Livro/Catálogo "CASA DA MEMÓRIA - Objectos e memórias"

sábado, 28 de novembro de 2015
Decorreu recentemente, a apresentação da obra acima referida, numa das salas da Biblioteca Nacional, na cidade da Praia e posteriormente no Pátio da Casa da Memória em S. Filipe, no Fogo. Mindelo, será o terceiro palco dessa apresentação.

O livro é a um tempo a ilustração - via  imagens e  textos - do espólio da Casa da Memória e na decorrência, insere e descreve a história da ilha do Fogo ao longo dos séculos.
A Casa da Memória (epónimo  significativo  de memória permanecida nos objectos) tem vindo de há duas décadas da sua existência, a ganhar espaço e prestígio enquanto projecto cultural.

Primeiro, na cidade de São Filipe, na ilha do Fogo e depois, um pouco por todas as ilhas de Cabo Verde. É também já reconhecida internacionalmente pelos seus muitos visitantes, turistas estrangeiros que demandam a ilha do vulcão.
 
Por estas razões, tornou-se numa visita incontornável e obrigatória para quem pise o solo foguense.

Mas falar  da Casa da Memória é falar também de uma instituição de natureza cultural, etnográfica, pioneira na preservação – através de objectos – da memória histórica e social do modo de vida dos antigos moradores dos sobrados, casario, cuja traça arquitectónica belíssima, distingue e particulariza a cidade de São Filipe.
O seu núcleo museológico é composto por um recheio de casas de outrora da cidade de S. Filipe. Casas assobradadas, residências da classe social mais abastada da ilha. Desde a casa-de-jantar, passando ao quarto de dormir, ao qual não falta o Oratório, e indo até à cozinha com o seu trem de antanho, e ao quintal com o pilão, o balaio, e o grande moinho de pedra, estes últimos utensílios domésticos, comuns às casas de todas as classes sociais (do sobrado ao funco); o visitante percorre o interior de várias casas da época antiga da cidade, através do modelo visitado.

Interessante também é visitar os livros, a biblioteca antiga como parte do espólio caseiro de algumas famílias antigas e gradas da ilha do vulcão.
Seria bom não esquecer, que a cidade de São Filipe foi habitada (os seus sobrados) desde os primórdios do seu povoamento, por uma espécie de classe social alta, composta por homens e por mulheres, donos de terras de café e de sequeiro e que muitos deles eram ao mesmo tempo, comerciantes e armadores de barcos. Com efeito, tinham a postura de verdadeiros senhores e terra-tenentes da época. Eles dominavam o funcionalismo e as chefias da administração local, porque também portadores de maior literacia.

O seu largo pátio, é um espaço que acolhe também conferências, palestras, oficinas de trabalho, visitas de estudantes e projecta filmes ditos de “qualidade,” entre outras actividades que promove, tendo como denominador comum, pensar o enriquecimento cultural dos cidadãos de uma ilha que hodiernamente anda bem necessitada disso.
Quando se visita a casa museológica que é a Casa da Memória, faz-se como que uma retrospectiva no tempo e no espaço, pois que somos transportados para épocas remotas e para, diria, uma quase intimidade das famílias gradas da ilha.

Chegou o momento de falar da mentora e autora deste arrojado projecto e a principal responsável pelo aparecimento da oportuna e necessária obra: Monique Widmer, uma cidadã suiça e cabo-verdiana de afectos e de sentimentos que escolheu a ilha do Fogo para dela fazer também sua terra estimada. Disponibilizou parte das suas poupanças pessoais e  tem-se dedicado  ao serviço desta nobre causa.
Manda a verdade e é de inteira justiça realçar o papel de coadjuvante notável de Gilda Marta Vasconcelos Barbosa, foguense de gema , cuja família e familiares dispensaram para a Casa da Memória, parte significativa do recheio de casa  nela exposta.

As duas, conjuntamente, têm vindo a trabalhar para que o rico espólio – ilustrativo do interior de um sobrado – que hoje o visitante desfruta e reconhece quando entra na Casa da Memória, seja uma realidade visível e que perdure a bem da memória histórica e social da ilha do Fogo.
Afinal, a Casa da Memória pelo simbolismo histórico que encerra, pela memória que guarda de séculos da vivência social, doméstica, reflectida nos objectos que expõe, constitui na actualidade, um ponto deveras interessante e a não perder, no roteiro de quem visite a cidade de São Filipe.

