Quem assiste, todas as semanas, no canal TVI 24, às dissertações de um conhecido
analista do estado da economia e das finanças de Portugal, tende a dar-lhe
razão dentro do princípio de que 2+2=4. A matemática elementar, sustentando
gráficos e valores numéricos repetidos ad
nauseam, ano após ano, parece a única matriz do seu conceito. Mas se o segredo
do sucesso se resumisse a esse instrumento de análise, qualquer economista
licenciado com 10 valores teria capacidade para governar o sector. O axioma só não
surte efeito porque, no dizer do analista, temos sido governados por
“criminosos loucos”. Estes seguramente que não desconhecem a matemática, mas a
ilustre figura deve supor que, ungidos pelo diabo, têm o sortilégio de
subverter a soma de 2 + 2 para valores estranhos e distorsivos.
Não é preciso muito esforço para perceber a insinuação mal disfarçada: as
nossas dificuldades financeiras se devem às liberdades cívicas do regime
democrático. É particularmente sobre esta II República que ele descarrega a sua
verrina quando fala de “criminosos loucos”. E é implícito que absolve das
malfeitorias nacionais o ditador Salazar, que soube destronar os “criminosos
loucos” do seu tempo para que as contas públicas se reconciliassem com a
normalidade tranquila da matemática. Mas para protegê-la com grades de ferro Salazar
teve de suprimir a oposição, de domesticar o parlamento, de extinguir a
liberdade de opinião, de acabar com os sindicatos, de criar uma polícia
política, de construir uma colónia penal em Cabo Verde. Nada mais simples, e só
os “criminosos loucos” é que não se lembraram nem se lembram do Ovo de Colombo
descoberto por Salazar. Com aquele governante, as contas foram postas no seu
devido lugar e o país entrou numa era de paz… de cemitério: sem progresso
material, sem infra-estruturas, sem indústrias evoluídas, sem promoção da
instrução, sem segurança social, sem protecção à infância e à velhice.
Bastou o retorno da democracia em 1974
para que as nossas contas se descontrolassem, tudo por culpa dos “excessos
revolucionários” cometidos, como sentencia o analista e, obviamente, merecendo
aqui a nossa concordância. Só que aqueles “excessos” tiveram a virtude de
instituir o direito de todos os portugueses à segurança social, à saúde, ao
ensino e à cultura, eliminando ou atenuando a gravidade de situações de abjecta
e confrangedora pobreza.
Posto
isto, começa a desenhar-se no espírito do leitor a sugestão de que a economia
será algo muito complexo nos seus meandros para se poder consertar com duas
marteladas de matemática. Sim, a economia não é uma ciência exacta. Ramo das
ciências sociais, depende, como tal, de variáveis que não é fácil quantificar e
por vezes até identificar com linear clareza. São do domínio do comportamento
humano e social, onde a imprevisibilidade e a incerteza são de tal grau que muitas
vezes conseguem deitar por terra as estimativas e previsões mais sofisticadamente
calculadas. Mais ainda porque aquelas variáveis são normalmente interdependentes,
obnubilando a percepção da sua complexidade, não só por interferência de
fenómenos sociais internos como de dinâmicas exteriores não controláveis pelos
governos.
Contudo, a pessoa em causa não é o nosso único oráculo nesta delicada e
difícil matéria. O canal SIC tem outro senhor de certezas inabaláveis e
irrevogáveis. Estes dois são os de maior visibilidade porque desde há anos vêm
usufruindo de um exclusivo privilégio nos respectivos espaços mediáticos, sem terem
contraditório que se veja. Um foi ministro durante ano e meio e o que consta de
mais saliente na sua governação foi ter negociado um empréstimo aos EUA, por
culpa de anteriores “criminosos loucos”, cuja concessão exigiria a primeira intervenção
do FMI no país. No entanto, enquanto ministro ele não fez escola nem deixou,
que se conheça, qualquer receita infalível para o sector. O outro é apenas
jornalista, com licenciatura em economia, nunca tendo exercido qualquer cargo público
ou privado que assinale os seus méritos e constitua background da ciência virtual que amiúde despeja no canal
televisivo que lhe dá guarida.
Direi que são ambos as principais pitonisas da nossa economia, de entre
outras menos notadas e de mais esparsa intervenção. Por que não são chamadas a
salvar a pátria estas pessoas que se mostram tão compenetradas dos seus
argumentos, tão cientes da infalibilidade dos seus cálculos, dos seus juízos e
dos seus prognósticos? Bem, admito que não desejarão qualquer prova real das
suas capacidades, a não ser com uma hipotética supressão da democracia, pois
caso contrário teriam de se confrontar com as mesmas adversidades e
condicionalismos por que passaram ministros de alto gabarito académico e grande
traquejo como Sousa Franco, Silva Lopes, Vítor Constâncio, Miguel Cadilhe,
Hernâni Lopes, Jacinto Nunes e outros. Ou será que estes merecem ser mimoseados
com o tratamento de “criminosos loucos”?
Chegado aqui, o leitor terá já intuído ou deduzido que o problema das
nossas contas públicas poderá ter, na verdade, alguma relação com a nossa
idiossincrasia. Isto é, com a falta de apuro da nossa consciência colectiva
para fortalecer a unidade em torno dos grandes objectivos nacionais. Esta é,
aliás, a face visível da nossa dificuldade em maximizar as virtudes da
democracia, de modo a que ela se torne facilitadora de consensos e maiorias
políticas e extirpe à nascença fenómenos (corrupção e evasão fiscal, por
exemplo) que corroem a saúde do organismo nacional. As pitonisas em causa certamente
que não ignoram o fundo sociológico do problema, mas preferem fazer vista
grossa e entreter o pagode com a superficialidade das suas análises.
Claro que despedir a democracia para viabilizar a resolução dos nossos
problemas não deve passar seriamente pela cabeça de ninguém, nem mesmo das pitonisas.
Por isso é que lhes fica mal passar a imagem de que são virgens impolutas ou
mentes luminosas, enquanto subliminarmente crucificam e execram quem ousa
assumir a governação. Tanto mais que as suas análises e conjecturas podem
ajudar a dona de casa ou o merceeiro da nossa rua, mas de pouco servem para o
esclarecimento da complexidade da ciência económica. Bem se diz que a economia
é algo sério demais para ser deixado só aos economistas.
Tomar, 17 de Outubro de 2016
Adriano Miranda Lima