A Balada do Padre Simões recordada nos 100 anos da Cidade de São Filipe, ilha do Fogo.

quarta-feira, 30 de março de 2022


1922-2022. A cidade de São Filipe encontra-se em plena comemoração do seu primeiro centenário como cidade.

 Salvé! São Filipe!

Mas antes de entrar propriamente nas considerações sobre a cidade centenária, gostaria de destacar uma figura religiosa que a cantou e a elogiou com verdadeiro afecto e singularidade. Trata-se de padre Simões com a sua inesquecível, “Balada de São Filipe” extensiva à ilha toda.

 Com efeito, Padre Cláudio Simões terá chegado a Cabo Verde, em 1946. Natural do Alentejo e pertencendo, creio eu, à Ordem do Espírito Santo.

 Aproveito a ocasião para anotar aqui uma pequena curiosidade, na ilha do Fogo à semelhança da ilha Brava, os padres eram e são ainda creio eu, em maioria, da Ordem Franciscana, os Capuchinhos, e regra geral, provenientes da Itália, quer nacionais daquele país, quer cabo-verdianos aí formados. 

Ora bem, retomando, padre Simões exerceu o seu ministério na ilha do Fogo, a partir do ano de chegada de Portugal. Ele distinguia-se na sua forma de estar e de actuar, com a comunidade foguense. Apresentava filmes, cantava «Santa Luzia» Avé Maria», «Solo Mio» e outras canções famosas com a sua portentosa voz de tenor. Tanto nas missas, como fora delas. Organizava espectáculos musicais com jovens. Aliás, ele foi mais tarde, quando transferido para a ilha de São Vicente, professor de Canto Coral na antiga escola Técnica e Comercial de Mindelo.

Eis um testemunho muito elucidativo e um comentário eloquente do Professor José Fortes Lopes - no “Blog” «Praia de Bote» 2013 - recordando a passagem do Pe. Simões por Mindelo:

“O saudoso Padre Simões (talvez 50-74) foi para mim uma referência e para milhares de jovens mindelenses da geração dos anos 70. Desde pequenito conheci-o nos Salesianos do padre Filipe (onde frequentei a escola primária, uma escola que me formou humanamente, espiritualmente etc.), (…) nas missas, nos cânticos corais e actividades culturais que esta escola organizava. Padre Simões tinha uma voz que podia quebrar um copo de cristal. Meu professor de música no Liceu, homem bom, jovial, dado ao convívio com os jovens, convivia basicamente com toda a mocidade mindelense. Muito participativo na vida cultural mindelense animava festas (tocava piano num conjunto), grupos musicais e culturais diversos naquele clima são, despreocupado e ‘bon enfant’ que se vivia no Mindelo do início dos anos setenta.

Padre Simões desapareceu de S. Vicente em 1974 e parece
que nunca mais voltou nem ouvi falar dele, nem se falou mais dele. Terá sido escorraçado pela arruaça e a canalhice?

É das pessoas que merecem ser homenageadas pela cidade do Mindelo (…).”Fim de transcrição.

 O padre cantor esteve durante os primeiros anos 50 ao serviço da comunidade cabo-verdiana nos Estados Unidos, onde fez um trabalho notável de animação religiosa e cultural com documentários ilustrando as tradições cabo-verdianas e alentejanas, e as demonstrações de fé a Nª Senhora de Fátima. (vidé Artigo de Joaquim Saial «Crónica de Dezembro de 2013”. “ O Padre Cláudio Simões Um Missionário Alentejano Entre os Cabo-verdianos da América”. Publicado no «Praia de Bote».

 Em meados de 50, ei-lo de regresso ao Fogo que só deixaria nos finais da década de 60, rumando para Mindelo. Aí se fixou até à independência das ilhas.

