Quatro escritores russos, em tempo de Páscoa

domingo, 31 de março de 2024

 Por se tratar de um texto muito, muito interessante e que com oportunidade (Páscoa) explica-nos o seu autor como quatro grandes escritores russos dos séculos XIX e XX, trataram a passagem de Cristo pela Terra e de como entenderam o mistério da paixão, da morte e da ressurreição do Homem, em pleno comunismo. Com a devida vénia ao autor e ao Jornal Observador, tomámos a liberdade de aqui o publicar.


Por: Jaime Nogueira Pinto

Mais que os filósofos e os teólogos, os grandes escritores, os grandes ficcionistas russos interpretaram e contaram o mistério de Cristo e da Paixão de Cristo.

30 mar. 2024.

Em A Ideia Russa, o historiador Nicolai Berdyaev defende que as figuras do pensamento religioso russo e da busca religiosa no século XIX não foram filósofos, mas romancistas, como Dostoievski e Leo Tolstoi.

Para o autor de As raízes e o sentido do comunismo russo e de outras obras fundamentais para o entendimento da Rússia e do comunismo, a ficção de Dostoievski é comparável, em novidade e alcance, à obra de Nietzsche ou de Kierkegaard, já que é, fundamentalmente, ao escritor de Crime e Castigo que se deve toda uma “nova antropologia”, que encara o homem como “uma criatura contraditória, trágica, altamente infeliz; e não apenas sofredora, mas amante do sofrimento”.

Condenado pelo Grande Inquisidor de Dostoievski

Mas se o sofrimento e a redenção pelo sofrimento estão presentes em toda a obra de Dostoievski, estão-no especialmente no “Grande Inquisidor”, uma parábola contada por Ivan a Aliócha nos Irmãos Karamazov. Na parábola, Cristo, o Cristo evangélico, reaparece em Sevilha, no século XVI; anda nas ruas, o povo reconhece-o, faz milagres, cura doentes, ressuscita uma menina. Entretanto – estamos na Espanha da época áurea da Inquisição – chega o Grande Inquisidor, manda prender Cristo e interroga-o. O Grande Inquisidor encara a liberdade do Homem, a que lhe permite pecar e perder-se, como um risco desnecessário, e considera Cristo um perigo para a humanidade, porque entrega a Liberdade aos homens, incapazes de a usarem com discernimento. E assim o Inquisidor volta a condenar Cristo. Para ele só pelos caminhos do Mal, do Demónio, se pode chegar à unidade dos homens: é preciso dar-lhes pão, satisfazer-lhes as necessidades básicas e, porque é “fraca, pecaminosa e ignóbil” a raça a que pertencem, controlar-lhes a consciência e a livre expressão. Jesus cala-se perante o discurso do Inquisidor. A história é ambígua; o Inquisidor parece um pessimista antropológico, que enuncia as grandes forças que movem a Terra e os homens – que não são a Liberdade, o livre arbítrio, a Verdade, a Justiça, o Amor, mas o milagre, o mistério e a autoridade. Cristo não lhe responde, permanece calado durante todo o interrogatório.

Tosltoi: “Istina”, e não “Pravda”

Leo Tolstoi não vai tão fundo como Dostoievski na ética cristã, mas é, para Nobokov, o maior dos escritores russos, um “pregador” laico que influenciou com as suas histórias largos círculos da Intelligentsia e da sociedade. Tolstoi lutava pelo aperfeiçoamento da escrita e da ficção, mas era também um moralista com uma ética de Sermão da Montanha, incutindo o complexo de culpa nas classes altas. Como insistia Nabokov, o autor de Guerra e Paz mantinha, na sua alma e na sua pena, um diálogo ou um combate entre a ética e a estética, entre o pregador e o artista, sempre à procura da Verdade absoluta, da Istina, que não significa o mesmo que Pravda, que é apenas a verdade relativa.

 

Parte inferior do formulário

Istina é, para Nabokov, a verdade essencial, a verdade filosófica, a Verdade com maiúscula. Pravda é a verdade correcta, a que não é mentira, uma verdade de acordo com as regras, com o direito. Foi também entre 1918 e 1991 o nome do órgão oficial do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética. Verdade mais que relativa, diríamos.

Bulgakov: O Mal absoluto visita o mal relativo

Esta procura da Verdade continuou a marcar os escritores russos que, no século XX, presenciaram a passagem da autocracia czarista (limitada a partir de 1905) ao socialismo totalitário, depois da revolução bolchevique de 1917. Um deles – e para mim um dos mais extraordinários, pela obra e pela vida – é Bulgakov.

