O lítio e os nossos litígios paroquiais

sábado, 23 de novembro de 2019



     Por estes dias, muito se tem falado nas reservas de lítio que o país pretende explorar, sabendo-se da sua abundância no território nacional. Considerado o petróleo do futuro, o interesse pelo lítio despertou quando começou a incrementar-se o seu uso nas baterias dos automóveis eléctricos. De facto, Portugal possui a sexta maior reserva mundial deste metal e a maior da Europa Ocidental. Conforme noticiado na imprensa, as seis principais reservas localizam-se na serra de Arga (dividida pelos concelhos de Caminha, Ponte de Lima e Viana do Castelo), em Covas do Barroso (Boticas), Barca d'Alva (Figueira de Castelo Rodrigo), Guarda, Mangualde e Segura (Idanha-a-Nova). 
      Há quem esteja seguro da importância estratégica que o lítio vai revestir nos tempos mais próximos, com um impacto no xadrez geopolítico à semelhança do que aconteceu e ainda acontece com o petróleo, e então imagina-se um mundo doravante mais dependente do lítio do que daquele combustível fóssil, o que certamente revalorizará o continente sul-americano, onde se localizam as maiores reservas planetárias, nomeadamente no Chile e na Bolívia, que poderão assim vir a equiparar-se aos países árabes maiores produtores de petróleo. Ligando as pontas, pergunta-se se é por mero acaso que aqueles dois países passam neste momento por uma instabilidade política.
      Quando, há alguns anos, tomei conhecimento do que seria uma boa notícia para os portugueses, pensei com os meus botões: − até que enfim acontece algo de bom, algo promissor que poderá romper com o ciclo de restrições que nos aprisiona e inibe a soltura do corpo e da alma. Porém, a inocência deste pensamento singelo não escondia a suspeição de que tudo poderá não vir a revelar-se fácil e escorreito na concretização do objectivo visado. É que a nossa memória colectiva regista várias oportunidades históricas que se perderam por causa de uma insuficiente agregação e cimentação de valores colectivos. Com efeito, foi com a epopeia dos descobrimentos e o comércio rendoso das especiarias da Índia, foi com o ouro do Brasil, foi com as potencialidades que as antigas colónias ofereciam, e foi, em certa medida, com os enormes recursos recebidos da CEE/UE no decurso da nossa adesão a essa comunidade. Apesar de auspiciosas, Portugal não conseguiu cavalgar devidamente essas oportunidades, continuando o mesmo país rural, pobre e atrasado, e em permanente ciclotimia. Ainda assim, a nossa inclusão na comunidade europeia representa uma oportunidade ainda não prescrita de virar definitivamente a página, se bem que inquieta que o enorme caudal de recursos comunitários destinados a Portugal não se tenha traduzido ainda em tabelas salariais mais condignas e mais próximas das da média da União Europeia.
      Sucede que desde que o governo colocou na sua agenda a exploração do lítio não tardaram a vir à cena várias associações ambientalistas, câmaras municipais, juntas de freguesia e grupos de cidadãos a protestar contra essa intenção, indiferentes às explicações sobre a importância daquele recurso para a transição energética. No âmbito dos ambientalistas, a QUERCUS exigiu a suspensão imediata do processo, argumentando que a extracção mineira pode comprometer as metas assumidas por Portugal relativamente à descarbonização da economia. Quanto à associação ZERO, ela recusa qualquer exploração em zonas protegidas, entendendo que no resto do território a análise deve ser feita caso a caso. Além disso, exige uma Avaliação Ambiental Estratégica sobre o impacto desta exploração na globalidade do país. Em resposta, o Governo deixou claro que naturalmente será feito um estudo de impacto ambiental para uma avaliação objectiva antes de tomar uma decisão concreta sobre cada caso. No entanto, tanto o Governo como a generalidade do mundo científico fazem questão de sublinhar que a exploração do lítio é uma alternativa ao petróleo, cuja pegada de carbono tem a dimensão que se conhece e ameaça o equilíbrio ecológico do planeta.
      No programa Prós e Contras do passado dia 11 do corrente, o lítio foi o tema tratado, tendo sido confrontadas opiniões as mais diversas, estando presente o secretário de Estado adjunto da Energia, João Galamba, que exprimiu e explicitou a posição do Governo. A moderadora do programa, Fátima Campos Ferreira, soube estar à altura da sua função, mostrando uma rigorosa equidistância relativamente às diferentes intervenções. No fim, fiquei com a convicção de que estamos longe de um consenso sobre a exploração deste recurso, muito devido à prevalência de uma visão paroquial sobre o interesse colectivo. Admite-se, contudo, que os contestatários não estarão contra o lítio se os eventuais efeitos poluentes da sua exploração se produzirem noutro quintal que não os seus.
      Em 13 do corrente, o mesmo secretário de estado foi entrevistado na SIC pelo jornalista de economia José Gomes Ferreira sobre a questão do lítio. O jornalista, como sempre astucioso e matreiro nas suas perguntas, algumas delas pertinentes, pareceu, no entanto, encarar o governante como alguém impregnado de uma peste a necessitar de erradicação antes que contamine a comunidade. Pouco se preocupou com o cabal esclarecimento público, mais apostado em apanhar em falso o entrevistado.
      Desta forma, é de recear que a exploração do lítio venha a naufragar no tumulto das nossas divergências congénitas, perdendo-se mais uma oportunidade histórica. É o mesmo que acontece com as reformas estruturais geralmente reconhecidas como indispensáveis à sustentabilidade das contas públicas e que governos sucessivos não têm conseguido implementar, pela dificuldade de obter consenso em torno de matérias essenciais. O entendimento genérico é que haja reformas, sim, desde que não interfiram com os interesses da minha autarquia, da minha corporação e dos meus negócios, ou com as minhas convicções ambientalistas ou outras.
      Recentemente, passei os olhos pela História de Portugal de Oliveira Martins, que traça do Infante D.Henrique o retrato moral e psicológico de um “homem duro para as afeições, desapiedado e esquivo”, e no entanto reconhecendo-lhe os atributos de audácia temerária e persistência tenaz com que levou a cabo a gesta dos Descobrimentos. O Infante não olhava a meios para atingir os seus fins e fez ouvidos moucos aos que se opuseram aos seus projectos então considerados dispendiosos e arrojados, mas a verdade é que com a sua acção Portugal se inscreveu na História Universal com letras graúdas. Será que se tem de concluir que só estamos fadados a grandes cometimentos com a liderança de poderes absolutos e totalitários? Que a democracia contém o ónus de algo incontrolável que nos estorva e estrangula pela simples dificuldade em interpretar correctamente a essência dos seus preceitos?
      Precisamos do lítio, de reformas administrativas profundas e, acima de tudo, de bom senso, de contenção de excessos de estado de alma e de convergência efectiva e assumida em torno dos objectivos comuns, em detrimento do egotismo, do individualismo e do paroquialismo que estreitam a nossa margem de sucesso na luta contra a adversidade. Só assim se criam condições reais para que possamos beneficiar, como é desejo de todos, de melhores salários, melhores pensões de reforma, melhor saúde, melhor habitação e melhor ensino. A democracia tem de ser encarada como potenciadora dos valores que enriquecem o homem e a sociedade e promovem e alicerçam a construção do futuro. Não podemos é continuar na mesma senda, divididos, confusos e estagnados em impasses colectivos.  

