A Falácia das notícias falsas. Desculpem, da desinformação.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Foi publicado no “Jornal de Letras” nº 1259 (de 2 a 15 de Janeiro de 2019) um Caderno intitulado “Fake News - A Verdade da Mentira” com uma série de artigos de especialistas da área da comunicação. Desses artigos escolhemos um, que, com a devida vénia, a seguir transcrevemos, cuja abordagem nos parece interessante por “refutar” a existência das chamadas “notícias falsas”.

Por DORA SANTOS SILVA*

No dia 22 de Novembro de 2018, o Diário de Notícias relatava a “volta ao mundo” de uma fotografia verdadeira que se tinha tornado uma mentira. Era verdadeira, porque mostrava uma mulher sem-abrigo a dormir com uma criança na rua pedonal de Sainte Catherine, em Bordéus. A mentira começou, porém, no momento em que pessoas de todo o mundo se apropriaram daquela fotografia e lhe deram um novo contexto nas suas redes sociais, consoante a mensagem que queriam partilhar: irlandeses usaram-na para denunciar a situação dos sem-abrigo daquele país; ingleses aproveitaram-na como mote para disseminar ideias xenófobas. Notícias falsas? Não.
A descontextualização de imagens não surgiu em ambiente digital e muito menos com as redes sociais. Está na publicidade, na educação, no quotidiano, nas relações sociais e também no jornalismo. Surpreendemo-nos com a própria surpresa de turistas que chegam a Portugal e não vêem as velhinhas de preto adornadas com bigode a passear na Avenida da Liberdade. Associamos o continente africano somente a violência e a crianças em sofrimento, porque foram essas as imagens que percorremos nos livros de História do ensino secundário. Vemos, vezes sem conta, os mesmos planos de enquadramento nos noticiários televisivos para representar a época natalícia ou uma fotografia que facilmente se vê ser dos Alpes Suíços para anunciar um nevão na Serra da Estrela. Notícias falsas? Não.
Esta é a própria essência da imagem enquanto representação do mundo ou enquanto cultura de simulacros e simulações, como diria Jean Baudrillard. O problema começa quando a imagem constrói uma realidade muito diferente da que existe, contribuindo para a percepção de um mundo ficcional. Notícia falsa? Não.
Tal como as imagens, a informação que os media veiculam também constrói um mundo que pode ser mais ou menos aproximado da realidade (basta confirmar a diferença entre o alinhamento editorial de um meio de comunicação social dito sensacionalista ou de outro dito de referência). E, por isso mesmo, por esta responsabilidade tão grande de construir o mundo percepcionado pela população, os jornalistas encetaram um compromisso há pouco mais de 200 anos com o próprio mundo: guiarem-se pela verdade, pela transparência e pela objectividade (na medida do possível). E esse elo de confiança – a sua representação – foi apelidado de notícia. Notícia falsa? Um paradoxo.
Qualquer pessoa pode usar imagens, vídeos e palavras para representar um mundo que não existe, na ficção, na publicidade, na imaginação… O problema começa quando essa representação ganha o apelido que por várias gerações esteve ligado a confiança, transparência e verdade: o apelido de notícia. É por isso um paradoxo a utilização da própria expressão “notícia falsa”, cuja disseminação só aumenta a percepção errada de que as notícias podem ser falsas e de que o jornalismo quebrou a confiança com os seus utilizadores.
A Comissão Europeia insiste, e muito bem, no uso do termo “desinformação” (misinformation no original) para designar qualquer informação falsa ou incorrecta disseminada com ou sem intenção. É um termo muito mais apropriado ao que se passa, ao mesmo tempo que protege o legado da palavra “notícia”. E, se pensarmos bem, não foi com notícias falsas que Trump ou Bolsonaro foram eleitos; não foi com notícias falsas que as campanhas de comunicação negras mais célebres arruinaram uma marca ou personalidade. Foi, sim, com desinformação.
As mentiras mais eficazes baseiam-se, de certa forma, numa potencial verdade. Investigadores da Universidade de Yale concluíram num estudo publicado em 2018 que basta uma exposição a uma “notícia falsa”, ou, melhor, à desinformação para criar uma verdade “ilusória”. O ingrediente é ter um certo grau de plausibilidade e verdade ou a capacidade de legitimar as nossas crenças, preconceitos e histórias de vilões e heróis com as quais crescemos.
A fotografia da mulher sem-abrigo a dormir na rua de Bordéus não é falsa – nem “deepfake”. Mas a sua reapropriação com diversas intenções – boas ou más – é, sim, um caso de desinformação. As imagens escolhidas para representar diversas realidades nos manuais de ensino não são falsas; poderão sim, ser fruto da própria ignorância de quem as escolheu. Os planos de enquadramento utilizados vezes sem conta pelos jornalistas para representar uma realidade não são “notícias falsas”, mas acabam por ser um caso de desinformação na maioria das vezes sem repercussões negativas (embora o seu uso exagerado e aleatório também contribua para meter os jornalistas nesta parada).
Os diversos casos de desinformação grave (infelizmente, muitos) da responsabilidade dos jornalistas são fruto de pressões, incompetência e má formação, mas não podem ser equiparados aos milhares de bots que actuam nas redes sociais com intenções precisas ou dos humanos que nos vendem “gato por lebre”. São igualmente graves, claro – ainda mais, porque quebram a confiança que neles depositamos -, mas devem ser resolvidos noutra arena.
O poder de moldar a forma como vemos o mundo ou, pelo menos, de criar a vertigem diária do sentimento “isto pode ser assim” ou “eu podia ser assim” era usado desde sempre por poucos; hoje por qualquer um com boas ou más intenções, com falsidades ou factos alternativos, com verdade ou pós-verdade. Mas, por enquanto, tirem as “notícias” desta equação.