Nascido em Kiev em 1891, Mikhail Bulgakov, licenciou-se em medicina na Escola Médica de Kiev, em 1916, e voluntariou-se como médico militar no Exército Branco, durante a guerra civil. Depois da guerra, em vez de emigrar como muitos dos vencidos, foi para Moscovo, onde iniciou uma carreira literária, publicando várias obras.

Mas é claro que, dado o seu passado e a sua crítica implícita ao regime, foi denunciado e marginalizado pela Associação Russa dos Escritores Proletários, que tutelava, censurava e congelava escritos e escritores. Na desgraça teve alguma sorte, não acabando numa cela da Lubianka ou num campo de trabalhos forçados. A sorte foi que, o seu livro A Guarda Branca, teve uma versão teatral como Os Dias dos Turbin, exibida no Teatro de Arte de Moscovo; Estaline gostou da peça e foi vê-la quinze vezes. E quando Bulgakov, sem trabalho, com os livros sem publicação, quis, em 1930, emigrar, o Czar Vermelho telefonou-lhe e convenceu-o a ficar na Rússia, dizendo-lhe que longe da pátria os escritores russos secavam, e arranjando-lhe um lugar modesto como consultor do Teatro de Arte, de onde Bulgakov tinha sido afastado por Stanislavsky. Mas a perseguição burocrática continuou e Bulgakov, que em 1932 se casou pela terceira vez, com Elena Shilovskaya, não viu mais as suas obras publicadas. Nestas obras não publicadas estava O Mestre e Margarida, que começara a escrever em 1928.

É um romance iniciático, fascinante, às vezes caótico, mas que além da história da paixão do Mestre por Margarida, narra a visita a Moscovo, à Moscovo comunista do pós-leninismo dos anos vinte, de Woland, uma personagem que encarna o Mal, talvez o próprio Demónio.

Aqui não posso deixar de me lembrar do professor Jorge Borges de Macedo, numa conversa sobre Bulgakov e O Mestre e Margarida: “O Demónio, o Mal absoluto, visita Moscovo comunista, o mal relativo. E os do mal relativo, os comunistas, não acreditam no Mal absoluto… Woland mata alguns de forma mágica, transcendente e comprometida, logo impossível para estes pequenos adeptos do materialismo científico”, dizia ele.

Assim, no início do romance, Mikhail Berlioz, um importante editor do regime, afirma categoricamente a verdade comunista: “o principal não é se Jesus era bom ou mau, mas que esse mesmo Jesus, como pessoa, nunca existiu no mundo e todas as histórias sobre ele eram mera ficção […] os cristãos criaram um Jesus, que, de facto, nunca existiu”.

Aí aparece o mágico, o professor Woland, o próprio Satã, que vai dizendo, sussurrando, também categoricamente ao editor comunista:

“Jesus existiu… não são precisos muitos pontos de vista. Ele existiu, é tudo…”

Jesus Cristo entra no romance, numa narrativa imaginada do seu julgamento por Pôncio Pilatos, a lembrar a visão do Jesus silencioso do Grande Inquisidor de Dostoievski. Mas o Jesus de Bulgakov fala, responde. É um homem simples, bom, mas ingénuo. Um optimista antropológico que acha que todos os homens são bons. Pilatos começa por acusá-lo de querer instigar o povo a destruir o Templo, mas Jesus responde: “Nunca, Hegemon…” E diz a Pilatos que o que disse era que o templo da velha fé cairia e que um novo Templo da Verdade seria construído. O Jesus de O Mestre e Margarida é humilde, simples, aparentemente longe do Filho de Deus, ou do que os homens imaginavam que podia ser o Filho de Deus. Bulgakov afasta-se em muitos pormenores da narrativa evangélica, embora haja um seguidor de Jesus, Mateus Levi, que o acompanha e toma notas e que, num diálogo com Woland, parece confirmar que ele é Ele ou que ele é também Deus. Bulgakov deixa de parte muita da narrativa evangélica para guardar o essencial. No fim, por uma série de convergências, típicas da intencionalidade caótica e consequente de Bulgakov, pode concluir-se que há um Deus; que Jesus viveu e morreu e que em sentido espiritual ainda vive e está activo no mundo; que não há pessoas essencialmente más e que todas as pessoas são boas; que os homens chegarão, eventualmente, ao Reino da Verdade e da Justiça, onde não haverá lugar para a autoridade opressora; e que apesar dos erros e pecados na vida, é sempre possível esperar a Redenção.

