O registo histórico e o discurso ficcionista - Ou quando o Escritor substitui o Historiador -
terça-feira, 29 de abril de 2014
Existe uma quase convicção de que determinados factos, episódios e histórias que se passaram – nas ex-Colónias africanas portuguesas – durante os processos tumultuosos e muitas vezes confusos que configuraram os momentos após o “25 de Abril” de 1974, o chamado “Movimento dos Capitães” em Portugal, não figurarão nos respectivos compêndios de História (a dita ciência objectiva de narração de factos acontecidos).
Não esquecer que se por um lado, a revolução de Abril de 1974, trouxe a descompressão psicológica e social nas antigas Colónias africanas portuguesas, pondo fim às lutas armadas nas três frentes de guerra, Angola, Guiné e Moçambique; por outro lado, foi seguido de episódios sangrentos vividos no período imediato às independências, com as guerras civis (Angola e Moçambique) e com actos de tortura, numa autêntica barbárie (Guiné-Bissau).
Esta quase convicção, repito, de que estes episódios não farão parte dos registos históricos, explica em parte, a necessidade que o escritor sentiu ao preencher um vazio que o historiador não realizou até esta.
Acredito mesmo que alguns escritores/ficcionistas, nomeadamente, alguns oriundos dos países do chamado PALOP. (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), intuíram o fenómeno com tamanha clarividência, e felizmente que tal aconteceu, pois que assim, qualquer leitor atento, poderá verificar que no entretecer do enredo dos seus romances, estes mesmos autores fixaram em quase paralelo, os dois registos escritos – o histórico e o ficcionista – numa autêntica necessidade de contar ao leitor a odisseia por que passaram alguns dos seus países e as sociedades dos mesmos, durante e imediatamente após o processo da independência e da descolonização.
De facto, descrevem os seus autores e de forma assaz referenciável, os mecanismos engendrados; as guerras civis; a violência psicológica e física exercida sobre os cidadãos que não estavam de acordo com determinados procedimentos dos novos senhores do mando. O permanente idealismo de alguns, o desejo de agarrar a vida mesmo em situações limites; as ditaduras dos partidos únicos. A falta de liberdade, a inexistência de democracia, as "intentonas" e as “inventonas;” o novo-riquismo da classe social mais abonada e ligada ao novo poder instalado com o advento da independência e os remoques à riqueza repentina demonstrada sem pudor por alguns dos seus membros; são entre outros, tópicos, os que esta literatura pós-moderna, pós-colonial, melhor consagrou.
Com efeito, de tudo isto, alguns romances de escritores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, nos dão conta ao longo das histórias registadas e ficcionadas, como que com a nítida percepção, de que nada disso será talvez, registado na História recente pelos historiadores dos seus países de origem, cuja maioria se tem limitado a entoar loas aos feitos….
Neste capítulo, ganharam vanguarda em relação aos próprios historiadores, os quais, afinal, com o seu registo dito e tido por objectivo, poderiam e deveriam fixar para a posteridade os mesmos acontecimentos.
Daí que, os eventos históricos como parte integrante de muitas narrativas, acabam para nos tentar a classificá-los de romances históricos.
Passo a exemplificar, algumas obras demonstrativas, por ordem do ano de publicação do livro.
Comecemos pelo romance, «Entre Duas Bandeiras» de Teixeira de Sousa, publicado em 1994. Desfilam ao longo da sua leitura, os episódios que se passaram em Mindelo, na ilha de S. Vicente, logo após o 25 de Abril de 1974 e durante o período que o medeia e que vai até a data da independência do Arquipélago. A par da história do protagonista, “ Gaudêncio Pereira” que almejava (era o sonha da vida dele) ser sócio do Grémio Recreativo do Mindelo, e assim conviver com a fina-flor da cidade; conhece-se a movimentação política agitada que a cidade de Mindelo, vivia então. O narrador omnisciente, sobre isso vai transmitindo o seu ponto de vista ao leitor.