Tomar, Novembro de 2019
Adriano Miranda Lima

Racismo? Xenofobia? Ignorância?...

terça-feira, 19 de novembro de 2019



Ultimamente tenho ouvido, assistido e partilhado cenas hilariantes algumas, surreais outras, e confrangedoras quase todas, ocorridas à chegada de nacionais nos aeroportos do país.
Tudo isso se tem passado nos nossos aeroportos, com a polícia de fronteira, à chegada de passageiros, sobretudo de cabo-verdianos que trabalham no estrangeiro e que vêm de visita à  terra. Diga-se em abono da verdade, que de uma maneira geral, essa mesma polícia acolhe-nos com uma sobranceria tal, que nos leva a questionar porque será? É como se estivessem a fazer um frete e nós fôssemos os culpados. Isto tudo depois de longas, desorganizadas, demoradas e penosas filas, para o carimbar dos passaportes. E para quem vem estafado e desgastado de viagem, por vezes longa, e que só almeja chegar à casa ou ao hotel para descansar, convenhamos que não é propriamente a melhor recepção. E isso tem sido bastante notório recorrentemente, nos  tempos recentes, melhor dito, ultimamente.
 A propósito disto tudo, a par de muitas histórias das quais tenho conhecimento, não resisto contar esta que se passou com uma das minhas sobrinhas, filha do meu irmão, que veio este ano de férias com os filhos a quem queria mostrar a terra natal, a sua ilha, o Sal. Chegados  à fronteira, o atendimento da agente policial não foi de modos, teimava categoricamente com a minha sobrinha que ela não poderia ser cabo-verdiana, porque era, cito: “branca, loira e de olhos azuis”. Imaginem o argumento? Nem sequer a agente teve o bom senso e o discernimento mínimo de verificar a gratuidade da sua atitude agressiva e antipática, incompatível com as funções que exerce de anfitrião – admitindo que ela não fosse cabo-verdiana – de um país que tem no turismo uma das suas grandes fontes de receita. A elegância e a simpatia não significam menor firmeza nem menor rigor no cumprimento das suas funções.
Mas vamos por partes, a minha sobrinha é cabo-verdiana dos quatro costados como sói dizer-se, a mãe é de São Nicolau e o pai do Fogo. A sua ascendência (avós e bisavós) remontam às ilhas de São Nicolau, Santo Antão, Fogo e São Vicente. Por sinal, tenho organizada a nossa àrvore genealógica.
Mas que vem a ser isso? Um acto de racismo? De xenofobia? Ou de puro desconhecimento do fenótipo diverso do mestiço?
Os tipos cabo-verdianos, e graças à nossa bela mestiçagem, podem variar do negro ao branco, passando pelo mulato, pelo mestiço de tez mais clara, ou mais escura, de olhos claros, ou não, de cabelos lisos ou crespos, já que a cor do cabelo pode ser artificial. Todos estes tipos, acontecem entre nós. As misturas dão tudo isso. Ou a senhora Agente não aprendeu isso?
Bem a troca de palavras chegou a tal ponto com a recusa da agente em considerar cabo-verdiana a minha sobrinha, que a determinada altura esta se desfez em lágrimas, porque se sentiu vexada e humilhada frente aos filhos, ao ser alvo de um acto de racismo e de discriminação totalmente gratuito.
 Terá sido pouca sorte ter sido atendida por uma desconhecedora do fenótipo cabo-verdiano? Ou são procedimentos ditados pela falta de informação/formação profissional?  É que para quem trabalha na polícia e, sobretudo, na fronteira o conhecimento do fenótipo cabo-verdiano é básico e elementar. Isto é, o aspecto visível, resultante da combinação entre os nossos traços hereditários e as condições do meio ambiente em que vivemos... E nesta conformidade o cabo-verdiano é portador de uma fenotopologia diversa. De Santo Antão à Brava passámos por todos os tipos.  Sempre tivemos e continuamos a ter, diversos tipos, as autoridades - por dever de ofício - deviam ser as primeiras a reconhecê-los.
Portanto, definir o cabo-verdiano, de forma definitiva e acabada pelo seu aspecto é um risco que só deve ser corrido com muita cautela e prudência para não ferir gratuitamente susceptibilidades.
Vou ainda contar de forma muito breve uma história que se passou com uma antiga aluna minha e boa amiga, natural da Praia; passada no aeroporto da Praia. Havia saído da sua cidade, um mês antes para férias nos Estado Unidos; regressada ao país foi também atendida por uma agente. Esta ter-lhe-ia questionado se ela era cabo-verdiana, ao que a minha jovem amiga retorquiu com humor para disfarçar a ira que queria tomar conta dela: “Senhora Agente, sou cabo-verdiana desde 1460... e acrescentou-me ela com graça: “...resta saber se ela percebeu o que eu quis dizer”. Como nota, adito que essa minha antiga aluna e amiga é uma mestiça de tez clara e cabelos lisos…
Comigo tem-se passado também algo estranho, saio e entro com frequência no aeroporto da Praia e ultimamente, invariavelmente, de cada vez que entro, apresentado o passaporte cabo-verdiano, sou perguntada há quanto tempo vivo na Praia. E a minha resposta tem sido: “há cinquenta anos e a senhora agente se calhar nem era nascida...”
Brincadeira, humor e indignação à parte, vamos instruir seriamente os nossos agentes que o cabo-verdiano é mestiço, e como tal pode-se encontrar um largo espectro de fenótipos, com diferentes tonalidades de tez, cabelos e cor de olhos. Assim feito, evitam-se situações que não só possam ferir susceptilidades na abordagem ao ser cabo-verdiano ou não, mas também configurar atitudes racistas, xenófobas ou de desconhecimento da sua própria História e da sua cultura.
Posso afirmar - da minha experiência  -  que nunca antes havia acontecido com tamanha frequência como agora, essas cenas na fronteira aeroportuária. De tal modo frequentes, que chego a questionar se será uma orientação recebida? um figurino a seguir? Não, não creio...
Ninguém está a pedir que os agentes tenham sempre um sorriso rasgado no atendimento de cada passageiro.  Não. Não se trata disso. O que  solicitamos encarecidamente, é que haja atendimento profissional - cortês, correcto, demonstrando conhecimentos  -  e não esta triste e inútil demonstração de falta de conhecimentos elementares.  
Será que a leitura do nosso documento de identificação de viagem – o passaporte – não diz nada ???...
Ora bem, há que encarar isso com espírito pedagógico. Isto é, precisamos de fornecer aos nossos agentes policiais, atendentes nos postos fronteiriços dos aeroportos nacionais, formação e informação sobre as origens e o cruzamento de raças que originaram o cabo-verdiano, mestiço na sua fenotopologia e mestiço na sua cultura. Esses são os nossos traços naturais.
Queremos e desejamos ter sempre a máxima consideração para com a nossa polícia fronteiriça para que ela possa com segurança  – possuidora de  informação e de conhecimento    desempenhar eficazmente, a nobre missão de que está imbuída.


A fealdade de certa paisagem urbana nas nossas ilhas

sábado, 9 de novembro de 2019





  Há tempos, li o comentário de um conterrâneo que era de veemente severidade sobre a realidade da paisagem urbana do Mindelo da actualidade. Entre outros mimos, disse que a cidade parece uma grande favela, o que não é exagero se incluirmos na apreciação certas zonas periféricas. Mas também já li desabafos diferentes mas não menos depreciativos, como dizer-se que em certas zonas a cidade se assemelha a bairros pobres de comunidades do Médio Oriente ou do Corno de África, quer pela tipologia das habitações, que nada tem a ver com a arquitectura que mais nos caracteriza, quer pela ausência de qualquer ideia de ordenamento. Com particular singularidade, outra apreciação comparava os arredores do Mindelo a uma cidade bombardeada.