E neste romance exótico e admirável, a mensagem mais poderosa dada a partir de um o retrato informal e original de Cristo, é o Jesus da Paixão e da Redenção, um Jesus que acaba por perdoar e receber no seu Reino o Pôncio Pilatos que o condenou por medo.

O livro da vida de Pasternak

O último destes quatro escritores é Boris Pasternak, prémio Nobel da Literatura em 1958. Pasternak nasceu em Moscovo em 1890 numa família abastada de judeus russos, que se reclamavam descendentes do judeu português Isaac Abarbanel. Quando da revolução bolchevique na Rússia, melhor, quando da revolução democrática contra a monarquia, causada pelos desastres da Guerra, Pasternak escreveu um poema, “A revolução russa”, em que associava a revolução de Fevereiro de 1917 a um triunfo dos ideais cristãos de igualdade e fraternidade: “E o socialismo de Cristo soprou livre e fundo”.

Esta associação do cristianismo e do cristianismo dos primeiros cristãos ao marxismo, fazendo de Cristo um herói do Proletariado, tinha os seus pergaminhos em alguns autores comunistas, como Rosa Luxemburgo e Karl Kautsky. Embora o materialismo dialéctico faça parte da ortodoxia comunista, embora Marx seja claro quando nega a existência de um “mundo invisível”, não apreensível pelos cinco sentidos, e Lenine insista na ilusão criada pela religião, cúmplice dos poderes políticos estabelecidos, embora a realização do “reino fraterno e igualitário do socialismo” na terra se fizesse pela violência e pelo terror, havia uma aproximação evidente entre o marxismo e cristianismo, até porque a fraternidade, mesmo desvirtuada, pressupõe um Pai comum e a igualdade, mesmo imposta, é dificilmente justificável sem a revelação cristã. E as interpretações de alguns textos evangélicos, como o Sermão da Montanha, podiam der origem a alguma ambiguidade entre a fraternidade igualitária do cristianismo e a fraternidade da utopia marxista. Anatoli Lunatcharski, que em Outubro de 1917 foi nomeado pelo governo bolchevique como responsável pelo Comissariado do Povo para a Educação, chamou à revolução bolchevique a “nova páscoa revolucionária”. Talvez porque a maioria dos russos, sobretudo das classes populares, era religiosa, fiel à Igreja Ortodoxa.

De qualquer forma, o poema de Pasternak, que começa, na primeira parte, com “o sopro livre e fundo do socialismo de Cristo” na Revolução de Fevereiro, contrai-se abrupta e violentamente em Outubro, na segunda parte, com a trágica e mortífera chegada dos bolcheviques ao poder.

A Pasternak aconteceu o que aconteceu a Bulgakov. Nos anos 30, tornou-se suspeito aos olhos do regime e foi marginalizado; mas Estaline que, por alguma razão, gostava dos seus poemas, decidiu poupá-lo, protegendo-o dos seus esbirros.

Quando, na destalinização, Pasternak concluiu o Doutor Jivago, em 1956, o romance, por sair dos cânones soviéticos, não foi publicado na URSS e acabou por ser publicado em Itália, depois de uma intrincada odisseia. Ao tempo dizia-se que a CIA publicara simultaneamente uma edição pirata em russo.

O livro, em parte autobiográfico, está impregnado pelo cristianismo da velha Rússia e de todas as idades dos Homens, sobrevivente e resistente na ditadura do materialismo científico.

A última parte do Doutor Jivago são os poemas do protagonista, Yuri Jivago. E o último destes poemas, o final, “quando é chegado o livro da vida à página mais sagrada que contém”, chama-se, significativamente, “O Jardim de Getsémani”, ou, na tradução de David Mourão Ferreira, “O Horto de Getsémani”: a agonia de Cristo que precede a prisão e o calvário.

Ao contrário de Bulgakov, que usa criativamente os Evangelhos, Pasternak é mais ortodoxo, sobretudo aqui, no fim, na morte – na de Yuri Jivago, na sua, na nossa, na morte de Cristo. E é o próprio Cristo que fala, em fim de livro, na hora de maior sofrimento, na hora da Sua entrega ou da Sua “descida ao túmulo em tormento voluntário”, para se erguer ao terceiro dia e nos resgatar.

Santa Páscoa da Ressurreição!