Na mesma linha das memórias que Pe. Simões deixou em nós meninos, adolescentes, registo aqui a lembrança que guardo do Pe. Simões do Fogo, mais concretamente, dos Mosteiros da minha infância - dos meados, finais, dos anos 50 do século passado - onde ele ia muitas vezes oficiar e apresentar filmes e que foi objecto de uma passagem no livro «Contos Com Lavas» 2010. Transcrevo: “ (…) Ah! Os filmes que o Padre Simões por alturas especiais exibia!... Como eram por nós esperados com ansiedade! Ora pelo Natal, ora pela Páscoa, ou então por ocasião de algum santo padroeiro, lá aparecia o Padre Simões pela estrada do Espigão. Vinha a cavalo ou de moto, da cidade de S. Filipe, trazendo na mochila pesada aquilo que supúnhamos ser a suprema magia – a máquina de projecção. O ronco já familiar da mota atravessando a povoação em direcção à Fajãzinha, local de hospedagem do padre, provocava um alvoroço geral. Uma intensa excitação tomava conta de nós. Saíamos de casa a correr para anunciar a boa nova aos que porventura não se tivessem apercebido da chegada. Para nós, o padre Simões era um padre especial que a nossa imaginação situava a meio caminho entre o artista que compunha e que cantava com voz de tenor (…) e o homem da sétima arte. (…).” In «A Incendiária» pág. 118.

Eis agora aqui transcrita a célebre “Balada de São Filipe,” um hino de afecto à cidade que ele amou e de exaltação da ilha do vulcão.

I

Ilha do Fogo, terra ditosa

Recorda agora o teu passado

Ao som da morna, quero cantar

Tua beleza ao sol doirado

II

Teu nome santo de São Filipe

No céu reluz a rebrilhar…

Casas velhinhas que eu amo tanto

Ondas de espuma a murmurar…

III

Águias serenas rasgando os céus

Ponta bem alto lá bem cimeiro,

O campanário da tua igreja

Azul e branco anjo fagueiro…

IV

Nas tuas ruas cheias de paz

Deixa passar quem a ti vem,

Neste silêncio tão recolhido

Vive-se alegre, mora-se bem.

V

Nas noites calmas, luarizadas…

Ergue-se ao longe o teu vulcão

Raiando luz, fogo sagrado

Que purifica o coração…

 

 Posto isto, retorno à acidade centenária.

Salvé! São Filipe ou, San Filipe!  -Como diziam os seus naturais mais antigos - pela bonita idade de 100 anos!

Nunca é de mais recordar que a actual cidade, teve origem remota no antigo aglomerado populacional que foi fundada nos primórdios do povoamento das ilhas, São Filipe, é povoado logo a seguir à Ribeira Grande, primeira capital na ilha de Santiago.

“São Filipe, capital da ilha constituía o aglomerado populacional mais antigo de Cabo Verde depois da Ribeira Grande, Cidade Velha na ilha de Santiago. A sua fundação e povoamento ocorreram um quarto de século após o descobrimento de Cabo Verde pelos Portugueses em 1460, e ter-se-ia verificado ainda antes de 1493, pois a relação de entrega de alguns objectos de culto divino a essa ilha deixa pressupor. Os historiadores costumam situá-lo entre 1470 e 1491

Na data da sua elevação à categoria de Cidade, a vila contava com 4 mil habitantes e uma área de apenas 25 quilómetros quadrados, sendo que a Vila na altura era apenas um vestígio de um passado que se cria prospero. A dinâmica do crescimento urbano de São Filipe extravasou, há muito os limites do seu centro histórico.”

Os dados ora transcritos e acrescentados, são originários de diversos apontamentos históricos consultados, de autores vários, alguns não identificados, e pertencentes a instituições governamentais ligadas à ilha do Fogo.

Com efeito, a 15 de Julho de 1922, sendo governador de Cabo Verde, Filipe Carlos Dias de Carvalho, foi publicado no Boletim Oficial nº 28 de 15/07/1922, o diploma legal, (Decreto nº7:008 de Outubro de 1920) que elevava a então Vila de São Filipe - Bila, como local e popularmente era denominada – à categoria de cidade.

Assim rezava o articulado decisivo da mudança de estatuto urbano de São Filipe:

Artigo 1º É elevada à categoria de cidade a Vila de São Filipe que conservará o mesmo nome.

