Corsino Fortes deixou-nos. Sentiremos a sua
ausência. Claro que os poemas dele estão e ficarão connosco!
Morreu na sua cidade, a cidade que muito
amou, Mindelo.
E a propósito do amor pela bela urbe
portuária, eis como o poeta descreve, sugere, sente e sonha «Mindelo» desde os verdes
anos da sua juventude. O poema foi publicado no «Boletim dos Alunos do Liceu de Gil Eanes»
em 1959:
Mindelo
Entre a escuridão
E o silêncio da noite...
Amachucado
Entre a morna e o vilão
Sonho... Mindelo
De mãos apoiadas
Sobre o eco da tua pulsação.
Mindelo
De poetas e músicos
De aves sem asas
Voando
Em busca de alvo
Na neblina da noite.
Orvalho de lágrima
Gota de saudade
Alegria escurecida
Pelo negrume da vida.
Mindelo
Tuas pedras são sonhos
Tuas brisas ilusões
Tuas ruas são rios
Por onde deslizam lágrimas
Envoltas em sorrisos.
Mindelo
Ò doce Mindelo morno
De Lua Nascente e Poente
De noite debruçado
Na morna dolente
De poesia encostada
Na esquina da noite.
Mindelo de Luzes
De Pétalas e Prantos
Ò quimera perdida
Ò berço adormecido
embalado
Dentro de mim!
Creio que se tratou de uma fase em que C.
Fortes impregnava a sua poesia de uma lírica explicitada e a casava subtilmente
com a poesia de intervenção já nascente e em fase de elaboração na sua escrita
poética.
Data de mesma altura, o poema «Vendeta»:
Vendeta
Um verso escapa
Descaradamente
Do poema que escrevo.
Um rumor longínquo
Segreda-me
Que ele espezinha
Os companheiros
Da minha caravana.
De repente
Ele projecta-se
No «écran» do meu espanto
Com garras e lábios
Manchados de sangue.
Nos seus olhos há imagens feridas.
E numa voz cortante
Blasfema
Sou a dor
O sangue
A vítima
Dos teus crimes impunes!
Vingo-te à minha maneira.
Renego-te
Renegado!...
Numa
linha de continuidade de estilo, de construir, de enformar e de manejar o
verso, C. Fortes regista neste poema, publicado na revista «Claridade», em
1960, uma certa crispação exaltante que
inicia a libertação do sujeito poético do tempo presente e o vira para um devir
que se anuncia sob forma de negação e de vingança desse mesmo presente de “crimes
impunes.”
Haveria
um mudança? Um outro tipo de poemas? Ao referir-se ao tal “verso que se solta e escapa...que espezinha os companheiros (dos
poemas anteriores) da minha caravana” teria
o poeta fechado um pequeno ciclo com «Vendeta» e dado origem a outro, com os versos
que mais tarde foram coligidos na sua obra mais notável «Pão e Fonema»? Possivelmente, isso terá
acontecido. E uma espécie de cume poético foi atingido em «A Calva de Deus», a última colectânea de poemas de Corsino Fortes.
Para
além do poeta, queria aqui recordar também e distinguir, ainda que de forma
brevíssima, a pessoa, o «gentleman», o confrade gentil, o amigo terno e atencioso
que Corsino Fortes foi. Recordá-lo-ei sempre munido da palavra bela, poética e
meditada, com que ele falava e se dirigia às coisas da vida, das mais simples
às mais complexas.
Embora
mais devesse expressar, fica este meu registo modesto, no adeus ao Poeta.
E
como se usa dizer-se nestas ocasiões: que a terra lhe seja leve!