In: Observador, 30/03/2024

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 



 

 

Teorema da boa governação

quinta-feira, 28 de março de 2024

 


Por Adriano Miranda Lima[i]

Entrevistado no programa “Tudo é Economia” da RTP3, no passado dia 20 de Março, o Professor Jorge Braga de Macedo afirmou que Portugal só consegue crescer e progredir com “boa governação”. O senhor de La Palice não diria de modo diferente. Como se trata de um ilustre académico e antigo ministro das Finanças, a minha expectativa foi ouvir-lhe explicar e demonstrar com que linhas seguras se rege uma “boa governação”. Não aconteceu nada disso. A expectativa era legítima porque os anos passam e não descobrimos a bala de prata para a “boa governação”. Mas logo depreendi que o Professor Braga de Macedo, estaria, subliminarmente, e tão-somente, a apontar os governos de Cavaco Silva, de que ele fez parte, como o paradigma da boa governação.

Ora, o Professor Braga de Macedo foi, efectivamente, ministro das Finanças no XII Governo Constitucional, de Cavaco Silva, no período de 1991 a 1993, tendo deixado o cargo ainda antes do meio da legislatura depois de uma inspecção do Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFADAP) detectar infracções na obtenção de subsídios da União Europeia a favor de familiares seus. Não por acaso, por alturas do ano de 1995, tive conhecimento, através do director do Centro de Emprego e Formação Profissional de Tomar, de que uma das medidas imediatas do XIII Governo Constitucional, de António Guterres, que tinha acabado de suceder a Cavaco Silva, foi ordenar um rigoroso escrutínio à atribuição dos Fundos Estruturais, dado o autêntico regabofe que rodeou o respectivo processo nos governos precedentes.

Juntando as pontas para a extrapolação que vai seguir-se, revisitei um youtube de 2009 em que a procuradora Maria José Morgado, num programa televisivo, dava conta de um número considerável de processos-crime sobre fraudes na atribuição dos Fundos Estruturais ocorridas no passado e que, incompreensivelmente, acabaram arquivados por prescrição em mais de 90% dos casos. Porém, já não escapou ao crivo da justiça o caso do Banco Português de Negócios, instituição bancária que nasceu graças às facilidades e vantagens permitidas a amigos e discípulos de Cavaco Silva e que perpetrou a maior das fraudes do século XXI. Não é crível que estes casos possam ser desvalorizados na avaliação objectiva de uma governação.

Mas o conceito de boa governação dificilmente reunirá consenso em contextos plurais. Diverge de Braga Macedo o economista João Rodrigues, que, no seu livro “O neoliberalismo não é um slogan”, desmonta o mito do bom governante reformista e explica que o projeto político de Cavaco Silva, por aquilo que estruturalmente o definiu, marcaria o início do ciclo de fraco crescimento da nossa economia e a sua divergência futura com as do centro da Europa. Entre outras opções estratégicas criticáveis, releva-se o exagerado investimento público em auto-estradas, em detrimento das ferrovias, o que só por si abriria a porta ao agravamento dos nossos desequilíbrios externos. De resto, basta comparar Portugal com a Irlanda e a Finlândia, países que tinham condições semelhantes quando aderiram à União Europeia. Enquanto Portugal investiu maciçamente no betão, os seus parceiros apostaram na formação qualitativa da força de trabalho, na investigação científica, nas mais modernas tecnologias e no incentivo ao investimento estrangeiro. Podem ter hoje uma rede viária bem inferior à nossa, mas estão entre os 10 países mais competitivos do mundo. Alguém afirmou que, na melhor das hipóteses, Cavaco Silva foi um keynesiano de conveniência, um título que pode ser atribuído a Viktor Orbán, a Donald Tusk e a dezenas de outros líderes que governaram em períodos de forte absorção de fundos comunitários.

Voltando à intervenção do Professor Braga de Macedo no citado programa, surpreendeu-me que ele ao menos não tivesse reconhecido os bons resultados macro-económicos da última governação. Além de considerar mau o governo cessante, fez questão de observar que contas certas nada significam porque “todas as contas têm de bater certas”. Tomei este reparo como um subterfúgio retórico para evitar comungar com os analistas nacionais e estrangeiros que são unânimes em atestar que o governo de António Costa deixou o seguinte legado: condições económicas e financeiras favoráveis, com a economia a crescer, o emprego e salários a subir, uma folga orçamental substancial, receitas públicas a aumentar, peso da dívida pública a baixar, inflação controlada. Mas nem todos pensam assim, sobretudo jornalistas e políticos ideologicamente adversos. Mesmo os que sabem que o próximo executivo vai herdar condições sem precedentes neste século para cumprir o seu mandato, não hesitam em avaliar negativamente a governação que as propiciou. Só um confronto dialéctico poderia ajudar a desmontar esta flagrante contradição, embora se aceite que o governo em causa não tenha sido lesto no capítulo das reformas públicas, mesmo que nem sequer tenha chegado ao meio do ciclo legislativo. No fundo, é mais uma evidência de que o conceito de governação é, pela sua natureza, eivado de um subjectivismo renitente. Um subjectivismo que decorre essencialmente do enquadramento político-ideológico, pouco atreito a dirimir antagonismos, mas que tem também a ver com o relativismo de valores como ética, rigor, verdade, responsabilidade, coerência e compromisso, que estão nos antípodas da demagogia, da manipulação, da mentira e da corrupção.

