorria. De mim se poderia dizer como da abelha que «Oú je m´ attache je
meurs». Nasci na cidade – esta nossa pequenina cidade tão querida de uns e tão
desdenhada por outros – e só aqui me sinto bem.”
In:
O que os meus olhos viram – As obras do B.T. E. T. H. em S. Francisco pág.
23 Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação nº 111 de Dezembro de 1958.
É exactamente através das suas próprias
palavras e estas extraídas de uma crónica viva e engraçada em que ela descreve
e relata um dia, no caso, meio-dia, fora da cidade para uma reportagem no
campo. (à Jornalista tinha-lhe sido cometida a tarefa de ir ver as obras e
entrevistar o Engenheiro da B.T.E. T. H. (Brigada Técnica de Estudos e
Trabalhos Hidráulicos) em S. Francisco sobre o progresso das mesmas obras. E a
nossa articulista começa assim a sua reportagem, com o problema de sair, de
deixar a cidade...a da Praia… Retomando o início, dizia eu que, é através das
palavras dela que gostaria de vos apresentar ou (re) apresentar, esta senhora,
que como poucos soube olhar e amar a sua cidade, a Cidade da Praia. Maria
Helena Spencer, … completo Maria Helena Salazar Spencer Santos, nasceu nesta
cidade a 3 de Abril de 1911. No meu
entender, repito, ela percebeu e amou como poucos, e com olhar crítico, a sua
Praia, a dos anos 50 do século XX.
Nunca
é de mais, pelo contrário, é sempre uma boa ocasião, trazer à “ribalta” como
sói dizer-se, esta personalidade, Maria Helena Spencer, que não precisa, em
abono da verdade, de favor algum das luzes das nossas Letras, pois ela é
tributária delas e astro de luz própria. Para além de deliciosa contista,
perfeccionista sem pose artificiosa em língua portuguesa. Bem pelo contrário,
tudo o que esta excelente cronista da cidade capital escreveu, é de boa e de
agradável leitura. Foi senhora de uma
prosa deliciosa, colaboradora por uma boa dezena de anos no único periódico
regular e mensal publicado na Imprensa Nacional desta cidade, de 1949 a 1963, o
já célebre: «Cabo Verde – Boletim de
Propaganda e Informação», legou-nos, igualmente e primorosamente escritas,
páginas de reportagem e de bom jornalismo, especialmente sobre a Praia, mas
também sobre assuntos diversos e candentes na época, para a sua terra e a sua
gente. Não vá sem se dizer que, muitas das páginas escritas por Maria Helena
Spencer, conservam, em termos de matéria e da forma como a expressou, uma
actualidade que merece ser (re) entendida e (re)interpretada para a Praia dos
nossos dias.
Eis
o perfil de MHS, nas palavras de José Maria Costa (contemporâneo praiense da
nossa Jornalista) foi quem, à época e num Artigo intitulado: “Melhor Padrão de
Vida – Resposta a um comentário de M. H. Spencer, inserto no “Cabo
Verde” nº. 62, de Novembro de 1954, que o havia questionado a propósito de um
ponto de vista exposto num artigo publicado no número anterior do mesmo
Boletim. José Maria Costa na réplica, a definiu a determinada altura, e passo a
transcrever: “...conheço a D. Maria Helena. Sei que foi educada na metrópole num dos
melhores colégios de então. Sei que aproveitou,
e muito, com essa educação. No colégio era considerada aluna distinta. Teve
como condiscípulas senhoras que hoje ocupam lugares de destaque no nosso meio
social metropolitano.”
“D. Maria Helena, –
continua a apreciação do articulista – é
uma figura intelectual que honra as letras de Cabo Verde. Tem a infelicidade de
aqui viver, onde não há lugar para tirar
proveito do seu real mérito e talento.”
Fim de transcrição.
Com
efeito, as palavras de José Maria da Costa, aqui citadas, ajudam a perceber não
só o percurso escolar, académico da nossa grande Repórter praiense, como
também, me parecem ilustrativas, e parcialmente explicativas, refiro-me à
interessante apreciação de quem a rebatia num artigo, da estética e da
profundidade da escrita da generalidade dos textos de Maria Helena Spencer.
Mesmo
a contista que é Maria Helena Spencer, vamos encontrar igualmente como cenário,
como habitat, das suas personagens,
da acção e do enredo da maior parte dos contos: a cidade da Praia.
Posto
isto, é chegada a altura de entrar na “máquina do tempo” e…recuarmos aos anos
50 do século passado, para assim, reencontrarmos a Praia de Ontem, a cidade de
MHS.
Convido-o pois, caro Leitor, a deixar-se
guiar, isto é, a ter o prazer de ter por Guia, Maria Helena Spencer numa
pequena digressão, reveladora de aspectos culturais e sobretudo da geografia humana,
social, antropológica, da Praia, cidade dos anos cinquenta.
Comecemos
pelo cais da cidade.
“O que
eu vi numa noite, no cais. Assim se intitula a crónica escrita em Novembro
de 1953 no Cabo Verde. n.º 50 pág. 25 e 26:
“O mar estava agitado e a noite tão
escura que dificilmente as luzes da ponte conseguiam perfurá-la. Sombras
negras, mal definidas moviam-se como imagens de um pesadelo e, por sobre tudo,
o braço longo do guindaste, dum lado para outro, na faina da descarga, ia
enchendo tudo de sacos de cimento. Às vezes, lá aparecia um rasgado e numa
nuvem de pó vinha sufocar-nos.
