HÁ TÚNEIS & TÚNEIS

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Há já algum tempo, numa rotineira troca de e-mail com um antigo colega de liceu e mais tarde do Instituto Superior Técnico (IST) – ele estava mais adiantado – que vive na Madeira, ele comunicou-me que alguém lhe tinha dito (tout court) que eu era contra túneis.

Ele, que é muito meu amigo e me conhece bem, ficara admirado sabendo que sou engenheiro de minas; e eu incomodado e irritado pela tremenda calúnia que, pelos vistos, tinha já entrado num circuito e produzido os seus perversos efeitos pois não sabia quantas pessoas mais tinham tido a mesma informação e dessa forma.

Nunca lhe perguntei a fonte – nem achei que o devesse fazer – e não me preocupei em dar-lhe mais explicações do que o contexto e as circunstâncias em que havia feito tais declarações públicas. E para quem era, não era preciso mais…

Mas porque polémica tem havido sobre esta questão com alguma ressonância e ecos nos media e não só, sou levado a explicar-me e a reiterar a minha posição.

Há túneis e túneis!...
Túnel para ligar duas localidades importantes (normalmente túneis ferroviários); túnel como alternativa construtiva de uma via de circulação (túneis rodoviários); ou ainda túnel como solução para descongestionamento de trânsito urbano (túneis urbanos – rodoviários e, por vezes, ferroviários) ou, no mesmo contexto, túnel como salvaguarda de um direito ou mais-valia de superfície. São todas coisas diferentemente iguais. E a linha de separação (ligeiríssima) que apresento é apenas na finalidade.

O que é importante aqui registar é que a opção por túneis rodoviários, não é política. É normalmente técnico-económica da responsabilidade dos projectistas das vias de circulação (rodo ou ferroviárias). E não está em causa o factor tecnológico quando é sabido que grandes túneis com mais de meia centena de quilómetros de extensão foram já construídos sob água. E outros estão sendo projectados como o que poderá vir a ligar América à Ásia através do Estreito de Béring. Mas são onerosos quando comparados com as obras de superfície. Por vezes, muito onerosos mesmo.

Por isso é que a opção por túneis exige sempre um aturado estudo económico sopesando todos os factores – endógenos e exógenos – incluindo obviamente o impacto ambiental e as externalidades. Não é igual construir um túnel de 5 Km ou construir 25 túneis de 200 metros. O comprimento total é o mesmo mas a relação não é linear nem os propósitos serão os mesmos, como se calculará. Os problemas de ventilação, da iluminação, de combate aos incêndios, da segurança, das galerias de emergência e até da própria secção desse túnel – citando apenas alguns factores – que irão pesar muito não só na execução como na posterior manutenção não podem ser iguais. Daí que nenhum dos grandes túneis mundiais é rodoviário.

O maior túnel rodoviário da Península Ibérica será o de Marão, que terminará em 2011 e que terá apenas 5,6 Km. Mesmo no imenso Brasil com uma fabulosa rede de estradas o maior túnel rodoviário não chega a 4 Km.

É nesta linha que quando me disseram que alguém tinha aventado a hipótese de se construir um túnel rodoviário que ligasse Porto Novo a Povoação de Ribeira Grande, separados por uma estrada de montanha de cerca 35 Km que passa por muitas localidades e permite usufruir de uma paisagem única, pensei logo: seguramente essa pessoa não é engenheiro nem economista e muito menos está ligado ao turismo. Não sabe fazer contas nem tirar proveito das potencialidades turísticas da região. Ou então é um político pouco honesto ou mal assessorado. Essas tomadas públicas de posição, totalmente desprotegidas de palavras cautelares e sem qualquer base técnica, são uma ligeireza e uma leviandade de todo o tamanho.

Que se faria com os escassos minutos que se ganhariam com o túnel? Qual o fluxo de viaturas, de passageiros e de mercadorias que justificariam tal investimento? Que turista havia de preferir viajar através de um túnel tendo uma estrada de montanha a cortar a Ilha ou do litoral a beijar o mar? A onerosíssima manutenção quem é que a pagaria? Muitas questões poderiam aqui ser levantadas sem qualquer resposta. As mesmas que quando se lançou igual hipótese para ligar Tarrafal a Vila Ribeira Brava.