A existência da UDC (União Democrática Cabo-verdiana) cujos membros acabaram presos no Tarrafal (1974/75) e que pretendiam a independência das ilhas, mas não num quadro da unidade Guiné/Cabo Verde, o então “supremo e indiscutível dogma” do PAIGC, (o partido político que lutou pela independência, mas que não aceitava qualquer concorrência nas ilhas). Os confrontos por vezes carnavalescos nas ruas de Mindelo de então; os sucessivos comícios que se realizaram durante o mês de carnaval e que por vezes se confundiam e se fundiam com e/nos os desfiles dos blocos do rei Momo. Os comunicados constantes da Rádio Barlavento, ainda com liberdade de expressão plural, antes da sua “tomada” pouco democrática, pois que se tratou de um assalto à propriedade privada, pelos apoiantes do Partido mais forte. As ameaças físicas e psicológicas sobre algumas personalidades influentes de Mindelo que os novos senhores e os seus seguidores, apodavam de “burgueses”, de “alienados” e “aliados” do colonialismo. Tudo isto, foi transfigurado em ficção, em personagens que compõem o magnifico romance «Entre Duas Bandeiras», cuja metáfora do próprio titulo, remete o leitor para o tempo histórico da acção do livro.
Passando agora ao romance «Estação das Chuvas» de José Eduardo Agualusa, publicado em 1996.
Convinha situar-se o escritor Agualusa, na segunda geração, ou na nova geração de escritores angolanos, os da post-independência, do post “utopia” e já da fase do desencanto.
A narrativa do livro está historicamente datada, ou, melhor dito, apresenta vários acontecimentos datados, que configuraram quase toda a cadeia de episódios, desde a preparação ideológica; passando pela luta para a independência; indo até aos primeiros tempos do governo do MPLA.
Embora a obra focalize com maior ênfase, o longo período da dramática e destruidora guerra civil (1975-2004) e que no universo romanesco culmina com os trágicos acontecimentos de 1992, em que “desaparece” a protagonista da história, Lídia do Carmo Ferreira.
Ora, “Lídia do Carmo Ferreira, poetisa e historiadora b>angolana, misteriosamente desaparecida em Luanda em 1992, após o recomeço da guerra civil.” O romance de José Eduardo Agualusa “transporta-nos desde o início do século, até aos nossos dias através de um cenário violento e inquietante. Um jornalista (o narrador) tenta descobrir a história proibida do movimento nacionalista angolano; pouco a pouco >(…) compreende que o destino de Lídia já não se distingue do seu.” (transcrito da contra-capa do livro).
O autor fornece ao leitor uma admirável descrição histórica de Angola em diversos períodos da sua história mais recente, trazendo ligado também, o seu passado colonial.
Mais perto de nós, porque aqui nas ilhas, Armindo Ferreira publicou em 2002, «O Passaporte» narrativa, dramática, descrevendo a pungente saga, vivida pelo protagonista da história e que se passa em larga medida, em Bissau.
No universo da narrativa, temos a ponte entre uma Lisboa do imediatamente antes do “25 de Abril” e Bissau de 1974/75 já independente.
Pois bem, ao tempo, e nessa Lisboa, vivia, estudava e trabalhava uma franja significativa da juventude cabo-verdiana e guineense, constituída sobretudo por estudantes universitários, os quais ansiavam – embora com graus diferenciados e distintos de entendimento, de envolvimento – o futuro próximo e promissor que o projecto da independência sob o PAIGC, traria (supunha-se) aos dois países, à Guiné a às ilhas de Cabo Verde.
O leitor apercebe-se das discussões ditas “ideológicas” bastamente travadas entre as personagens mais salientes do texto.
Curiosamente, o protagonista do «O Passaporte» não é estudante universitário, e nem é “ideologicamente” marcado. Descobre-se que fora guerrilheiro, ferido em combate, feito prisioneiro pelas tropas portuguesas que o levaram para Portugal.
Trata-se de “Abdú Konté” que após a recuperação dos ferimentos de guerra, se tornou operário especializado numa oficina de metalurgia, onde era reconhecido pelo mérito com que desempenhava as tarefas. Casado, com uma filha pequena e com a vida a correr-lhe bem, sobrevieram-lhe entretanto as saudades da terra que o fizeram voar até Bissau. A partir da chegada à Guiné e até à “sua morte, Abdú” conhece um autêntico calvário de tormentos, de perseguições que quase o levam à loucura, por causa da retenção do seu passaporte pela então tenebrosa polícia guineense.
É uma história a um tempo, comovedora e revoltante.
