Por Adriano
Miranda Lima[i]
Com
frequência, se ouviu nos últimos tempos, entre políticos de partidos da chamada
direita, a exclamação tonitruante de que é preciso “acabar com o socialismo”,
“mandar o socialismo para casa”, “libertar Portugal do socialismo”. Claro que o
alvo dessa disparatada fraseologia é o PS, devido ao nome do partido e,
sobretudo, por ser o que tem governado nos últimos anos. Para os seus críticos
e detractores, o socialismo congrega todos os malefícios como ideologia
política, ao passo que o capitalismo livre de amarras e contingências – ou
seja, o neoliberalismo − é o redentor da felicidade humana.
O
truque consiste na grosseira mistificação que é associar intencionalmente o
socialismo às experiências fracassadas do socialismo/comunismo na União
Soviética e outros países onde o marxismo-leninismo foi aplicado sob a égide da
marca rubra do estalinismo. Só que o socialismo é uma ideologia que não é
susceptível de uma visão redutora, dado que qualquer produto da idealização
humana resulta de um diálogo entre a mente e as motivações morais e
psicológicas que determinam o comportamento, este sempre complexo e
imprevisível. O socialismo nasceu na Europa, nos finais do século XVIII, para
tentar corrigir as desigualdades sociais criadas pela industrialização, na
sequência da Revolução Industrial. A finalidade era transformar a sociedade
capitalista em comunidades mais justas e mais igualitárias, ideal que afinal se
compagina com os princípios do humanismo cristão. Não faltam classificativos
para o socialismo, desde o “socialismo utópico”, concepção genérica que
pressupõe os seus objectivos passíveis de serem atingidos sem a destruição do
capitalismo, ao “socialismo científico”, corrente de pensamento protagonizada
por Marx e Engels, para quem o socialismo só seria possível com a destruição do
capitalismo, a estatização da economia e a ditadura do proletariado. A primeira
corrente é reformista e mantém-se incólume na sua índole e na perseguição ao
ideal de maior igualdade e justiça social. A segunda corrente é revolucionária
e os seus resultados revelaram-se até hoje infrutíferos e desastrosos, podendo
dizer-se que tende a pertencer ao domínio da arqueologia.
O
socialismo que segue a via reformista identifica-se com o chamado socialismo
democrático e a social-democracia, ambos tencionando encontrar respostas
políticas e soluções económicas e sociais em oposição ao que foi ensaiado nos
regimes totalitários. Preconizam que a sociedade socialista pode ser construída
através da democracia pluralista e preservando a economia de mercado, desde que
o Estado crie as condições essenciais que reduzam as desigualdades entre os
cidadãos, como a saúde, a educação, a habitação e outras formas de apoio
social. Há uma proximidade doutrinária entre o socialismo democrático e a
social-democracia, mas pode dizer-se que a diferença entre um e outra pode
estar mais na expressão terminológica do que no conteúdo ideológico. Dependendo
necessariamente de cada realidade nacional – designadamente, ao nível da
cultura e das mentalidades – o grau de intervenção do Estado na construção da
economia e das estruturas de apoio social é que em concreto exprimirá uma maior
ou menor propensão para uma ou outra modalidade. Porém, a dúvida surge quando
se verifica que nos países – da Europa do Norte – onde o socialismo de expressão
democrática mais vingou, os partidos que o realizaram têm na sua maioria a
designação de “social-democrata”. Deste modo, é possível que as duas
designações sejam encaradas como sinónimas uma da outra, tornando irrelevante a
questão terminológica.
Reportando
à integridade do ideário programático inicial dos nossos partidos, o PS se
reclamava do “socialismo democrático” e o PPD/PSD da “social-democracia”, bem
entendido. E em resposta às verberações dos radicais e populistas da direita
contra o socialismo, o mínimo de honestidade intelectual obriga a que se
reconheça que até hoje não houve qualquer forma de socialismo em Portugal, ou
social-democracia. E eu, que sou adepto desta ideologia, acreditando que é a
melhor solução para o nosso país, digo que infelizmente é assim. Com efeito,
lembre-se que em 1978, na tomada de posse do segundo Governo Constitucional,
numa coligação entre o PS e o CDS, liderado por Mário Soares e Freitas do
Amaral, o primeiro o afirmou: “não se trata agora de meter o socialismo na
gaveta, mas de salvar a democracia". Aludia às dificuldades da economia
portuguesa agravadas com as convulsões sociais então desencadeadas e que tinham
obrigado à primeira intervenção do FMI, em 1977, a pedido do mesmo Mário
Soares. Desde então, não se pode dizer que o socialismo, na sua pureza
programática, tenha alguma vez saído da gaveta, mesmo que ao longo dos governos
que se seguiram se tenha criado o Serviço Nacional de Saúde e introduzido
medidas de protecção social, como o Rendimento Mínimo Garantido e outras,
sempre por iniciativa do PS, porém sem que haja equivalência com o progresso
social alcançado com os modelos de social-democracia praticados nos países
nórdicos.
Contudo,
é lícito afirmar que, dos dois partidos do poder, o PS é o mais vocacionado
para a defesa do Estado social que nenhum português de boa mente pode renegar,
ao passo que o actual PSD pouco ou nenhum jus faz à sua designação de partido
social-democrata. Assim, a realidade objectiva manda reconhecer que o PS é
actualmente um partido social-democrata com prática liberal, enquanto o PSD é
um partido do centro-direita com prática neoliberal. Se algo fez inflectir os
propósitos iniciais dos dois partidos, em parte pode ser atribuído a
conjunturas nacionais restritivas e também a condicionalismos externos, além
das responsabilidades próprias.
Por
isso, os medos e os fantasmas que alguns políticos extremistas tentam impingir
ao eleitorado não fazem qualquer sentido e têm de ser vigorosamente
denunciados, sob pena de deixar que se passe um atestado de menoridade mental
ao nosso povo. Deixo aqui os meus votos de um bom Ano ao Templário e aos seus
leitores, desejando que as nossas mentes se iluminem no momento em que
avaliamos o que é o mais conveniente para o nosso futuro próximo.
[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90
[ii] Publicado no jornal Templário de Tomar