Poucas coisas me desagradam tanto como a
proximidade do mar, o barulho dos cais, com os seus gritos a tentarem
sobrepor-se ao ruído das ondas, o cheiro a maresia, as vagonetas de carga
uivando sobre os carris de ferro – tudo isto me produz uma fatigante sensação
de desconforto e medo, como se toda aquela gente azafamada acorresse a um
desastre. No entanto, visto assim à noite, tinha uma espécie de beleza que eu
não podia deixar de reconhecer-lhe: a ponte alongando-se pelo mar como uma
estrada escura, ladeada de globos brancos, luminosos, e ao largo, mas
parecendo, no escuro, muito mais perto, o Ana Mafalda, cheio de luzinhas
trémulas, a reflectirem-se na água como fogos em noite de Santo António;
depois, surgindo no pequeno espaço iluminado, os barcos à vela, silenciosos,
discretos e de vez em quando, as vedetas a motor, rápidas, vaidosas nas suas
manobras espectaculares, um marinheiro de pé, segurando o croque, em atitude
hierática…
Durante mais de uma hora estive
debruçada, olhando o movimento. Depois, senti-me cansada, a cabeça à roda, e
tive de procurar um lugar para descansar.
Lá em cima na praça Alexandre de
Albuquerque, há muito que se tinham apagado os últimos acordes da “Portuguesa”
marcando o fim do concerto e dando a cada um o sinal de recolher. Não tardariam
a bater as onze e Deus sabe quanto tempo eu teria de esperar. Dizia-se que o
barco só saía de madrugada e os meus amigos haviam de querer aproveitar os
últimos momentos que iam separá-los de uma pessoa querida.
O guarda, à entrada da ponte, tinha-me
oferecido uma cadeira, mas pareceu-me tão despropositado ver-me ali sentada no
meio do movimento geral que, apesar de não me poder ter de pé, recusei.
Depois, procurei um cantinho, na areia
debaixo da ponte e, como pude, lá me sentei no escuro, sobre um montão de
pedras e sucata. Daquele lugar enquanto descansava, podia espreitar a chegada
dos meus companheiros.
A pouco e pouco, os olhos
habituaram-se-me à escuridão e comecei a descobrir, ali perto, uma meia dúzia
de vultos quietos, como se estivessem dormindo.
- Quem está aí? – Perguntei.
Devagarinho, em segredo, pedem-me
silêncio.
Eram garotos, deitados uns sobre os
outros, ao acaso. Penso que vão passar a noite ao relento e talvez à chuva que
não parece tardar e, condoída, pergunto se dormem ali.
Uma vozinha de criança responde:
- Não. Estamos só «velando a tartaruga»;
depois vamos para a casa.
- Que é isso de «velar a tartaruga»?
Sempre em surdina, explicam-me que têm
de ficar muito calados à espera, até que ela venha, o que se conhece pelo mexer
da palha que lhe puseram no caminho para avisar. Depois, caiem-lhe todos em
cima, de repente, viram-na de costas e…pronto! Amanhã há bifes de tartaruga no
mercado.
Devagarinho fazendo menos possível de
barulho, vou-me embora outra vez para não cometer alguma imprudência que possa
prejudicar o trabalho dos miúdos. E volto para o meu poiso, lá adiante, perto
da escada.
Talvez tenha passado meia hora, ou mais
quando um deslizar quase silencioso chamou a minha atenção: para lá de onde eu
tinha estado, havia barcos arrastados na areia; um deles – um botezinho branco
– estava-se movendo cuidadosamente, em direcção ao mar de cada lado, um vulto
tão pequeno que mal lhe ultrapassava a borda. Olhei com curiosidade.
Rapidamente chegou à água e, então, os dois vultos retrocederam a correr,
voltando logo a seguir com um par de remos. Meteram-se-lhe dentro e o bote a
balouçar perigosamente, foi-se afastando como podia.
Tive vontade de esfregar para me
convencer de que não estava a sonhar, tão irreal me parecia o que estava vendo.
A meu lado, debruçado, um homem – talvez
um estivador desocupado – fumava socegadamente, olhando também.
- Que é aquilo? – Perguntei – que vão
aqueles garotos fazer com o barco?
Pensei que o estavam roubando e que se
devia fazer alguma coisa. Mas o homem, fleugmático, respondeu-me:
- Vão roubar cimento nas lanchas.
- E o guarda? Por acaso deixam a carga
abandonada?
-Não, mas as lanchas são grandes e o
guarda, em geral, senta-se à popa. Então eles, aproximam-se sem ruído pela
proa, atracam e tiram um ou dois sacos. Se o não conseguem dão uma facada num e
aparam o que cai. Depois, afastam-se com as mesmas cautelas…
Olho o barquinho que segue e vejo-o
balouçar cada vez mais inquietadoramente sobre a vaga grossa.
- Mas eles não têm família? Alguém que
lhes nota a falta em casa? Isto é um perigo: pode haver desastre…
- Têm família, sim senhora, mas sabem
onde eles estão e não fazem caso. Há mães que se gabam com orgulho que o seu
filho pequeno “é o homem da casa”. Amanhã, cada um leva o dinheiro que lhe
couber da venda do cimento. É sempre assim nos dias de descarga, principalmente
quando calha ser à noite.