«O Passaporte» de A. Ferreira é um “contundente e dramático relato dessa odisseia humana”.
Outro caso muito ilustrativo, do tema que vimos falando neste escrito, é o de Pepetela, reconhecido e premiado escritor angolano.
Trata-se de um autor que antes escrevera romances epopeicos, sobre a luta pela independência de Angola, em que destacaria «Mayombe», «As Aventuras de Ngunga» e «A Geração da Utopia»
Interessantemente, o escritor (re) cria no seu «Predadores» publicado em 2005, um dos seus romances mais emblemáticos deste novo discurso histórico/ficcionista.
Trata-se com efeito, de uma ficção, de um enredo envolvido em vários níveis do cómico literário, a saber: o de linguagem, o de personagem, o do narrador que imbrica na própria narração. Há um humor, que por vezes ganha assomos de corrosivo, a par de uma ironia sarcástica, os quais, enformam o comportamento indisfarçavelmente exuberante e de novo-rico, simbolizado no protagonista da história, “Caposso” empresário recente, que se dizia “natural de Catete,” terra de origem de Agostinho Neto, o que não sendo verdade lhe acrescentava – julgava ele – mais prestígio quando se apresentava às pessoas, em reuniões ou em festas. Falava alto ao “telemóvel de última geração,” e explicava, gabando-se ao interlocutor do outro lado da linha – não importando o sítio e a ocasião, ciente de que estava sendo escutado por quem estivesse à volta – da sua grande prosperidade material. O autor não poupa o comportamento de pouca ilustração e, volto a repetir, de novo-riquismo exibicionista da personagem “Caposso,” Quiçá! Aproveitando-se também, para nele transportar, transfigurar e simbolizar o “modus vivendi” de alguns membros da nova classe rica, habitante de Luanda e de outros centros urbanos de Angola.
Trata-se com efeito de um retrato sarcástico do comportamento dessa nova sociedade, luandense no caso. Para além da “estória” está presente a história mais actual, caricaturada embora, de uma certa Angola, prenhe de um deslumbrado novo-riquismo.
Lado a lado, os dois discursos, o histórico documentado, através de cenas da guerra colonial e da ainda mais longa, a guerra civil de Angola, e o discurso ficcionista – o universo, onde se movimenta “Caposso” – estão presentes, com igual força descritiva e narrativa, nesta obra de Pepetela.
Estes são alguns exemplos de obras interessantemente concebidas e realizadas por alguns escritores, nesta Literatura mais recente e que ao fim e ao resto, são demonstrativas da realidade histórico/social experimentada nos respectivos países, e transfigurada na ficção, sem perder o discurso histórico.
Afinal, nas obras aqui analisadas, diria que se complementam os dois perfis, o de ficcionista e o de cronista histórico dos seus autores, que legam para a posteridade testemunhos vividos dos acontecimentos narrados e efabulados.
"25 de Abril" Sempre!
sexta-feira, 25 de abril de 2014
Chamei ao meu texto breve: “25 de Abril Sempre!”
Embora já muito dito, e mantendo alguma subjectividade, reconheço que a data significa para mim um ponto de partida e na mesma dimensão representa também um ponto de chegada. Isto é, o 25 de Abril reflecte e carrega um sinal e um significado, histórico e simbólico estruturantes.
Igualmente, o 25 de Abril de 1974 foi para a minha geração ou, pelo menos, para parte significativa dela, a percepção de se estar a viver o futuro dentro do presente, sem limites ou barreiras que projectam a distinção entre estas duas dimensões da nossa temporalidade vital.
O processo do “25 de Abril” já foi também chamado de “o regresso das naus,” numa alusão metafórica, ao desfecho do processo colonial.
Se é certo que o “25 de Abril,” aconteceu-me numa fase de vida, em que uma revolução dessa natureza e grandiosidade, a chamada revolução dos cravos tende a ser, e foi recebida com o amplexo generoso e romântico, sobretudo da juventude;
Também não é menos certo, passadas quatro décadas, poder afirmar sem qualquer hesitação que o “25 de Abril,” VALEU A PENA! Com todos os seus excessos, mal-entendidos, dramas, confusões… e limados os pontos mais agrestes desse momento de ruptura, poder afirmar que – repito – VALEU A PENA!
