Quando o governo francês se debate com os tumultos provocados pelos Coletes Amarelos, eis que ocorre um atentado reclamado pelo Jihadismo, como que a não querer deixar os seus créditos por mãos alheias, ou… usurpados por mãos impuras. O problema é que a primazia do protagonismo não é aqui fácil de mensurar porque, nos dois casos, a violência se diferencia tanto na sua substância activa como nos seus objectivos, ou ausência deles. Com mais ou menos concessões, os governantes podem travar, atenuar ou adiar os tumultos sociais, negociando olhos nos olhos com sindicatos ou líderes sociais. Com o terrorismo islâmico, o mesmo não é fácil porque nenhum caderno reivindicativo se apresenta com verbo decifrável e nenhum interlocutor se senta à mesa da negociação de boa mente e rosto descoberto.
Segundo constou, o autor do atentado, Sherif Chekatt, não estava identificado como membro de qualquer célula terrorista, assim como não está ainda suficientemente comprovado que o seu acto teve por trás uma clara motivação islâmico-terrorista. No entanto, conforme noticiou o jornal Le Parisien, Sherif Chekatt gritou "Allahu Akbar" enquanto disparava contra a multidão de pessoas inocentes, e disse ao taxista que o transportou que quis "vingar os seus irmãos mortos na Síria". Mais diz o jornal que só não matou o taxista porque este revelou-lhe ser muçulmano praticante.
O que também tem suscitado alguma dúvida é o facto de o terrorista ter sido um cadastrado por delitos do foro comum, admitindo-se que possa ter agido por um impulso demencial semelhante ao de cristãos que pegam numa arma e desatam a ceifar vidas humanas, como frequentemente acontece nos Estados Unidos da América. E também nada demonstra o facto de o chamado Estado Islâmico ter reivindicado o acto como tendo sido cometido em seu nome, visto que essa organização sistematicamente assim procede. De igual modo, não há prova de que o terrorista se tenha querido imolar como “mártir” pela causa do Islão, pois caso contrário teria oferecido o peito às balas dos seus captores, em vez de fugir. Depois, não é crível que alguém nascido e educado em França e ainda por cima com uma conduta transgressora das regras sociais possa acreditar na patranha das 70 virgens que no céu aguardam o mártir pela fé muçulmana. Até é possível que ele soubesse que o historiador tunisino Mohamed Talbi desmistificou o sentido dessa crença ao esclarecer que tudo não passa de um equívoco, pois um lapso na tradução é que fez passar a ideia de que são 70 virgens quando se trata apenas 70 bagos de uva (1).
Em todo o caso, se não foi uma acção puramente jihadista, o seu autor tudo fez por isso. Até porque escolher como alvo o mercado de Natal de uma cidade cristã é mais susceptível de indiciar uma intencionalidade religiosa do que um simples acto tresloucado.
Para o académico americano Martin Kramer (2), a única forma de derrotar o terrorismo islâmico “é enfraquecer a sua lógica moral, encorajando os muçulmanos a ver a sua incompatibilidade com seus próprios valores.” Mas a dificuldade está em descortinar uma “lógica moral” no terrorismo islâmico, porque para isso a interlocução dialéctica teria de assentar em princípios epistemológicos reconhecidos pelas partes em confronto, sem o que seria um perfeito diálogo de surdos. Além disso, como pode a lógica moral estar presente em condutas irracionais e violadoras dos mais elementares valores do humanismo universal? Adolf Hitler não obedecia a qualquer lógica moral quando proferiu as seguintes palavras num discurso dirigido aos oficiais das SS em Kharkov em 19/04/1943: “A melhor arma política é a arma do terror. A crueldade gera respeito. Podem odiar-nos, se quiserem. Não queremos que nos amem. Queremos que nos temam.”
É isto que parece acontecer com o terrorismo islâmico. Mais do que importar-se com uma arma política alicerçada em pressupostos racionais, o objectivo é o terror pelo terror, expressão de um fanatismo levado aos limites da sua exacerbação.
Porém, o que está em causa é a perversão dos princípios e da prática do Islamismo, que na sua essência original muito tem de comum com o Judaísmo e o Cristianismo. De facto, as três religiões monoteístas possuem mais semelhanças que diferenças e estas se cingem mais à práxis que ao substrato teológico, pois que os seus princípios ético-morais foram colhidos na mesma fonte onde bebeu o profeta Abraão, que é comum aos três credos. Os seus livros sagrados −Torá, Bíblia e Alcorão – não só pregam idênticas virtudes básicas como são todos raiados de uma mesma visão radical, severa e austera sobre o homem e o mundo.
