Adeus ao poeta...

terça-feira, 28 de julho de 2015

 

Corsino Fortes deixou-nos. Sentiremos a sua ausência. Claro que os poemas dele estão e ficarão connosco!

Morreu na sua cidade, a cidade que muito amou, Mindelo.

E a propósito do amor pela bela urbe portuária, eis como o poeta descreve, sugere, sente e sonha «Mindelo» desde os verdes anos da sua juventude. O poema foi publicado  no «Boletim dos Alunos do Liceu de Gil Eanes» em 1959:

Mindelo

Entre a escuridão

E o silêncio da noite...

Amachucado

Entre a morna e o vilão

Sonho... Mindelo

De mãos apoiadas

Sobre o eco da tua pulsação.

 

Mindelo

Recanto de sonhadores

De poetas e músicos

De aves sem asas

Voando

Em busca de alvo

Na neblina da noite.

Orvalho de lágrima

Gota de saudade

Alegria escurecida

Pelo negrume da vida.

 

Mindelo

Tuas pedras são sonhos

Tuas brisas ilusões

Tuas ruas são rios

Por onde deslizam lágrimas

Envoltas em sorrisos.

 

Mindelo

Ò doce Mindelo morno

De Lua Nascente e Poente

De noite debruçado

Na morna dolente

De poesia encostada

Na esquina da noite.

 

Mindelo de Luzes

De Pétalas e Prantos

Ò quimera perdida

Ò berço adormecido

embalado

Dentro de mim!

 

Creio que se tratou de uma fase em que C. Fortes impregnava a sua poesia de uma lírica explicitada e a casava subtilmente com a poesia de intervenção já nascente e em fase de elaboração na sua escrita poética.

Data de mesma altura, o poema «Vendeta»:

Vendeta

Um verso escapa

Descaradamente

Do poema que escrevo.

 

Um rumor longínquo

Segreda-me

Que ele espezinha

Os companheiros

Da minha caravana.

 

De repente

Ele projecta-se

No «écran» do meu espanto

Com garras e lábios

Manchados de sangue.

 

Nos seus olhos há imagens feridas.

E numa voz cortante

Blasfema

 

Sou a dor

O sangue

A vítima

Dos teus crimes impunes!

Vingo-te à minha maneira.

 

Renego-te

Renegado!...

 

Numa linha de continuidade de estilo, de construir, de enformar e de manejar o verso, C. Fortes regista neste poema, publicado na revista «Claridade», em 1960, uma certa  crispação exaltante que inicia a libertação do sujeito poético do tempo presente e o vira para um devir que se anuncia sob forma de negação e de vingança desse mesmo presente  de “crimes impunes.”

Haveria um mudança? Um outro tipo de poemas? Ao referir-se ao tal “verso que se solta e escapa...que espezinha os companheiros (dos poemas anteriores) da minha caravana” teria o poeta fechado um pequeno ciclo com «Vendeta» e dado origem a outro, com os versos que mais tarde foram coligidos na sua obra mais notável  «Pão e Fonema»? Possivelmente, isso terá acontecido. E uma espécie de cume poético foi atingido em «A Calva de Deus», a última colectânea de poemas de Corsino Fortes.

Para além do poeta, queria aqui recordar também e distinguir, ainda que de forma brevíssima, a pessoa, o «gentleman», o confrade gentil, o amigo terno e atencioso que Corsino Fortes foi. Recordá-lo-ei sempre munido da palavra bela, poética e meditada, com que ele falava e se dirigia às coisas da vida, das mais simples às mais complexas.

Embora mais devesse expressar, fica este meu registo modesto, no adeus ao Poeta.

E como se usa dizer-se nestas ocasiões: que a terra lhe seja leve!

 

 

 

 

 

 

 

 

 
domingo, 26 de julho de 2015

Em homenagem ao grande poeta Corsino Fortes, recentemente desaparecido do nosso convívio, aqui se publica,  do amigo, também poeta, Júlio Herbert, o poema «Do outro lado do regresso».

 

 

Do outro lado do regresso

Autor: Júlio Herbert

Um justo tributo ao poeta maior, Corsino Fortes

Que acaba de desferir seu “golpe de Estado no paraíso”

 

 

Ainda perderás aquele que te destinei para todas as estações.

Mesmo que persistas na vaidade mórbida, na ilusão inócua e na intriga perversa

Em verdade te digo que, no livro do Tabernáculo, está escrito: o acharás de novo.

Na linha do horizonte, deambulando pelas rochas escarpadas, ele sobreviverá

Ávido e sereno para te servir e para te envolver nos seus braços.