      Os que de fora nos visitam têm idêntica opinião. Por exemplo, um amigo meu português, que amiúde vai de férias às nossas ilhas, por gostar da nossa gente, regressou há dias da Boavista e confessou-me que não compreende por que em Cabo Verde cada um constrói a seu bel-prazer, sem regra e sem respeito por uma ideia de integração num conjunto.

      O que tudo isto tem de verdade no Mindelo, será porventura ainda mais gravoso noutras cidades, como a Praia. Com efeito, estamos perante falhas clamorosas ao nível da arquitectura paisagística, no Mindelo como em outras cidades cabo-verdianas que cresceram à margem de regras que são imperativas numa cidade que se preze. A arquitectura das cidades, por princípio, deve integrar as artes criativas, as ciências naturais e as ciências sociais, e da sua conjugação resultam soluções que sempre têm de se coadunar com a história, a cultura e a traça dominante herdada do passado. Nada disto se verifica na nossa terra e a pergunta que se põe é se tudo se deve à impreparação ou incompetência dos arquitectos. Direi que não porque os nossos arquitectos têm a ciência necessária para conceber qualquer tipo de projecto.

      O que sucede na nossa terra é que não há nem nunca houve rei nem roque nesta matéria, desde a independência, sobretudo a partir de 1990. Cada um faz o que lhe apetece e sempre em obediência ao seu gosto ou interesse pessoal, marimbando para o colectivo. Por isso, razão tem a pessoa que considera Mindelo uma vasta favela e não uma cidade que devia primar por um mínimo de bom gosto, decência e funcionalidade. E, cereja amarga em cima do bolo azedo, é essa ausência de acabamento exterior em grande parte das construções, pelo que resulta da amálgama de casas sem estética uma paisagem feia, sem graça, incaracterística, além do grave problema de se inscreverem em ruas mal traçadas, desconexas, anquilosadas, sem espaço sequer, em inúmeros casos, para fins utilitários e públicos, como acesso a ambulâncias, viaturas de bombeiros, etc.

      Então, se não é uma questão de falta de arquitectos capazes, o mal só pode ser atribuível a corrupção ou demissão de responsabilidades ao nível das autarquias. A começar, pois, pelas autoridades, que não agem ou hesitam em agir de acordo com as suas competências e responsabilidades, ou que, mais grave ainda, não estabelecem baias intransponíveis entre o interesse público e o privado, dando azo a situações de duvidosa legitimidade, ou mesmo de flagrante transgressão, isto para ser mais eufemístico do que assertivo nas minhas palavras.
    
      Depois, não é difícil imaginar que a demissão, apatia ou inacção de quem governa tem um efeito de autêntica permissão e aval aos desmandos das empresas construtoras e dos próprios cidadãos. Assim, direi que o mal se entrelaça de tal forma que não se sabe onde começa e onde acaba, nem quando vai ter fim ou se é mesmo possível pôr-lhe um fim. O que está em causa pode ser mais propriamente aquele tipo de transgressão que é fruto de favoritismo, cedência, lassidão, desleixo, hábitos paroquialmente enraizados nos meios em que quase toda a gente se conhece. Poderá, por enquanto, não assumir a escala das situações mais gravosas nas suas repercussões sociais, em que a criminalidade se aloja dissimuladamente; mas, silenciosamente, sub-repticiamente, a fenomenologia dos comportamentos deletérios vai-se instalando e ganhando proporções crescentes, produzindo os seus efeitos melífluos. É como certo tipo de cancros.

      No fundo, o mal está na comunidade como um todo, na sua mentalidade de conformismo e permissividade, que é sintomática de uma insuficiente consciência cívica e identitária. A simples constatação da proliferação desses inúmeros caixotes de maior ou menor tamanho em detrimento da bonita traça colonial de muitas construções que herdámos, diz-nos de uma realidade que não podemos ignorar e temos de lastimar e condenar. Aos poucos, se não houver contenção e travão aos desmandos, as nossas cidades vão-se assemelhando a muitas grandes favelas de qualquer outra cidade africana sem história e sem passado digno de registo.

      Contudo, penso que aos nossos arquitectos cabe uma particular e intransmissível responsabilidade. Pela sua formação académica, deviam ser os primeiros a agir em defesa do nosso legado patrimonial, em vez de caucionarem, activa ou passivamente, as transgressões sucessivas que nos conduziram à situação que várias fotografias do Mindelo e outras cidades vêm reportando.

      É preciso ver que a oferta turística das nossas ilhas tem muito a ver com a singularidade arquitectónica das suas urbes. Podem ser pequenas e pobres, mas se se lhes tira a alma, tudo se perde. Será um erro imperdoável importar o que de pior existe lá fora, mais ainda se forem imitações grosseiras e em desconexão com a nossa realidade cultural.