MULHERES DE PANO PRETO - Texto de apresentação

domingo, 22 de novembro de 2015
Por: Manuela Letria Silva

Enquadramento e resumo da obra.
Trata-se de uma obra de ficção de feição historiográfica, contada num estilo vivo e espontâneo, em tom coloquial, próprio das atmosferas familiares de onde brota toda a intriga. Situa-se entre o romance e o drama histórico. Bem delimitado no espaço e no tempo, num acto de comprometimento o autor traz ao nosso convívio um testemunho sobre certos aspectos da história da nossa época.

Cito logo na 1ª linha do capítulo 1 “ a minha narrativa situa-se no período que medeia entre a criação do Liceu Honório Barreto e a Independência nacional ou um pouco mais – o rompimento do polémico processo da unidade Guiné Cabo-Verde. Trata-se de uma história apenas singular, naquilo que é individual e paradigmático para grande parte dos casais da época sujeitos às circunstâncias sociais e aos momentos históricos que se viviam”
Sob o signo da pedagogia cultural, convido-vos a mergulhar comigo no universo de “Mulheres de Pano Preto”, seguindo estas mulheres heróicas que acompanham o narrador e espicaçam as outras personagens a contar a história desse período, naquilo que tinha de mais enigmático.

O romance abre com o conhecimento travado entre Alice e Tomás, ainda nos bancos da escola, segue os seus desenvolvimentos normais, por vezes conturbado com a prisão arbitrária do marido, vencem todas as vicissitudes e quando tudo parecia ter contornos de final feliz, fecha de forma dramática com o anúncio da hipotética separação do casal, na sequência de uma cena de ciúmes, situação injusta para esta mulher de pano preto, vítima de humilhação e assédio sexual por parte dos algozes do poder. Com firmeza e determinação, na sua fragilidade tudo fez para não cair nas malhas do leão. Por ironia do destino, salva pelo filho que na sua ingenuidade a entrega ao pai sob capa de adultério.
Através da rememoração da adolescência, o narrador revisita espaços que marcaram esta fase tão importante da vida de todos; espaços onde a ficção concorre com a realidade, Liceu Honório Barreto, Praça do Império, de entre outros, espaços emblemáticos que povoam o imaginário do narrador e das demais personagens, viveiro onde germinaram as primeiras e verdadeiras amizades, relatadas em histórias de vida, através de personagens tão fiéis à sua realidade, que interagem com tanta naturalidade em estilo coloquial, com tanta verosimilhança, como é próprio de quadros realistas que acabam por estimular a emoção do leitor que se vê mergulhado na ilusão da referencialidade. Porém, este quadro altera-se drasticamente com a chegada dos guerrilheiros do PAIGC.

Os espaços onde se movimentam as personagens estão bem delimitados, em dois momentos distintos na narrativa, na Guiné, antes de 74, em Portugal, com a partida de alguns destes jovens para prosseguir os estudos ou na emigração, e na Guiné Bissau, pós 74/75, nos mesmos espaços, mas os contornos da intriga mudam drasticamente, a alegria contagiante de outrora, a esperança eivada nos discursos de celebração da independência cedem lugar à decepção e ao desânimo, a ponto de alguns equacionarem a hipótese do exílio como solução.
A história da Guiné e por arrastamento, a de Cabo Verde é apresentada nesses dois momentos fundamentais, protagonizada alternadamente pelo narrador e pelas perspicazes personagens femininas, preocupadas em desmistificar dogmas em torno de fenómenos que lhes inquietavam, através de insistentes indagações, para por vezes retirar a ferro informações consideradas tabu, como era o exemplo paradigmático o processo da Unidade Guiné Cabo Verde, tratado com alguma reserva e secretismo, não lhes custasse o preço da liberdade.

Do rol das personagens que se movem nesses espaços, destaca-se o casal Alice e Tomás e o casal amigo Pedro e Helena, sendo os primeiros, protagonistas que desempenham um papel primordial na narrativa, em torno dos quais se desenrola toda a intriga. Primeiro em Portugal, para onde se deslocaram muito cedo para prosseguir os estudos e depois na Guiné dos pós 25 de Abril, para participar no processo de Reconstrução Nacional. A casa deles, bem como a do casal amigo tanto em Portugal, como na Guiné, funcionam como espaços de acolhimento para convívios periódicos entre amigos cabo-verdianos e guineenses, constituem o cenário onde se desenrola toda a intriga. Nesses encontros de socialização em que procuravam estar sintonizados com a terra, as conversas giravam sobretudo em torno da política e da independência, temas candentes da realidade de então, a ditadura do Estado Novo, a Censura, o governo de Spínola, as melhorias que este ia introduzindo, as intervenções sociais de alguma visibilidade, o jogo de cintura para ganhar a confiança das populações, as acções da PIDE, as movimentações dos comandos militares portugueses e as da guerrilha do PAIGC, e com alguma acuidade a implantação do Partido em Cabo-Verde e o processo da Unidade Guine Cabo Verde,
No segundo momento, o do pós independência entram em cena novos protagonistas Tomás, Benjamim, Ramsés, sob o comando da arguta Sara que de Cabo-Verde, através das suas cartas a Ramsés, vai dando conta das similitudes entre a situação política dos dois países, as prisões arbitrárias, as perseguições, o medo, a intolerância. 

