O
político, sobretudo o do topo, é uma pessoa objectivamente imodesta. Ele tem
que acreditar e ostentar publicamente a sua superioridade em relação ao
adversário. Noblesse oblige! Fá-lo
quase sempre em nome pessoal, não obstante usar o majestático. Ele é o maior,
considera-se sem nunca o dizer. Os seus projectos de sociedade são os que
melhor servem o País; o seu programa de governo – mesmo quando o não tenha – é
aquele que melhor satisfaz os interesses da Nação; as suas ideias socio-políticas
são as mais avançadas, progressistas e inovadoras; as suas tácticas e
estratégias as mais bem concebidas. E tem que os exibir e torná-los
convincentes, pelo menos no plano retórico. Ele – e toda a sua parafernália
conceptual – é um produto para venda e como tal deve revestir-se de marketing e
propaganda que o torna apetecível. Desta forma “todos” os dirigentes políticos
de topo, com particular incidência nos líderes partidários são um pouco
narcisistas, preocupados acentuadamente com o seu umbigo.
No
seu exacerbado egotismo – passe o pleonasmo – o dirigente político de topo menospreza
a equipa que o alcandorou ao lugar em que se encontra que considera algo
secundário e negligenciável em razão do que pensa ser o seu prestígio e a sua
imagem e dá-se ao desprimor de julgar que poderá dizer, directamente ou por
interposta pessoa, o que entender e quando o quiser, que as suas palavras serão
sempre aplaudidas e bem-recebidas. Esquece, muitas vezes, os valores
fundamentais que devem orientar a sua conduta no grupo a que pertence; confunde
eventual amizade pessoal com a conivência política sem questionar minimamente
ou debruçar-se sobre a amizade de “última” hora; e estabelece o seu calendário
pessoal, transferindo não só esta sua agenda pessoal mas também as suas
amizades “políticas” como facto consumado para o partido ou grupo que lidera
convencendo-o, normalmente, com alguma intrínseca ou, quiçá, artificial
ingenuidade, de táctica de captação de votos adversários.
É
nesta linha de ideias que podemos analisar duas declarações de governos
diferentes e de efeitos também diferentes e que têm de comum apenas o facto de
nos surpreender. Então vejamos:
Num
País que tem o FMI aqui mesmo atrás da porta – com a nossa dívida pública (120%
do PIB sem contar a das empresas públicas) e sem riquezas naturais para
hipotecar não é preciso ser-se adivinho ou bruxo para o saber; que tem uma taxa
efectiva de desemprego jovem de mais de 30%; que tem um sistema educativo (núcleo
fundamental de qualquer desenvolvimento sustentável) anacrónico e
desqualificado – vide o nível dos nossos licenciados que são incapazes de
escrever ou articular correctamente uma ideia em português, língua em que foram
alfabetizados e instruídos; que luta com um índice de pobreza acima dos 20%;
que tem um sistema de saúde carente de organização, de equipamentos e de
valências fundamentais não só para a sua população como para o desenvolvimento
do seu sector de aposta – o turismo – e responder com eficiência aos custos
inerentes à natureza arquipelágica do País; que tem empresas públicas em estado
de falência técnica; que aguarda para 2017 um serviço da dívida que deve roçar
os 35 milhões de euros; que cresceu muito, é um facto, mas que não se
desenvolveu pois ainda não provou a sua viabilidade económica, a sua
sustentabilidade (ser capaz de viver sem donativos); e que sabe, logicamente, que
tem uma capacidade de endividamento absolutamente limitada.
Pois
bem, é neste País e nestas circunstâncias que vem o Governo recém-empossado,
que nem tinha sido investido de poderes governamentais, declarar, pela voz de um dos seus membros, que por sinal, me é
simpático e muito considero, como preocupação
melhorar as condições dos combatentes da liberdade da Pátria, de gente que recebe
neste momento, no mínimo cerca de sete
salários mínimos como subsídio sem contar os outros benefícios e que nem sequer está no desemprego.
Ninguém duvida que por detrás da tão ufanosa quão despropositada e descabida declaração
estará uma agenda política (que configura virtual amiguismo ou mesmo nepotismo)
que os eleitores do MpD desconheciam (ou desconhecem) e que não votaram.
Esperemos
todos que para além de se concordar ou não com mais benesses aos combatentes da liberdade da pátria, haja bom senso e
discernimento para se pensar primeiro nos doze
meses de salários anuais dos funcionários públicos e dos pensionistas do Estado
entre preocupações sociais bem urgentes. Não se trata de saber se a declaração
do ministro tem peso (impacto) ou não no Orçamento do Estado, mas do sinal que dá
do seu significado na hierarquia das prioridades do Governo.
Com
toda a franqueza, isto não pode ser
agenda do MpD!
Um
outro exemplo que mostra a assumpção de declarações insólitas de efeito
contrário mas não menos surpreendentes é a feita pelo PM cessante quando
confessou publicamente estar a Administração
do Estado toda partidarizada. Mau grado ser uma verdade de La Palice, ao
ser dita pelo próprio PM parece ter sido um objectivo planeado e atingido. “Ufanar-se”
deste feito depois de 15 anos ininterruptos de governação (mentor e executante)
não parece curial. Ninguém percebeu os motivos que estiveram subjacentes a tão
bombástica como surpreendente declaração. Tem aspectos masoquistas como também
sádicos. Por um lado, porque a partidarização do aparelho do Estado só
constitui objectivo, porque é seu fundamento, num regime de Partido Único sendo
em democracia uma desavergonhada e inadmissível perversão. Por isto não deve o
seu feito – e o PM seguramente que o não espera – merecer aplauso de nenhum
democrata.
Por
outro lado, pode ser um sério aviso para o sucessor antevendo e deleitando-se, a priori, e com algum sadismo, as
dificuldades que um novel PM terá em desmantelar um edifício que ele
orgulhosamente erigiu.
De
todo o modo foi um péssimo serviço que prestou ao País com a promoção do
regresso “democrático” a um passado de má memória em que se tinha que jurar
lealdade e fidelidade ao PAIGC e depois ao PAICV para ingressar na
Administração do Estado.
Caminhamos
seriamente para uma porta muito estreita. É preciso tomar consciência das
manobras adversárias. A defesa do Partido único pode começar a ganhar forma e
assumir-se com uma outra dimensão: a dos partidos da governação não serem mais
do que duas facções ou correntes dentro de um mesmo “partido” como alguns,
jocosamente, já o adiantam.
Impõe-se, pois, uma séria análise nosológica do
funcionamento dos nossos partidos políticos incidindo sobre as cumplicidades e
as promiscuidades.
Confesso
que a apresentação no Parlamento do Programa do Governo bem como a sua defesa
trouxeram-me alguma tranquilidade, ao caracterizar um MpD fiel aos seus
princípios fundadores e ao estabelecer uma clara e nítida dicotomia de
programas, de projectos de sociedade e de objectivos entre os dois partidos da
governação inclusive no de assumpção inequívoca da cabo-verdianidade.
Creio,
e aqui reside toda a minha esperança, que as bases do MpD e os seus deputados, estarão
atentos e não aceitarão qualquer aliança espúria e oportunista feita do topo
para a base bem à moda do ‘centralismo democrático’.
A. Ferreira