Uma madrugada, no tempo da fome,
apareceu um pequeno cadáver a boiar, por aí, debaixo do cais. Tinham feito uma
tentativa, mas não foram felizes: em risco de serem apanhados, afastaram-se
bruscamente. Um caiu ao mar e, como não sabia nadar…
O homem continuou a fumar calmamente,
como se apenas me estivesse contando uma história vulgar…Eu não sei se a minha
oração foi pecado; mas pedi a Deus de todo o coração que protegesse os
pequeninos ladrões que naquele momento arriscavam a vida, com a dureza de
homens feitos, para que no dia seguinte, houvesse em casa pão para todos –
aqueles pobres garotos que, sem o saberem, pisavam um vertiginoso plano
inclinado…
*
* *
Mais uma lingada sobre o cais. Um dos
sacos caiu aberto, espalhando uma nuvem de poeira sufocante…
Agora sei porque há tantos sacos
rasgados…só não compreendo onde certas mães têm a consciência e o coração.”
In: O
que os meus olhos viram. Cabo Verde – Boletim de Propaganda e Informação nº
50, pág. 25 e 26.
Do
cais subiremos à cidade, despromovido hoje, como alguém já disse com graça, a
«plateau». E sempre com a D. Maria Helena Spencer iremos até ao Hospital:
“Passei cerca de um mês num quarto
particular do Hospital da Praia.
Não pude deixar de admirar o trabalho e
persistência que representa o estado em que actualmente se encontra:
instalações decentes quer quanto ao edifício em si quer quanto a mobiliário ou
mesmo o asseio e conforto, pois não fica atrás dos mais higiénicos da
Metrópole. Não há luxo: apenas o indispensável, os quartos particulares pouco
mais tendo que as enfermarias onde são tratados os indigentes, mas tudo
branquinho e irrepreensivelmente limpo. Pessoal bem treinado, não se notando má
vontade nem indício de cansaço, mesmo quando se lhe exige o esforço de uma
noite inteira.
No entanto, os meus olhos
curiosos olharam… o que viram encheu-os de um pavor que ficará ainda por muito
tempo, talvez para sempre.
Eu ia naquela manhã atravessando a longa
enfermaria, no alheamento em que me refugio sempre que uma dor grande se abate
sobre mim, quando percebi que alguém me chamava:
- Você, que dizem que
escreve, olhe para ali e diga alguma coisa sobre as crianças de Cabo
Verde…
Encarei um rosto saudável
cuja expressão se perdia por detrás de uns óculos exageradamente escuros; mas
ao meu ouvido apurado não escapou a vaga nota desdenhosa: «você, que dizem que
escreve…»
De facto, eu devia ter então
aspecto de tudo menos de quem escreve: a roupa amarrotada da noite sem dormir,
os olhos fundos e desvairados e aquele todo idiota que Deus me deu e nunca
consegui corrigir…
- «Você que dizem que
escreve, olhe para ali…
Olhei à toa, sem perceber:
mas logo, solícita a enfermeira, género capa da «Life» - cabelos maravilhosos e
olhos negros, cabo-verdianíssimos embora ela diga que não: cuidada desde os pés
bem calçados à maquillage perfeita – veio em meu auxílio indicando-me o que o
médico me queria mostrar. E eu vi a coisa mais pavorosa e angustiante com que
os meus olhos já depararam: um pequenino ser, de pouco mais de um palmo, cabeça
enorme num corpo reduzido, esquelético, enrugado, mais parecendo um velho,
cheio de feridas – horrível!
Desviei-me instintivamente e
quase gritei ao homem: «O que é, o que é aquilo?»
- Fome e gastro-enterite,
respondeu com calma. – A mãe adoeceu do peito e, como alimento passou a dar-lhe
café com leite…
Odiei aquele rosto sem
expressão que continuava rosado e saudável perto de semelhante horror; odiei
aquele médico que conseguia lutar com a morte desportivamente, sem emoção,
parecendo-nos a cada passo que um marcador iria como nos campos de foot-ball
fixar-lhe as derrotas ou vitórias.
E disse-lhe um «não»
categórico. Não, não queria escrever porque não tinha a insensibilidade dele e
a dor dos outros magoa-me quase tanto como se fosse minha. Soube depois que me
tinha enganado e que o pobre senhor não tinha culpa do seu ar sorridente de
estudante em férias: adora as crianças e os pobres e, silenciosamente, sem
alardes, vai-lhes fazendo todo o bem que pode…
Passaram-se os dias e as
noites e, pouco a pouco, fui aprendendo a dominar os nervos, conseguindo
aproximar-me de cada cama, olhar, perguntar…
Uma rapariga nova, quase uma
criança, despertou a minha atenção: tinha ali o filhinho doente, da mesma
doença horrível de quase todos: gastro-enterite. Passava o tempo olhando para
ele com os olhos tristes, de uma tristeza resignada. O pequenito, inchado,
disforme, mal se movia.
Uma vez vi-lhe na mão uma
fatia de bolo grosseiro, desses que se vendem pelas ruas… Ante o meu pasmo,
disse-me a mãe que não fazia mal, que era só para entreter…
…………………………………………………………....
Compreendi então que o
médico tinha razão, que é preciso dizer alguma coisa sobre a maneira como são
criadas essas pobres crianças do povo, sobre a ignorância das mães; compreendi
que é preciso trabalhar – cada um no que puder e souber – para salvar esses
inocentes que a superstição, o desconhecimento dos mais elementares cuidados
aliados à extrema pobreza dos pais (muitas vezes apenas da mãe que o pai
abandona) conduzem à morte num sofrimento horrível que, em muitos casos, se
poderia ter evitado.