Normalmente, quando as introduz, o narrador descreve-as física e psicologicamente, deixando indícios que permitem ao leitor descortinar a natureza das suas intervenções.
Pode-se ser tentado a vislumbrar traços autobiográficos do autor, mas o concurso de todas as personagens, a par do narrador personagem, enquanto criaturas ficcionadas do autor textual, na apresentação (representação) deita por terra esta pretensão.

Note-se, que o próprio autor teve o cuidado de sublinhar na contra capa e cito ”por favor, não entre nem ponha ninguém nas minhas personagens ainda que lhe pareçam conhecidas ou mesmo familiares. Trata-se de um exercício de ficção e como tal, respalda-se ou apoia-se em referentes, eventualmente reais”
A história de Alice e Tomás, como tantas outras começa na adolescência, numa época em que, apesar de aceite, a convivência entre os géneros não era encorajada nem entre os mais próximos, e a submissão ao género considerado mais forte fazia escola.

Os referentes do texto, personagens como Alice e Tomás e as demais personagens, acções como os bafatórios, os encontros de socialização, a tentativa de violação da Alice, estados como a decepção generalizada de algumas personagens, as indagações sobre a implantação do PAIGC em Cabo-Verde, as formas de resistência, movimentos de resistência anteriores ao PAIGC, a nostalgia dos actores deste romance constituem objectos de ficção, isto é, não existem no mundo empírico, não são factualmente referenciáveis, constituem objectos de ficção.
Todavia, entre estes referentes figuram objectos que têm, ou tiveram, existência no mundo empírico: a Praça do Império, o Liceu Honório Barreto, O Estado Novo, a guerrilha, o totalitarismo, os movimentos de resistência anteriores ao PAIGC, o líder da UPICV, os Claridosos, os nativistas, em suma uma aproximação semântica com o mundo empírico, com os seres, as coisas, os eventos, os sistemas de crenças e convicções, as ideologias, existentes no mundo empírico, É um processo natural porque a literatura germina no seu contexto existencial, de onde brota e se revitaliza.

Aliás, tem sido considerado um contra senso tentar divorciar as ideologias da autonomia semântica do texto literário, porque “as ideologias são um elemento integrante dos signos, das regras e das convenções dos sistemas semióticos culturais.”
A  pseudo-referencialidade não anula a referencialidade do mundo empírico. Trata-se de uma realidade fundada não na correspondência real, mas na modelização, (entenda-se trabalho do criador) desse mundo do homem e da experiencia vital.

Pela própria especificidade do código de textos desta natureza, vivenciamos o convívio e coexistência natural entre personagens e acções puramente ficcionais com personagens e factos que tiveram de facto existência histórica.
A verdade está no texto enunciado, isto é, não denota factos acontecidos no mundo actual e historicamente verídicos, não existiu no mundo empírico, porém, tudo é verdadeiro no mundo possível criado pelo texto literário, é verdade do narrador.

Apesar de o autor ter optado pela apresentação de episódios mais ou menos independentes, e da complexidade da intriga com vários episódios entrelaçados, a unidade da acção é assegurada pela observância cronológica dos factos, em torno da acção principal que congrega a si as histórias paralelas; os episódios e as evocações fluem-se e encadeiam-se naturalmente, garantindo a articulação lógica entre si, num desfecho dramático cuja solução fica em ‘suspense’, com a hipotética separação do casal e a manutenção da atmosfera e cor local que empresta o título ao romance ”Mulheres de Pano Preto”,
Pelo seu valor documental e pelas reflexões que suscita é uma obra cuja leitura se impõe.
 
 
Fonte – Víctor Manuel de Aguiar e Silva, Ficcionalidade e Semântica do Texto Literário, Teoria da Literatura, 8ª ed. pág. 639 a 647.

A propósito da beleza natural de Santo Antâo...

domingo, 15 de novembro de 2015


 

Fontainhas. Cabo Verde
 Santo Antão.
 