Adriano Miranda Lima

À mulher de César não basta ser séria, tem de parecer séria

domingo, 6 de outubro de 2019

                  
      Quem proferiu a afirmação grafada em título foi Caio Júlio César por volta de 60 anos a. C., referindo-se precisamente à sua esposa Pompeia Sula. A velha máxima cruzou milénios e permanece inteiramente válida, e não poucas vezes é evocada quando está em causa a transparência cristalina de actos e procedimentos de detentores de cargos públicos.
      Se isto vem a propósito é pela minha estranheza de ver rebentar com pólvora reforçada e renovada, no fervor da campanha eleitoral em curso, o foguetório judiciário relacionado com os processos do “Roubo de Tancos” e das “Golas antifumo”. É que os dois processos, uma vez relançados com veemência mediática nesta altura precisa, só podem visar a imagem do actual governo e a cotação eleitoral do partido que o suporta, independentemente de eventuais culpabilidades que venham a ser apuradas ou de sentenças condenatórias que possam ser decididas em tribunal. 
      Como a política é uma arte pródiga no culto das aparências, embora muitas vezes fruto de manipulação e mistificação, o quadro que se me apresenta é que me permite aquela dedução. A dúvida pode, no entanto, colocar-se, mas só porque o pudor cívico me inibe de cair em julgamentos precipitados sobre as intenções de outrem, mormente de um órgão como o Ministério Público. Porém, não se confunda reserva mental com ingenuidade pacóvia. 
      É certo e sabido que a Justiça tem os seus próprios timings, mas é intrigante ver tão certeira pontaria na escolha do actual momento. Não se pode mobilizar no meio de uma campanha eleitoral mais de 200 agentes de investigação criminal e operadores judiciários em direcção a gabinetes e residências de governantes e titulares de cargos públicos, sem que na opinião pública logo se instale a desconfiança de que os visados são capangas do crime organizado. Tanto mais quando haverá certamente casos bem mais graves a requerer prioridade, celeridade e acutilância na acção da Justiça.
      Com efeito, ligando as pontas −  a exorbitância dos meios, o critério da gestão das prioridades e o timing escolhido – é impossível não admitir que podemos estar perante a interferência indirecta em campanha eleitoral de um órgão do Estado que, não curando da isenção e equidistância no exercício do seu múnus, parece ter mandado às urtigas a prudência e o recato que a circunstância recomendaria. Sim, o bom senso teria recomendado outra calendarização da agenda da Justiça, regulando-a em função do período eleitoral. 
      É cedo para saber se o foguetório vai influenciar ou não as intenções de voto, porque a girândola não ainda parou o seu movimento. Caberá ao eleitorado discernir o que é espectáculo luminoso de pólvora multicolor e o que é acção governativa real e concreta, diferenciando-a mesmo do ocasional desempenho “artístico” dos líderes políticos no proscénio dos debates televisivos ou nas arruadas. 
      Todavia, poderá dizer-se que o principal partido da oposição e os interesses que representa não caberão em si de contentes por tão providencial empurrão recebido. Resta é saber se já contavam com ele ou se tudo lhes foi oferecido de bandeja. Mas isso seria entrar em domínios nebulosos, meandros onde não penetra quem se limita a conjecturar, não abdicando do direito de pensar. E a conjectura tem a amplitude que a nossa memória retrospectiva lhe consentir. Leva, por exemplo, e numa análise comparativa, a interrogar por que casos bem graves que comprometiam as pessoas do anterior primeiro-ministro (o da Tecnoforma) e do seu ministro da defesa (o dos Submarinos) nem sequer afloraram na última campanha eleitoral, quanto mais objecto de procedimento judicial em sede própria. Foram simplesmente arquivados, apesar dos indícios e até de elementos carreados de instituições da União Europeia. Ou há dois pesos e duas medidas diferentes para casos semelhantes ou o objectivo é tentar inviabilizar, a todo o custo, a reedição da solução governativa que resolveu os problemas do país sem se subordinar fielmente à lógica do mercado unificador e tendencialmente totalitário.   
      É evidente que situações desta natureza têm de suscitar especulações sobre a linearidade da conduta de certos poderes ou individualidades do sistema judiciário. Disso, o melhor barómetro são as redes sociais, em cujo espaço as opiniões se esgrimem e diferenciam conforme as preferências partidárias, mas onde sobressai o saldo de um grosso sentimento popular de desconfiança em relação ao sistema judiciário. Aliás, essa percepção é corroborada pela opinião abalizada e sustentada de políticos, juristas, magistrados, sociólogos e cidadãos comuns, que convergem quanto à necessidade de uma inadiável reforma da Justiça. É neste contexto que amiúde se questiona a existência de organizações sindicais de magistrados, principalmente a do Ministério Público, uma vez que o sindicalismo dá azo a que o partidarismo político se instaure no seio da magistratura, comprometendo a autonomia absoluta por que ela se deve reger na sua função soberana. É aqui que muitas dúvidas e interrogações se têm levantado. A título de exemplo, o porquê das sistemáticas e recorrentes violações do segredo de justiça e fugas de informação dentro do aparelho judiciário em proveito de certos órgãos de comunicação afectos a uma determinada ideologia política, sem que até hoje se tenham apurado responsabilidades. O processo Marquês foi paradigma das mais torpes violações e até de comportamentos de operadores judiciários que deixaram muitas dúvidas sobre o que é trâmite processual da justiça e propósito de achincalhamento público de um ex-governante.      
      Em nenhum Estado de direito democrático é desejável a judicialização da política e, inversamente, a politização da justiça. Menos ainda a partidarização política dos actos da justiça. Os políticos são eleitos pela nação para, em sede parlamentar, produzir as leis com que o Ministério Público e os Tribunais têm de lidar na governança da justiça. Além de eleitos pelo povo, os políticos são continuamente escrutinados em todo o seu mandato, sujeitando-se a devassas constantes da sua vida pessoal e familiar e a julgamentos na praça pública, antes de o serem em tribunal quando é caso disso. Os magistrados estão imunes a qualquer espécie de escrutínio externo, vivendo numa autêntica redoma, mas em troca a nação exige-lhes requisitos cívicos, morais e psicológicos a toda a prova e uma consciência livre, impoluta e inviolável no exercício da sua função soberana. 
     Com a revolução de Abril de 1974, todas as estruturas do Estado e da administração pública foram viradas do avesso, passadas a pente fino. Excepto a Justiça, como é sabido. Até os juízes servis e que abdicaram da sua honra pessoal e princípios deontológicos nos célebres tribunais plenários, passaram misteriosamente por entre os pingos da chuva ácida que encharcou então a cena pública nacional. Não há memória de algum ter sido julgado ou sequer saneado por conduta indevida, tendo todos prosseguido as suas carreiras normais. É como se algum atavismo intergeracional não tivesse sido estancado em tempo devido.
      Ora, o líder do PSD tem toda a razão em inscrever na sua agenda política uma reforma da Justiça, e não é minimamente compreensível que o do PS tenha uma opinião diferente. É bom que ele abra os olhos porque poderá ser tarde se tiver de concluir que afinal a mulher de César não só não “parece” como pode não “ser” tão séria quanto devia por causa de algumas más companhias na sua corte.

Adriano Miranda Lima


quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A (ir)responsabilidade da Gestão de Topo da nossa Administração

