O João e o seu violão - A saudade...

sábado, 12 de julho de 2014


Conheci o meu cunhado João - de seu nome completo: João de Deus Maximiano - nos anos 60, do séc. XX, quando ele chegou aos Mosteiros, na ilha do Fogo, e aí fora colocado como Chefe do Posto Administrativo. Ele era funcionário da então Administração Civil.
João entrou para a família em 1965, quando se casou com a minha mana mais velha, Maria Tereza. A partir daí foi mais um irmão que adquirimos. Isto faz unanimidade ente nós irmãos, e seus cunhados.
Mas antes de continuar, gostaria de recordar, a propósito do João, de uma exclamação feita com graça, por uma tia nossa, nos Mosteiros, quando desembarcou o então jovem Chefe de Posto da região. Ela, a tia, virando-se para o marido (irmão do meu pai) disse: “Que interessante! Uma coisa estranha, Armando! Este novo Chefe de Posto desembarcou com o seu violão!”
Mais tarde, esta “estranheza” da tia ganharia para mim, uma dupla significação, a um tempo real e simbólica.
Explico-me melhor: de facto, era assim o João, uma pessoa simples e discreta no seu estar. Muito cordata no trato social. Era também alguém desprendido, em termos de bens materiais.

Para além do mais, o João era de uma seriedade à toda prova, naquilo que respeitasse ao seu trabalho, à função, ou cargos que ele desempenhou ao longo da vida, com altas promoções por mérito do seu empenhado labor. Entre outros cargos, destacarei os de Administrador do Concelho e presidente da Câmara da ilha do Sal, na década de 60 do século passado. Mais tarde, nos anos 80, o de Secretário – Geral do Governo e o de Secretário de Estado da Administração Pública, já com Cabo Verde independente. Uma vida feita e dedicada ao trabalho!
O que me admirava também no meu cunhado era a sua arguta inteligência. Sempre bem preparado para escutar, discutir, analisar e opinar com o seu bom senso, assuntos de natureza vária. Um homem que se cultivava através da boa leitura. Aliás, os presentes por ocasiões especiais e que trocávamos entre nós - eram regra geral, livros.
Outrossim, havia nele, fazia parte da sua maneira de ser, um permanente desejo que demonstrava em encontrar a conciliação, o ponto de equilíbrio, quando o assunto assim pedia ou, porque se apresentava de difícil solução, ou de delicada negociação. Ele era um conciliador nato!

Mas hoje queria aqui recordar a sua faceta de homem amante da música.
O João e o seu violão. Uma imagem de marca para nós, a família. Ele tocava violão e não o dispensava quando estava em família, nos nossos convívios, nas nossas celebrações, entre amigos. Não sei se isso seria um traço dos rapazes de S. Nicolau da geração dele e da nossa sociabilidade, pois que quase todos tocavam ou tocam violão. Daí que diria, ou seja tentada a dizer, que os homens dessa ilha cultivavam esse instrumento musical.
O meu cunhado, como já o disse aqui e volto a reiterar, era aficionado tocador de violão. Creio que desde muito novo. Ele era um dos tocadores indispensáveis nas festas familiares, nas nossas tocatinas. O João que com mais amigos e familiares músicos, se juntavam para, não só executarem instrumentalmente, mornas, canções brasileiras, fados, e outro tipo de melodias, como também, para acompanharem os cantores e as cantoras ou melhor, as cantadeiras de ocasião, em que me incluía.
De modo que foram muitos anos, a cantar, acompanhada ao violão pelo João e demais amigos, qualquer deles, grandes violões.
Claro, que me custa ainda falar e recordar tudo isto. Um ano se passou que ele já não se encontra entre nós! É que a morte fez calar também os acordes que ele tirava do seu violão, com que muitas vezes, nos brindava quando íamos à casa dele, ou ele à nossa...
Ficam as boas memórias que do nosso João conservamos! A partida dele deixou uma grande saudade em toda a família! Uma ausência que não se colmata. Alguém que recordaremos sempre com um grande afecto!