As crianças doentes só são
levadas à consulta quando já quase não há remédio e, mesmo assim, não se seguem
em absoluto as prescrições médicas; preferem-se as mezinhas mais incríveis, na
sua maioria à base da «babosa» e outras coisas pióres; a dieta é considerada idiotice
e citam-se exemplos de fulana e sicrana que não fizeram caso das tolices do
médico e curou o seu menino em casa com
remédio da terra…
………………………………………………………………
Repito o que disse em tempos
com desagrado geral: É preciso civilizar este povo. – E acrescento: Menos
conhecimentos literários e mais noções das coisas indispensáveis à vida. Que a
educação das raparigas se faça tendo em atenção o seu futuro lugar de mães de
família; que as escolas dêem, obrigatoriamente, noções de puericultura e
higiene como já se faz em muitas da metrópole; que médicos façam palestras pela
rádio, não no género erudito e difícil que só interessaria a uma minoria para
quem, de resto, seriam desnecessárias, mas em linguagem simples, clara,
acessível a toda a gente; que haja postos de puericultura espalhados por toda a
parte e brigadas que vão pelo interior ensinando e tratando.
…………………………………………………………....
E que se castiguem
severamente os descuidos, o desinteresse, o desrespeito pela vida da criança.
Que se estabeleçam em Cabo
Verde – e se cumpram – leis de protecção à infância para que deixe de haver
crianças praticamente abandonadas e se exijam responsabilidades a esses pais
que abandonam as mães mal surja a hipótese de um filho.
Que não se esconda à mocidade
o mal nem o sofrimento, antes se lho mostre em toda a crueza para que aprenda a
defender-se. Vi paralisada numa cama uma velha que em tempos fora bailadeira
célebre de batuque e… ainda mais célebre consumidora de bebidas; …
Trago ainda os nervos doentes
e os olhos pasmados de horror, mas, se as minhas palavras despertarem o
interesse de alguém, não maldigo o sofrimento daqueles dias passados no
hospital da Praia.”
O que os meus olhos viram…(«Cabo
Verde» Dez. 1956 – Nº 87 – Ano VII)
Torna-se
interessante verificar que há um método e uma arrumação muito visíveis nos
textos de M.H.S., dependendo da natureza do assunto e da forma de o abordar,
ora a autora o enquadra, sob a epígrafe: “O
que os meus olhos viram” ora, submete-o ao grande título: “Contrasensos” ou ainda, coloca o assunto
nas “Folhas de um Diário”. Sob estes
três grandes «chapéus» ela abrigou os
textos fundamentais, sobre a Praia e os testemunhos da sua colaboração no Cabo Verde.
Outra marca da escrita desta Jornalista,
embora eu vá classificá-la utilizando um lugar-comum, e como tal, já gasto pela
usura… mas apetece-me dizer, no caso de Maria Helena Spencer, que esta senhora
tem o sentido ético da escrita jornalística, da crónica, da reportagem. Faço-me
entender, M. H. S. acrescenta quase sempre, no seu trabalho, qualquer que seja
o assunto tratado, uma valência que eu chamaria de pedagógica. (...talvez por
ela ter sido professora primária e foi-o na ilha Brava e na ilha do Fogo). Há
sempre, ou quase sempre, em última instância textual a premência da transmissão
de valores sociais/gregários. Para dizer que, no meu entender, ela fez, se
calhar «avant la lettre» aquilo a que hoje se chama de jornalismo para
cidadania.
Vamos
reler a propósito, excertos de um artigo de opinião: “Ensinemos o Povo” que ela insere no nº. 49 do Cabo Verde de Outubro de 1953.
“ Quando todos os países civilizados
convencidos de que só com homens conscientes é possível ter nações fortes…nós,
em Cabo Verde, ignoramos o povo – esse animal de carga que trabalha para nós –
e deixamo-lo desconhecer os mais elementares princípios da vida…
…vive ainda em plena
superstição, ignorante da higiene, dos cuidados necessários às crianças, da
moral, das regras do trabalho, de tudo, enfim, que a maioria do camponês boçal
de outras terras tomou já como hábito
normal.
.......................................................................
E porquê tudo isto?
Porque o povo é
insusceptível de ser civilizado?
Ouso afirmar que não: Quando
o «badiu», ou o natural de qualquer das ilhas do Arquipélago, vai para a
Metrópole, para a América, ou mesmo para Dakar, embora não se torne
intelectual, regressa transformado num homem que pensa e reage como qualquer de
nós e traz hábitos decentes que quase sempre conserva pela vida fora.
Porquê então?
Apenas por isto: Porque nós,
os que pensamos e temos de algum modo a responsabilidade no que se passa à
nossa volta, discutimos… e preocupamo-nos demais com os grandes problemas
mundiais que se debatem lá longe; mas esquecemos, lamentavelmente, os nossos, estes
pequenos problemas talvez mesquinhos para a nossa intelectualidade elevada…
Se procurássemos educá-lo,
ensinando-lhe tudo o que ignora e deveria saber…
Estas crianças que se criam
pelas ruas, de caras lambuzadas e corpos que raramente vêem água, perturbando o
trânsito e aprendendo palavrões, se os pais soubessem como deviam cuidá-las,
seriam amanhã adultos mais fortes, homens e mulheres conscientes, verdadeiros
cidadãos a quem ninguém ousaria chamar «badius».