Presumo que a ideia tenha vindo da Madeira onde um grandioso programa, lançado em 1989, de construir 136 Km de vias rápidas conduziu à construção de muitas dezenas de túneis, em que o túnel mais oneroso, de mais ou menos 2 Km, teria custado 26 milhões de euros por cada quilómetro, cerca 2.900 contos cabo-verdianos cada metro. Todo o programa, que se concluiu em 2000, custou cerca de 1815 milhões de euros, mais de 200 milhões de contos cabo-verdianos. Os túneis estavam na moda!...

A Madeira tinha “três” orçamentos: o do Arquipélago, o do Continente (Portugal) e o da União Europeia (Região ultraperiférica). Extrapolar a infra-estruturação da Madeira ou das Canárias para Cabo Verde exige muita ponderação, muita sensatez e muito realismo. Ou então muita demagogia e fantasia. E como é fácil acreditar-se naquilo que se deseja, muita gente acreditou…

Dizer que sou contra túneis é uma imensa calúnia! E a calúnia como diz o povo, é como o carvão – quando não queima, suja.

Não sou nem a favor nem contra túneis. Nem podia ser de outro modo. Os túneis são “sempre” exequíveis. E a opção para a sua execução assenta, como já disse atrás, num estudo técnico-económico quase sempre alternativo.

Mas não é visionário quem hoje, e muito menos ontem, defende ou defendeu a construção de um túnel que ligue Porto Novo a Povoação de Ribeira Grande quando há outras alternativas bem mais acessíveis economicamente e com vantagens outras. Ele é precisamente o inverso – lunático no sentido literal do termo: com os pés (ou cabeça) na Lua e não na Terra.

As transacções comerciais conhecidas e projectadas entre os dois povoados incluindo S. Vicente são irrisórias para um investimento global (estimado) dessa envergadura – um túnel rodoviário de alguns quilómetros.

Contudo, ligar Covoada a Fajã através de um túnel de umas centenas de metros poderá ser a solução de pôr Covoada em comunicação com o resto de S. Nicolau. A alternativa é uma relativamente extensa (4-5Km), sinuosa e alcantilada estrada que partirá de Estância Brás. A opção definitiva deverá obrigatoriamente envolver um estudo técnico-económico das duas alternativas.

Túneis, viadutos, pontes são opções meramente técnicas dos projectistas das vias de comunicação. A ordem de execução poderá ser política pois dirá respeito à via de circulação como um todo.

É por isso que eu defendo que as grandes obras devem ter o parecer de um Conselho das Obras Públicas formado na base de competências e não da cor partidária. Mesmo pagando a esse conselho sairia mais económico para o País pois evitar-se-iam alguns “elefantes brancos" eleitoralistas, certas aberrações que temos visto por aí e que teremos de pagar mais tarde com juros, sobretudo sociais, elevados.

Já é tempo de deixarem os técnicos decidirem e falarem das opções técnicas, justificando-as publicamente, se necessário.

É importante infra-estruturar. Mas infra-estruturar não é construir a torto e a direito e a qualquer preço. Exige enquadramento, programas e critérios bem definidos e transparentes.

De outro modo, acontece-nos o que já se verificou num país, muito amigo, da União Europeia: Tem a maior rede de auto-estradas por habitante da Europa, e vive hoje uma grave crise (passe a redundância) económica e social, em grande parte motivada pela sua dívida pública, que o obriga a tomar medidas draconianas porque tem o FMI e o Fundo Europeu à porta.