Aprendendo sempre...E todos os dias!

terça-feira, 8 de julho de 2014



Aqui há dias assisti na Biblioteca Nacional da nossa capital, um Fórum sobre a “Morna na sociedade cabo-verdiana” (uma achega à sua candidatura a património imaterial da Humanidade). Devo informar que o Fórum foi organizado pelo Orfeão da Praia. Trata-se de uma Instituição privada que tem feito um trabalho deveras interessante sobre a nossa música, ênfase para a morna, através de espectáculos e de eventos musicais pelas ilhas e fora do país, sob a batuta do Maestro e musicólogo, Eutrópio Lima da Cruz.
Desafiada pelo convite da minha querida amiga e colega Maria Cândida Gonçalves, infatigável, diligente e entusiástico elemento do Orfeão da Praia, lá fui. Fui e confesso: gostei. Gostei do que escutei dos conferencistas da mesa e gostei igualmente de algumas intervenções havidas e saídas da plateia, que foram acrescentos, mais-valias, ao tema em debate. Dessas intervenções, o «Coral Vermelho» já registou uma, por amabilidade do seu autor, Carlos Filipe Gonçalves.

Ora bem, daquilo que escutei dos oradores da mesa e dos músicos que da plateia assistiam e participavam no fórum, alguns temas prenderam a minha atenção, que aqui vou abordar sem quais quer preâmbulos:

1-O meio-tom da estrutura básica da morna: Sobre o tal “meio-tom” no compasso da morna, cuja existência se vem atribuindo ao longo do tempo, ao genial B. Léza, esclareceu-nos Henrique Oliveira, o nosso Djick, que não há autoria para tal. Isto é, o chamado meio-tom da morna, ou tom de passagem, é uma exigência do próprio ouvido humano. Logo, não se trata de descoberta alguma de qualquer compositor. E exemplificou: já muito antes, na Brava, as mornas de Eugénio Tavares, na dupla, letra do poeta e música de José Medina, esse compasso já lá estava. Mais acrescentou Henrique Oliveira, Djick, que a distinção de B. Léza, neste particular, é que ele praticou com a mestria que se lhe conhece, usando e, por vezes; “abusando” com frequência e excelência do meio-tom, cujo exemplo máximo é a morna «Talvez». Lindíssima, mas também de difícil interpretação vocalizada, exactamente, por causa dos muitos “meios-tons” que a melodia comporta.

2-O desaparecimento da coreografia O desaparecimento da coreografia que acompanhava a morna dançada, no “antigamente da vida” que hoje já não se vê nos bailes que, aliás, Carlos Filipe Gonçalves, no texto aqui publicado, tão bem explicou. No entanto, sempre acrescentarei das minhas memórias da juventude que, quando num baile se tocava a morna, esta, era a dança reservada aos “crectcheus.“ Isto é, o par masculino, ía logo à procura da sua dama querida, noiva ou namorada, ou ainda, pretendida. Para a «pôr ao peito». Porque a dança da morna supõe alguma intimidade, algum deleite poético, acrescentado pela proximidade dos corpos do par. Pois é, parece que actualmente já não vigora nas festas. Aliás, questiono se ainda se dançará a morna(?) entre nós…

E a propósito do modo de dançar da morna, o Djick, contou-me uma historieta muito engraçada que se terá passado na ilha Brava e que ele presenciou.
Regressado em férias, à ilha natal, vindo de S. Vicente, onde estudava, foi levado por um tio a uma festa em Nova Sintra. Entrados na sala do baile, no momento em que se tocava uma morna (um conjunto de violino, viola braguesa, violão, e cavaquinho - era música ao vivo - notaram ambos, um par jovem, estudantes, igualmente regressados de Mindelo que ocupavam um largo espaço da sala, fazendo ele e ela, uma estranha coreografia ao dançar a morna. Um misto de “rock and roll” e de foxstrot” como que para mostrarem aos locais, que eles sim, eles sabiam outras danças aprendidas em S. Vicente, a ilha mais “adiantada” e cosmopolita, com cinema, vapores na baía, estrangeiros em terra e tudo que a Brava não possuía…
Passados uns segundos, o Djick, vê o tio zangado, a dirigir-se ao par. Tomou a dama, “pô-la ao peito” e mostrou ao jovem, falando e exemplificando numa lição de passos, como se devia realmente dançar a morna. A lição de dança foi dada em crioulo: “um pé diante, um pé trás, trá pé, pô pé, pára pé, deixa’l fica la mé” e assim por diante… numa tentativa de impor algum respeito pela coreografia da dança da morna ao dito par, que acabou por acatar o saber do mais velho.
3 – As três toadas: Outra questão trazida aos participantes do Fórum foi as três toadas distintas da morna e já aceites pelos músicos nacionais. A saber: a toada da Boa Vista, a toada da Brava e a toada de S. Vicente.
O músico Eutrópio Lima da Cruz, que na minha modesta e quase ignorante opinião (apenas canto em casa, claro! mornas antigas) tem vindo num refinamento e numa sofisticação, percebe-se isso no canto do orfeão da Praia, a aproximar as mornas que executam a um tom de música considerada clássica. Explicou ele que a morna sofreu uma evolução notável. Terá feito uma espécie de “caminhada” musical, vindo de melopeia ou de melopeias, passando por várias fases e atingindo a fase de melodia dita clássica, tal como nós hoje, a conhecemos.