Assim se vê que não é fácil eleger uma definição de boa governação que agrade a todos os sectores de opinião, uma vez que lhe está subjacente uma opção claramente política e depende de realidades endógenas como a cultura, a idiossincrasia e a história dos povos. Contudo, é indiscutível que um bom governo muito beneficia com a capacidade de liderança dos seus membros, com a sua experiência política e profissional e os seus atributos técnicos. Não deixa de pesar igualmente o grau de consciência cívica e de coesão social das populações, além de uma correcta articulação institucional entre os órgãos de soberania. De não menor importância será uma comunicação social que saiba interpretar convenientemente o seu papel no Estado de direito democrático.

Em suma, a eficácia da acção governativa dificilmente poderá consagrar-se como um fenómeno distinto das diversas pulsões do colectivo nacional. A não ser nos estados autocráticos.

Nota:



[i] Escreve de acordo com a ortografia anterior ao AO 90.

 

sábado, 23 de março de 2024

 

 

A Sociedade Portuguesa de Autores, assinalou o Dia Mundial da Poesia, comemorada no dia, 21 de Março. A SPA, distinguiu-o através de uma Mensagem com palavras da autoria do ilustre escritor açoriano, João Melo, que foram transcritas pela Agência Lusa.

Com a devida vénia aos autores da homenagem, aqui a transcrevemos para o leitor do Coral-Vermelho.

 

 

A Poesia "está no ar, nos olhos, na palavra dita e por dizer", lê-se na mensagem da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) a propósito do Dia Mundial da Poesia.

"A Poesia não carece em absoluto de forma escrita: está no ar, nos olhos, na palavra dita e por dizer, na sensação e no sentimento do que amamos ou combatemos", lê-se na mensagem de autoria do escritor João de Melo.

Melo realça as diferentes facetas do poema, que é “escuridão e luz perpétua da claridade”

O autor afirma que "o poema é ao mesmo tempo dor e canção, desamparo e amor, solidão e solidariedade, desespero e esperança, escuridão e luz perpétua da nossa claridade".

"A Poesia é uma forma de linguagem para a beleza; uma imaginação verbal no seu estado mais puro. Apetece-me fazer-lhe o elogio como se ela fosse algo que estivesse ao mesmo tempo no centro (na essência) e muito para além de toda a Literatura", lê-se na mesma mensagem.

No texto, João de Melo sublinha a forte ligação da Poesia à Música.

"O que mais eu amo no poema é a sua proximidade ao sentimento e à música", assim abre a sua mensagem João de Melo, afirmando que "alguém inventou o poema para ser cantado".

"Criou-o como forma superior de pranto e oração aos deuses da Música, do Silêncio, do Sonho e da grande Melancolia que atravessa todos os séculos do Homem".

"Mas o que existe de tão luminoso na escrita dos poetas? E que pode haver de poético na linguagem dos prosadores? O poema pertence ao género masculino ou feminino?" questões colocadas por João de Melo, esclarecendo desde logo, que não veio para as responder.

Todavia, considera o autor "que há qualquer coisa de múltiplo na ideia de cada um acerca da Poesia".

"O elogio que dela se possa fazer não deve ser genérico nem abstracto. Cada um de nós traz em si, consigo, uma reserva desconhecida de Poesia. O nosso destino é também o dos poetas. Porque ela, Poesia, é um trabalho da sensibilidade e do ouvido - do ouvido que reconhece a música, mas também do outro: aquele que ouve e escuta o mundo, que ouve o silêncio e a voz dos humildes, dos humildes universais que devíamos ser todos nós".

Para Melo, a Poesia "é sobretudo uma voz no interior da linguagem, algo como um suspiro ou um grito sem voz, e tanto pode morar à esquina de um soneto ou de uma oitava, como em cima de um muro erguido pelas palavras, isto é, pela prosódia de uma prosa".