A. Ferreira

Seria boa ideia pôr algum termo às efabulações criadas em torno da figura de Armand Mont-Rond!...

terça-feira, 30 de novembro de 2010


Sim, é chegada altura de vir ao de cima algum bom senso e pôr termo a tanta efabulação (estou a tentar, através deste eufemismo, manter-me o mais correcta possível!) ouvida e escrita sobre o francês, por sinal meu bisavô, que demandou a ilha do Fogo no último quartel de 1800.
Ora existem alguns pontos que nunca serão de mais esclarecer. Vou tentar enumerá-las:

1 - Ele não deixou “numerosos filhos” Não foram tantos como se pretende fazer crer. Falso. Os seus filhos – que não foram poucos mas também não tão numerosos – é que deixaram muita prole. Como afirmava a minha tia Eugénia, neta do francês. Terá sido o caso da minha avó paterna Maria Clementina Gomes Mont-Rond que teve 10 (dez) filhos; o caso também do meu tio-avô paterno Simiano Mont-Rond ou Montrond, que teve também muitos filhos. Dos outros filhos, confesso que não tenho notícia, possivelmente também eles tiveram descendência. Todos eles multiplicados, pode-se perceber a quantidade de gente que conserva ainda o apelido Montrond.
2 - Armand Mont-Rond nunca viveu na Chã das Caldeiras. Quem para lá se transferiu da (Ribeira Ilhéu ou da Atalaia) foi o filho Simiano Montrond, nos meados do século XX e foi quem veio a marcar a tal inúmera descendência dos Montrond da Chã que ainda hoje distingue a região. O ascendente Armand Mont-Rond viveu em Baluarte, na Achada Matriz ou Achada Mariz como localmente é chamado o local, e circulava entre Atalaia e Ribeira Ilhéu. Também teve moradias em S. Filipe e na Cova Figueira.
3 - Igualmente convém repetir que o nosso gaulês Mont-Rond não introduziu a vinha e nem a produção do vinho no Fogo. Li isso num Guia turístico sobre o Fogo. Falso. É bom que se esclareça que a uva foi das primeiras frutas que os portugueses – com a videira trazida de Portugal ou da Madeira ou dos Açores – experimentaram plantar em Cabo Verde. O que se entende. Queriam ter por perto aquilo a que estavam habituados a comer e no caso, a beber, na terra de origem. Há notícias disso logo a seguir ao povoamento, ainda no século XVI. Portanto, quando o nosso francês cá chegou no século XIX, já havia muita parra e algum vinho. Interessante é que não foi só no Fogo que os portugueses plantaram a videira. Também a cultivaram em Santiago, em Santo Antão, em S. Nicolau e na Brava.
4 – Em termos de formação académica ouvia meu pai contar que o avô dele tinha “estudos de medicina”. Daí ter percebido que não completara medicina. Logo, ele não era médico. Nem mágico, nem homeopata. Por que deduzo falsas ou por certificar, as profissões e/ou formações académicas que lhe são atribuídas.
Com efeito, e já no Fogo ele interessou-se e ali estudou as propriedades medicinais de muitas ervas locais, as quais recomendava às pessoas que o consultavam que as tomassem ou sob forma de chá ou sob forma de pasta (para massagem).
5 - Sei sim, e nisso acredito, pois que fazia “voz corrente” na família que Armand Mont-Rond fora um homem empreendedor, ousado e dinâmico. Praticava actos de engenharia em obras consideradas públicas. Daí ter suscitado algum confronto com o Governador, pois ele construiu a tal estrada carroçável da antiga “Volta-Volta” sem pedir autorização às autoridades e do seu bolso. Praticava, se calhar, actos ditos médicos, dado que consultava e receitava tratamento a doentes que dele se abeiravam. A maior parte das vezes os remédios eram caseiros e alternativos. Fazia-o graciosamente. Estamos a falar da ilha do Fogo do século XIX e de uma zona, Mosteiros onde o Clínico (sedeado em S. Filipe) visitaria muito espaçadamente.