3-S. Vicente e os seus músicos: Humberto Bettencourt Santos, o nosso Humbertona, conhecido e apreciado violão, trouxe a questão da música desenvolvida em S. Vicente, destacando os grandes músicos de um tempo passado e falando sobre a influência da música brasileira na época (anos 40 e 50 do séc. XX) em Mindelo. Claro, que as referências ao incontornável B. Léza, não faltaram.
Sobre o caso particular do músico, Luiz Rendall, afirmou Humberto Santos que se ele é conhecido e se tornou mestre no violão, foi por causa dos seus célebres “choros” de violão muito ao compasso e numa linha de interpretação, ao estilo do “choro” brasileiro. Claro, com a adequação, a adaptação e a já originalidade, do grande violão que foi Luiz Rendall.

4 – Unanimidade: A unanimidade das intervenções recaiu na questão do grande “trabalho de casa” que terá de ser feito em Cabo Verde, para que a morna atinja o tão almejado reconhecimento. Todos, ou quase todos os intervenientes, lamentaram que as nossas rádios e televisões, passem ou transmitam muito pouco, a morna! Que a nova geração não tenha sido educada musicalmente no gosto pela morna! Quase que a não ouvem em solo nacional!
Enfim, foram apresentadas muitas e boas achegas à causa da morna para a sua candidatura a património imaterial da humanidade.

Morna hoje - Novos caminhos ou preservação do passado?