… … … … … … … … … … … … … …
… … … … … …
Os operários que trabalham
preguiçosamente, sem um fim, apenas como quem cumpre uma pena injusta, todos
esses que são desgraçados porque ignoram tudo que pode dar o conforto material
e moral, como seriam outros, se houvesse quem lho ensinasse!
Não se diga que nos faltam
condições. Não: temos tudo quanto é necessário à divulgação - rádio, cinema, e4scolas, igrejas… Apenas,
deixamos que nos tomasse uma resignação amarga, o «não te rales» de quem pensa
que não vale a pena tentar endireitar o mundo.
Ouve rádio por toda a parte;
a música caboverdeana corre o mundo: aproveitemos essa possibilidade para falar
ao povo. Que os médicos, professores, padres, todos aqueles que podem ensinar
alguma coisa de útil, sejam chamados a dizê-lo, não em frases cuidadas… para aqueles
que não precisam; mas em palavras tão simples que possam ser compreendidas por
todos. Que ninguém se recuse nem o faça como «frete»; mas com interesse e
agrado, de forma a prender a atenção rebelde dos que não sabem… que precisam
saber.
Ensinemos o povo a amar os
bons hábitos, ensinemo-lo a cuidar de si, da sua casa, a criar a uma família
digna e unida e, sobre tudo, demos-lhe o gosto de se instruir para que ele
mesmo busque os conhecimentos que lhe faltam.
Procuremos levantar Cabo
Verde; não esperar tudo dos «outros»; é a nós que compete trabalhar pelo nosso
próprio bem.”
In “ENSINEMOS O POVO… («Cabo
Verde» B.P.I nº 49 – Outubro de 1953)
Afinal,
o Bairro, situado na Achadinha que já foi denominado “Craveiro Lopes” mais
tarde, após a independência de “Kuame Nkrumah” actualmente e, de novo, chamado
Bairro “Craveiro Lopes” ou simplesmente: “Bairro,” fora
inicialmente baptizado como Bairro de Santa
Filomena. Pelo menos assim nos dá conta a crónica/reportagem de M. H. S.
escrita em 1958. É precisamente ao então Bairro de Santa Filomena que nos
dirigimos com a D. Maria Helena para as entrevistas com os moradores do novo
bairro recém inaugurado, e já nas suas novas casas.
“Pareceu-me que seria
curioso saber como reagiam os habitantes do «Bairro de Santa Filomena» ao
conforto que as suas novas habitações lhes proporcionam.
Assim, uma tarde destas, já
quando o sol se escondia, lá fui eu, a caminho da Achadinha, ver, na hora a
que, mais ou menos, deviam estar todos reunidos – os homens tendo já regressado
do trabalho – como era a vida por lá.
E, francamente, foi uma
surpresa. Mesmo nas principais ruas da Praia, sinto-me imensamente chocada com
a falta de hábitos de cidade que este povo tem: Gritam, discutem de porta para
a porta, sentam-se na rua a catar os garotos e estes, quando calha, jogam o
foot-ball de encontro à baliza das nossas portas ou… das nossas vidraças…
Era isto que eu esperava
encontrar no «Bairro de Santa Filomena». E, porque não? Se o povo é o mesmo…
Pois bem, enganei-me.
Logo à chegada encontrei – é
certo – um grupo de garotos jogando foot-ball, enquanto um dava «para o ar»
(absolutamente para o ar) o respectivo relato; mas faziam-no razoavelmente,
fora da área das habitações. Mais além, duas raparigas sentadas à porta… Não,
não havia nada de censurável: apenas tomavam um pouco de fresco, cada uma com
seu menino ao colo, ambas limpas, compostas, sentadas em cadeiras, com o ar
senhoril e correcto de quem faz ou recebe visitas.
Mas, a minha curiosidade era
principalmente a Praça. Pensei que ia ver os homens reunidos, a contar
histórias, como em certos lugares da Brava onde, à noite se juntam os velhos
contando tantas maravilhas das suas viagens por esse mundo que um destes
lugares tem o nome pitoresco e sugestivo de… «Cutelo das mentiras»!
E também desta vez me
enganei: a Praça estava quase deserta, a não ser um pequeno grupo que passava e
um vulto sentado lá ao fim num dos banquinhos de cimento.
Dirigi-me para ele. Era um
homem de idade, alto, muito forte, com um aspecto respeitável. Disse-me chamar-se
António Izidoro Varela, 2º sargento músico, reformado. É casado e tem filhos.
Quantos? – Pergunto.
- Sei lá… São tantos!
- Gostaria de saber como
passam por aqui: se estão contentes, se as casas preenchem todos os seus
desejos?
Ilumina-se-lhe o rosto num largo sorriso:
Oh! Muito, muito contentes!
- Há alguma coisa que
gostaria que fosse diferente?
- Tudo está bem, muito bem
assim e, se não digo mais é pelo receio de ser acusado de lisonja.
Peço-lhe que me leve a ver a
sua casa. Conduz-me gentilmente ao nº 40 e ali me apresenta a mulher e uma
filha. Esta fala-me em português – como o pai, de resto – e tem um aspecto
civilizado de quem está acostumado a outro meio.
A casa vê-se asseadíssima,
mas noto móveis a mais para o tamanho.
- Estão um pouco apertados,
não?