 
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Recebi do nosso amigo, Rui Jorge Baptista, Geólogo de formação que veio com a mulher, Fernanda Leite, engenheira de Minas, conhecer a ilha das montanhas. A impressão captada é de que, Santo Antão é a ilha mais importante e bela em “potencial natural” dada a “paisagem envolvente.
 
Creio que como ele, muitos dos nossos leitores comungam da ideia de que Santo Antão é a ilha do nosso pequeno Arquipélago aquela que mais impressiona e fascina pela  imponência e pela força telúrica com que a mãe natureza a dotou. Tomo a liberdade de aqui e logo a seguir, transcrever a carta que ele tão gentilmente nos enviou:
 
 
“(...) como te dissemos Santo Antão é efetivamente uma ilha que muito nos impressionou, 
 
Tem quase todas as condições para ser a ilha mais importante do arquipélago, mas no tempo de outra tecnologia a falta de condições para ter um porto de mar  fez com que fosse menos ocupada, aproveitada e desenvolvida. 
 
Mas  das quatro ilhas que já visitámos em CV esta foi até agora a que maior potencial natural nos pareceu reunir e que com algum investimento mais poderá crescer. 
Mas também reconheço que esta impressão se baseia em primeiras impressões, nem sempre muito baseadas nem muito refletidas, sendo portanto uma primeira análise sujeita a reconsiderações.
 
Mas se a paisagem e a envolvente nos impressionou, mais ainda me marcou a capacidade de um povo que soube adaptar-se às condições naturais e procurou arrumar a casa onde se instalou para criar condições de vida ainda que por vezes muito carenciadas. 
 
Das que vimos a aldeia que mais me impressionou, talvez pela sua envolvente geográfica foi a aldeia de ALTO MIRA.  
 
A geografica local é impressionante com relevos alcantilados, com as rochas vulcânicas cineriticas, mais macias, suportadas por uma rede de filões mais resistentes que atuando como contrafortes sobressaem nos altos, apontando aos céus e que proporcionam uma paisagem simplesmente maravilhosa. 
 
A conjugação destes relevos altos e a presença de formações rochosas mais alteráveis proporcionam condições para haver um abaixamento de temperaturas nos altos que propiciam condensação das humidades maritimas e causam uma maior precipitação a qual favorece o desenvolvimento de solos. Devido à morfologia e ao regime de precipitação por vezes muito concentrado o solos poderão ter tendência para serem arrastados para os vales e para o mar quando ocorrerem as chuvadas mais intensas que sendo fonte de vida são também agentes da erosão e da destruição.
 
Mas o povo que ocupou a ilha soube com o seu suor criar condições para minimizar e domar os efeitos dos agentes naturais construindo sistemas de suporte de terras e contenção de água. E isso é bem visível nos enormes muros de suporte que protegem estreitas faixas de solo, insistente e repetidamente cultivado, e que são preparadas nos tempos mais secos para que quando a chuva vier haja já nelas sementes prontas a germinar. 
 
Junto duas  fotos que tirei. 
 
Não serão grandes peças fotográficas mas são demonstrativas do que acabei de dizer. 
 
Por um lado mostra o povo preparando os solos e semeando porque como lá diziam, em breve iria chover e as sementes já teriam de estar na terra, para não perderem tempo no seu desenvolvimento.
 
Por outro lado mostram todo o trabalho que foi necessário fazer  para que efetivamente cada palmo de terra fosse  conquistado e protegido.”

 
 
 