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Este foi o tema apresentado pelo jornalista Carlos Filipe Gonçalves no I Fórum Nacional – A Morna na Sociedade Cabo-verdiana realizado na passada sexta-feira, 27 de junho na Biblioteca Nacional, na Praia. Uma análise da realidade actual, que levanta muitos questionamentos num momento em que se prepara a candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade.
A Morna traduz, a grande sensibilidade do cabo-verdiano. A Morna canta o amor, o ciúme, a gratidão e a saudade, dos que partiram e dos que ficaram. Muitos estudiosos são unânimes em dizer que o cabo-verdiano, não conseguiria viver sem a Morna. B.Léza no seu livro “Uma partícula da lira cabo-verdiana” escreveu: “Há só uma terra que conhece a «Morna» e só um povo conhece-lhe os versos – Cabo Verde e o cabo-verdiano. Por isso ao cabo-verdiano, é dado comover-se ouvindo uma «Morna» quer em Cabo Verde quer longe dele, porque só a ele é dado a conhecer, sentir, interpretar, a alma da sua terra.” Outros poetas e autores dizem o mesmo por outras palavras. “ (...) expressão da alma de um povo” definição dada pelo poeta Gabriel Mariano; Pedro Cardoso poeta e investigador afirma, a Morna “ (...) polariza em ritmo a alma cabo-verdiana”. Armando Napoleão Fernandes, investigador, no seu Dicionário do Crioulo - Português, definiu a Morna como “canto e dança, em compasso quaternário, empregnado de melancolia, em que o povo soluça e canta o seu pesar, a sua tristeza e o seu queixume, em tom plangente, dolente e soluçante”.
A Morna a partir dos anos 1990 ultrapassou os dez grãozinhos de terra no meio do mar e conquistou o mundo através da Cesária Évora o que constitui motivo de orgulho de todos os cabo-verdianos. Mas, há ao mesmo tempo, um sentimento de que algo não está bem. Mas, em finais dos anos 1970, também algo não estava bem, nessa época Manuel de Novas compôs a Morna “Hoje tud got pintode é compositor” e também antes, meados dos anos 1950 algo não estava bem e ainda antes disso também há notícias de que algo não estaria. Ou seja, ao longo dos anos, ao lado de grandes compositores, grandes composições que marcam uma época ou um período, têm-se verificado ciclicamente movimentos de alerta para a preservação da «pureza» da Morna.
Passo agora a analisar alguns factos/ocorrências, como um observador distanciado. Vou apenas observar, constatar o que se tem passado, o que me chamou atenção:
1 - A dança na Morna foi desaparecendo e acabou por desaparecer pura e simplesmente. Hoje a Morna nem é coreografia que seja utilizada nos espectáculos, pois nestes, têm sido utilizadas coreografias mais vistosas, como a Mazurca, Kolá, Batuque e Funaná. Até o início dos anos 1970, era tradição terminar um baile com uma rapsódia de mornas, e o ponto final num baile era sempre com a tradicional Manchê, uma composição do final do século XIX. Até um passado recente, digamos meados dos anos 1980 a dança da Morna ainda estava presente nos bailes de conjunto. Com o desaparecimento do baile no sentido clássico e a evolução do conjunto musical a dança da Morna, foi caindo em desuso.
Façamos agora um flashback se me permitem. Descrições mais antigas dão-nos uma ideia de como a Morna foi num passado recente um género musical sempre presente nos bailes. O autor Desiré Bonnaffoux no seu trabalho intitulado “Música Popular Antiga de Cabo Verde” (1978) dactilografado, depositado na Sociedade de Geografia de Lisboa, diz e citamos: “é nos bailes que a música popular de Cabo Verde encontra a sua expressão máxima” e assinala que na primeira metade do século XX “Na Boa Vista, a Morna é tocada nos bailes que duram desde as nove ou dez horas da noite até o nascer do Sol ou mais tarde.” Osório de Oliveira, no “Posfácio Alheio – Uma Poesia Ignorada” pág. 131, da obra “Eugénio Tavares Poesia Contos Teatro”, ed. ICL, 1996, refere em 1931, os “chamados «bailes nacionais» em que dançam e cantam mornas” e indica que “a morna é uma dança de sala”.
