CRÓNICA PARA O MEU PAI

quarta-feira, 26 de agosto de 2015
A Cola
Por Sandra Lopes

Era meio torto, mas perfeito...brilhei de orgulho da minha "obra de Arte" que, embora pouco original, acusava diferença pela assimetria ganha pelo meu jeito desastrado. Pintei-a de azul, mas não de qualquer azul. Do azul de orgulho, de força, de virilidade...do azul de super-homem...

O sino tocou e fui a primeira a sair da sala de artes manuais. Queria voar para casa e te entregar a prenda que tinha feito para o dia dos pais.

Já à porta, corri pelas escadas acima com tanto furor que acabei por tropeçar e, para o meu horror, vi a minha "obra" voar, rodopiar e colidir com o degrau das escadas antes de se partir em vários pedaços. Não pude crer...estava ali, aos pedaços a rolar pelas escadas abaixo.
 
 Foste tu que abriste a porta naquele dia. Entrei de olhos vermelhos e corri para o quarto com a estatueta partida escondida entre a minha mochila e o meu peito.
"Então, entras assim? O que se passou?" Perguntaste, indignado.

"Nada", retruquei irritada enquanto tentava sem sucesso recolher as lágrimas antes que escorressem pela face e fossem vistas.
Voltaste a perguntar, já impaciente...

“Nada!" Ecoei
Contrariado, voltaste as costas e foste-te embora.
Ouvi-te sussurrar e resmungar, e fiquei ali sentada ainda com os restos do barro entre o peito e a mochila. Solucei, que trapalhona...

Não demorou para voltares. Mas também não me surpreendeu. Só quem não te conhece é que pode estranhar tua essência teimosa e determinada.
Entraste e sentaste-te ao meu lado sem dizer uma ÚNICA palavra, abrindo a mão para revelar um tubo de cola. Sem pedir permissão, começaste a retirar partes da estatueta partida e a colá-las com tanta precisão, que, por instantes, fiquei em dúvida sob o autor da peça...
Foram praticamente 15 minutos de silêncio consagrado, enquanto unias as peças, completamente concentrado e determinado a ressuscitar uma obra assassinada. E eu ali, a naufragar, meia desajeitada a contar os dedos das mãos como se já não soubesse que havia dez.
O meu pensamento foi interrompido com teu suspiro de satisfação e ergui a face para ser recebida com o teu olhar sobre mim cheio de brilho e orgulho. E a estatueta? Nem se via a cola...

"Obrigado" disseste, antes de me beijares a testa e de te retirares. Na tua mão ia também a minha obra. E eu segui-te até à sala, curiosa. Vi-te esticar e pousar a estatueta na mais alta prateleira da sala, onde antes apenas ocupava a moldura com a foto da tua querida mãe. E meu peito encheu-se de orgulho. Nesse momento senti-me invencível, imbatível e soube que jamais poderia ser uma mulher vencida, porque a tua determinação corria também nas minhas veias.

 E pela vida fora o ciclo se repetiu: caí e vi-me estilhaçar milhares de vezes mas tu, sempre inexaurível, batias à minha porta com a tua "cola-tudo" e ressuscitavas a tua "obra", nunca permitindo que a fé se desvanecesse em mim. Contigo aprendi a construir deveras um império interno impenetrável, imortal. Muito embora partes dos sonhos que lhe servem de suporte, se vão, de vez ou outra, corroendo e esbatendo, com um mundo em guerra se apedrejando de forma indiscriminada, será sempre possível reconstruí-lo e reerguê-lo, quixá com mais força. Porque me ensinaste que apenas perdemos os nossos sonhos quando eles se transformam em realidade!

E por essas e tantas outras lições vividas ao teu lado, venho por esta "obra" te relembrar que, se algum dia também te estilhaçares, não tens que te aquietar..., aquela menina desajeitada, de 10 aninhos, que te ofereceu uma estatueta partida no dia dos pais, quis que eu te dissesse para não te preocupares, ela guardou a cola...

22/8/2015                                                                                     Sandra Lopes



Apagões Históricos...

domingo, 23 de agosto de 2015



A propósito da minha filha, um dia desses, comentar à mesa com os filhotes, meus netos, de que quando era criança e que ía passar parte das férias estivais, ou fins-de- semana ao Tarrafal,  ela e mais  outras crianças, amigas da altura, não puderem entrar, nadar, ou tomar banho na pequena praia, (ao lado da grande praia) da Vila do Tarrafal, uma enseada segura para crianças, e que só para lá entrou depois de 1990, ano da abertura democrática em Cabo Verde, lembrei-me que por cá nas ilhas, vamos tendo paulatinamente e de modo sub-reptício, os nossos “apagões” históricos muito bem urdidos e realizados.
 É bom não esquecer esta data na História das ilhas, pois o que querem é  exactamente, riscá-la também do nosso calendário histórico.

Mas antes, e voltando à dita praia no Tarrafal, esta era chamada, imagine-se! “Praia do Presidente”, só o Presidente da República à época, é que a frequentava. Seguramente ele mais a família dele.
Era uma praia vigiada por militares com um grande cordão à volta quando lá estava o Presidente e vedada ao público.
Pois é, era assim, e se a memória não me trai  por todas as ilhas, havia uma parcela com acesso exclusivo, geralmente a melhor situada, com casa e/ou com praia, para  o então Presidente da República da 1ª República (1975 – 1990). Como se fosse herdeiro de alguma coisa...

Igualmente, na mesma linha de separação do cidadão comum em que eles  (os governantes,a classe política de então) viviam, o praiense deixou de ter acesso ao melhor miradouro da pequena urbe, da capital do país, o Miradouro Diogo Gomes, de onde se desfruta uma paisagem marítima lindíssima e de saudosa memória dos praienses!
E porquê? Porque situado ao lado do palácio presidencial. Vigiado por tropa, como se estivessemos em país que tivesse conhecido ou experimentado a guerra. Felizmente que cá nunca a houve, por que se não, não sei com viveriamos depois da independência com o que para nós parecia já excessos de segurança dos senhores  vindos de Conacry.

Os governantes de Cabo Verde na altura, imitavam - no seu pior -  os seus congéneres do continente africano Só que como pobres imitadores, não passavam de alguns tiques bem folclóricos...

 E apenas com o advento da II República, esta trazida pelas eleições livres de 13 de Janeiro de 1991 com a eleição ( sufrágio directo e universal) do MPD e do Presidente da República, houve ordens expressas e imediatas para pôr fim às coutadas presidenciais e que se devolvesse o miradouro aos seus legítimos donos, ou seja, ao cidadão praiense, e aos seus visitantes para que dele usufruíssem.

Serão pequenos nada, dir-me-ão alguns. De acordo, responderei. Mas também de pequenos nada se faz a História. E este “nada” não é tão negligenciável como pode parecer. Numa época em que até havia polícia política – hoje os seus mentores são todos grandes democratas – para coarctar e reprimir o bem mais precioso do Homem – a liberdade – o mais “inocente” gesto ou palavra poderia conduzir a consequências desastrosas para o seu autor e família. Quando para se sair do País era necessária a famigerada “autorização de saída” até o “exílio” era condicionado…

 Por isso sempre direi que será sempre, sempre bom recordar que antes de 1990, Cabo Verde não tinha conhecido nem vivía em  liberdade e muito menos em liberdade política.