Mas qual socialismo?[ii]

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Por Adriano Miranda Lima[i]

Com frequência, se ouviu nos últimos tempos, entre políticos de partidos da chamada direita, a exclamação tonitruante de que é preciso “acabar com o socialismo”, “mandar o socialismo para casa”, “libertar Portugal do socialismo”. Claro que o alvo dessa disparatada fraseologia é o PS, devido ao nome do partido e, sobretudo, por ser o que tem governado nos últimos anos. Para os seus críticos e detractores, o socialismo congrega todos os malefícios como ideologia política, ao passo que o capitalismo livre de amarras e contingências – ou seja, o neoliberalismo − é o redentor da felicidade humana.

O truque consiste na grosseira mistificação que é associar intencionalmente o socialismo às experiências fracassadas do socialismo/comunismo na União Soviética e outros países onde o marxismo-leninismo foi aplicado sob a égide da marca rubra do estalinismo. Só que o socialismo é uma ideologia que não é susceptível de uma visão redutora, dado que qualquer produto da idealização humana resulta de um diálogo entre a mente e as motivações morais e psicológicas que determinam o comportamento, este sempre complexo e imprevisível. O socialismo nasceu na Europa, nos finais do século XVIII, para tentar corrigir as desigualdades sociais criadas pela industrialização, na sequência da Revolução Industrial. A finalidade era transformar a sociedade capitalista em comunidades mais justas e mais igualitárias, ideal que afinal se compagina com os princípios do humanismo cristão. Não faltam classificativos para o socialismo, desde o “socialismo utópico”, concepção genérica que pressupõe os seus objectivos passíveis de serem atingidos sem a destruição do capitalismo, ao “socialismo científico”, corrente de pensamento protagonizada por Marx e Engels, para quem o socialismo só seria possível com a destruição do capitalismo, a estatização da economia e a ditadura do proletariado. A primeira corrente é reformista e mantém-se incólume na sua índole e na perseguição ao ideal de maior igualdade e justiça social. A segunda corrente é revolucionária e os seus resultados revelaram-se até hoje infrutíferos e desastrosos, podendo dizer-se que tende a pertencer ao domínio da arqueologia.

O socialismo que segue a via reformista identifica-se com o chamado socialismo democrático e a social-democracia, ambos tencionando encontrar respostas políticas e soluções económicas e sociais em oposição ao que foi ensaiado nos regimes totalitários. Preconizam que a sociedade socialista pode ser construída através da democracia pluralista e preservando a economia de mercado, desde que o Estado crie as condições essenciais que reduzam as desigualdades entre os cidadãos, como a saúde, a educação, a habitação e outras formas de apoio social. Há uma proximidade doutrinária entre o socialismo democrático e a social-democracia, mas pode dizer-se que a diferença entre um e outra pode estar mais na expressão terminológica do que no conteúdo ideológico. Dependendo necessariamente de cada realidade nacional – designadamente, ao nível da cultura e das mentalidades – o grau de intervenção do Estado na construção da economia e das estruturas de apoio social é que em concreto exprimirá uma maior ou menor propensão para uma ou outra modalidade. Porém, a dúvida surge quando se verifica que nos países – da Europa do Norte – onde o socialismo de expressão democrática mais vingou, os partidos que o realizaram têm na sua maioria a designação de “social-democrata”. Deste modo, é possível que as duas designações sejam encaradas como sinónimas uma da outra, tornando irrelevante a questão terminológica.