2 – Ao longo da sua existência a Morna teve várias candências/ritmos e podemos dizer sem medo várias formas. Conforme a época, ou o período, assim tivemos um andamento para este género musical e uma percepção para a sua forma, que entretanto foi evoluindo. Uma dessas mudanças foi assinalada no Boletim de Cabo Verde, N.º 66, Praia, 1 de Março de 1955,no artigo “A Morna Deturpada” de Ângelo Lima (grande tocador de violão, originário da Boa Vista) no qual critica “ (...) o errado emprego de instrumentos impróprios à parte cantante (banjos, cavaquinhos e outros similares) e acompanhamento inadequado (batimento forte nas cordas e variações constantes com sabor a batucada brasileira).” Note-se, Osório de Oliveira, citado anteriormente, referiu em 1931 que “A orquestra é constituída por músicos amadores, que tocam de ouvido e se servem da flauta, da rabeca, da viola e do violão.” Como se depreende desta descrição o cavaquinho antes não era utilizado ou era pouco. Aliás, Desiré Bonafoux, na obra citada refere que “só para lá dos anos 1930 é que se introduziu o cavaquinho”. Um pouco mais tarde vamos encontrar o que tenho chamado “revivalismo” dos tempos de Eugénio Tavares em pleno período B.Léza. Note-se, Ângelo Lima viria a integrar em meados dos anos 1960, o Conjunto Centauros (que não tem cavaquinho) cujo ideário era interpretar fielmente a Morna do período Eugénio Tavares. Este conjunto gravou um disco no qual se constata claramente uma diferença entre o ritmo e andamento em relação por exemplo ao que se ouve nos primeiros discos do Bana, editados naquela época, meados de 1960. Bana é como se sabe um fiel continuador da obra de B.Léza.
3 - Morna sofreu entretanto e até os nossos dias importantes alterações, de ritmo, andamento, utilização de acordes etc. No período pós-B.Léza, de 1960 em diante e continuou a haver inovações. A partir de meados dos anos 1970, pontifica um novo estilo e entretanto pontifica um novo grande compositor que é Manuel de Novas. Meados dos anos 1980, despontam novos valores como Betú e Nhelas Spencer entre outros. E em todo este processo, mais recente surgem outra vez, vozes de alerta, como Manuel de Novas que já referi e mais tarde Ildo Lobo, que várias vezes lançou varias farpas como esta numa entrevista em 2003 à revista Artiletra: “(…) não se pode fugir, ou melhor não se deve fugir ao tradicional. Eu sou contra o zouck (…) só porque é cantado em crioulo, dizem que é de Cabo Verde. Eu pergunto: se eu cantar um fado em crioulo, passa a ser Morna?”
4 – A Morna ao longo da sua história até hoje tem convivido com as mais diversas modas e estilos musicais e tem evoluído neste contexto. O Maestro José Alves dos Reis, no ensaio “Subsídios para o Estudo da Morna”, Revista Raízes N.º 21, Junho de 1984 diz, e citamos “ (...) no século passado (entenda-se século XIX), com a invasão das polcas, mazurcas, galopes, contradanças, lanceiros, danças de roda, viras, etc. ela (a Morna) não se deixou influenciar”. O pesquisador Desiré Bonnaffoux, citado anteriormente, refere o livro “Cabo Verde” de Ernesto Vasconcelos, publicado em Lisboa em 1916, no qual se pode ler que naquela época “dançam-se Mornas que são características de Cabo Verde (…) juntamente com o tango argentino também em moda.” Desiré Bonnaffoux refere que na Boa Vista citamos, na primeira metade do século XX, “Morna e Galopes formavam o reportório dos bailes crioulos, mas também Maxixes, Valsas, Lunduns, Contradanças e Mazurcas” Isto mostra que já naquela época, a importação de música estrangeira (tal como hoje) era uma preocupação.
5 – A partir de meados dos anos 1970 é o tempo da música revolucionaria a que se segue a ascensão de géneros musicais até então marginalizados. Naquela época, finais dos anos 1970 e anos 1980 a Morna, ainda pontifica, ao lado de um movimento forte como o Funaná. A Morna nesta época ainda é dançada nos bailes de conjunto. Carlos Alberto Martins (Catchass) é pouco conhecido como compositor de Morna, dado o sucesso do Funaná. Mas ele compôs belas Mornas, como por exemplo Tó Martins. Obs.: No calor das glórias e sucessos do movimento Funaná, muitas vozes, classificam a música “Tó Martins” como Funaná Lento. Mesmo que tal fosse admitido, esta música é uma Morna e como tal se comporta enquanto, forma musical, outrossim o Funaná possui no seu universo, vários subgéneros, sendo o mais conhecido “Camin di Ferro” que é o Funaná tal como o concebemos. Entre os outros géneros de Funaná, hoje caídos no esquecimento, há a “Morna” que se convencionou chamar “Funaná Lento”, a Machicha, o Samba etc. etc. cf. descrição de Emanuel Antero Garcia da Veiga no artigo “Badjo Gaita’na Ilha de Santiago (1) ”, publicado no jornal Voz di Povo, ed. 14 de agosto de 1982.