O Serviço Público é uma responsabilidade do Estado. Visa servir os cidadãos em toda a sua extensão. A natureza da ideologia reinante num determinado momento poderá determinar os caminhos, o trajecto, as vias, mas nunca poderá pôr em causa a sua efectiva realização. Poderá o Estado realizá-lo directamente ou concessioná-lo a privados mediante contratos que assegurem o seu pleno cumprimento. Em qualquer dos casos é ele, o Estado, através das suas estruturas permanentes, dos seus órgãos eleitos ou nomeados quem responde perante os cidadãos porque lhe compete a satisfação de todas as suas necessidades. Para o efeito é indispensável uma Administração Pública, latu sensu, capaz e eficiente. É ela sem dúvida o espelho da governação e o reflexo da imagem interna do País.
Hoje, salvo raras e bem conhecidas excepções, prepondera uma certa liberalização económica, uma economia de mercado e como bem afirma o seu teorizador/precursor, Adam Smith (1723- 1790) em “A riqueza das Nações” – Quando pessoas do mesmo ramo de negócios se encontram, mesmo que para se divertirem, a conversa quase sempre termina numa conspiração contra o público ou em algum artifício para elevar os preços”  – isto, traduzido na prática, significa que a busca para a cartelização é uma obsessão do capitalismo.
A cartelização, o conluio, movidos normalmente para o controlo do mercado pervertendo a concorrência e a competitividade podem ser gerados em qualquer actividade mercantil. Consistem na combinação de preços, limites de produção, uniformização de parâmetros concorrenciais, combinação de regras procedimentais, designadamente nos serviços, etc. etc..
Esta apetência conspirativa do empresariado urdida nos bastidores do negócio chamou Adam Smith a ”mão invisível do mercado”. É intuitivo que quanto mais reduzido for o mercado mais se acentua essa tendência e mais se faz sentir a necessidade de uma “mão visível do Estado”. Daí que qualquer que seja a natureza do regime impõe-se a criação de entidades de supervisão e regulação com meios e poderes suficientes para cumprir cabalmente as suas funções com vista a complementar e completar o Estado na defesa do cliente, do consumidor.
Infelizmente, e isto acontece em muitos países, essas entidades reguladoras e de supervisão não passam – é obvio que há excepções – de uma maneira geral, por um lado, de fachadas porque são tão-somente prateleiras para a alocação das clientelas políticas, isto é, de protegidas figuras politico-partidárias; e por outro, de pura formalidade, como apenas resposta às exigências das entidades, financeiras e outras, internacionais. Ademais, muitas vezes manietadas por um estatuto de competências limitativo, redutor.
Daí a inépcia e a inoperância com que nesses países e nessas situações actuam, – essas entidades de regulação e supervisão – negligenciando em absoluto a sua independência face aos Governos que as nomeiam ou as poderão destituir, sacrificando ou mesmo ignorando a defesa dos interesses da população e do Estado para a qual foram criadas, alinhando com algum servilismo no exercício de determinadas praticas governamentais condenáveis ou corrompendo-se, fazendo «vista grossa» das irregularidades perante as entidades reguladas.
É certo que para que tudo funcione com absoluta normalidade e para que o Estado desempenhe cabalmente o seu papel não basta apenas que a administração pública seja eficiente, nem que as instituições reguladoras sejam portadoras efectivas de autoridade na área da sua intervenção e a exerçam em conformidade.
Não, o que sobretudo é importante e prioritário é que a Justiça, o garante do Estado de direito democrático, opere de forma efectiva e discreta, pronta, célere, sem qualquer agenda política, isenta, destemida e firme perante os interesses instalados, eficaz e útil.
Voltemos à Administração Pública: Alguns esforços, de louvar, foram feitos, sobretudo na área da informatização e do tratamento de dados, mas praticamente sem qualquer reflexo na melhoria do efectivo atendimento, da satisfação do utente. Continuamos ainda a ter falhas básicas como chegar a uma repartição da função pública ou de entidades estatais independentes, de horário contínuo, p.e. às 13 horas, querer tratar de um assunto e receber como resposta: venha às 14 e 30 porque o funcionário que trata do assunto foi almoçar, ou volte amanhã porque o funcionário já não volta. Não, não é um caso isolado. É uma prática. A par desta existem outras despropositadas e inexplicáveis burocracias como uma Repartição exigir, para completar um processo, que lhe seja entregue um documento em que é ela própria a emiti-lo; e até mesmo em algumas diligências não é infrequente a resposta: “não temos rede! Venha depois!” mesmo antes que a pessoa diga ao que vai. E deste modo, sem a procura de alternativas por vezes fáceis (já não há livros, já não há canetas?), a informatização torna-se um empecilho e não uma vantagem para situações bem simples como o pagamento de uma factura, o registo de um assunto, o pedido de um documento ou mesmo, de uma informação…
Mas o mais grave é a gestão de topo. Não decide! Grassa a irresponsabilidade na maior parte da nossa chefia – intermédia e alta. A baixa, até se compreende. Muito poucos respondem pelas funções que exercem. É uma prática corrente. Não é invulgar… aliás, é muito frequente que perante uma exposição, um requerimento ou outra solicitação se tenha como resposta um parecer técnico. Isto é, é enviado ao exponente/requerente um parecer técnico endossando a responsabilidade da decisão não ao chefe, nem à instituição, mas ao técnico (ou técnicos) que elaborou a informação/parecer transmitindo a sua opinião “pessoal” – embora baseada normalmente em pressupostos técnicos – sobre o assunto. E se forem questões melindrosas de respostas antipáticas, o gestor de topo ou chefe, imediatamente sacode, como sói dizer-se, “a água do capote” escondendo-se atrás do técnico a quem covardemente atribui toda a responsabilidade da decisão que devia ser sua. E ninguém diz a esses chefes, à essa gestão de topo, de que uma informação/parecer só é um documento final para aquele, e só aquele, que a tiver directa e explicitamente solicitado.
Outrossim, o parecer técnico, ou a informação, não passa de um documento de circulação interna que poderá, ou não, sustentar uma decisão. Não vincula a instituição se um despacho de assumpção, não for sobre ele exarado. Apenas os seus autores. E não é por acaso que normalmente estes se defendem com: “salvo melhor opinião”, “salvo opinião expressa em contrário”, “melhormente decidirá” entre outras expressões que identificam a natureza não vinculativa e, acima de tudo, não decisória do documento.
Também não é invulgar que uma exposição/requerimento permaneça ad eternum sem um despacho, por vezes, por pura negligência. Para pôr termo a este procedimento bastaria estender o deferimento tácito passados, p. e., 30 dias a todas as situações. As chefias seriam obrigadas a produzir um despacho para deferir sob condições (se for o caso) ou indeferir e permitir ao exponente/requerente o recurso fundamentado a instâncias superiores.
Não resisto a contar um episódio paradigmático, primeiro, do desprezo e desconsideração que certos bancos de capital maioritariamente estrangeiro e de executivos também eles estrangeiros têm pelo cliente cabo-verdiano[1]; segundo, pela ineficácia e incompetência do regulador financeiro. Ei-lo, de forma muito abreviada: Entre 2017 e 2018, o Banco Interatlântico resolveu unilateralmente reduzir a taxa de juro de um depósito a prazo de 3,5% ao ano para 1,55% sem absolutamente nada comunicar ao cliente. Este depara-se com um “facto consumado” e reclama exigindo a compensação pela diferença. O Banco Interatlântico não colhe a reclamação porque, obviamente acha – seu manual de procedimentos para Cabo Verde – que não tem essa obrigação de comunicar ao cliente a alteração da taxa de juro; e, nos termos de uma norma que cita, reencaminha o cliente para eventual recurso ao BCV, obviamente como “árbitro”. E o resultado da “arbitragem” vem de um Departamento do BCV como “decisão”, através de uma informação/parecer favorável ao cliente contendo a sacrossanta expressão: “salvo melhor opinião”. O Banco Interatlântico numa conversa com o cliente, aludindo ao parecer, diz-lhe que não dialoga com departamentos do BCV… E, perante o impasse, em vez de “quem não concordar com a arbitragem se dirigir aos tribunais” é o cliente que terá que se dirigir à Justiça uma vez que o Banco Interatlântico mantém-se teimosa e impunemente na sua posição de confrontação com a do BCV.
É apenas um exemplo que mostra a ineficácia e a incompetência dos nossos reguladores, a prepotência e os abusos das instituições bancárias que parece operarem em absoluta roda-livre, só acolhendo as recomendações ou deliberações que os beneficiam fazendo tábua rasa às outras.
Não há dúvida que estamos mesmo entregues à bicharada!!! Quem nos acudirá?!
A.   Ferreira


[1] Não, não é xenofobia nem estar contra o investimento estrangeiro no País! Os investidores e os gestores estrangeiros de qualidade, são muito bem-vindos, mas é um facto, a dualidade de critérios e de comportamento face ao cliente e ao regulador para as mesmas situações: um, no país de origem e outro, em Cabo Verde.


Será o Crioulo uma condição do ilhéu cabo-verdiano?...