Reportando à integridade do ideário programático inicial dos nossos partidos, o PS se reclamava do “socialismo democrático” e o PPD/PSD da “social-democracia”, bem entendido. E em resposta às verberações dos radicais e populistas da direita contra o socialismo, o mínimo de honestidade intelectual obriga a que se reconheça que até hoje não houve qualquer forma de socialismo em Portugal, ou social-democracia. E eu, que sou adepto desta ideologia, acreditando que é a melhor solução para o nosso país, digo que infelizmente é assim. Com efeito, lembre-se que em 1978, na tomada de posse do segundo Governo Constitucional, numa coligação entre o PS e o CDS, liderado por Mário Soares e Freitas do Amaral, o primeiro o afirmou: “não se trata agora de meter o socialismo na gaveta, mas de salvar a democracia". Aludia às dificuldades da economia portuguesa agravadas com as convulsões sociais então desencadeadas e que tinham obrigado à primeira intervenção do FMI, em 1977, a pedido do mesmo Mário Soares. Desde então, não se pode dizer que o socialismo, na sua pureza programática, tenha alguma vez saído da gaveta, mesmo que ao longo dos governos que se seguiram se tenha criado o Serviço Nacional de Saúde e introduzido medidas de protecção social, como o Rendimento Mínimo Garantido e outras, sempre por iniciativa do PS, porém sem que haja equivalência com o progresso social alcançado com os modelos de social-democracia praticados nos países nórdicos.

Contudo, é lícito afirmar que, dos dois partidos do poder, o PS é o mais vocacionado para a defesa do Estado social que nenhum português de boa mente pode renegar, ao passo que o actual PSD pouco ou nenhum jus faz à sua designação de partido social-democrata. Assim, a realidade objectiva manda reconhecer que o PS é actualmente um partido social-democrata com prática liberal, enquanto o PSD é um partido do centro-direita com prática neoliberal. Se algo fez inflectir os propósitos iniciais dos dois partidos, em parte pode ser atribuído a conjunturas nacionais restritivas e também a condicionalismos externos, além das responsabilidades próprias.

Por isso, os medos e os fantasmas que alguns políticos extremistas tentam impingir ao eleitorado não fazem qualquer sentido e têm de ser vigorosamente denunciados, sob pena de deixar que se passe um atestado de menoridade mental ao nosso povo. Deixo aqui os meus votos de um bom Ano ao Templário e aos seus leitores, desejando que as nossas mentes se iluminem no momento em que avaliamos o que é o mais conveniente para o nosso futuro próximo.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90

[ii] Publicado no jornal Templário de Tomar 

Crónica de uma crise política anunciada

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

As crises políticas nas democracias resultam normalmente de um problema de governabilidade, que é o que acontece quando um executivo não consegue assegurar apoio parlamentar ou deixou de o ter. Mas a crise em que inesperadamente Portugal mergulhou é bem diferente, com tudo para se constituir em caso de estudo, ou não tivesse o país uma solução governativa potencialmente estável que se viu extinta, a meio da legislatura, sem uma causa política. E é particularmente custosa porque o voto popular tinha sinalizado o desejo de uma estabilidade política. No entanto, uma coisa é a vontade popular, genuína e pura, que se exprime em pleito eleitoral e chancela uma legitimidade política, outra é tudo o que pertence à ordem de motivações, ambições e interesses ocultos que determinam comportamentos individualizados e de grupo. Enquanto o povo anónimo cumpre o dever cívico e vai a seguir à sua vida, as elites têm a prerrogativa de exercer um continuum de acção influenciadora da vida social, em estruturas privadas e corporativas ou por influência directa ou induzida na esfera institucional do Estado. E é deste modo que a vontade da maioria pode ver-se condicionada ou mesmo bloqueada por razões que escapam à lógica normal do jogo democrático.

Dito isto, analisando a presente crise, é de presumir que ela começou a ser congeminada e montada peça a peça a partir do momento em que o povo fez a sua escolha eleitoral elegendo um governo de maioria absoluta. Esta teve o efeito de um murro no estômago da oposição e, tudo o indica, foi uma surpresa para o Presidente da República (PR), classifique-a o leitor como entender. De facto, não é possível descartar o PR da responsabilidade primária que o prende inapelavelmente a todo o processo que de forma larvar se foi delineando e que haveria de conduzir à dissolução do Parlamento. Desde logo, no discurso da posse do governo, percebeu-se algo de inusitado nas palavras presidenciais, havendo razões para especular sobre o que lhes estaria subjacente. Terá sido o desconforto de pressentir que um governo de maioria absoluta ensombraria o protagonismo presidencial? Porque quando o PR frisa a António Costa que a maioria era dele pessoalmente, mas que não significava poder absoluto, é como se dissesse que ela não era a legitimação natural de uma escolha política, mas o plebiscito a um putativo primeiro-ministro. Teve necessidade de o afirmar ao empossado e de o sublinhar perante a puridade. E, cereja em cima do bolo azedo, fez questão de aludir à natureza do exercício do poder – “poder absoluto” −, como se algum precedente lhe permitisse dúvidas sobre o estilo de liderança política de António Costa.