Tal como eu, estou certa que muita gente da minha geração continua a considerá-lo como um momento histórico único, ímpar na nossa trajectória de vida.
Por isso saudemos o “25 de Abril” pelo seu efeito epistemologicamente transformador, de reposição de direitos e de dignidade na relação entre os povos que têm em comum a língua portuguesa.
Hoje, somos uma comunidade, a CPLP, mas tal não seria possível se não fossem – parafraseando o poeta – “as portas que Abril abriu” e que fizeram convergir e não apartar os povos e os países que a conformam
Infelizmente, entre nós, (cabo-verdianos) e sem explicação racionalizada, a data não tem sido assinalada. Não é evocada com a globalidade que devia ter, até para se entender melhor a nossa história recente.
De facto o “25 de Abril” é data que na minha opinião, teimámos em ignorar.
Esquecemos a liberdade e a descompressão social e psicológica que trouxe e os enormes sacrifícios que poupou na caminhada para a Independência.
Comemoramos contudo, outras datas que lhe são derivadas no contexto da luta para a Independência.
Até aqui, tudo bem, só que nos esquecemos de que não seriam possíveis nos mesmos pontos de um referencial temporo-espacial, se não fosse o “25 de Abril” de 1974.
Fico por vezes com a impressão que este procedimento se assemelha ao que se diz da avestruz, isto é, metemos a cabeça na areia e fizemos de conta que o “25 de Abril” nunca existiu e que não tínhamos nada a ver com ele.
Mas como podemos hoje fazer de conta da explosão de alegria, de contentamento e de esperança que ele gerou e que percorreu o Arquipélago de lés a lés permitindo o calar das armas, na Guiné, em Angola e em Moçambique, a libertação dos presos políticos do Tarrafal e de outras prisões e dando liberdade de acção para a participação massiva e entusiástica que culminou com a Independência Nacional?
Reconhecer o “25 de Abril” como um marco importante da História recente da nossa Nação não desvalorizará a penosa caminhada do povo destas Ilhas para a independência.
Bem pelo contrário, a dignificará e a honrará por que ele, o “25 de Abril”, é digno, é honroso, é saudavelmente libertário e é também nosso por direito próprio.
Celebrar, não é feriar. É destacar, é assinalar.
Reconhecer o “25 de Abril” não diminuirá a gesta, mesmo daqueles que por atitudes e subtilezas verbais reclamam, em privado, o estatuto de únicos obreiros da Independência e vêm resistindo a esse reconhecimento, quiçá por julgá-lo concorrente ou “contra-argumentário”.
Com ou sem o “25 de Abril” a Independência seria um facto. Discutível, mas tomemo-lo por adquirido. Não o polemizamos. O problema é saber-se quando, e quantas vidas, dissabores, sofrimentos e sacrifícios se pouparam...
Ignorar o “25 de Abril” é ignorar a história do povo destas ilhas e não reconhecer a quebra da cadeia que nos ligava ao colonialismo por via de uma pesada ditadura, quebra essa para a qual também contribuímos.
Imaginemos por momentos como seria o nosso processo de independência, acoplada ao da Guiné – Bissau, sem os diálogos, sem as negociações, sem os acordos que o “espírito” do 25 de Abril permitiu e que a todos tocou?
Imaginemos por uns segundos o que seria dos milhares de angolanos, de moçambicanos, posteriormente de guineenses, que se refugiaram “no Portugal do 25 de Abril,” com os complexos, dramáticos e traumatizantes problemas que isso trouxe a uns e a outros, uma vez que logo a seguir ao processo das independências, os seus países mergulharam numa guerra fratricida, sangrenta, cruel, devastadora em perseguições várias?
Sim, o que seriam hoje, muitas crianças e jovens de então, dos aludidos países privados de escolas e de quase tudo se não fossem as oportunidades que Abril gerou num Portugal já sem colónias? E que o tornou tão mestiço por via disso?
A data de 25 de Abril não devia ser um número abstracto. A ela estão ligados acontecimentos importantes do passado que nos permitem reconstituir o itinerário para o presente e compreendê-lo. Deve, pois, revestir-se entre nós, de uma certa dignidade, não podendo ser malbaratada ao sabor de preconceitos, olvidada por concepções redutoras da nossa História.
Deve ser bastamente explicada para que seja assumida por todos sem quaisquer complexos.