"Tal como o poeta, também o poema tem causas a suscitar ou a defender: do amor à amizade, da vida à morte, do júbilo à dor, da indignação à revolta, da rua e da casa do poeta à morada universal da humanidade inteira. Ele está na rua, connosco se deita e se levanta: caminha, trabalha e regressa a casa", afirma Melo que na sua mensagem cita poemas de Natália Correia, João Ruiz de Castelo-Branco, Luís de Camões, Herberto Hélder, Ruy Belo e um dos heterónimos de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro.

Pior que tudo, remata João de Melo, "será um homem despedir-se da sua memória da Poesia".

Adoptado pela Organização das Nações Unidas para a Cultura, Educação e Ciência (UNESCO, na sigla em inglês) em 1999, o Dia Mundial da Poesia pretende "homenagear poetas, reviver tradições orais de recitais de poesia, promover a leitura, escrita e ensino de poesia, e fomentar a convergência entre a poesia e outras artes".

DIA MUNDIAL DA POESIA

 

SOCIEDADE PORTUGUESA DE AUTORES (SPA)

 

Agência Lusa21 mar 2024 15:22

 

sexta-feira, 22 de março de 2024

 

Equívocos para continuar a controlar o passado e o futuro[i]

Por Humberto Cardoso

O governo apresentou na segunda-feira, dia 18 de Março, o programa de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e da libertação dos presos do Campo do Tarrafal. Não se conhece se o acto foi precedido da publicação de uma resolução do governo. Sabe-se, porém, por uma nota da presidência da república de 23 de Fevereiro último que o PR decidiu promover pelos 50 anos do 10 de Maio de 1974 um quadro de celebrações de Estado para "honrar o sacrifício dos que foram prisioneiros no Tarrafal". Já meses atrás, em Janeiro, a Fundação Amílcar Cabral tinha integrado no seu programa para 2024 do centenário do seu patrono "comemorações conjuntas do 25 de Abril e da libertação dos presos políticos" e Pedro Pires tinha considerado "fundamental a intervenção do Estado de Cabo Verde e importante a intervenção da Presidência da República" nas celebrações. É precisamente o que está a acontecer.

O problema é que o processo decisório no Estado democrático parece estar invertido. Uma entidade privada lidera e o governo condescende. O parlamento não aprova comemorações oficiais, mas o governo contorna a posição da sua maioria parlamentar. O presidente da república vai numa outra direcção querendo elaborar um substancial programa comemorativo "em articulação com outros órgãos de soberania, câmara municipal do Tarrafal e outros parceiros". Pode-se até ficar com a impressão que se voltou aos tempos do velho PAIGC/CV força, luz e guia da sociedade e do Estado.

E não é para menos se se considerar que finalmente já foi autorizada a celebracão oficial do 25 de Abril em Cabo Verde. Até agora a data foi praticamente ignorada porque conflituava com a ideia expressa por Pedro Pires recentemente à Voz da América que a independência do arquipélago foi feita pelo PAIGC e pelos seus militantes e não por qualquer outro interveniente. 0 25 de Abril não seria um movimento autónomo, mas sim produto da derrota infligida na Guiné e, como tal, de importância secundária. Muda-se de ideia porque, depois da visita do presidente do parlamento português Santos Silva à Fundação Amílcar Cabral e da sua declaração que a luta pela liberdade era a mesma daqueles que lutaram contra a ditadura e daqueles que lutaram contra o colonialismo, há acordo para associar as datas do 25 de Abril e do centenário de Cabral.