Na verdade, em matéria de pedagogia cívica, o PR não esteve bem ao contribuir para que no espírito do cidadão se instalasse uma dúvida sobre o significado constitucional das eleições legislativas – em que o povo elege deputados optando por um programa político e não propriamente o chefe do executivo, embora na prática o desiderato seja este, dado que o líder do partido mais votado é geralmente quem chefia o governo. Por outro lado, com a conduta que lhe é peculiar, o PR iria dar azo, ao longo do tempo em que durou a legislatura, a uma subversão constante do princípio da separação e interdependência dos poderes soberanos, ao comentar a par e passo os actos da governação perante as câmaras de televisão, endereçando recados subliminares ou tecendo apreciações críticas mais ou menos discretas. Só que o governo responde é perante o Parlamento, não perante o PR, dispondo este das reuniões privadas com o chefe do executivo para se poder pronunciar sobre os problemas da governação. Mas o corolário da impertinência do PR foi o modo insidioso como amiúde comentou publicamente o significado da maioria absoluta, trazendo à baila, com raro propósito, o recurso à “bomba atómica”, como se a escolha eleitoral do povo lhe causasse uma azia política insuperável. Além disso, os inúmeros vetos presidenciais ocorridos neste ano, sem paralelo com os anteriores, é mais uma demonstração de que algo mudou na relação do PR com o governo.

Assim, sobram razões para o cidadão comum construir cenários, podendo especular-se com o que a realidade oferece.

Cabe então perguntar se o chamado “caso Galamba” não foi o gatilho que se armou a aguardar a oportunidade do tiro. Se não foi, parece. O Ministério Público há muito que lavrava em silêncio o terreno da sua autonomia, onde António Costa recusou sempre interferir, sequer comentar, quanto mais propor qualquer medida reformadora, mesmo que as evidências sugerissem a sua necessidade. E assim se tornam públicos, em conluio com uma comunicação social sedenta de sensacionalismo e aberta a promíscuas relações, casos judiciais de oportunidade questionável e que se foram sucedendo destacando-se pela sua frequência inusitada ou pelo excesso de medidas restritivas de direitos individuais – em que, por exemplo, ultrapassa todos os limites a auscultação sistemática de um ministro 82.000 vezes durante 4 anos, e outras situações indiciadoras de perseguição justicialista visando, estranhamente, quase sempre o mesmo partido.

Imaginando um cenário arrepiante, o processo “Influencer” é como se o Ministério Público tenha escolhido a pólvora para o tiro decisivo e ajustado o respectivo rastilho. O processo já fez correr muita tinta, e credite-se-lhe ao menos o mérito de fazer despertar a atenção para o que no sistema judiciário pode estar a fugir ao peso e à medida adequados para funcionamento equilibrado do Estado de direito e o respeito pelos direitos fundamentais. A ética e a integridade cívica são requisitos imprescindíveis para se poder confiar a um servidor do Estado um estatuto de autonomia intocável como a dos procuradores do Ministério Público. São os únicos não escrutinados e isentos de responsabilização funcional. Mas por quantos deles poríamos a mão no fogo em matéria de isenção político-partidária, para além de outras virtudes? A pergunta faz sentido quando se sabe que um dos intervenientes no processo “Influencer” foi assessor em ministérios do governo de Passos Coelho. De resto, não terá sido por acaso que o juiz de instrução deixou cair os crimes de corrupção e mandou em liberdade os indiciados.