Artigo 2º Fica revogada a legislação em contrário.

Cumpra-se.

Residência do Governo, na cidade da Praia, 12 de Julho de 1922. – Filipe Carlos Dias de Carvalho, Governador.

 Na realidade, a Vila de São Filipe, já possuía na altura, algumas infra-estruturas que lhe permitiram alcandorar a cidade, tais como, água canalizada da Praia Ladrão, arruamentos calcetados, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, casas bem construídas, jardins, ou praças, entre outras infra-estruturas citadinas. A electrificação chegaria mais tarde, em 1939.

Nascia assim, e por muitos anos, a terceira cidade de Cabo Verde, depois da cidade da Praia e do Mindelo.

O interessante é que a cidade de São Filipe mantém ainda – nos dias de hoje - a traça de uma pequena urbe antiga, embelezada pelas suas casas assobradadas ou sobrados como são designadas as moradias de aspecto senhorial que a distinguiam e ainda a distinguem das outras urbes nacionais, e que ainda constituem o seu principal património construído. Uma cidade em jeito de um anfiteatro, de um declive acentuado, e sobranceira ao mar, do alto de um promontório.

Uma característica curiosa que a cidade manteve até à independência de Cabo Verde,1975 e pouco mais, se não me engano, foi sem dúvida, a limpeza das suas ruas que a fizeram ser considerada como a cidade mais limpa do Arquipélago.

De facto, a cidade São Filipe era de uma limpeza irrepreensível! Era uma cidade higienicamente tratada que dava gosto calcorrear as ruas bem varridas do seu centro histórico. Até se contavam histórias e algumas anedotas sobre a preocupação de limpeza - levado a extremos - quer pelas autoridades, Administradores do Concelho, quer também, pelos moradores para com a sua cidade.

Na mesma linha, aproveitando a passagem dos 100 anos da cidade de São Filipe, gostaria de prestar, ainda que singela, uma homenagem aos seus famosos e celebrados homens de Letras, da música e do pensamento; de gente de teatro, como Aníbal Henriques com as peças satíricas; de compositores como B´Leza (oriundo de São Vicente) mas que se encantou com São Filipe e a ilha, e na hora de a deixar registou-a saudosamente na morna “Hora de Bai”; (Não confundir com a “Hora de Bai” de Eugénio Tavares) de Pedro Rodrigues, outro famoso compositor da geração mais nova do que a dos citados, e que canta a ilha com renovado afecto em mornas e em coladeiras.

Relembrar igualmente os seus poetas, prosadores e ficcionistas de mérito, de entre os quais, se destacam: Henrique Vieira de Vasconcelos, Carolino Monteiro, Pedro Cardoso, Mário Macedo Barbosa, António Carreira e Henrique Teixeira de Sousa.

Falar da cidade hoje centenária, é também nomear os descritores/historiadores mais directos da sua geografia, da sua história humana e social; das festas das suas bandeiras dos santos populares, e dos seus sobrados, como Teixeira de Sousa, Félix Monteiro, Miguel Alves, Gilda Barbosa, Armindo José Barbosa, entre outros.

Saudar igualmente, o seu mais vivo porta-voz, Fausto do Rosário que continua a testemunhar  oralmente, com saber e com gosto, a História da sua cidade para quem a deseje conhecer.

Celebrar São Filipe, é também musicar a ilha do Fogo de toadas e de ritmos característicos, em que sobressaem o “rabolo,” a “mazurca,”  a “talaia-baxo,” a "manidja" e o "trabessado."

É igualmente recordar as suas cantadeiras e os seus cantadores populares, tais como, Ana Procópio e Príncipe de Ximento e os demais que ficaram por citar. 

Enfim, a força da palavra escrita, dita e cantada, fixou e celebrizou a cidade de nome santo, que festeja este ano a bonita idade de 100 anos.

 E assim termino este escrito, não sem deixar de exclamar: Viva! Viva! São Filipe!