Ou seja, como diria George Orwell, continua-se a querer controlar o passado para poder controlar o presente e o futuro. Nesse sentido, é preciso perpetuar os equívocos. O 25 de Abril de 1974 é referenciado pelos cientistas políticos como o início da Terceira Vaga da democracia e, de facto, em Cabo Verde com a Revolução dos Cravos veio a libertação dos presos políticos no 10 de Maio, a liberdade de expressão e de imprensa, a liberdade de reunião e de manifestação e a liberdade de criação de partidos políticos. O equívoco está em celebrar o Grande Dia dizendo que a luta era a mesma de todos pela liberdade, quando realmente as liberdades de Abril praticamente desapareceram em Cabo Verde, em Dezembro de 1974, e com a independência nacional se instalou uma outra ditadura. Um outro equívoco com a celebração da libertação dos presos da ditadura no campo do Tarrafal no dia 10 de Maio é de se fazer de esquecido que afinal o estabelecimento prisional foi mais uma vez reaberto, em Dezembro de 1974, para receber presos políticos cabo-verdianos entre eles militantes dos partidos considerados adversários/inimigos do PAIGC. Já não o número de 20 cabo-verdianos presos pelo regime salazarista, mas sim, segundo José Pedro Castanheira, 70. Na verdade o slogan "Tarrafal Nunca Mais" se em Portugal não mais se traduziu em polícia política e em presos políticos, já em Cabo Verde, por mais 15 anos, dezenas de pessoas em várias ocasiões (1977, 1979, 1980, 1981 e 1987) foram presas, sofreram sevícias, torturas e mortes em outros "tarrafais" nas instalações militares. Até agora, apesar de o parlamento, em junho de 2019, lhes ter reconhecido o agravo e estipulado pensão financeira pelos maus tratos e torturas, não há ainda de facto reconhecimento pleno do Estado de Cabo Verde, dos partidos políticos e da sociedade pelo atropelo grave aos seus direitos e à sua dignidade. Não faz sentido celebrar a libertação dos presos políticos da ditadura salazarista sem que haja pedido de desculpa pública do Estado por todas as atrocidades do regime de partido único.

Cabo Verde teve que esperar 15 anos para voltar a exercer as liberdades que depois do 25 de Abril por escassos meses, entre Maio e Dezembro de 1974, pôde desfrutar. Só em 1992 iria dotar-se de uma Constituição que consagraria a democracia liberal, garantindo a liberdade e a plena cidadania a todos os cabo-verdianos. Não se pode, pois, dizer retrospectivamente que a luta contra a ditadura salazarista era a mesma luta que os autoproclamados libertadores desencadearam nas colónias. Como se veio a constatar rapidamente, na sequência do 25 de Abril e do desmoronamento do império colonial, o objectivo de todos era substituir uma ditadura por outra. O projecto de poder do partido ou movimento era indissociável ou até podia sobrepor-se ao projecto de libertação. Para isso recorria-se a todos os meios inimagináveis para eliminar eventuais adversários ou rivais. Daí os presos políticos, as torturas, os fuzilamentos e as guerras civis que duraram décadas.

Insistir no equívoco só ajuda a perpetuar as narrativas que os chamados libertadores ainda se servem para controlar o passado e com esse poder controlar o presente e o futuro. Se alguma dúvida houvesse dos enormes estragos provocados, a situação real de corrupção, de pobreza e de desesperança que leva muitos a procurar emigrar para a Europa é bastante elucidativa. Como alguém disse já é tempo da África se libertar dos seus libertadores. Seria uma boa ajuda nesse sentido se certos sectores da vida pública e académica portuguesa não procurassem acomodar as vaidades e as narrativas de quem durante décadas não trouxe liberdade e não promoveu prosperidade aos seus povos e países. Muito menos que lhes emprestassem com honrarias renovada credibilidade e até suporte científico para os seus desvarios revolucionários.



[i] Editorial do semanário “Expresso das Ilhas” de 20.03.2024

terça-feira, 19 de março de 2024

 

 

Comemora-se hoje, 19 de Março, o Dia do Pai. Daí o pretexto e o contexto do texto que se segue – com a devida vénia ao autor - do Prof. Marco Neves, dedicado ao pai e em que o autor nos explica as origens e as diferentes formas de se nomear “pai” ao redor do mundo. Muito interessante Sugiro ao leitor que atente nos diversos vocábulos que representam esta entidade tão importante para a família: o pai.

A todos os pais presentes na vida dos filhos, a minha homenagem.  

 

Volta ao mundo a bordo da palavra «pai»

Hoje ofereço uma viagem ao meu pai. Seria óptimo oferecer-lhe uma viagem mesmo a sério, mas como não é possível, partimos pelo mundo fora a bordo da palavra «pai».

MARCO NEVES

MAR 19


 

 

 

 

Do passado do português ao persa

Começamos, claro, no nosso «pai». A sua origem é conhecida — com muitas paragens pelo caminho, terá vindo do «pater» latino. Ora este também veio de outros tempos — os linguistas conseguiram mesmo reconstruir a forma «*phtḗr». Mas essa história já a contei aqui.

Avancemos pelo mar. Saímos de Lisboa, navegamos até ao Estreito de Gibraltar, entramos no Mediterrâneo.

À nossa esquerda, estendem-se terras onde «pai» é «padre» — ou também, começando ali na zona de Guardamar del Segura, «pare».