Se tudo o que sobreveio com o tal “parágrafo assassino” foi inesperado ou previamente calculado, só o futuro o dirá. Saltou estrepitosamente à vista a inadvertência da Procuradora-Geral da República (PGR), ao aparentar não fazer a mínima noção do que poderia resultar do “seu parágrafo”, não percebendo a gravidade que é publicitar que um primeiro-ministro é alvo de investigação criminal, com buscas intrusivas na sua residência oficial, sem haver uma suspeita fundada da prática de qualquer crime. Uma PGR não pode limitar-se a uma interpretação legalista e mecanicista das suas funções, à margem da ponderação racional e da visão abrangente que o seu poder exige, sob pena de comprometer o normal funcionamento dos órgãos de soberania e das instituições democráticas. Dizer-se surpreendida com o pedido de demissão de António Costa só reforça a presunção de que não estará à altura da responsabilidade do cargo. E, sobretudo, que carece de uma integridade ética que a habilite a perceber a ética de António Costa.

Ao PR terá sido proporcionado, resta saber se de bandeja ou por encomenda, o manípulo para o accionamento da explosão com que antes ameaçara. Sim, porque o Conselho de Estado não lhe sugeriu a dissolução da Assembleia Legislativa e havia soluções que teriam evitado paralisar o país e insuflar o ânimo dos inimigos confessos da democracia. Mas Marcelo Rebelo de Sousa deve ter realizado um desígnio pessoal, acertando contas que não são seguramente as do país.

P.S: E que o Ministério Público se credibilize para o combate aos verdadeiros crimes públicos.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90.

Quando a democracia acolhe cavalos de Tróia no seu seio

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 

Por Adriano Miranda Lima[i]

Calha estar a escrever numa altura em que se assinala o 99º aniversário de Mário Soares, o homem político a quem muito devemos o privilégio de viver numa democracia prestes a comemorar o cinquentenário. Ele que, se fosse vivo, não deixaria, mesmo em idade mais avançada, de fazer ouvir a veemência da sua voz para condenar sem apelo nem agravo aqueles que aproveitam a liberdade para atentar contra o regime democrático e agredir os que o servem. Ultrapassa os limites do desrespeito o teor de certas afirmações e atitudes, como a que se ouviu recentemente a André Ventura quando proferiu que “é preciso dar um pontapé no traseiro ao Augusto Santos Silva”. Este cidadão não é um parceiro de café ou tasca, é simplesmente a segunda figura do Estado, o presidente da Assembleia da República, eleito pelo povo.

Ignoro que reacções suscitaram na sociedade política tão deploráveis palavras. Mas se com o silêncio e a passividade dos democratas a intenção é a pedagogia da tolerância e da moderação, esquecem que isso pode ser interpretado como fraqueza ou cobardia por aqueles que ignoram a ética e os princípios e não hesitam em recorrer a processos iníquos para descredibilizar a vivência democrática. São os que apostam na degradação do debate político e na tentativa de desqualificação, deslegitimação e enfraquecimento do adversário. À argumentação racional e fundamentada, preferem a provocação, a insinuação, a vacuidade e o espalhafato verbal e gestual. De facto, a direita radical e populista é incapaz de discussão em moldes democráticos, pelo que o discurso se centra e se consagra na proclamação de inimigos políticos e no negativismo, não em propostas sérias e responsáveis.