Nesta oportunidade e como forma também de evocar os “Capitães de Abril,” transcrevo as hoje, quase proféticas palavras de um dos seus homens mais insignes, o Capitão Salgueiro Maia, que em vésperas de morrer terá proferido, passo a citar:
“Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir.” Fim de citação.
Pois é, o 25 de Abril, foi também e, sobretudo, um acto de edificação dos pilares que conduziram e vêm conduzindo o processo de democratização e de desenvolvimento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (neste contexto, eventualmente retiraria o Brasil se ignorasse as relações de contágio que sempre existem como recentemente realçou o Presidente Lula da Silva ao estender o 25 de Abril à humanidade).
Volvidos quarenta anos, estou convicta de que a maturidade, a análise mais objectiva, mais intelectualizada da nossa gente – aqui – sobre os fenómenos e os eventos históricos que nos acompanharam e nos trouxeram até ao presente e, sobretudo através de uma espécie de “descomplexização” histórica contribuirão, no seu todo, para o equilíbrio desse reconhecimento, do papel e do significado que também tem o “25 de Abril” para o povo cabo-verdiano.
Para finalizar esta minha singela evocação do 25 de Abril, vou transcrever alguns versos do poema “Corpo renascido” de Manuel Alegre, o poeta da liberdade e que nestes versos, e numa interessante alegoria poética, quis simbolizar a dimensão cosmogónica e solidária, do 25 Abril.
“Corpo renascido
Canção (…)
Coração perpendicular ao tempo
Cantando é como se dissesse: estou aqui!
Na multidão que está dentro de mim (…)
Canção casa do mundo
Viagem de homem para homem
Meu pedaço de pão rosa de Maio
Criança a rir na madrugada
Cavalos correm nos teus campos,
crinas ao vento
São os cavalos indomáveis que te levam
Aos quatro cantos do mundo
Lá onde um homem tiver sede
Levarás teus cântaros/
Lá onde um homem tiver fome
Levarás teu pão
Lá onde a liberdade foi assassinada
Os teus cavalos livres levarão
A espada refulgente
Levarás o teu sol canção
Folha a folha desfolhada
Folha a folha renascida
Assim tu és canção:
Viagem de homem para homem.”
Manuel Alegre – País de Abril – Antologia
E assim termino, não sem antes repetir, tal como escrevi no início: “25 d’ Abril Sempre”!
Os Rebelados ou os Mitos que fazem História?...
quinta-feira, 3 de abril de 2014
Embora se trate de um texto já publicado em 2008, voltei a repescá-lo e a trazê-lo para o “Blogue”, pois tenho ficado verdadeiramente pasmada, cada vez que vejo e leio o acervo de teses, monografias, fantasticamente efabuladas, que se têm vindo a tecer sobre os ditos “Rebelados” da ilha de Santiago! E tudo isso com ampla cobertura pseudo/histórica…
Do meu ponto de vista, o livro: Os Rebelados de Santiago, de Cabo Verde da autoria de Júlio Monteiro, Jr. continua a ser a melhor fonte histórica para se conhecer o caso dos chamados “Rabelados” da ilha de Santiago.
Recorde-se que foi editado em 1974, pelo Centro de Estudos Cabo-verdianos, a partir do Relatório elaborado pelo autor, entre 1962/64.
Pois bem, os “Elementos para o estudo sócio-religioso de uma comunidade” como o próprio autor viu o assunto e classificou o seu excelente ensaio, constituem no meu entender, o mais abrangente e o que melhor tratou a questão.
De facto, não conheço, até agora, nenhum outro registo escrito com a mesma amplitude e profundidade analítica e histórica sobre o assunto, como a que encerra o livro de Júlio Monteiro.
Nos primeiros capítulos, o autor fornece-nos uma informação muito completa sobre os vários elementos constitutivos e estruturantes de algumas formas de parceria, de arrendamento de parcelas de terra, até da forma de actuar, de agir e de reagir do cabo-verdiano rural, quando perante relações e interacções com a propriedade agrícola. O caso/exemplo do livro, focaliza o homem rural de Santiago, ilha de que traça uma acabada descrição etnográfica de muito préstimo.