6 – Outra “lenda” criada à volta da figura do meu bisavô é a razão, o motivo que o terá levado a fixar-se no Fogo. A versão que a minha avó contava e mais tarde ratificada pela filha, minha tia Eugénia, era que se tratou de uma briga com a família francesa e ele, (Armand) um espírito rebelde e aventureiro, se calhar, terá preferido deixar a França e fixar-se numa então remota ilha. Daí, o tal mistério que tantas efabulações tem criado com transmissões exageradas e deturpadas (quem conta um conto…) aos forasteiros que visitam a ilha do Fogo à procura de testemunhos sobre a vida do francês na ilha do vulcão.
Possivelmente Armand Mont-Rond pertenceu a família aristocrática e rica da França que não se sentiu nada “orgulhosa” do feito do membro familiar. Ele teve uma irmã que não deixou descendência. Eis a razão porque não se encontram descendentes “Mont-Rond” (de origem) em França.
De seu nome completo Armand Fourbeaux de Mont-Rond, que tanto segredo fez das razões porque fixou residência no Fogo, nunca pensou que após o seu desaparecimento, haviam de ser criadas tantas lendas e estas badaladas aos quatro ventos, por vezes, sem o mínimo cuidado de verificação da verdade histórica.
João Augusto Martins, no seu livro «Madeira, Cabo Verde e Guiné» Lisboa, 1891, fala de Armand Mont-Rond, descrevendo-o a determinada altura, (pois que o conheceu e o visitou no Fogo) como: «um homem inteligente porque percebe, compreende e decide quando os outros hesitam e se declaram impotentes. Muito culto, eis o que revela a sua conversação cheia de interesse (…) Tudo o que faz e pratica mostra um vasto exercício solidamente orientado» continua o escritor Martins, nos seus elogios a Armand Mont-Rond dizendo que o francês pela sua lavra, melhorou a agricultura nas terras que cultivou pois que introduziu processos mais modernos à época, que terá trazido da França.
Por outro lado, há um testemunho que considero fiável, que é o de Padre Luigi Miragillio, o nosso Padre Luís que viveu durante muitos anos nos Mosteiros e que baptizou quase todos os meus irmãos. Excepto eu porque fui baptizada em Lisboa. O Padre Luís chegou ao Fogo em 1947. Ele narrou para Pierre Sorgial, autor do livro: - «Les îles du Cap-Vert d’ hier et d’aujourd’hui» – ecos daquilo que ouviu nos Mosteiros sobre Mont-Rond, com contenção e bom senso. Reli-o recentemente no exemplar da Casa da Memória em S. Felipe. Uma das explicações da “aura de prestígio” que rodeou o francês que se auto exilou naquele canto do Arquipélago é que o homem era por lado, bondoso e por outro lado, não tolerava a negligência e a preguiça no trabalho.
Finalmente, pois o texto já vai longo, dizer que ele voltou à França por duas vezes. Tanto na morte do pai, como na morte da mãe. Regressou sempre carregado de armas e de munições para a caça que se praticava muito no Fogo. Os netos dele, meu pai, o irmão Armando José Rodrigues e o primo Alberto Montrond gostavam e praticavam caça. Outra habilidade de Armand era a música que também legou a alguns dos descendentes. O violino e o bandolim eram os instrumentos preferidos.



Histórias envoltas em lavas...

quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Hoje vou falar de mim, isto é, do meu próximo livro de Contos intitulado: «Contos com Lavas» que será apresentado na Casa da Memória, em S. Filipe no fim desta semana.
Trata-se de uma colectânea de 12 contos que, como o próprio título sugere, as histórias e as personagens nela contidas foram recortadas em ambiente foguense. Sob protecção ou sob maldição (conforme o ângulo de abordagem da ficção) do medonho e do temido vulcão. É que de facto existe um autêntico «feiticismo» do foguense com o seu Pico.
Daí o título do livro e daí também o conteúdo de algumas histórias «bebidas» de alguma forma no magma do vulcão, ainda que simbolicamente.

Por se tratar de uma edição de Autor, torna a sua publicação num projecto que direi muito pessoal. Isto para justificar o que disse no início deste escrito que iria falar de mim.
Mas pensando melhor, vou alargar ligeiramente o âmbito do «ego» e abrir um parêntesis, e falar um pouco dos “riscos” de se editar um livro de “motu” próprio – aqui na minha terra – Por um lado, o mecenato, os patrocinadores escasseiam. Mas mesmo os que ainda o fazem, refiro-me às instituições financeiras dizem-se já “cansadas” de tantos pedidos para as muitas actividades que diariamente acontecem. Depois o autor nem sempre dispõe ab initio, do montante, que não é pouco, para a impressão de um livro. Felizmente que sempre vai aparecendo um co-patrocínio o que se agradece. A propósito, achei interessante o que me disse uma das instituições contactadas, que o critério dela para patrocinar livros se fixava apenas em manuais escolares e em livros científicos. Fiquei sensibilizada! Óptimo! Que seja para isso!
Por outro lado, é um “risco” pensando na existência do potencial leitor aqui nas ilhas, que segundo estatísticas, a percentagem ainda não satisfaz quando se pensa na “vida” plena de um livro.
Ora bem, de todo o modo, o facto de ver finalizado este meu projecto pontual e imediato, deu-me uma sensação boa! Porque fiz aquilo que gosto de fazer: escrever e escrever efabulando, recriando memórias, transfigurando realidades e assim tecendo os contos. Relendo-os, vou reencontrar parte da minha vivência, parte da comunidade de pertença, pela espécie de lastro cultural que se envolvem nas histórias ou que nos é devolvido por elas.
Bem-haja a ficção pela felicidade que dá!

