A Cola
Por Sandra Lopes
Era
meio torto, mas perfeito...brilhei de orgulho da minha "obra de Arte"
que, embora pouco original, acusava diferença pela assimetria ganha pelo meu
jeito desastrado. Pintei-a de
azul, mas não de qualquer azul. Do azul de orgulho, de força, de
virilidade...do azul de super-homem...
O sino
tocou e fui a primeira a sair da sala de artes manuais. Queria voar para casa e
te entregar a prenda que tinha feito para o dia dos pais.
Já à
porta, corri pelas escadas acima com tanto furor que acabei por tropeçar e,
para o meu horror, vi a minha "obra" voar, rodopiar e colidir com o
degrau das escadas antes de se partir em vários pedaços. Não pude crer...estava
ali, aos pedaços a rolar pelas escadas abaixo.
Foste tu que abriste a porta naquele dia.
Entrei de olhos vermelhos e corri para o quarto com a estatueta partida
escondida entre a minha mochila e o meu peito.
"Então,
entras assim? O que se passou?" Perguntaste, indignado.
"Nada",
retruquei irritada enquanto tentava sem sucesso recolher as lágrimas antes que
escorressem pela face e fossem vistas.
Voltaste
a perguntar, já impaciente...
“Nada!"
Ecoei
Contrariado,
voltaste as costas e foste-te embora.
Ouvi-te
sussurrar e resmungar, e fiquei ali sentada ainda com os restos do barro entre
o peito e a mochila. Solucei, que trapalhona...
Não
demorou para voltares. Mas também não me surpreendeu. Só quem não te conhece é
que pode estranhar tua essência teimosa e determinada.
Entraste
e sentaste-te ao meu lado sem dizer uma ÚNICA palavra, abrindo a mão para
revelar um tubo de cola. Sem pedir permissão, começaste a retirar partes da
estatueta partida e a colá-las com tanta precisão, que, por instantes, fiquei
em dúvida sob o autor da peça...
Foram
praticamente 15 minutos de silêncio consagrado, enquanto unias as peças,
completamente concentrado e determinado a ressuscitar uma obra assassinada. E
eu ali, a naufragar, meia desajeitada a contar os dedos das mãos como se já não
soubesse que havia dez.
O meu
pensamento foi interrompido com teu suspiro de satisfação e ergui a face para
ser recebida com o teu olhar sobre mim cheio de brilho e orgulho. E a
estatueta? Nem se via a cola...
"Obrigado"
disseste, antes de me beijares a testa e de te retirares. Na tua mão ia também
a minha obra. E eu segui-te até à sala, curiosa. Vi-te esticar e pousar a
estatueta na mais alta prateleira da sala, onde antes apenas ocupava a moldura
com a foto da tua querida mãe. E meu peito encheu-se de orgulho. Nesse momento
senti-me invencível, imbatível e soube que jamais poderia ser uma mulher
vencida, porque a tua determinação corria também nas minhas veias.
E pela vida fora o ciclo se repetiu: caí e
vi-me estilhaçar milhares de vezes mas tu, sempre inexaurível, batias à minha
porta com a tua "cola-tudo" e ressuscitavas a tua "obra",
nunca permitindo que a fé se desvanecesse em mim. Contigo aprendi a construir
deveras um império interno impenetrável, imortal. Muito embora partes dos
sonhos que lhe servem de suporte, se vão, de vez ou outra, corroendo e
esbatendo, com um mundo em guerra se apedrejando de forma indiscriminada, será
sempre possível reconstruí-lo e reerguê-lo, quixá com mais força. Porque me
ensinaste que apenas perdemos os nossos sonhos quando eles se transformam em
realidade!
E por
essas e tantas outras lições vividas ao teu lado, venho por esta
"obra" te relembrar que, se algum dia também te estilhaçares, não
tens que te aquietar..., aquela menina desajeitada, de 10 aninhos, que te
ofereceu uma estatueta partida no dia dos pais, quis que eu te dissesse para
não te preocupares, ela guardou a cola...
22/8/2015 Sandra Lopes