E quando hoje se fala de fundamentalismo religioso, esquece-se que o fenómeno existiu e existe nas três religiões monoteístas, embora com manifestações diferentes, e que certas formas de fundamentalismo são mais produto da nossa era do que dos tempos medievais. Por exemplo, no Cristianismo o fundamentalismo propriamente dito surgiu nos meados do século XIX e tomou forma de letra em 1910 quando presbiterianos ligados à universidade americana de Princeton publicaram uma pequena colecção de doze panfletos intitulada “The Fundamentals”, em que se propunha um Cristianismo extremamente rigoroso, ortodoxo, dogmático, como orientação contra a modernização acelerada que ocorria na sociedade norte-americana no domínio tecnológico mas também da espiritualidade. Para esses fundamentalistas, a Bíblia é o fundamento básico da fé cristã e portanto deve ser tomada à letra: cada palavra é de inspiração divina e como Deus não pode errar, então tudo na Bíblia é verdadeiro e imutável. É por uma perversa interpretação da Bíblia que volta e meia alguns possessos de fanatismo religioso cometem assassínios que na sua tipologia pouco diferem das práticas do terrorismo islâmico.
Só que o Cristianismo condena as práticas extremistas e odiosas que se verificam no seu seio, e mesmo quaisquer leituras radicais contemporâneas que subsistem não têm qualquer significado num mundo ocidental laico e identificado com os valores da ciência e com as metamorfoses do progresso. O mesmo não se pode dizer da região mais conturbada do mundo muçulmano, O Médio Oriente, porque nela têm voz activa religiosos obscurantistas e autocratas agarrados a uma visão tão retrógrada do Corão que rejeita liminarmente o progresso universal.
Ainda assim, o cientista político americano de origem indiana Fareed Zakaria (3) desmistifica alguma visão errónea que se tem do mundo islâmico ao lembrar-nos que a prática terrorista é fortemente repudiada pela maioria do mundo muçulmano. Adianta que o terror “islâmico” não é a bandeira de uma religião, cultura ou civilização, e que o radicalismo islâmico é impopular e a maioria dos muçulmanos não deseja uma teocracia. E, numa revelação mais prosaica, revela que as pessoas no mundo muçulmano preferem viajar para ver o luxo em Dubai e não as madrassas em Teerão, lembrando ainda que metade dos países muçulmanos do mundo – cerca de 600 milhões de habitantes – tem eleições e que os partidos ligados ao radicalismo islâmico raramente alcançaram mais do que 7% ou 8% de votos nos escrutínios eleitorais.
As ciências políticas e sociais debruçam-se sobre a origem e as causas dos problemas e não raro deparam com um conjunto intricado de factores encadeados numa relação que torna difícil isolar causas e efeitos. Creio que é o caso do fundamentalismo islâmico e do terrorismo jihadista. Analisando: o mundo ocidental não pode descartar responsabilidades em relação às suas políticas seguidas no Médio Oriente, no passado como no presente; na actualidade, ninguém ignora a hipocrisia das relações do ocidente com alguns estados árabes produtores de petróleo, em que os valores e os princípios são postergados em função da lógica do negócio do petróleo e armamento, dando azo a que se proceda com pesos e medidas diferentes para as mesmas situações; em algumas sociedades europeias, fruto de uma emigração pouco criteriosa no passado, existe uma combinação tóxica de guetos sociais, marginalização e desemprego que as transforma em viveiros do jihadismo.
Por tudo isto, e pelo comprometimento das liberdades e da segurança colectiva, todos devem empenhar-se na análise e resolução de um problema que é comum, atacando as suas causas profundas, num diálogo intercultural que deve envolver o ocidente e o mundo islâmico. O objectivo deve ser abrir as mentalidades e modernizar o mundo islâmico, de modo a que este perceba quão utópica é a ideia de uma “ciência islâmica” diferenciada da ciência universal. Parte importante da iniciativa deve competir ao mundo muçulmano, o que tem de passar pela retirada do aparelho educativo das mãos dos religiosos, cujos efeitos não deixarão de reflectir-se numa progressiva secularização de todos os sectores da sociedade, desde a cultura à economia. Proceder de modo contrário, insistindo nas teocracias, é não fazer jus ao legado cultural muçulmano de outrora, em que pontificaram intelectuais e sábios de renome universal como Averróis, Avicena e Ibn Khaldun, entre muitos outros, que são hoje negligenciados, se não mesmo repudiados pelos fundamentalistas.
Embora o quadro pessimista, a revelação feita por Fareed Zakaria sobre a preferência turística dos muçulmanos pode ser sinal de uma realidade social com mais peso futuro que o fundamentalismo de uns quantos seguidores de um Corão adulterado na sua versão original.
Mas o importante é que o Espírito de Natal sobreviva a todos os atentados. Boas Festas para o Templário e seus leitores.
Tomar, Dezembro de 2018
Adriano Miranda Lima
(1) Arsénio de Pina refere-o no seu artigo “Do Islamismo Político-Terrorista”, de Setembro de 2018.
(2) Debate entre os cientistas políticos norte-americanos Martin Kramer e Robert Pape, em 08/11/ 2005, sobre o Terrorismo Islâmico.
(3) Texto da sua coluna intitulado “É preciso dividir o Islão para vencer”, publicado na revista Época, edição nº 480, Rio de Janeiro, em 30/08/2007.