Porém, ao falar em ameaças à estabilidade democrática, talvez seja curial valorizar também o efeito deletério que indirectamente resulta da atitude política dos partidos mais à esquerda. Partidos que se distinguem sobremaneira por uma sistemática e cerrada oposição, mesmo contra políticas de governos do centro-esquerda, há que reconhecer a quota parte das suas responsabilidades no bloqueamento da vida nacional que volta e meia ocorre e leva a eleições fora do ciclo legislativo normal. A história política desta II República fala por si. Basta revisitar os vários incidentes de percurso que impediram o consenso nacional em sede parlamentar e provocaram situações de ruptura orçamental, obrigando a três intervenções do FMI, desde 1977, com inevitáveis reflexos na progressividade do crescimento do país. Como geralmente se constata, o que esses partidos exigem é a aprovação pura e simples das suas políticas programáticas, sob pena de oposição obstrutiva, o que, se acontecesse a seu bel-prazer, convenhamos que desvirtuaria a lógica e a coerência do programa de quem foi eleito para governar. O recurso constante e exaustivo a reivindicações, greves e manifestações dos sectores do Estado demonstra que tais prerrogativas são, por enquanto, praticamente exclusivas de quem tem trabalho assegurado para toda a vida. Os sectores privados não dispõem de instrumento de luta equiparável porque dependem de um vencimento cuja garantia não tem a sustentação do poço sem fundo (no imaginário de alguns) que é o Estado.

Assim, cada um que ponha as mãos na consciência e avalie honestamente o peso inflexivo dos actos que pratica quando a tendência é julgar a saúde do regime elegendo como os únicos culpados os dois partidos que até agora assumiram a governação do Estado. É muito cómodo colocar-se à margem e contribuir para engrossar o sentimento anti-sistema, mediante proclamações e teatralizações demagógicas, servindo-se preferencialmente das redes sociais, o meio por excelência onde a extrema-direita se tem expandido aqui e em outros países.

O que se passa em Portugal naturalmente que é influenciado pelo que vai acontecendo pelo mundo fora, com as democracias a ressentirem-se do surgimento de forças políticas da direita que radicalizam o discurso e inflamam o propósito de alterar os fundamentos do Estado democrático. Mas nada acontece sem uma causa. Em quase todo o lado, os países sofreram um abanão provocado pelas forças do mercado e pela inversão ou desordenamento da hierarquia entre o interesse público e o interesse privado. Hoje, ninguém já duvida de que a globalização, que se propunha como a via para a resolução pacífica dos conflitos políticos, como imaginou Fukuyama, de repente parece postergada, dando lugar à guerra, como estamos a ver. Apreensivamente, aguarda-se o que sairá das próximas eleições presidenciais americanas, porque o regresso de Trump representa uma potencial ameaça à saúde das democracias mundiais, pela maléfica influência que à distância não deixará de exercer no espaço planetário.

Aqui chegados, cabe perguntar se a insuficiência ou a menor qualidade da nossa democracia justificam a emergência de movimentos ou forças que lhe são adversas. A resposta é dada pela história e dispensa considerações, tão clara é a diferença entre a vida dos povos governados em democracia e a dos submetidos a ditaduras. Mais, pergunta-se se o problema está na qualidade dos políticos ou no seu insuficiente comprometimento com a causa pública. Com razão acrescida, a resposta é redondamente negativa. O sistema político em apreço não é estável ou definitivamente ultimado como ideia e conceito, e quem o interpreta e aplica está tão sujeito às engrenagens da complexidade da própria natureza humana como à instabilidade e mutabilidade dos fenómenos sociais. Porque ambas estão irremediavelmente interligadas. Eu que não sou político e não tenho familiares na política, considero absolutamente inaceitável alimentar o preconceito de que os políticos são “eles” e nós somos “nós”, apontando-os como os únicos responsáveis pelos insucessos do país. Ora, os políticos emanam da nação, e, embora se devam distinguir por atributos e qualidades específicos, é surreal supor que a sua idiossincrasia os diferencia necessariamente da massa genética de onde provêm e onde a natureza forjou a matriz identitária comum. A democracia não pode deixar de reflectir as virtudes e bem assim os defeitos do todo colectivo, não exclusivamente ou segmentariamente os de quem é eleito para liderar. Não é preciso muito esforço para se confrontar com o paradoxo que é elaborar certos juízos denegridores da classe política por aqueles que a escolhem. É disso que se alimentam os populistas e radicais, gente que tenta enganar os ingénuos e os desatentos com artes de esquizofrenia política.