domingo, 22 de setembro de 2019


Não sei até que ponto um factor de carácter linguístico, no caso, o Crioulo das ilhas de Cabo Verde, se encaixa na definição da condição de ilhéu, ainda que  seja “condição do ilhéu cabo-verdiano”.
Faço-me entender, os Crioulos existentes no mundo e resultados de entrosamento de línguas, geralmente com uma matriz dominante, (de base portuguesa, inglesa, francesa, holandesa, entre outras línguas) não são apenas falares de ilhas, são-no também de espaços geográficos que insulares não são.
Daí não considerar que aqueles (os Crioulos) sejam exclusivos de ilhas. Aliás, bem perto de nós, temos o caso da Guiné-Bissau, com um dos mais antigos crioulos  vivos de base portuguesa e o  seu território é fundamentalmente continental.
O Patuá ou Papiaçam de Macau, não se originou numa ilha geograficamente falando, embora Macau, considerada península sul da grande China, seja também formada por ilhas.
 Vale dizer que Crioulo não é específico da insularidade. Embora esteja nela mais amplamente representado.
 Se recuarmos na História dos Descobrimentos portugueses e se os situarmos no grande desenvolvimento alcançado nos séculos XV e inícios de XVI, temos notícias de que em boa parte da costa ocidental africana, se comunicou em língua franca, ou pidgin, ou em crioulo, por razões comerciais. E no caso, não estaremos a falar de ilhas.
De sorte que esta forma de comunicação foi levada também, tanto pelos portugueses (continentais), como pelos cabo-verdiano (insulares), ora lançados, ora negreiros que comerciavam escravos e mercadorias. Embora sem terem disso exclusividades.
Ora bem, os temíveis e destruidores piratas  e corsários, ingleses e franceses, usaram também essa forma de comunicação - embora com poucas palavras e mais bárbarie na actuação -  os holandeses igualmente, assim se comunicaram com alguns povos  do litoral da costa africana.
Para apenas me cingir ao caso Costa africana.
Outro caso não insular, é o do Crioulo de Palenque, na Colômbia  “(...) ainda hoje se fala um crioulo espanhol no qual se vêem claras influências portuguesas (...)” esclarece-nos uma definição de  Crioulos no Mundo, retirada da Wilkipédia.
Com efeito, Colômbia, um grande país da América do Sul, não se define por ser insular... antes pelo contrário, é bem e muito continental. Sequer apresenta litoral.
 Ainda um outro exemplo, os mouros residentes em Portugal no século XVI, falavam um crioulo de base árabe/português.
Mais remotamente ainda, na História das Cruzadas cristãs europeias contra o muçulmano -comandadas inicialmente pelo rei, Luís IX da França (1214-1270) - sabemos que o europeu usou a língua franca para se comunicar com os outros povos.
E como estes, vários exemplos podiam ser avocados.
Portanto o Crioulo, tendo concorrido para a criação do ser ontológico cabo-verdiano e até da própria  noção de  cabo-verdianidade, não é condição, na minha opinião, (aqui entendida como  específica e distintiva) do ilhéu cabo-verdiano.
Caso outro e bem diferente, é dizer-se que a condição de ilhéu cabo-verdiano, se expressou de forma estruturante na sua Literatura, nas artes pictóricas, na sua lírica cantada, entre outras formas de arte, nascidas e manifestadas aqui nas ilhas.
A tão decantada, e por que não ? muito  cantada também, “a evasão”, o chamado evasionismo, fenómeno poético, é uma condição do ilhéu cabo-verdiano? Sim, e é igualmente estruturante na sua poesia.
Mas poderá esse mesmo poeta e ilhéu cabo-verdiano pretender a exclusividade disso? Não me parece.  O ilhéu açoriano também o captou na sua lírica escrita e cantada, tal como nós. Isto apenas para exemplificar casos que nos estão mais próximos.
Ora bem, posto isto, vamos rodear de muita cautela interrogativa, quando espelhamos ideias sob forma documental ou outra.
 Nestes casos a expressão de dúvidas ou de mais procuras de casos similares ao nosso, devem prevalecer sobre certezas imediatas; estas por vezes, demonstram alguma necessidade de urgente justificação histórica e social de factos, ainda mal estudados ou, não cabalmente investigados.
Quando assim acontece a nossa  História apresenta-se leve e redutora. O que será muito mau legado para a posteridade.
Infelizmente vem acontecendo...

Assim vai a cultura actual nacional sobre a História de Cabo Verde... - Texto Furado -*

domingo, 8 de setembro de 2019


Caro leitor: o texto que se segue, pertence ao Sub, sub-género de textos furados que surgem geralmente em fases bem críticas da História de qualquer comunidade.
Surgem em tempos de crise. Sobretudo, de crise escolar, académica e cultural que  conduz a um tipo de amnésia de efeitos fabulosos!
No caso vertente, a cabo-verdiana (a amnésia)  tem vindo a revelar – através dos seus doutos Historiadores e Cronistas, surgidos no pós-independência, cheios de certezas e de poucas dúvidas - por meio dos referidos textos; facetas até aqui desconhecidas da Histórias destas ilhas Atlânticas.
Posto isto, vamos conhecê-las:
Pois bem, referindo-se à Terra – Branca, afirmou peremptório (após aturados estudos e pesquisas no Google) um dos nossos Historiadores, assumido africanista e sempre absoluto e definitivo nos seus juízos. Outrossim, o nosso Cronista parecia delirante e  entusiasmado com o nome: Terra Branca! Que esta seria uma zona de “apartheid” na periferia da cidade da Praia, onde apenas viviam “brancos.” Alguns de aspecto bem mestiço - conviria acrescentar, entre nós que ninguém nos ouve -- sendo que os seus serviçais habitavam as zonas circundantes e limítrofes de Achada Santo António e de Tira-Chapéu.
No tocante ao ilhéu de Santa Maria, afirmaria convicto outro Historiador de improvisadas teorias, que o Ilhéu sempre pertenceu à China. E isto de tempos imemoriais.  Por causa disso, o nome por que é internacionalmente conhecido é o de Ilha da China, sendo que a doação fora feita em séculos passados por D. José de Santa Catarina e D. José de Santa Maria, ambos cavaleiros do séc. XIII, famosos e antigos Donatários respectivamente, da Serra Malagueta e do Farol de Santa Maria.
Recorde-se (continuou o dito Historiador) que aqueles Donatários chegaram às ilhas muito antes dos seus denominados descobridores, como foram Diogo Gomes, António da Noly e Luis de Cadamosto, Aliás, estes últimos, teriam perecidos no Oceano Pacífico em 1460, sem deixar quaisquer registos.
Daí a razão por que o provável Descobridor das ilhas de Cabo Verde, seja mesmo Amílcar Cabral, no ano de 1975. Trata-se de um valoroso guerreiro de Bafatá que pôs a sua espada ao serviço das Donzelas.  Aliás, apanágio gentil e característico, de verdadeiro cavaleiro da Ordem de D. Juan.
...E continuando, desta feita indo até à Cidade Velha, dirá o Historiador conhecedor e frequentador de facebook, de instagram, de twiter e de quejandos, que a antiga vila fora habitada por moradores e senhores, vindos do Leste europeu e da Tailândia, que aqui sob clima tropical, de muita chuva e de neves de altitude, juntaram-se e misturaram-se. Resultado: conheceram apreciável longevidade. Daí, a razão do nome, Cidade Velha assim chamada.
Mas aconteceu - continuará o nosso inefável Cronista - a determinada altura, os seus escravos ( trazidos da Abissínia, da Costa Oriental de África, pelos ditos senhores) revoltados com pouco que fazer numa zona próspera e também porque os seus senhores lhes tiravam quase todas as suas mulheres,  resolveram migrar para a ilha vizinha, o Fogo.
Assim nos descreveu esta odisseia e culminou a sua narrativa, esse nosso iminente Historiador, afirmando - que ali chegados estava à espera deles uma recepção nada amistosa. Os foguenses capitaneados pelos seus afidalgados locais,  Dom Bartolomeu de Capela, Dom Paio de Pires e Dom Rodrigo de Mendonça, os quais, numa ardilosa cilada para impedirem a entrada na ilha desses migrantes, mandaram acender um lume perpétuo no cume da serra mais alta da Ilha e assim fazer retornar à origem, tais visitantes não desejáveis; no que bateram palmas e muitas palmas os piratas franceses e ingleses que ao Fogo tinham aportado e que já tinham saqueado a ilha toda.
Ficam assim também esclarecidas cientificamente, as convulsões vulcânicas que frequentaram e continuam a frequentar a ilha.
Prosseguindo, proclamam ufanos e sabedores os reputados Cronistas que a vizinha ilha Brava, assim chamada - no dizer de um deles, muito “in” na nossa urbe -  porque não tendo a ela chegados os primeiros descobridores que foram árabes, oriundos do Líbano, mas que na Guiné ficaram conhecidos por Sirianos.
Ora bem, então imaginaram-na bravia, cheia de madressilvas espinhosas, rodeada de seres míticos e guardiões audazes e temidos que não toleravam qualquer aproximação. Daí o seu longínquo isolamento e, sobretudo, o seu não contacto com as populações das ilhas do sul do arquipélago.
Isso terá gerado as seguintes particularidades dos bravenses:
1-    Gente” morabi” e de brandos costumes.
2-    Desconhecimento de todo, do uso da faca e do manduco.
Eh! Pá! E agora? É que chegados ao fim das “estórias” contadas por estes insignes Historiadores e Cronistas, filiados no «Partipris», subjaz a questão: onde e como colocar - no meio desta confusão toda - os nossos portugueses? Sim, como encaixá-los no meio disto? Se nem na Cidade Velha, os deixaram ficar os espanhóis Eternos espanhóis, gente conhecida por nem bons ventos e nem de bons casamentos? Realmente, passaram-lhes a perna.
É que os espanholitos conquistaram a mui nobre Cidade na primeira década do séc. XXI. (século vinte e um, assim escrito por extenso para que não hajam dúvidas. Os espanhóis vieram conhecer a Cidade Velha na primeira década e, foi um “veni, vidi, vinci” (se te avias!) ou, traduzido, foi um chegar, ver e vencer, isto é mesmo nosso! (deles, diziam à boca cheia) em menos de um ápice de tempo)
 Sim, que fazer com os nossos amados tuguinhas? Eles que tantas alegrias nos têm proporcionado, que outros nenhuns nos dão.
Podia citar muitos exemplos das referidas alegrias. Por ora, apenas os mais queridos: os onze vitoriosos de cada equipa de futebol, sobretudo dos três grandes; a Selecção de todos nós; o maior jogador do mundo; os treinadores foras de série; e até o VAR?... Sim, como integrá-los no meio disto??
Eles trouxeram-nos o crioulo e nós...devolvemos-lhes o português. Que simpatia!!
 A  morna e o fado encontraram-se a meio do caminho do mar, com ondas sagradas do Tejo beijando-se, de tal modo, que Mariza e Tito Paris fizeram uma grande festa.
Tanta coisa partilhada e despartilhada!
Mas, subsiste a dúvida, como integrá-los mais conformemente, no meio da confusão arranjada por estes Cronistas da actualidade??
Paciência! É o que dá ter gente tão culta, tão sabedora – saída da Universidade de Santa Luzia - pois com certeza! E a historiar e a cronicar bastamente (Oh! Menina! não seria mais adequado, um “e” na primeira sílaba  do advérbio? É que me ficou a dúvida??...) aqui nas ilhas...
*Texto Furado... como diz o próprio nome, sai sempre furado. E ainda bem que assim é! Já calculou estimado Leitor, quão maçador seria, narrar sempre - a nossa História  - muito séria, sensaborona e muito convicta? Sem uma graça, sem um sorriso e sem “salero”? Não, Deus nos livre! ...E ao pronunciar esta última frase, surge a rir-se do fundo do baú, o texto... furado. Salvé!



quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Alerta geral. Diplomacia maltrata ortografia. Pede-se divórcio. Urgente
Por Nuno Pacheco*
Este podia ser um anúncio barato, daqueles que poupam palavras para economizar dinheiro. Mas é apenas uma reacção, em síntese, ao visionamento do debate que ocorreu no Brasil, na passada terça-feira, em torno do Acordo Ortográfico de 1990 (vulgo AO90). Como anunciado, a sessão (transmitida em directo pela TV da Câmara dos Deputados, daí poder ser vista em Portugal) contou com o deputado Jaziel Pereira de Sousa (o requerente, a presidir), o ex-lexicógrafo chefe da Academia Brasileira de Letras Sérgio de Carvalho Pachá, o escritor Sidney Silveira, a professora Ami Boainain Hauy e a embaixadora Márcia Donner Abreu, em nome do Ministério das Relações Exteriores (MRE, que por cá é Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou MNE) — única representante oficial, já que Ministério da Educação nem vê-lo (talvez a língua tenha pouco que ver com a educação, quem sabe?), tal como a Academia Brasileira de Letras (ABL), que, no seu comportamento distante e reumático, ficará para futura audiência no mesmo local.
Que não era nenhum café, como um leitor do PÚBLICO maldosamente sugeriu nos comentários à notícia da iniciativa, mas sim a Comissão de Educação (como também por cá se usa) da Câmara dos Deputados do Brasil, no coração de Brasília. Tudo muito institucional, como deve ser. Pois bem: o debate começou com as apresentações da praxe e não tardámos a saber as opiniões dos participantes. Sidney Silveira brandiu vários argumentos contra, dizendo mais tarde que o AO tinha sido concebido por “motivos diplomáticos e políticos” e que “está bom para ir para o ferro-velho, não para ser ratificado” (ou rectificado): “Não rectifiquemos, revoguemos.”
Sérgio Pachá (lexicógrafo, filólogo, professor de literatura, tradutor, poeta) voltou a explicar como o AO ressurgiu dos mortos nos idos de 2006-2007, o que já havia feito numa célebre entrevista em 2014 (e o resto desta história sabemo-lo bem), e sublinhou as “razões nada ortográficas pelas quais este mostrengo entrou em vigor”, dizendo que “a pressuposição, a crença, de que a ortografia de uma língua tem de ser idêntica em todos os lugares onde é falada é uma falácia desmentida pelos factos.” E, dando como exemplo o facto de ter vivido 15 anos nos Estados Unidos, onde se foi dando conta da diferença na escrita de vocábulos entre o inglês de lá e o de Inglaterra (sem que isso causasse quaisquer problemas), comparou o português de Portugal ao do Brasil: “É a mesma língua, mas não é a mesma fonologia.”
Na audiência brasileira, o acordo ortográfico perdeu por três a um. A diplomacia continua avessa às razões da língua
Ami Boainain Hauy, professora, autora de uma volumosa Gramática da Língua Portuguesa Padrão, além de apontar várias falhas e erros gramaticais às normas do AO90, revelando o “caos, o descaso, com que foi redigido”, declarou-se contra ele: “Abomino a redacção do texto e o seu conteúdo também.” E mais adiante: “Espero que seja revogado.”
De onde veio a concórdia, o assentimento, a paz? Da diplomacia! A embaixadora Márcia Donner Abreu veio então explicar o “quanto este acordo é importante para o Brasil”, até pela “projecção do poder do Brasil no mundo” (“poder brando”, ou “soft power”, como fez questão de sublinhar), garantindo que o acordo é o “núcleo duro” de uma “língua una”. Disse depois algo aterrador: que não passou para os filhos livros escritos na ortografia anterior (clássicos, até), ninguém saberá por que medos. Devíamos queimar as bibliotecas, será? Explicou ainda que o AO “pode ser aperfeiçoado”, mas que só ele garante “uma variante única da língua”, que as mudanças trazidas pelo acordo “não são gigantescas” (serão apenas estúpidas?) e que tem dificuldade em escrever “idéia” ou “européia” sem acento, mas foi-se acostumando. Porquê? Porque já há “uma geração inteira de brasileirinhos” que só conhecem este português. Ora o que aconteceria se lhes dissessem que “assembléia” tem acento? Teriam um ataque cardíaco? E lá veio outra vez o medo: a “língua começaria a se apartar”; e também a falsidade: o espanhol não tem variantes, a Academia unificou tudo. Deve ser por isso que nos correctores do Word há 22 variantes ortográficas, uma por país. Será pelo prazer de ocupar espaço?
Por fim, a chantagem do costume: ratifiquem que depois logo se rectificará. Já ouvimos isto a Malaca Casteleiro, ao Kaiser português do acordo (o MNE em exercício) e também ao ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, que assim foi perorar para a CPLP. Mas alguém ainda acredita nestas presumíveis “boas intenções”? Tiveram 30 anos para limpar nódoas e elas mantêm-se bem vivas. O que levará alguém a acreditar que o façam depois de todos caírem, finalmente, no engodo? Nada. Sidney Silveira lembrou, e bem, que Saramago vendeu muitos milhares de livros no Brasil com a ortografia de cá, e todos sabemos que os livros brasileiros sempre circularam por aí com a ortografia original sem que ninguém disso se queixasse.
Queixas, sim, há da diplomacia, esse monstro que, sendo avesso às coisas da ortografia, não hesita em maltratá-la continuamente a pretexto de um graal que ninguém viu nem verá. No Brasil, haverá mais debates. Com a ABL, espera-se. Mas se alguém responder “sim” ao anúncio do título, agradece-se. Os não merecem a língua que espezinham.
*Jornalista – Público de 05.Set.2019