O Meu “quid pro quo” com Bana

sábado, 19 de março de 2022

 


Estávamos nos meados da década de 90, do século XX, era eu a responsável pelo Sector da Cultura do Governo de Cabo Verde, quando o grande e famoso cantor Bana me solicitou uma audiência.

Não houve demora em recebê-lo. Pelo contrário, acordámos logo a data e a hora e recebi-o com toda a simpatia, gentileza e muito prazer. Tratava-se de uma voz prestigiada de que eu gostava. Aliás, tal como toda a minha geração, desde adolescência que ouço Bana com prazer acrescido; apreciava sobretudo, a forma como ele interpretava as coladeiras mindelenses.

Pois bem, feita esta declaração de princípio, volto ao principal: dizia eu, recebi o cantor que tinha como propósito da audiência solicitar ao Ministério da Cultura o financiamento de um seu disco para memória futura. Isto é, pretendia o intérprete, editar uma selecção musical que teria como título “As Doze ou, as Vinte Melhores Canções do Bana” ou algo similar. Já não o tenho tão de memória. Só sei que ele queria algo semelhante ao que havia já sido feito em Portugal com o título: “As 12 Melhores Canções da Amália,” pela discográfica da portentosa fadista portuguesa.

Achei a ideia interessante, disse-lhe que tínhamos de facto uma verba destinada a este tipo de eventos, mas o financiamento respeitava normas e regulamentos a cumprir e pedi-lhe que nos submetesse esse seu projecto para avaliação uma vez que teria, por força dos regulamentos, de ser aprovado através de um concurso onde entrariam outros projectos enquadrados nos mesmos termos de referência.

Devo esclarecer o leitor, que naquele ano, coube ao orçamento de investimento do Ministério da Cultura, um montante destinado a incentivar e a financiar projectos no domínio da arte e do artesanato, a fundo perdido, como se designam esses financiamentos sem retorno. Tudo em nome da criatividade e do engrandecimento da produção artística.

Para que tudo funcionasse no quadro estabelecido pelos termos de referência e fosse bem conduzido, o Ministério tinha nomeado um Júri, independente, constituído por personalidades do meio das artes, da música e também de outras proveniências. As decisões do júri eram soberanas. Aliás, um princípio que subjaz normalmente nesse tipo de concursos.

Ora bem, feita a escolha final, o Júri decidiu por dois projectos que melhor respondiam a dois parâmetros tidos como fundamentais para a selecção, ou seja, projectos que garantissem formação no domínio das artes e do artesanato e emprego, a jovens em equilíbrio paritário de género.

Nesta conformidade, foram financiados, (oxalá a memória não me traia!) o projecto de Artesanato, da Olaria das Mulheres de Fonte Lima, em Santiago e outro do Atelier-Mar, em São Vicente.

À titular da pasta da Cultura coube e cabia nessas situações, homologar (ou não, obviamente com fundamentos) a decisão do Júri.

Assim sendo, não houve nada a fazer com o projecto do nosso conhecido cantor. Os critérios para a classificação final dos projectos submetidos a concurso eram bem claros, e o júri mais não fez do que os seguir correctamente.

Posteriormente – muito mais tarde, já eu não estava nas lides políticas – tive conhecimento da entrevista dada por Bana à Rádio em Mindelo, em que ele me criticou asperamente pela não premiação do seu projecto, e de que me teria escrito uma carta a “descompor-me.”

Infelizmente, tal carta nunca me chegou às mãos, pois que, seria uma oportunidade para eu lhe ter respondido e explicado como se passaram as coisas no concurso, pois que era disso que se tratava.

Lamentei na altura o facto. Penso ter sido da parte dele, um amuo, uma zanga que não fazia qualquer sentido, uma vez que as normas eram claras e, como em qualquer concurso, sentindo-se ele lesado, podia sempre “recorrer.”

Assim foi o meu “quid pro quo” com o famoso cantor Bana, tal como vem no título deste escrito.

 Não obstante tudo isto, continuo a ouvi-lo com particular deleite e a voz dele sempre a encantar-me.