Estou convencido de que o povo não deixará de fazer valer a sua sabedoria e o seu instinto quando proximamente for às urnas, enquanto já se vai preparando para as festas natalícias.



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO90

 

Também eu, Miguel

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Por  Adriano Miranda Lima

No seu artigo publicado no jornal Expresso de 1 de Dezembro passado, intitulado “Desculpem insistir”, Miguel Sousa Tavares continua a abordar a temática da Justiça e a dado passo escreve:

À Justiça e aos seus magistrados concedemos o poder de decidirem sobre os nossos deveres e a nossa liberdade para resolverem os nossos conflitos e garantirem os nossos direitos. No dia em que cada uma destas entidades, como cada um dos poderes institucionais, não for controlada por outro ou por ninguém − no dia em que um só dos poderes estiver fora de controlo −, não tenham dúvidas de que o Estado de direito e a democracia estão ameaçados. Entre nós só há um poder que, na lei e na prática, ninguém controla a não ser ele mesmo: o Ministério Público (MP)”.

No exercício da minha cidadania, replico que também não me coíbo de insistir no tratamento do tema porque a Justiça é um pilar fundamental do Estado de direito, justificando-se, por isso, que ocupe o centro do debate nacional até que deixe de ser o abcesso institucional em que parece ter-se convertido, conforme a classificou Vital Moreira. Com efeito, justifica-se uma urgente reflexão nacional, empenhando os políticos, a cidadania e a comunicação social, quando parecem claros os indícios de que no Ministério Público podem existir procuradores imbuídos de ideias contrárias à transparência, isenção e linearidade que a sua conduta funcional exige, em alguns casos procedendo como se tivessem uma agenda política, de tal modo que já se fala de um “legal wafare contra os políticos”. Excederia o espaço de um mero artigo de opinião a menção dos casos mais sonantes que se constituíram em verdadeiro paradigma daquilo que a Nação não pretende da sua Justiça. Não é este o meu propósito, tanto mais que o citado colunista do Expresso, nas suas palavras transcritas, sintetiza a opacidade em que se movimenta o Ministério Público e que carece de ser trespassada com a luz clara da verdade.

Conforme vem acontecendo, não é aceitável que baste uma simples denúncia anónima, por mais infundada ou nebulosa que seja, para investigar o exercício de funções políticas e condutas privadas a elas associadas. Funcionando como uma espécie de pesca de arrasto, as escutas telefónicas tornaram-se o método habitual e por excelência, excedendo consideravelmente o que é prática normal em todo o lado onde o direito funda e estrutura o Estado. Para cúmulo, parece existir uma ligação promíscua e sigilosa entre sectores do Ministério Público e certo jornalismo que se intitula de investigação, para onde são canalizadas informações seleccionadas e segmentadas sobre supostas ou alegadas ilicitudes criminais. Fica assim urdido um estratagema cujo intuito parece ser o julgamento na praça pública das pessoas visadas, ante a constatação da fragilidade dos indícios e provas para levar ao seu julgamento e condenação em tribunal. São várias as figuras públicas que foram vítimas deste tratamento iníquo e acabaram absolvidas em tribunal, mas que ficaram com a sua reputação enlameada e as suas carreiras políticas irremediavelmente arruinadas.

A Procuradora-Geral da República parece incapaz de pôr termo à sistemática violação do segredo de justiça que compromete gravemente a imagem do Ministério Público, como que encerrada numa torre, na expressão de alguns colunistas, de onde não tem o hábito de sair, por decisão própria, para prestar esclarecimentos públicos, nem quando são notórias as disfuncionalidades e os erros do organismo que tutela, como sucedeu com o processo “Influencer”, com as consequências políticas que se conhecem e cujas proporções ainda é cedo para calcular.

Enquanto os políticos são escrutinados pelo voto popular e prestam contas à Nação, possibilitando a alternância do poder e a perpetuação saudável do regime democrático, os servidores da Justiça parecem gozar de um estatuto de absoluta e inaceitável inimputabilidade, o que constitui uma ameaça sistémica ao Estado de direito e a democracia, na opinião de vários reputados juristas e constitucionalistas.