Mulheres de Pano Preto de A. Ferreira

sábado, 7 de novembro de 2015

- uma leitura –
Eis um romance histórico que nos traz de volta sob forma, a um tempo, ficcionada e documental, os acontecimentos mais relevantes, mais marcantes que configuraram o imediatamente antes e alguns anos após, as sagas das independências da Guiné e de Cabo Verde.
Na minha opinião a obra dispõe de duas partes interligadas embora. A saber: uma história de amor entre Alice e Tomás, tendo como cenário Bissau, a cidade linda (embora real, aqui também reside um “olhar afectivo” na descrição do narrador) e ajardinada, antes da chegada dos guerrilheiros do PAIGC. Narra igualmente a vida quotidiana dos estudantes e dos bissauenses  ao longo do tempo.
O leitor vai-se apercebendo da movimentação político-partidária do tempo, da mobilização  no meio urbano e bem forçada no interior do país. O recrudescimento das acções persecutórias da PIDE, a intensa actividade militar portuguesa e a da sua contraparte, o PAIGC; das tentativas de um desenvolvimento acelerado da Guiné, da aparente fartura resultado de uma economia de guerra; da “Guiné melhor” spinolista, entre outros factos que historicamente marcaram a época.
Em suma, é-nos dado sentir e acompanhar a rápida transformação do comportamento e das atitudes, não só  da juventude da época, mas também e sobretudo, dos habitantes da capital guineense.
A segunda parte do livro, considerei-a mais histórica, mantendo embora toda uma  estrutura romanceada, bem patente na criação e na interacção das personagens, tantos as masculinas, Tomás, Pedro, Ramsés, Benjamim, mais protagonistas, entre as demais personagens, e as personagens femininas de que adiante daremos conta em separado, dado a relevância das mesmas.
Entrámos em Cabo Verde dos anos de 1974/75  através da  abordagem - da situação social e política conturbada que então se vivia no Arquipélago – de Benjamim . É ele quem define de forma lapidar como alguns se transformaram em “heróis” e em “combatentes da liberdade da Pátria” com muita ironia de mistura. Diz  Benjamim a determinada altura: (...) “ depois do 25 de Abril tornámo-nos todos corajosos e procurámos protagonismo a todo o custo. Lançámo-nos todos à conquista de heroísmo (...)”.  E continua a sua descrição da movimentação político/partidária nas ilhas com algum sarcasmo, pois que de algum oportunismo evidente se tratava uma vez que já  não havia necessidade de mostrar “tamanho zelo” no serviço patriótico, naquele momento, dado que as FA, (Forças Armadas Portuguesas), o Movimento dos Capitães de Abril, estavam a favor da independência e em ligação amistosa  no geral, apenas e só com o PAIGC.
Mas é sobretudo nas cartas de Sara a Ramsés, que o leitor encontrará através de um certo realismo descritivo, o quadro daquilo que se passava aqui nas ilhas nas vésperas da independência e logo a seguir, com a actuação monolítica do poder recém-instalado. São peças bem articuladas dentro da obra e que sem quebrarem o ritmo da narrativa, servem de adjuvantes ao narrador, pois que com ele partilham a tarefa de contar as peripécias que  configuraram afinal, os primeiros anos do país insular.
Escreve Sara a determinada altura: “(...) pretende-se montar aqui um cenário de pós-guerra, como na Guiné-Bissau, como se aqui tivesse havido guerra que felizmente, como sabes bem, aqui não houve. Talvez para enganar a História e passar a imagem para as gerações vindouras que a luta armada também se fez em Cabo Verde. (...)”
Sara continua a missiva relatando outras e mais, de entre as turbulências aqui vividas: “(...) Houve gente expulsa. Cabo-verdianos expulsos de Cabo Verde. Quem pode compreender isto? (...) e desta forma também geram a fuga da elite cabo-verdiana... Fala-se de medidas de segurança. Segurança de quem ou contra quê?(...)
As cartas de Sara acabam por ser documentos que retratam com algum pormenor a época histórica e o tempo fundamental da narrativa, «Mulheres de Pano Preto»
Por outro lado, e subjacente às histórias contadas, há  como que  em pano de fundo e que perpassa todo o romance, o sentimento e a percepção, da violência, do despotismo e da arrogância que acompanharam a assunção do novo poder nos dois países sob égide do PAIGC.
«Mulheres de Pano Preto» a simbologia do título, o significado profundo da dor que a mulher /mãe/irmã/esposa/companheira, sente e manifesta sob formas várias. Aliás, destaca-se no romance o protagonismo das personagens femininas, Alice, Helena, Sara, entre outras, são os rostos e as vozes daquilo que o romance contém de mais lúcido e de mais assertivo em termos de opinião. São elas quem, nos convívios em casa de cada uma e através de intensos e de vivos diálogos, debatem, criticam com veemência os acontecimentos coevos ao discurso narrativo da obra, ao momento histórico por que passavam os dois países (Cabo Verde e Guiné), na vã tentativa de construção de uma unidade forçada e violenta e que se revelou inócua. São as personagens femininas que transmitem ao leitor o presente e o devir da narrativa histórica inserta no livro.

Interessante é que nos pareceu que o autor quis distinguir de forma muito clara, essa percepção mais inteligente, mais reflectida nas falas e nas análises das suas personagens femininas.
Na minha opinião  são elas que prendem e “fixam” o leitor e o fazem chegar  com interesse, ao fim do enredo deste romance/histórico.
«Mulheres de Pano Preto» de A. Ferreira, é um convite ao leitor para “viajar” ao passado recente destas ilhas e ao da vizinha Guiné e encontrar alguma explicação histórica sobre factos que nos fizeram chegar ao nosso hoje vivencial de 40 anos.
A escrita é despojada, escorreita, muito ao estilo do autor que nisso nos iniciou no seu primeiro livro publicado: «O Passaporte», em 2002.