Oh, como estará ele na madrugada dos cânticos celestiais

Rodeado de anjos que dele se abeiram para o receber solenemente

Num dia em que tuas lágrimas impressas de sombrio arrependimento

Sangrando dor incontida na madrugada do devir

Descerão lentamente pela tua face incrédula

Na forma de lastros de velas derretidas

Que se deslizam no silêncio cúmplice de uma voz

Que se cansou e se fez esquecida

Na penumbra do perdão unilateral

Para fazer renascer das arestas do impiedoso sepulcro

O odor do verdadeiro amor

Aquele que se pereniza no tempo

E renasce em cada lembrança da vida terrena

24 de Julho de 2015

 

O LUGAR DA ARTE

sexta-feira, 3 de julho de 2015
Há uns anos,  quase toda a imprensa internacional dava largo destaque ao facto de o violonista Joshua Bell ter sido ignorado quando tocava anonimamente numa estação de metro de Washington. O nosso Jornal de Notícias, por exemplo,  relatava assim:
“Numa experiência inédita, Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas do Mundo, tocou incógnito durante 45 minutos, numa estação de metro de Washington, de manhã, em hora de ponta, despertando pouca ou nenhuma atenção. A provocatória iniciativa foi da responsabilidade do jornal 'Washington Post', que pretendeu lançar um debate sobre arte, beleza e  contextos. Ninguém reparou também que o violinista tocava com um Stradivarius de 1713  ̶  que vale 3,5 milhões de dólares. Três dias antes, Bell tinha tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custam 100 dólares, mas na estação de metro foi ostensivamente ignorado pela maioria. A excepção foram as crianças, que, inevitavelmente, e perante a oposição do pai ou da mãe, queriam parar para escutar Bell, algo que, diz o jornal, indicará que todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós”.

E Joshua Bell desabafaria assim, conforme o jornal atrás citado: “Foi uma sensação muito estranha ver que as pessoas me ignoravam. Num concerto, fico irritado se alguém tosse ou se um telemóvel toca. Mas no metro as minhas expectativas diminuíram. Fiquei agradecido pelo mínimo reconhecimento, mesmo um simples olhar”.

Esta ocorrência deveras singular abre-nos de facto a possibilidade de pensar e discutir sobre o conceito de arte ou o que as sociedades modernas consideram como tal. A arte, no seu verdadeiro significado, deveria corresponder à busca de uma expressão e sentimento estéticos que promovam o encontro do homem consigo próprio, que lhe instiguem a reflexão sobre a sua espiritualidade e, em última instância, alavanquem o seu aperfeiçoamento intelectual e cultural, permitindo-lhe uma visão superior da vida e do seu equilíbrio com o meio em que vive.

A arte primitiva (rupestre) quase certo que estaria genuinamente mais próxima daquela definição, ainda que numa expressão rudimentar. Encantaria o homem daqueles primórdios da racionalidade e não seria de molde a suscitar-lhe outra reacção que não fosse a fruição pura e simples da representação estética da realidade. As crianças dos tempos primevos das cavernas olhariam para as figuras rupestres com um interesse equivalente ao daquelas que foram os poucos transeuntes a deterem-se num gesto tão espontâneo como sincero para escutar Bell. Como diz o jornal, “todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de todos nós”. Se a arte indiscutivelmente  provém da mais pura emoção, dela se alimentando e nela se reinterpretando continuamente, isto significará que o embevecimento da criança perante o belo, brotando da verdura dos seus sentimentos, é a primeira e mais genuína  reacção humana face à arte.

Só que o sentido da arte passou, com a  evolução e o progresso do mundo material (não diria espiritual), a entrar nos meandros da sofisticação e da especulação, no sentido em que factores estranhos à emoção passaram a influenciar a interpretação do conceito de arte, tais como a introdução de modismos, a afirmação de egos, as tendências sociais,  o comércio especulativo de obras de arte, etc. Alguns borrões ou traços numa tela valem milhões não porque se criará um consenso universal e intemporal sobre o seu valor artístico mas porque um determinado contexto histórico-social elege os seus autores como produtores de símbolos e referências de modas e épocas, que, nessa qualidade, e numa escala de valores relativos, passaram a ostentar preços avultadíssimos e só ao alcance das elites endinheiradas. Interrogar-se-á sempre sobre o conceito que preside ao cálculo do seu valor artístico e monetário.

Assim, forçoso é concluir que, no caso em apreço, a arte de Joshua Bell só é socialmente mais considerada pelo homem de hoje se revestida da sofisticação do espaço e do enquadramento cénico em que ela é apresentada, ainda que seja, efectivamente, de primeiríssima qualidade. Portanto, creio que a razão de tudo o que se passou naquela estação de metro se deve ao abastardamento espiritual que o homem vem consentindo dentro de si mesmo, subordinando-se a códigos sociais aferidos mais pela artificialidade dos valores materiais que enformam a civilização contemporânea, do que por um património intangível, imutável  e eterno, pertença do domínio exclusivo do espírito.

Com efeito, e infelizmente, com a evolução dos tempos, a arte deixou de ser vista na sua pureza autêntica para se tornar um simples objecto de consumo. As longas filas de visitantes ao Museu do Louvre para ver a Mona Lisa estão lá mais para registar a visita nos seus roteiros turísticos pessoais do que para apreciar verdadeiramente essa pintura de Leonardo da Vinci. As pessoas  que pagam bilhetes de 100 dólares para ver tocar Joshua Bell no Symphony Hall de Boston, na sua maioria certamente não vão lá porque apreciem ou alcancem a verdadeira dimensão da música do violonista, mas mais porque é chique e fará bem ao ego quando o contarem  aos amigos.
E no entanto a arte verdadeira continua viva e corre estuante e silenciosa como um rio subterrâneo, mas só perceptível por quem se deslumbra com a vibração da natureza.


Tomar,  Junho de 2015

Adriano Miranda Lima