As sociedades contemporâneas tendem a viver ao ritmo e sob a influência dos media, mas infelizmente não se pode dizer que a agenda destes coincide sempre com o interesse nacional. Contudo, uma vez que a liberdade de imprensa é o mais cintilante sinal de vitalidade da democracia, é de esperar que a problemática da Justiça se mantenha no cerne das preocupações da comunicação social.

O que é surpreendente, para não dizer estranho, é o tema da reforma da Justiça andar arredado das campanhas eleitorais dos actuais “candidatos a primeiro-ministro” para a próxima legislatura, como se ela fosse um tabu ou algo com que não se deve mexer para evitar o risco de ser apanhado em qualquer futura pesca de arrasto. Isto devia preocupar seriamente os eleitores, porque na verdade demonstra que falta coragem política para extirpar do organismo do Estado de direito o cancro em que a Justiça se tornou.

P. S. Bem-haja José Pacheco Pereira por não desistir de abordar o tema da Justiça, como o fez com o seu artigo “A ideologia antidemocrática do justicialismo”, publicado no jornal Público de 2 de Dezembro.


Portugal é mesmo ingovernável em democracia?

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

 (Conclusão)[i]

Por Adriano Miranda Lima[ii]

Prosseguindo e concluindo a reflexão iniciada no artigo anterior, torna-se legítima a dúvida se a recente demissão do governo de maioria absoluta foi algo inesperado ou um desfecho ansiado por quantos, ao longo deste ano e meio de legislatura interrompida, foram afinando a orquestra de uma dura e intransigente oposição e semeando uma inquietação social permanente.

Inquietos com as consequências previsíveis para o futuro próximo, justifica-se um esforço de introspecção para tentar saber o que pode ser um simples acidente de percurso ou um problema sistémico instalado como abscesso no regime político. Aqui é que entronca a interrogação crítica que tem de ser formulada, sob pena de nos iludirmos ou de não conseguirmos detectar os mecanismos correctivos. Será altura para cada um acertar as contas com a consciência cívica e com a realidade. Para isso, a maiêutica, ou a auto-reflexão, podem ajudar, como a seguir se propõe.

Este governo parece ter causado engulho aos que não esperavam a maioria absoluta, e nem o Presidente da República fica imune à suspeição quando se sabe do teor das suas constantes e impertinentes observações: “maioria requentada”; “bomba atómica”, metáfora de uma possível dissolução da assembleia legislativa; intrusão quase diária na acção governativa, etc. Essa postura ajudou a que nenhuma medida do governo fosse credora da mais ténue concordância dos partidos da oposição, nem daquele que mais se lhe aproxima no centro do espectro político. Como se à mesma realidade social e económica pudessem corresponder leituras tão multifacetadas vinculando diferentes perspectivas de solução. Prova-o a ausência de alternativas plausíveis ou realistas.

Mas é claro que todo o confronto político, mesmo o mais aceso e chispante, tem a sua natural legitimidade no debate democrático e em sede parlamentar, onde têm lugar mesmo esses partidos que são anti-regime e que aproveitam a casa da democracia como campo de ressonância da sua animosidade e agressividade e não como espaço de construção e entendimento. Agora que algumas sondagens lhes sugerem possível crescimento eleitoral e uma hipótese de partilha do poder, fazem por simular alguma moderação e contenção, mas só se deixa enganar quem tiver desligado a campainha de alarme e abdicado do exercício responsável da cidadania.

É certo que um pouco por todo o lado se assiste a um decréscimo da qualidade das democracias, pelo que convém sempre auscultar a verdadeira extensão do problema entre nós a fim de saber em que medida isso significa um fenómeno político transitório ou um fenómeno social capaz de deslocar substancialmente do centro do espectro político a opção maioritária do eleitorado, como até hoje aconteceu, desde 1975. A acontecer, a nossa democracia receberia um golpe antes de podermos ajuizar em base segura sobre a nossa capacidade de a consolidar e de garantir a perenidade do regime que é o único que nos serve para a construção de um futuro mais próspero e mais justo. Por enquanto, a expressão do voto popular não dá razão para recear aquele cenário.