-Sim – responde-me a Sr.ª
Varela – quando o meu marido pensou em vir para aqui julguei que não
conseguisse fazer caber tudo; mas cá estamos e sinto-me feliz.
Onde moravam antes?
Na Ponta de Água. A casa era
nossa e grande, mas esta é bem melhor, embora pequenina.
- Porque não pedem mais
outra? Com tanta família…
- Já pedimos; só estamos à
espera de vaga.
Penso comigo que, se todos
os actuais inquilinos se sentem tão felizes como estes, bem podem esperar…
Despeço-me da família Varela
e sigo sem destino certo, um pouco à toa porque, como as casas estão quase
todas fechadas, penso que os donos devem estar ausentes.
No entanto, foi anoitecendo
e, aqui e ali, diviso o rectângulo luminoso de uma janela.
Dirijo-me à primeira. Lá
dentro, dois rapazes lêem ou escrevem à
luz de um candeeiro de petróleo. Falo a um deles – o mais velho e que me parece
dono da casa. Mas é o outro - o verdadeiro dono – que responde – um rapagão
alto, de expressão infantil. Chama-se Dinis de Pina e é capataz de Brigada de
Saúde. Não é casado e mora só.
- Gosta da sua casa?
- Imenso!
- Mais do que da outra em
que morava?
- Nem se pergunta?
- Sente falta de alguma
coisa?
- Sim, de luz e água…
Depois, num repente:
- Só luz e água, não… Se
houvesse um padre… Também o Manuel – da Civil – mais tarde, na Praia, me faz a
mesma queixa: «Precisamos muito dum padre. De que serve uma igreja fechada?»
Bato ao acaso numa porta
qualquer.
Responde-me uma voz de
criança e, pouco depois, vêm abrir.
Percebo então porque estão todas
fechadas: cada um neste bairro aprendeu a viver para si a sua própria vida,
talvez porque o ambiente lhe agrada e não tem necessidade de nada fora de casa.
Conheço a rapariga que me
recebe: É Albertina Monteiro, casada com um servente do correio. Esta talvez
não tenha modificado muito os seus hábitos porque é da Brava e ali a vida é
diferente; cada mulher vive para a família e a sua vaidade é o asseio da casa e
dos filhos.
- Gosta de aqui estar?
- Gosto muito.
- Onde moravam antes?
- No Paiol. Esta casa é mil
vezes melhor e pode ter-se limpa. Só tenho pena que não haja água mais perto.
As crianças são ainda pequenas para a ir buscar e eu não posso. Por isso, tenho
uma despesa mensal de 36$ com o transporte de duas latas diárias. É uma pena.
Mostra-me a casa, bem
arranjada, com móveis apropriados a cada divisão e o quartinho do quintal
adaptado a casa de jantar e dos filhos… «para que não sujem nada lá dentro».
Falo a seguir com Dulce
Tavares. É casada com um empregado do Rádio Clube. Antes, morava na Praia. A
casinha também limpa e bem arranjada. Duas crianças pequeninas.
- Gosta de aqui estar?
- A casa é boa, gosto dela,
mas…
- Mas?
- Quando anoitece, como
agora, olho a cidade onde sempre vivi, cheia de luzes… e não posso deixar de
estar triste. Olhe para esta escuridão.
- Porque não procura
distrair-se?
- Com quê? Ainda mal conheço
as pessoas que moram aqui. Temos um aparelho de rádio que não serve de nada
porque não há corrente…
Despeço-me procurando
consolar:
- Deixe passar o tempo e V.
se adaptará. Terá amigas e, segundo creio pensam em ligar para aqui a luz. É
uma questão de tempo. Não se pode fazer tudo de uma vez.
Sinceramente, desejo que
esta rapariga nova, decerto habituada a um meio diferente, possa ser feliz como
as outras no seu novo ambiente.
Mais duas janelas
iluminadas.
Na primeira, Maria Alice,
casada com Ambrózio da Repartição de Fazenda, gosta da casa sem restrições. Só
tem pena que não haja água.
Antes, morava na Praia.
Na segunda, Maria do
Livramento Cardoso, mulher do fiscal de aguardente Ludgero Correia, está tão
absorvida no trabalho de passar a ferro umas calças que mal se interessa pela
minha presença.
- Gosta sim, gosta muito da
casa. Antes morava na Ponta Belém, mas aqui está mais à vontade: Se houvesse
água…
Pergunto-lhe então, por
curiosidade, que é feito do marido e dos outros homens, que não se vêem.
- Foram a um casamento em
Vila Nova.
- Que fazem eles à noite?
Juntam-se na Praça?
- Sim, algumas vezes. Contam
passagens, conversam…
Deixo a Maria do Livramento
entregue à sua tarefa. Sinto-a feliz, vivendo dentro do seu mundo, hostil a
tudo que não seja a casa, o marido, os filhos.
E sigo à pressa, guiando-me,
aos trambolhões pelas luzes da Praia, pois está escuro e mal se vê o caminho.
Recordo então aqueles
trágicos dias em que os gritos parecia nascerem da terra, do ar, de tudo à
nossa volta…
- O que foi?
- Arrombou a Assistência!
Fome, morte… tudo passou,
esqueceu. Agora há apenas um pequenino bairro de casinhas brancas onde as
mulheres são felizes e os homens perdem a sensação de inferioridade que lhes
vinha da palhota onde viviam, a meias com animais, crianças sujas e mulheres
mal humoradas.”