 

Mendigos e nada Altivos!

domingo, 13 de março de 2022

 


Eis um título que parafraseei do romance «Mendigos e Altivos» de Albert Cossery[i], o escritor franco-egípcio que usou com imensa mestria a ironia, esta figura de estilo e do pensamento que por vezes se torna indispensável para a escrita de assuntos sérios e que só ironizados, atingem o objectivo pretendido.

E a que propósito vem isto tudo? Passo a explicar.

Aqui há dias, ouvindo a rádio, (RDP-África) escutei um comentador, comentador aliás, ̶ devo dizê-lo em abono da verdade  ̶  que me merece créditos pela forma assertiva com que costuma abordar os assuntos relativos ao país de origem e à política internacional. Mas desta vez, para o meu espanto e para a minha estupefacção, ̶  quando o painel comentava a recente visita do Primeiro-Ministro português à Guiné e a Cabo Verde, com finalidades de cooperação, acertos da dívida e de outros projectos – saiu-se com esta: (que procurarei transmitir em discurso directo, pois se o faço em discurso indirecto, o leitor é capaz de pensar que se trata de uma interpretação minha das suas palavras. Ouvi-o com atenção, em directo, na sexta-feira e sem filtro, como se costuma dizer. Aqui vai: “(…) expresso a minha indignação, o governo do meu país não teve coragem de o fazer, mas eu faço-o agora, a minha indignação por Costa não ter visitado o meu país” e continuava nesta toada, “um país que está a precisar de ajuda,” “(…) que está ajoelhado (...)”

Que precisava com premência dessa visita do Primeiro Ministro português, se calhar, “como do pão para a boca,” não? …

Mas que é isto? Meus senhores! Um filho a chorar, a rogar pela visita do Pai? Será?..

Então meu caro analista, a Independência serviu para quê? Para que os rogos continuassem? A sua indignação foi muito infeliz.

Haja dignidade!

O normal neste caso e seria mais sensato, pedir contas à (in)competência na gestão do seu país conduzido por nacionais que levantam essa bandeira há perto de meio século, e não, a um governo alheio.

Mas não, culpa a não visita do Governante de país amigo, Portugal, pelos males actuais (2022) do seu país, independente desde 1975?? E indigna-se pelo facto do PM português não ter visitado o seu País, num rebate que configura alguma obrigação da parte dele, ou então, algum ciúme?

 Nunca mais deixamos de pedir?

Não há aqui qualquer coisa que roça à ironia?

Ora com franqueza!... Mais valia, já agora, ter pedido à antiga Metrópole que o recebesse de volta!? Não? Se tivesse sido com essa finalidade eu havia de perceber a lógica e a coerência nessa indignação confessada.

Mas assim! Convenhamos!...

Só me resta acrescentar: “Mendigos e nada Altivos”. Bem ao contrário dos mendigos do livro de Cossery.



[i] Albert Cossery,” escritor franco-egípcio, nasceu no Cairo em 1913 e faleceu em Paris em 2008. Foi um escritor de Língua francesa. Considerado um mestre em escárnio, A. Cossery foi também um profeta do prazer e da preguiça.” Transcrito da biografia que o acompanha.

Uma curiosidade: Cossery escreveu 8 romances. Com a periodicidade de um romance por cada 8 anos.

Outra curiosidade: viveu a maior parte da sua vida num quarto do mesmo hotel em Paris, onde publicou todos os seus livros.

 

A Nossa Língua Cabo-verdiana e a linguagem belicista dos seus autoproclamados “combatentes”

terça-feira, 1 de março de 2022

 


Vem isto a propósito da excelente Entrevista concedida pela linguista e professora Dulce Irene Lush Ferreira Lima, sobre a (co-) oficialização da Língua Cabo-verdiana (LCV) ao semanário «Expresso das Ilhas» de 23/02/2022, transcrita neste “Blog” e cuja leitura recomendo.

A entrevistada menciona, a determinada altura, o tipo de linguagem que vem sendo utilizada quando o assunto é a LCV. Uma linguagem acentuadamente (ou acintosamente) belicista sobre a mesma, propalada e divulgada, (ouvidas e lidas) em várias declarações públicas e publicitadas aqui nas ilhas.