O Maniqueísmo do cabo-verdiano, dito, intelectual

sábado, 31 de agosto de 2019


É deveras notável o maniqueísmo do acto elocutório e perlocutório, isto é, da organização mental e da consequente articulação vocal de qualquer projecto argumentativo do nosso nacional, sobretudo daquele que se julga ilustrado, e  que  até faz opinião.
Por norma, a tese a demonstrar do assunto em discussão raramente foge do esquema,  ou é preto ou é branco e ponto final!. É óbvio que me refiro à regra geral e não às excepções que sempre existem.
Não pretendo ser azeda. Longe de mim tal intento!... apenas noto e anoto factos que venho observando.
Então, vamos a dois deles que me parecem significativos para o contexto actual da nossa sociedade.
Por exemplo, os Linguistas da nossa praça ou similares, quando falam da importância do Crioulo nas ilhas e ao quererem demonstrar o seu indesmentível apego ao mesmo, só o conseguem demonstrar, deitando abaixo de seguida o português. Interessante é que a língua que lhes serve entretanto de veículo para transmitir esse mesmo mal-querer, ser exactamente, a língua portuguesa. Fantástico! Mas não deixa de ser bizarro.
As investidas bélicas sobre a Língua segunda, vão desde de tentativas de retirá-la dos seus ambientes naturais, como sejam a Escola e o meio académico no geral, passando pela agressão gratuita da mesma, enquanto veículo linguístico de ensino, indo até ao ponto de afectar negativamente os aprendentes da língua portuguesa.
Tudo isto, tem vindo a acontecer em Cabo Verde, numa suprema incongruência.
E, para agravar a situação, tal cenário, tem gerado entre nós, um séquito de acólitos mal preparados. Ávidos de protagonismo. Ansiosos por palco ou por holofotes, configurando-se ainda mais fundamentalistas do que os ditos “mestres” e que se prestam logo a difundir, a confundir e  a espalhar o mal nas mentes dos mais jovens falantes em fase de escolarização.
Pois bem, o mau resultado está á vista de todos. Basta pensarmos na má preparação escolar que levam os nossos alunos do 12º ano de escolaridade, do insucesso visível quando, na prossecução de estudos superiores, demandam universidades de Língua portuguesa, com destaque para Portugal.
O insucesso académico tem sido, para mal dos nossos pecados, visível para muitos estudantes, com consequentes e por vezes, irreversíveis danos ao projecto de vida.
Voltando ao tema proposto neste escrito, os nossos argumentadores não se limitam a louvar o Crioulo. Não, para o fazer têm de “abater” a língua portuguesa, esquecendo-se até de “quem é filho de quem...” fazem logo fogo cruzado à matriz da língua cabo-verdiana.
Enfim, de incoerência em incoerência, assim falam os nossos “opinion makers” ou, dito em português: os fazedores de opinião sobre uma determinada  matéria.
Outro exemplo, vem de alguns políticos, ou candidatos a tal, os quais, para elogiarem o africanismo – o negro – que nos completa mas que querem transformar num absoluto para o cabo-verdiano, desatam a destratar o outro lado – o branco – ignorando a nossa mestiçagem.
E é assim que se ouve de gente com responsabilidade, e convencida de que não está a ser escutada (nos dias de hoje, num mundo de redes sociais, tudo se sabe num instante e, em todo o lado) a não ser pelos que o rodeiam na ocasião, a desancar na parte europeia contribuidora igualmente para  a construção do nosso ser ontológico e, finalmente, para a nossa identidade também.
Que triste sina, a nossa! Ter de levar com isto !… É caso para se perguntar: “Quo vadis” Cabo Verde com gente com esta (não) preparação e esta forma de (não) pensar a nossa História e a nossa cultura mestiças?
De facto, chega a ser mais do que maniqueísta esta postura. Trata-se se calhar, de uma incapacidade analítica que afecta entre nós, os comentadores e os políticos no geral. Uma incapacidade de discorrer mais demorada e profundamente (falta de dados? Falta de algum estudo e de boa preparação sobre a matéria em análise?) sobre o assunto, sem “saltar” e fazer derivas precipitadas e as mais das vezes, mal fundamentadas que nada acrescentam ao tema em discussão. Muito pelo contrário, criam perturbações e equívocos desnecessários.
Ora bem, percebe-se que não estão aptos a fazer uma análise intrínseca do problema em si (o caso já aqui citado, o da Língua portuguesa). Ao invés, o que fazem é uma comparação imediata com outro (no caso, com o Crioulo) seja porque lhes convém retirar daí proveito imediato, seja porque não reflectiram com seriedade, não só sobre a importância do português na escolarização da criança cabo-verdiana, mas também  sobre o efeito devastador que o abandono da compreensão e da oralidade em língua portuguesa nas escolas, tem tido na escrita, na interpretação de conceitos, na leitura, entre outros efeitos perversos que esta situação vem provocando nos alunos e nos Quadros cabo-verdianos.
Em síntese, e para mal dos nossos pecados, o país já há muito que vem dando mostras evidentes de uma derrapagem calamitosa em termos de poder erigir uma capacidade, uma intelligensia local que contribua para o desenvolvimento das ilhas, quer  do ponto de vista económico, quer social, quer ainda cultural ou, mais ainda, da criação de uma sociedade cidadã e com opinião, demonstradora de conhecimentos e de saber.
Infelizmente, nada disso tem acontecido.
Para nós, torna-se altamente perturbador pensar que a realidade das ilhas vem sendo assim. Mas ainda mais confrangedora, é enunciá-la. (o que me está a acontecer com este escrito).
Mas atenção, esta forma de pensamento dual, do dito intelectual cabo-verdiano, não é só na questão linguística ou, sobre assuntos políticos que ele se apresenta mais visibilidade. Não, isto configura-se nos debates sobre matérias díspares, que ao nosso país respeitam.
Resumindo a questão, falta entre nós um argumentativo ou, um argumentário mais acabado, mais elaborado, menos maniqueísta (preto ou branco) mais “paleta de várias cores,” ao equacionarem-se os dados de determinado problema. Ou seja, problematizar a questão. Abordá-la de vários e diferentes ângulos. Uma sugestão: interroguemo-nos sempre. Coloquemos várias perspectivas. Conscientizemos as nossas dúvidas. Analisemos sem pressas. Problematizemos com mais interrogações e menos certezas, a matéria sobre a qual, no momento, discorremos. Assim, abeirámo-nos da cultura. Ou, no mínimo da ilustração.
Termino este escrito com uma interpretação – referindo-se à cultura – da portentosa escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luís: (...)“A cultura é o trajecto a percorrer entre o viver e o conhecer, entre a certeza e a interrogação que a segue de perto(...)” In: «Contemplação Carinhosa da Angústia».