Como se dá na sua nova
casa? («Cabo Verde» nº 109
– Ano X – Outubro de 1958)
Mas continuando a digressão pela pena da D. Maria Helena,
sintamos agora o acordar da cidade, o início e o bulício da Praia escolar com
os alunos dirigindo-se em grupo ruidoso e alegre para as respectivas escolas:
“Seis e meia da manhã. A cidade, envolta numa
névoa ligeira e fria, tem um aspecto curioso: parece que um bando de pombas
brancas se abateu sobre as ruas – são as estudantes nas suas batas
regulamentares. Passam apressadas – umas a caminho das escolas primárias outras
do Liceu.
É a este que eu me dirijo.
Quando entro, ainda há pouco movimento: apenas um grupo espera conversando a
meio da escada. Subo-a e fico em cima, também à espera, a vê-los chegar.
À medida que aproximam as 7
horas, o movimento é cada vez maior: entram em grupo, falando alto, rindo…
Não posso impedir-me de pensar que ali está todo
um mundo que revela já um esboço nítido de tendência que o tempo irá fixando:
há rapazes de ar superior (quintanistas?); outros de aspecto sério, quase
preocupado, raparigas que dir-se-ia chegarem já cansadas, como se antes já
tivesse estado a trabalhar; outras cuidadas nas suas batas impecáveis, já muito
femininas. E, no meio de todos, subindo discretamente as escadas em pequenos
passos leves e silenciosos, uma rapariga de belas feições pálidas, sem um
mínimo de artifício, toda ela correcção e delicadeza… penso que seja qual for o
futuro que a vida lhe reserve, ela será sempre uma senhora.”
In:
Um inquérito entre os alunos do Liceu
(«Cabo Verde» nº 125 Ano XI – Março de 1960)
E há
também pequenos quadros da cidade, que a cronista, qual aguarelista, nos dá do
seu pincel leve, livre e maliciosamente colorido.
Comecemos
com um Natal, mais precisamente a noite de Natal, na Praia de 1954
- “Pode cantar?
- Não, obrigada.
Ignorando a minha recusa, o
grupo inicia uma furiosa canção, acompanhada de ferrinhos e palmas.
Começo a tremer, o dedal
cai-me da mão e grito sem resultado:
- Parem, por favor.
Normalmente, todo o barulho
me incomoda; mas quando estou trabalhando à pressa é muito pior: os nervos
desorganizam e chego a ponto de não poder fazer nada.
Como de costume, estava
acabando um trabalho para servir naquela própria noite e precisava de todo o
sossego para não começar a enervar-me. Mas, qual! A canção continuava,
estridente, gritada, a impor-se como um flagelo ou uma obrigação custosa de
cumprir.
- Bons anos, boas festas.
Nim que ê pouco nha pô na mon.
Dão-me encontrões na porta, pedem,
insistem e não há quem os convença de que não só pretendo estar em paz dentro
da minha casa como também não tenho a mínima intenção de lhes dar seja o que
for.
Enfim, as boas festas e os
bons desejos acabam em descompostura recíproca.
E mal tenho tempo de retomar
o trabalho interrompido, quando novo grupo se aproxima e nova discussão ameaça
perturbar-me outra vez.
Ora, eu pergunto a mim mesma
qual a razão de ser deste hábito tão incomodativo. Toda a gente tem o direito
de se divertir como melhor lhe aprouver; mas, porque há-de pretender obrigar os
outros a acompanharem-no? As «boas festas» são uma tradição gentil adoptada por
quase todo o mundo. Mas servir-se da ocasião não só para incomodar quem não
deseja ser incomodado, como ainda para pedir de forma agressiva, não se
justifica.
Todos nos sentimos obrigados
a corresponder, de alguma forma, a uma atenção recebida; mas, se isso nos é
imposto… eu, pelo menos, só sei reagir duma forma – recusando.
No dia de ano novo, quando
atravessava a rua Sá da Bandeira, um garotinho que não conheço, tipo de «badiu»
do interior, de grandes olhos ingénuos e roupinhas lavadas, dirigiu-se a mim e,
cortesmente, deu-me as boas festas. Lamentei não ter nada comigo que lhe
pudesse dar. Então, curvando-me a beijá-lo disse:« Deus te dê um ano novo muito
feliz».
E desejei-lho do coração,
como se fosse meu filho, porque soube ser gentil e dar a uma desconhecida o
conforto de uma atenção desinteressada.
Porque não hão-de todos ter
um pouco de compreensão e deixar aos outros a possibilidade de serem gentis,
espontânea, voluntariamente?”
In : Folhas
de um diário («Cabo Verde» Ano V – nº 53 – Fevereiro de
1954)
E
agora vamos segui-la até ao cinema da Capital e o que ela registou numa noite
de Fevereiro, também de 1954:
…
“Fui ontem ao cinema. O
filme era «para maiores de 18 anos»; não havia empurrões à porta nem garotos a
pedirem tostões para completar o bilhete.
Tive a sensação de estar
numa terra civilizada.
Pensei nas últimas leis
criadas para defesa de menores e senti-me feliz: amanhã num futuro que eu
talvez não chegue a ver, esta terra será – como Portugal em relação ao Mundo –
um caminho tranquilo e digno onde se trabalhe em paz para o bem comum e cada um
sinta orgulho de si próprio.”
in:
Folhas de um Diário
Boletim Cabo Verde nº 53, Ano V, Fevereiro de
1954
…………………………………………………………
E já
agora porque não comungar com ela da alegria farta e pagã como as Cinzas são
vividas nesta cidade? Ou mesmo
…discordar dela sobre a sua percepção do Carnaval ou melhor, do Carnaval da
Praia de há cinquenta anos?