É sobre isto que adiante falarei.

Antes de entrar propriamente no tema sugerido no título deste escrito, queria muito brevemente recordar que aquando da institucionalização do Crioulo, como Língua Cabo-verdiana em 1999, era eu Deputada e Primeira Vice-Presidente da Mesa da Assembleia Nacional. Recordo-me de que o postulado no Artigo 9º da Constituição então revista, foi votado por unanimidade, repito, por unanimidade, na generalidade, na especialidade e, mais tarde, na votação final, global.

Já vivíamos em democracia desde 1991; a pluralidade instalada no Parlamento com três bancadas distintas de Deputados.

Logo, não houve voto algum contra, dos então representantes da Nação eleitos para a legislatura de 1996-2000. Tudo pacífico.

Recordo-me do então Primeiro-Ministro Dr. Carlos Veiga, na condição de Líder do saudoso MPD, acompanhado do líder parlamentar da respectiva bancada, terem pedido a minha colaboração na revisão da redacção do texto para o Artigo que consagrava a visibilidade constitucional da Língua Cabo-verdiana, o que aceitei com toda a disponibilidade e agrado. Lembro-me, quase 23 anos passados sobre o acontecimento, que a minha proposta de redacção começava assim: “ (…) A Língua Cabo-verdiana e a Língua Portuguesa são ambas nacionais e oficiais” (…) e a minha redacção, agora cito de cor, já se me foi da memória, mas sei que continuava nesta linha: o Estado criaria as condições para que fosse cumprido o desiderato pretendido em todos os documentos e pronunciamentos públicos, fossem eles de natureza oficial ou privada e, finalmente, para que o falante cabo-verdiano se afirmasse realmente bilingue.

A afirmação de princípio de que as duas Línguas eram “nacionais e oficiais” seria na minha opinião e dada a relativa perenidade constitucional, uma base de real paridade das nossas duas Línguas, e daria horizonte temporal para a elaboração de uma metodologia adequada às instituições académicas, administrativas, públicas e privadas, entre outras, que assim se preparariam para atingirem a finalidade pretendida.

 Não a aceitaram assim. Compreendi o motivo disso. Tratava-se na altura, por um lado, de apenas se colocar como foco central na nova redacção do Artigo 9º da Lei magna a Língua Cabo-verdiana em destaque constitucional; mas por outro lado, havia o escolho real, que tinha a ver com a dificuldade material, pelo investimento que se adivinhava vultuoso para esse projecto, e que, pelos vistos, continuou a ser porque todos os governos subsequentes, até aos dias de hoje, nada acrescentaram de significativo e de substantivo nesta matéria. Possivelmente, porque quem está na gestão do país sabe muito bem, que outras prioridades se apresentam com maior premência. País pobre e dependente em tudo - tanto na sua sustentabilidade, como no seu desenvolvimento - da ajuda internacional. “Para bom entendedor…”

É sempre bom lembrar esses interessantes e aparentes “pequenos factos” como fez a minha colega Dulce, na entrevista e cujo extracto a seguir transcrevo: “ (…) Mas leio também um paradoxo, o qual se tem manifestado de forma cada vez mais visível: a partir do momento em que a Língua cabo-verdiana é constitucionalizada, em 1999, é quando se ouvem as maiores reivindicações e denúncias de uma suposta “falta de dignificação” e da sua “inferiorização”. Quando ela não era sequer considerada juridicamente, ou seja, nos primeiros 25 anos da república não se ouvia esse tipo de acusações.” (Fim de transcrição).

Posto isto, passo a discorrer um pouco relevem-me a tentativa irónica, mas só apoiada nesta figura de estilo, conseguirei escrever sobre a linguagem e a adjectivação belicista que os participantes desta “batalha campal” têm trazido à liça.

Com efeito, trata-se de uma autêntica “guerra civil,” a tal ponto, que uma notícia sobre as celebrações do Dia da Língua Materna trazia o seguinte cabeçalho: “A Guerra das Línguas.” Elucidativo, não é?