Crioulês? Ou a dependência do crioulo actual à Língua matriz?

sábado, 2 de outubro de 2010

Folheando um caderno de apontamentos encontrei, num puro acaso, as linhas que se seguem resultantes de uma intervenção escutada numa reunião institucional, já há alguns meses – a quando da virulência do dengue na Praia – mas cujo conteúdo pareceu-me interessante para ilustrar o título acima enunciado. Não resisto a transcrevê-la:
«Isso ta bem obriga a que haja uma mudança na política di saúde pública. Para além disso, Praia stá em conexão muito forte cu resto do país»
Se bem repararmos, apenas três partículas (grafemas) deste pequeno excerto ficam de fora do português: di, stá, e cu. (É bom não esquecer que estas mesmas partículas são vestígios do português quinhentista, base da formação do crioulo)
Daí a minha reiteração de que a Língua cabo-verdiana ou o crioulo de Cabo Verde se encontra cada vez mais interdependente da Língua portuguesa hodierna. E isso é bem visível na oralidade dos falantes escolarizados e na dos técnicos de intervenção pública/mediática, que ao veicularem uma mensagem de cariz médico, educativo, ou outra de carácter técnico-científico se socorram do vocabulário e da construção frásica bem próximos da língua portuguesa. É também o sociolecto ouvido em certos ambientes escolarizados.
No mesmo registo, aconteceu-me numa destas manhãs, ia eu no carro às compras e de rádio ligado, “apanho” ainda bocados de uma entrevista na RNCV. O entrevistado questionado se alguém que fora nomeado para o cargo – referido pelo Jornalista – tinha o perfil adequado, responde nos termos que a seguir transcrevo:
«Na nha opinião ele tem o perfil ideal. Ele é um perfeito conhecedor da área qui el stá gere; tanto mais, que se trata di um pessoa muito capaz e cu provas dadas.» (sic) (o sublinhado é meu).
Sem muitos comentários, e creio que sem necessidade também de tradução, apenas para referir e reforçar de que é minha convicção de que a oralidade culta – chamemo-la assim – do crioulo actual, aproximou-se muito fortemente da língua portuguesa. É um dado que diariamente – ou quase isso – venho verificando aqui nas ilhas. E isso passa-se sobretudo com o segmento do crioulo que os falantes utilizam nos media nacionais.
Embora se trate de um fenómeno linguístico de há muito previsto, lembremo-nos de que Baltazar Lopes da Silva numa das suas intervenções na célebre “Mesa Redonda sobre o Homem cabo-verdiano” (Mindelo, 1956) afirmava que o crioulo, para além da sua inquestionável e crescente vitalidade, caminhava também e cada vez mais para uma espécie de “aristocratização” que ele ilustrava da seguinte forma: «…É de um interesse extremo observar como e em que compartimentos se processa esta aristocratização. Primeiramente na fonética. Não admira. Maurice Grammont notou esta tendência, ou esta maior permeabilidade da fonética a influências exteriores mais prestigiosas. Suponho que a tendência assenta na constante que leva o homem, quando desejoso, mas impossibilitado de assimilar totalmente um padrão diferente do seu, a copiar-lhe, ao menos, a forma externa. Em segundo lugar, no léxico. O crioulo dispõe hoje de um tesouro lexical de origem portuguesa que me não parece inferior, ao menos em grau sensível, ao padrão comum do vocabulário metropolitano. A aristocratização vocabular enverga ainda uma vestimenta de que o português e as outras línguas românicas fizeram largo uso: a divergência. É assim que, quando o crioulo possui no seu léxico tradicional determinado vocábulo, a influência do português exerce-se, não no sentido de essa forma desaparecer, mas no dela se aproximar o mais possível da forma correspondente portuguesa…»
Não sei se o eminente filólogo já não teria em mente a possível “décaláge” que a mais recente proposta ortográfica para a escrita do crioulo iria criar entre a sua expressão oral e a sua expressão escrita, (?) pois que Baltazar Lopes foi avisando de que não haveria necessidade de se “inventar” qualquer conjunto alfabético para a normalização escrita, uma vez que a já antiga língua (o crioulo) que ele caracterizou como sendo de origem latina/portuguesa já o possuía de séculos com uma história etimológica própria.
Num aparte gracioso, como disse um familiar meu com muito espírito: “- Convenhamos de que não havia de ser com o “K” empurrando o “C” borda fora que resolveríamos o problema!” –
Ora bem, tudo isto se conjuga com a tese que comungo de que há uma cumplicidade e uma interdependência cada vez mais acentuadas e intensivas entre o crioulo e o português de Cabo Verde, nos dias que correm. Se me perguntarem, se isso é bom (?) se isso é mau (?) talvez respondesse que a questão arregimenta em si, características positivas e características negativas. Mas que algo – uma nova reconfiguração da língua? - se desenha de forma indelével nesse “aportuguesamento” do crioulo, como também, já antes se inscrevera no “acrioulamento” do português de / e em Cabo Verde, disso não tenho dúvidas!
Paralelamente, a escolaridade em língua portuguesa deve estar muito atenta a estes fenómenos linguísticos de entrosamento, pois que não me parecem que já sejam apenas “empréstimos” de uma língua para a outra, respectivamente em posição de ascendente e de descendente.
E depois, caros leitores, a língua cabo-verdiana, na parte que tem de “rebelde, transformadora, criadora e inovadora” – sobretudo na sua oralidade – porque ainda em permanente estado de “magma”, permitam-me esta comparação, acaba ela própria, por vontade dos seus falantes e com a ajuda das ferramentas adequadas por encontrar o seu caminho.
Se pende, ou não, para um reajustamento (reaproximação) com a matriz que lhe deu origem é algo que o tempo, os interesses do falante e as vicissitudes complexas que o mundo global de hoje comporta, dirão.
Da minha parte, limito-me a apontar e…a tirar apontamentos também!