O objecto de estudo da obra de J. Monteiro permite-nos recuar no tempo e, sermos confrontados com os relatos de alguns acontecimentos que desabaram em simultâneo, sobre as pobres cabeças e conflituaram o entendimento dos homens, quase todos analfabetos, no dizer de Júlio Monteiro, de algumas comunidades desse interior então recôndito, montanhoso, alcantilado e isolado da ilha de Santiago.
Habituados de há muitos anos, através da doutrinação dos padres de “batina preta e de barrete próprio,” a auto-suprirem as suas necessidades em orações e enterros, actos indispensáveis ao fiel católico, dada a dificuldade que até os próprios curas sentiam em chegar àquelas zonas inóspitas e perdidas nos confins, sobretudo, da região do Tarrafal, eles terão reagido mal aos sinais dos tempos, como sói dizer-se.
Estamos nos finais dos anos 50 e inícios dos anos 60 do século XX, quando os habitantes desses lugares, nem todos, se rebelaram, contra as novidades trazidas na prática dos novos padres “de batina branca, sem chapéu ou com boina, (… )".
Note-se que a princípio eles não eram chamados de «rabelados». O povo chamava-os de “incrente” cuja descodificação para as autoridades teria sido de “incrédulo.” E, se calhar, nada teria acontecido. Quem sabe? Talvez o conflito ter-se-ia mantido apenas na esfera estritamente religiosa.
Mas coisa outra, e bem diferente, foi terem sido apodados de «rabelados» o que em português se traduziu por «revoltosos». Embora no crioulo, e para o contexto, a palavra «rabelado» tivesse uma significação ambígua e mais abrangente. Assim se compreende a entrada em força das autoridades.
Veja-se o papel da semântica neste particular, e no que deu para o caso!
Ora, quem os denominou pela primeira vez, por escrito, de «Rabelados» foi Pe. Moniz – de acordo com o autor – que também se apercebera da rebeldia desses homens aos rituais inovados da Igreja católica. Comunicou o caso ao Administrador do Tarrafal, em 1959. É bom que rememoremos que a religião católica era a religião oficial do Estado Novo. Logo, interagia a sua acção com a autoridade instituída.
Não bastando este cenário, e para complicar ainda mais a situação dos «increntes» primeiro, na voz do povo, e mais tarde, consagrados «rabelados», no registo da autoridade, sucederam-se em simultâneo, vários acontecimentos que acabaram por dar ao caso uma configuração particular. Ei-los:
1 – A já referida chegada dos padres da Ordem ou Congregação do Espírito Santo que envergavam outros hábitos que não os que eles estavam habituados a ver nos antigos padres que os visitavam. Para além disso, vinham munidos e sabedores dos novos postulados da Igreja face às transformações da sociedade de então, insertos nas importantes Cartas pastorais do Papa João XXIII e, proximamente, das orientações saídas do Concílio Ecuménico Vaticano II que renovou o «modus operandi» da liturgia e da actuação da Igreja.
2 – As próprias orientações do Concílio Ecuménico Vaticano II, muito celebradas e aplaudidas pelos sectores mais desenvolvidos da Igreja Católica que, de entre interessantes e profundas transformações na sua ecleosologia, trazia a nova de a missa poder ser rezada nas línguas nacionais e locais. Recorde-se que até aí a missa era celebrada em Latim. As mulheres já podiam entrar no templo, sem véu ou lenço a cobrir-lhes a cabeça. Os padres, alguns deles, conforme as ordens, então autorizados a trajar-se de modo quase civil. Tudo isto afinal, com a benéfica intenção de a igreja estar mais perto do crente e ser parte da comunidade.
3 – A instalação naquela época, da Missão de Estudo Permanente de Combate de Endemias e da Erradicação da Malária em Cabo Verde que teve um imensurável papel no combate à malária no Arquipélago e que actuou com rapidez e muita eficácia em quase todos os recantos das ilhas.
Ora, da noite para o dia, sem terem sido devidamente informados do que se estava a passar e já em conflito com as autoridades, os “Rabelados”, vêm-lhes entrar, pela casa e pelo quintal adentro, o “diabo” sob forma de agentes de desinfecção, ainda por cima munidos de uma almotolia com que pulverizavam o desinfectante – D. D. T. – recusaram-se a continuar a viver nas habitações desinfectadas por lhes parecer mais uma obra provocatória do demónio.