De facto, uma autêntica “peleja declarada” em palavras, aquela que tem acompanhado os audazes e autoproclamados “guerreiros e soldados” da LCV, quer nas redes socias, quer nos pronunciamentos públicos, até, por entidades alegadamente responsáveis. Uma luta feroz na “linha da frente de combate” contra a “raça diferente” (…raça? Mas que raça? Ouviram bem? oriunda possivelmente de Marte (?) E que povoou no século XXI as nossas ilhas (?). Não querem ver o desplante(!) dessa raça de avantesmas marcianos?

Estamos sem dúvida numa “guerra sem quartel,” numa “batalha” contra os cabo-verdianos para “a consolidação da nossa independência,” contra “o colonialismo” cabo-verdiano. Tudo isto e muito mais, são expressões utilizadas em 2022?

Aonde queremos chegar com este tipo de discurso que cria anticorpos nos pacíficos falantes e amantes da LCV? Que a usam, que a falam, que a escrevem, que a cantam, cada um na sua variante, com afecto, sem guerras desnecessárias, sem guerreiros, sem combatentes, apenas, e tão simplesmente: “com amor genuíno e nunca desmentido” como escreveu em 1922, Augusto Casimiro, escritor português e bravense de coração, que, ao lado de Eugénio Tavares, se referia ao afecto que o falante e o poeta cabo-verdiano tinham para com a sua língua materna.

 E mais, sem alusão ao “colonialismo,” à “raça,” (já agora que tal a “religião” e a “orientação sexual”? também fazem parte deste léxico actual, aguerrido e folclórico?).

Mas, enfim, tudo serve para puxar à guerra verbal: a “independência,” a “linha da frente do combate,” aos que “atacam o Alupec”. Eu sei lá!...

Mas, digam-me, meus senhores, para quê esta incursão bélica, ao falante cabo-verdiano? Como verbalizou um dos famosos combatentes, da causa da Língua Cabo-verdiana “com baioneta apontada e espingarda ao ombro”?

“Baioneta apontada”? A quem? Ao irmão cabo-verdiano? E para quê?

São capazes de me explicar tanta e tão tamanha violência?

Vamos lá mas é abaixar a baioneta e guardar a espingarda, se faz favor!

Ganhemos todos serenidade. A bem da nossa sanidade intelectual.

Volto a perguntar, para quê este “arsenal” de palavras embebidas em armas de guerra? Para quê tudo isto?

“Não havia necessidade”! …“Não havia necessidade!” Já dizia um cómico bem conhecido.

As redes sociais estão aí, a “ferro e fogo,” numa cruzada quase ”terrorista,” visando quem ouse ter opinião diferente da que eles proferem nesta matéria.

Deus meu! Para quê tanto agravo?

Sociologicamente analisados, mais parecem “fundamentalistas” vingativos, ou “novos-ricos” deslumbrados com a descoberta de “armas vocabulares” para “combater” e “bombardear” o pobre falante cabo-verdiano, indefeso, “entrincheirado em facções,” sitiado em “bunkers,” sentindo-se intimidado, amedrontado e espantado com a ferocidade destes patrícios valentões!…

O que se ganhará com esta autêntica guerra fratricida? Dividir a sociedade cabo-verdiana? De um lado os “bons”, e do outro, os “maus”? Ou de um lado os “nacionalistas” e do outro os “colonialistas”?

Ora, e se ganhássemos bom senso? E se parássemos esta guerra – de palavras bélicas – absolutamente desnecessária?

E que tal se fôssemos mais pedagógicos? A laia de um professor que ensina com sabedoria e assertividade a matéria, sem descurar o afecto para com os seus discípulos… e, no caso, seus patrícios?

A bem da Língua cabo-verdiana e da paz nestas ilhas, vamos declarar tréguas a este vocabulário de guerra inútil, e sentarmo-nos todos à volta de uma mesa para um diálogo pacífico e frutífero!

Concordam? Se sim, bem-vindos ao Clube para a Paz e para a concórdia linguística nacional!