6 - Chegam entretanto os anos 1990. É o início da internacionalização da música de Cabo Verde com o Conjunto Finaçon e outros músicos, facto que passa um pouco despercebido em Cabo Verde, pois não havia na época uma noção exacta da amplitude dos acontecimentos musicais protagonizados pelos nossos artistas na Europa. Aqui nas ilhas, estávamos naquele momento ocupadíssimos, primeiro com a democracia e a disputa política que então decorria. Em finais de 1992, Novembro/Dezembro uma digressão de Cesária Évora em França salda-se por um retumbante sucesso com referencias em prestigiados jornais como «Libération» e «Le Monde» ou revistas como o «Nouvel Observateur». Um ano depois, o sucesso de Cesária em França está confirmado, não só pelo interesse que os seus «shows» despertam, mas também pela venda em poucas semanas de cerca de 10 mil exemplares do seu novo álbum «Miss Perfumado» um disco que contém dos mais belos exemplares do género Morna.
7 - Morna o género que esteve na base da internacionalização da música de Cabo Verde, juntamente é claro com a extraordinária voz da Cize, terá lá fora, o mesmo significado que nós lhe atribuímos aqui no país? A percepção da Morna fora de Cabo Verde, por não cabo-verdianos é mesma que temos nós os cabo-verdianos. Vejamos como se viu e se definiu este género Morna a nível internacional quando explodiu o sucesso da Cesária: “Com as suas Mornas, melodias de Cabo Verde de uma nostalgia insondável” – JL ed. 22 Dez. 1992 – citando um artigo publicado pelo jornal francês Nouvelle Observateur ed. de 16 de Dezembro daquele ano. “ (…) mornas, versão africana do fado português, blues atlânticos afogados em melancolia” JL 22 de Dez. 1992. “Música dolente de ritmo quarternário marcada pela nostalgia, a morna, irmã do Fado, é uma das chaves para se compreender a metafisica de Cabo Verde,” jornalista Franck Tenaille, na revista MFI – Media France Internationale ed. 11 Dezembro de 1992. Na revista Telerama – ed. 28 Out. 1992 “elle chante des Mornas, ces berceuses balancées du Cap Vert” – trad. Ela canta Mornas, canções de ninar de Cabo Verde. Revista Voici n.º 266 ed. 14 a 20 Dez. 1992 – “ Cesária Évora – dit Cize pour les amis – (…) chante la morna, longue plainte, déchirante comme un fado mêlé de mambo e de samba. ” – Trad. Ela canta a morna, um choro plangente como o fado, misturado com o mambo e samba. Jornal Le Monde – “ Cesária Évora incarne l’âme de la morna (…). Un chant nostalgique et déchirant comme un fado, mas refraichit et rythmé au contacte de la samba, du fox-trot e du mambo ”. Tradução : Cesária Évora encarna a alma da morna, (…) Um canto nostálgico e plangente como o fado, mas refrescado e ritmado devido ao contacto com o samba, fox trot e mambo.
8 - A utilização/difusão do género Morna nas rádios e meios de comunicação vem decaindo. A Morna deixou de ser um género musical que entra normalmente na programação das rádios. Hoje, nas rádios a Morna é num género marginal, que se passa de vez em quando ou é alvo de uma programação especial de duração limitadíssima. O mesmo se poderá dizer dos músicos mais jovens, para quem a Morna na maior parte das vezes não consta do reportório nem é um género de eleição. Para os mais jovens a Morna, tem um outro sentido, felizmente, o género ainda representa a cabo-verdianidade. O jovem músico e maestro Carlos Matos, nascido na Holanda, na sua comunicação ao Congresso dos Quadros da Diáspora em Abril de 2011, no Mindelo, fez a seguinte revelação: “ (…) o meu avô, todos os domingos me punha a ouvir a cassete do Bana «Pensamento e Segredo». Eu não ligava nenhuma, quando ele colocava a cassete eu ficava brincando, não ficava nada atento. A primeira vez que vim a Cabo Verde tinha vinte anos e lembro-me bem, passei por Laginha, mirei o ilhéu dos Pássaros e essas músicas que o meu avô costumava colocar vieram-me imediatamente à mente e foi assim que descobri que aqui é a minha terra.”
Considerações Finais: não há dúvida que houve um processo de evolução da Morna até o ponto em que encontra hoje, e que vai continuar! Uma evolução em todos os sentidos. O que vai se passar depois, o futuro dirá! Ao longo do processo de evolução, ao chegar aos dias de hoje, o género musical Morna mudou a sua função social, mudou ou evoluiu o seu significado para as novas gerações. Explico: se antes era um género verdadeiramente popular no sentido do termo, tocado nos bailes, dançado, interpretado normalmente por todos, cantiga de trabalho que se entoava nas lides domésticas e outras, hoje Morna tornou-se um género “clássico”, já não é música popular de dança, os intérpretes contam-se pelos dedos, a juventude, adoptou outros géneros musicais. Hoje a Morna é música para se ouvir, música que desperta o sentimento de cabo-verdianidade, musica que desperta o nosso orgulho, e nos sublima. E neste ponto surge a pergunta: Morna Hoje – Novos caminhos ou preservação do passado? – Eis a questão!

Praia, 26 de Junho de 2014
Carlos Filipe Gonçalves