4 – De se registar também, seguindo de novo Júlio Monteiro, os conflitos surgidos, na mesma época, com a lei da demarcação da propriedade rústica, ordenada desde 1955 e só aplicadas em 1961. “Encarada com a suspeição do pagamento de contribuições (…) os ânimos da população rural estavam excitados” (…) transcrito do livro. E de novo, as suas zonas “invadidas” pelos marcos e pela presença dos técnicos e dos funcionários das Brigadas de Estudo e Construção de Obras Hidráulicas de Cabo Verde (B.E.C.O.H.).
Coloquemo-nos, se possível, no tempo e nas condições do ser e do estar desses homens e mulheres chamados de «Rabelados», para os entender e também lhes dar as devidas limitações e o enquadramento em que se devem manter, a bem da História.
Sem acessos, sem estradas, sem informações, vivendo em zonas alcantiladas e perdidas, nas fragas das serras do interior, então bem interior, da ilha de Santiago, como claramente o autor nos informa; os seus “cabecilhas ou chefes” eram quase todos analfabetos. Alguns, os que sabiam ler e decifravam a Bíblia, eram de facto, os mentores religiosos da comunidade. Foram presos e mandados quase desterrados para o Fogo e para a Brava, longe dos seus. Nas palavras críticas do Dr. Júlio Monteiro: «uma carga desnecessária, um procedimento excessivo» de quem nada tinha entendido do problema e que «queria transferir para o caso, os acontecimentos recentes de Angola» (1961).
Teremos de convir que tudo isso lhes terá sido assemelhável a um quase “Fim do Mundo”! Situemo-nos no tempo histórico e no espaço destes homens isolados dentro da ilha!
Ora bem, Dr. Júlio Monteiro balizou na sua obra e de forma lapidar no levantamento que fez, as causas dessa rebeldia, ao classificá-las de sócio-religiosas.
Daí que voltaria a recomendar a leitura do livro, «Os Rebelados de Santiago de Cabo Verde» de Júlio Monteiro (sobretudo aos Orientadores dos trabalhos académicos e de fim de Curso) para que não se continue a ler e a ouvir ficções com pretensões históricas sobre o assunto. Desde apelidá-los de nacionalistas/independentistas que tinham recebido instruções, até tentando explicar as causas da rebeldia, fazendo-as parecer, no tempo, motivadas sob mobilização e influência do PAIGC. Convenhamos que de mitos e de fantasias, muito se tem contado! De tudo um pouco também, se tem vindo a ler sobre este assunto.
A impressão com que se fica algumas vezes, é a de que o «tampão» político de pretensão nacionalista é usado com demasiada ligeireza, entre nós, em alguns trabalhos escritos e ditos, para suprir lacunas que uma investigação séria e científica propiciaria, se fosse feita. Será?...
Aceite-se sim, e nisso estaremos de acordo, que os preceitos de vida desse grupo tenham tido impacto sócio-cultural quando os seus membros reagiram e passaram a constituir-se uma espécie de «bolsa» comunitária que se fechou sobre si própria e desenvolveu hábitos e costumes específicos. Sucedeu assim uma quase ruptura que originou uma forma de estar e de agir, distinta do grupo maior, ou seja, da população integrada e homogénea, (seja-me permitida a utilização do conceito, por oposição à auto-marginalização dessa comunidade) de que se constitui Cabo Verde.
Logo, por uma vez, vamos ser honestos com a nossa História recente, – neste caso dos «Rebelados» – pelo respeito que lhe devemos.
Para finalizar, acrescentaria que um dos grandes méritos do trabalho, então Relatório, feito pelo Dr. Júlio Monteiro – para além de ter prevenido, de ter alertado as autoridades para as verdadeiras causas do conflito – foi sem dúvida o facto, de ele ter concorrido ainda e em tempo, para atenuar e até mesmo impedir que actos mais violentos e continuados fossem cometidos contra os «Rebelados».
Afinal, o Dr. Júlio Monteiro, acabou por ser um advogado “pro bono” dos ditos “Rebelados” ou melhor dos “Increntes,” como foram originariamente chamados pela vizinhança que os denunciou ao Padre Moniz em 1959, pelo facto de não querem aderir à então nova liturgia. Reconheça-se ao autor, o muito mérito que teve na defesa dos ditos «Rebelados».