Do lado direito estão as costas de países onde a língua oficial é, entre outras, o árabe. Uma das formas da palavra «pai» é, em árabe, «ʾab» — mas também podemos dizer «bābā».

O nosso barco avança veloz — aportamos a Malta. Já por lá andámos noutras viagens desta página e sabemos, por isso, que o maltês é uma língua da família do árabe. No entanto, muito do vocabulário tem origem italiana. Neste caso, «pai» é «missier». Como? Então nada de «papa», «baba» ou outros que tais? Donde vem esta palavra? Não parece nem árabe nem latina. Vem de «misseri», uma palavra do siciliano antigo relacionada com o italiano «messere», que terá vindo do occitano «meser», palavra irmã do «monsieur» francês… Ou seja, o «missier» maltês é primo do «monsieur» francês — mas o significado é «pai»!

O nosso barco está com vontade de viajar. O meu pai e eu sentimos o sal na cara e olhamos em frente. Já se vê a Grécia! Em grego antigo, «pai» era um familiar «patḗr» («πατήρ»). Hoje em dia, a palavra é «patéras» («πατέρας»).

Passando pelas ilhas gregas como que pelos pingos da chuva, aportamos na Turquia — onde «pai» é «baba».

A viagem pela Anatólia é feita por terra. Teria muito que contar, claro, mas dar uma volta ao mundo em poucos minutos exige que avancemos. Passamos, sem grande dificuldade, a fronteira entre a Turquia e o Irão e ficamos a saber que, por lá, a palavra pode ser «bâbâ» — o que lembra o turco, é certo — mas é, antes de mais, «pedar». Ao contrário do turco, o persa é uma língua indo-europeia — este «pedar» está próximo do latino «pater», do grego «patḗr» ou do germânico «*fadēr» (os germânicos substituíram o «p» pelo «f» em muitíssimas palavras).

Do persa ao futuro do português

O meu pai e eu estamos a conversar sobre estas velhas palavras num café de Bandar-Abbas, que os comerciantes portugueses também conheciam como Cambarão. Estamos encostados ao Estreito de Ormuz. Fazemo-nos ao mar. Já não temos muito tempo…

Atravessamos todo o Oceano Índico e aportamos na Indonésia. Neste arquipélago, encontramos muitas línguas. A língua oficial é o indonésio, estreitamente relacionado com o malaio (o indonésio e o malaio são, no fundo, duas normas da mesma língua). Por aqui, «pai» é «bapa». O curioso é perceber a forma do plural: «bapa-bapa». Parece lógico, não parece?

Avançamos — que ainda nos falta mais de meio mundo e o artigo tem de acabar! Atravessamos o Pacífico até ao Havai, onde encontramos — para lá do mais conhecido «father» — a forma «makua kāne», que tanto dá para «pai» como para «tio»… Se dermos mais um salto e chegarmos ao continente americano sem sair dos EUA (a viagem faz-se agora de avião), ficamos a saber que em navajo a palavra pai é «azhéʼé».

Esta palavra faz parte da frase «shizhéʼé tʼáá ákwíí jį́ naalnish», que significa «o meu pai trabalha todos os dias» (encontrei-a no Wikcionário). É uma frase bem verdadeira, pelo menos no que toca ao meu pai — mas tem um problema: onde está a palavra «azhéʼé»? «Naalnish» é o verbo «trabalhar». «Tʼáá ákwíí jį́» significa «todos os dias». Sobra «shizhéʼé» — que é, de facto, a forma do possessivo da primeira pessoa singular de «azhéʼé». Ou seja, «shizhéʼé» é «o meu pai». É estranho, não é? Uma palavra que se flexiona no início? Ora, basta imaginar o português daqui a uns 2000 anos, depois de muita pancada fonética. Nessa língua do futuro, tão distante de nós como o latim, não é impossível que as formas da palavra «pai» sejam algo como «mpai», «tepai», «sepai» («o meu pai», «o teu pai», «o seu pai»). Sabe-se lá!…

A volta ao mundo ainda não acabou. Saímos do porto de Nova Orleães e aportamos em Curaçau, onde descobrimos que «pai» é «tata» em papiamento (a língua de que falámos por aqui há uns tempos).

Por fim, o nosso barco chega a Lisboa vindo de ocidente, depois de atravessar o velho oceano. É então que ouvimos de novo a palavra que nos fez partir nesta volta ao mundo: «pai».

Feliz Dia do Pai a todos os pais — mas (espero que compreendam) em especial ao meu pai…

 

 Marco Neves

19/03/2024

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