“Acabou-se o Carnaval, essa espécie de
agonizante que todos os anos se arrasta molemente, sem entusiasmo nem graça,
como uma velha tradição de que já nos vamos envergonhando.
Mas acabou-se. Diluiu-se na
4ª feira de cinzas, alegre, ruidosa, empanturrada de cuscus e mel, como uma
festa pagã.
Se há muitas que não
compreendo, uma das que mais confusão me faz é a psicologia deste povo: diz-se
profundamente religioso, cumpre à risca todos os preceitos dos dias santos de
guarda, excepto - claro! – no que se
relaciona com qualquer abstinência e… faz da 4ª feira de cinzas a mais
escandalosa patuscada do ano. Ouvem-se pilões por toda a parte preparando o
«xarém»; o mercado enche-se de cocos, peixe salgado e mel.
Quando há pouco atravessava
a Praça Alexandre de Albuquerque cruzei-me com uma rapariguita que trazia, numa
das mãos o véu de ir à Igreja e, na outra… um garrafão de mel!”
Logo, ao meio-dia, começa a
farta comezaina… muitos ainda com a testa marcada de cinzas… «Memento homo…».
Oh! O latim! Quem vai
preocupar-se a compreender-lhe o significado?!
Tolice, velharia fóssil! O
que interessa é que é dia de festa: comer, rir, brincar e, depois, estender-se
ao Sol, na moleza de quem gozou à farta.
Religião? Paganismo?
O problema é demasiado
subtil para mim e, por isso, desisto de o resolver.
CONTRASENSOS («Cabo Verde» nº 66 – Ano VI – Março de
1955)
Maria
Helena Spencer e a saudade da sua Praia quando dela se afasta é qualquer coisa
de comovedor! Daria para um outro trabalho, que, como disse o poeta: “se a
tanto me permitir o engenho e a arte.” Mas valeria a pena analisá-la, pois é
uma saudade profundamente afectiva que se encontra respigado aqui e acolá, em
muitos textos. Trata-se de uma saudade dita e sentida de muitas formas pela
autora. Trata-se igualmente de uma saudade antecipada, mas que não chega a ser
saudade do futuro. Não, em M. H. S. É uma saudade do presente, da sua cidade,
da sua gente e das suas coisas. E ao simples facto de pensar na possibilidade
de um corte com este presente é causa de verdadeira angústia para o seu
espírito. Por agora apenas menciono para posterior registo “retalhos” dessa
saudade ligada e explicada pelo incomensurável afecto que a contista e a
cronista tem pela sua cidade.
Mas
“helás!” a cronista da cidade da
Praia (a primeira e até agora única!) é obrigada, pelo menos os textos dela
deixam perceber isso, é obrigada, dizia eu, a deixar a sua cidade e chega o
momento mais temido, a partida. Escutemo-lo:
“Frente às palmeiras da Praia Negra os meus
olhos encheram-se de mágoa: olhei longamente a terra seca das achadas, o cais a
perder-se na distância, onde braços amigos acenavam ainda; a areia negra…tudo
que não tem talvez encanto para mais ninguém, mas que para mim resumia o mundo
todo e, sem vergonha, solucei, solucei até que a tristeza se me fundiu num
doloroso cansaço.
“There
is no place like home”!
Como os ingleses têm razão! …”
In:
Maria Helena Spencer “Folhas de um diário” Cabo Verde – Boletim de Propaganda e
Informação, nº 71, Ano VI, Agosto de 1955.
Maria
Helena Spencer, quando há uns anos falei com ela ao telefone, (maravilhada com
o timbre da voz segura e firme, na altura, da nossa então bela nonagenária!)
para lhe pedir permissão de compilar em livro, os escritos dela – Que mais
tarde seria intitulado :«Maria Helena
Spencer , Crónicas, Contos e Reportagens» 2005 edição do IBN - perguntei-lhe se ela escrevera para mais
Revistas ou, se havia publicado outros escritos, para além dos textos
publicados no Cabo Verde – Boletim de
Propaganda e Informação, respondeu-me:
“... desde que saí da Praia, nunca mais
escrevi nada!”…
Desligado
o telefone pensei : “Ter-lhe-á faltado a sua musa inspiradora…a sua mui querida
e amada Praia?... possivelmente.
Como devem calcular é muitíssimo mais extenso o roteiro
que Maria Helena Spencer, nos oferece sobre a cidade da Praia, que ela amou e
que tem sido tão ingrata com a sua memória!
Hoje mais de uma década passada sobre o passamento de
Maria Helena Spencer, (2006) o munícipe praense aguarda uma, ainda que singela,
placa com o nome desta insigne Jornalista e Contista, numa das artérias desta
pequena cidade, que ela tanto estimou e tanto se preocupou com os seus problemas.
P. S. – Este texto (aqui
retomado, adaptado e actualizado) foi parte de um painel, organizado pelo
Arquivo Histórico Nacional, em Maio de 2004, intitulado:
“I Encontro
Sobre A História
Local - Um Olhar Histórico Sobre a
Praia – Cidade Capital, Ontem e
Hoje.”