Perguntar-se-á se a nossa alegada dificuldade de entendimento e de concertação no plano político é mesmo um sintoma daquela característica psicossomática de que se queixava o romano Sérgio Galba e que iria servir de pretexto a Salazar. A resposta exigirá que se distinga entre povo e elites para aferir se o problema tem, de facto, relação com características identitárias ou se resulta mais do comportamento típico de estratos sociais mais instruídos e evoluídos. Exemplifica-se: é mais provável o povo profundo unir-se à volta do interesse comunitário na aldeia do que os representantes dos vários interesses sociais concordarem sobre a localização do novo aeroporto ou de um novo hospital regional. Compreende-se que aumentando a escala da incidência do problema aumenta necessariamente a sua complexidade. Só que o refinamento intelectual e cultural se compraz com a pulsão filosófica para divergir de forma sistemática, e nisto o melhor exemplo é a chamada “esquerda caviar”. É o paradoxo de a condição social e cultural poder conduzir à denegação da democracia.

Todavia, uma coisa é o circunstancialismo normal que rodeia o funcionamento da democracia e a existência do estado de direito, outra é a ocorrência de situações anómalas que atentam contra a sua integridade, e mais críticas e intrigantes são quando nascem de fenómenos disfuncionais dentro de um organismo do Estado. Foi o que aconteceu com as circunstâncias em que o processo “Influencer” contribuiu para derrubar um governo de maioria absoluta e criar uma crise política. Ultrapassando as normais contingências do activismo parlamentar ou da conflitualidade social, a situação vai por muito tempo ocupar o cerne do debate nacional. Hoje, quase ninguém questiona a necessidade de reorganizar o funcionamento da Justiça, não propriamente pelas incidências deste processo ou pela forma como o juiz de instrução criminal deixou cair os crimes de corrupção e de prevaricação, mas também, e sobretudo, por uma série de antecedentes que não são favoráveis à imagem institucional do Ministério Público.

Seria irónico que fossem distopias na organização e funcionamento do Estado, passíveis de correcção, a contribuir para a descrença do cidadão nas virtudes da democracia. Na verdade, o Ministério Público carece de reorganização funcional para que não perca a probidade e as virtudes cívicas que lhe são imprescindíveis como órgão do Estado de direito democrático.

Para concluir, a minha convicção é que o português é tão capaz como os melhores de viver em regime democrático e sob os seus melhores auspícios. A própria União Europeia o atestou quando se admirou com a nossa maioria absoluta, a única no espaço europeu, e com o sucesso da governação financeira, reduzindo consideravelmente o défice orçamental e baixando a dívida pública para abaixo dos 100%. A Moody’s melhorou a notação da nossa dívida soberana em dois níveis, ficando Portugal acima de Espanha, o que nunca tinha acontecido. E agora veio Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia, afirmar que Portugal realizou um milagre económico. Ora, nada disto seria possível com um povo avesso à democracia.

Salazar, em uma entrevista concedida a António Ferro, descreveu os principais defeitos e qualidades do povo português. Segundo ele, os defeitos são: “excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção.” É estranho que ele não tenha mencionado o que justificou a imposição da ditadura do Estado Novo. No mais, penso que a auto-estima nacional impede que tenhamos de dar razão aos descrentes. Até porque os quase cinquenta anos de democracia já lavraram um percurso que só pode ser irreversível.



[i] Artigo publicado - 1ª parte e conclusão - no jornal “Templário” de Tomar

[ii] Nota: Para evitar mal-entendidos, esclareço que sou simplesmente um militar reformado, preocupado com o mundo, crente nas virtudes da democracia, adepto da social-democracia, e atento à realidade política do país. Sem vinculação partidária.