*In Jornal de Letras – Professora do departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, com especialização em media digitais.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Deus, Fernando Pessoa ou McLuhan: cuidado com as citações
Por Nuno Pacheco*
Se o texto apócrifo é uma praga antiga, como se recordou aqui há uma semana, a citação abusiva não o é menos. Há criaturas que, para justificarem uma tese ou tornarem credível um texto, recorrem a frases alheias, muitas célebres e já feitas cliché, venham elas de Platão ou Churchill, Pessoa ou Lacan, Homero ou Lincoln. Citar substitui a leitura, tal como a vaga ideia substitui o pensamento. Há vários livros e sites de citações, e deles não vem mal ao mundo; mas já o seu uso leviano ou acéfalo é, pelo contrário, coisa a evitar. Se há palava usada e abusada, é esta: a de Deus. Não falta quem se arrogue a invocá-lo para justificar tudo, mesmo as ideias mais pérfidas ou os actos mais criminosos. E esta “cegueira” começa por ser exaltação. No Brasil, um deputado conhecido como Pastor Sargento Isidório apresentou, na primeira sessão legislativa da era Bolsonaro, um projecto de lei para tornar a Bíblia “património nacional, cultural e imaterial do Brasil e da Humanidade”. Corresponde, por alto, a decretar que a água é líquida ou que uma esfera é redonda, já que a Bíblia não precisa de leis para se tornar património universal. Mas Isidório, ex-militar que diz ter curado a sua homossexualidade com “a palavra de Deus” (pena que não tenha curado o que o levou a tal afirmação), quis chamar a si a profética tarefa. Ora num congresso onde as facções dominantes já são conhecidas por “BBB” (Bíblia, Boi e Bala), imagina-se o efeito disto. Sobre a Bíblia há um interessante texto de Frei Bento Domingues, no PÚBLICO, em 2016, intitulado “Não invocar o nome de Deus em vão”. Escreveu ele: “Nunca temos acesso à ‘Palavra de Deus’ de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa.” O pior, fora dessa experiência, é que muitos dela se apropriam no sentido mais vil. E o que deveria ser inspiração benigna passa a justificação de tormentos. Noutro campo, há entre as simplificações do pensamento uma particularmente irritante: o abuso de Fernando Pessoa na já estafada frase “A minha pátria é a língua portuguesa” ou até, neste caso mal citado: “A minha pátria é a minha língua.” O que escreveu Pessoa, a coberto do seu heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego? Na íntegra, e na ortografia original, anterior à grafia oficial decretada em 1911, escreveu isto (corresponde aos 2 últimos parágrafos, de 5, do trecho 259): “Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração grecoromana veste-m’a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.” É bem menos cómodo e romântico do que a frase tirada do seu contexto, não é verdade? Por último, uma cena de um filme que é um achado. Woody Allen, no seu Annie Hall (1977), inventa um diálogo que põe em causa o abuso do pensamento de outrem. Na fila de um cinema, o personagem que ele interpreta (Alvy Singer) ouve alguém atrás de si (o actor Russel Horton) dizer para a namorada: “O Marshall McLuhan trata a questão em termos de alta intensidade. Estás a perceber? Um medium quente...” Allen diz que ele não faz a mínima ideia do que diz MacLuhan, mas Horton defende-se: “Ai é? Por acaso até dou uma cadeira em Columbia sobre TV, Media e Cultura. E acho que as minhas ideias sobre o sr. McLuhan têm imensa validade.” Allen riposta: “Ai acha? Calha bem, porque tenho aqui o sr. McLuhan.” E Marshall McLuhan, o próprio, surge em cena e diz: “Ouvi o que disse. Não sabe nada do meu trabalho. (...) É espantoso que o deixem dar uma cadeira do que quer que seja.” É nesse momento que Woody Allen, na pele de Alvy Singer, se vira para os espectadores e diz: “Se a vida fosse assim...” Infelizmente não é.
*Jornalista. In “Público” de 14.02.2019