Nota de Leitura - A propósito de alguns Contos tradicionais brasileiros

domingo, 26 de setembro de 2010
Antes de mais gostaria – ao introduzir esta breve nota de leitura – de parafrasear o famoso ensaísta e filosofo alemão Walter Benjamin que questionou se haveria quem ainda soubesse contar histórias? A propósito daquilo que ele cogitava maléfico no avanço rápido do progresso. E aqui quando se usa o semantema “contar” complementado por “história” está-se a referir à espontaneidade, nos tempos que correm, de se narrar um conto da tradição oral de uma comunidade.
Vem isto também a propósito e em contexto, pelo facto de me encontrar ainda sob o “encantamento” da leitura recentemente feita de alguns contos tradicionais brasileiros.
Trata-se de uma selecção e de uma adaptação da autoria de Cármen Lúcia Tindo Secco, professora/pesquisadora da UNFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Retomando a questão de Walter Benjamin, claro que o tempo, o contexto, as transformações tecnológicas, humanas e as formas de socialização ainda que em ambiente rural – onde mais tempo, regra geral perduram as manifestações folclóricas de que o conto tradicional oral é parte – são outras actualmente, naturalmente, e não creio que já existam tais contadores/recriadores repentistas de histórias orais, como os havia outrora.
É meu entender que a leitura deste conjunto de narrativas em que o maravilhoso e o mágico naturalmente dominam, ainda que limitado em número que não em qualidade, se destina a leitor apreciador de contos da tradição oral e, eventualmente, atrairá também o leitor interessado em conhecer um pouco dos contos pertencentes ao folclore brasileiro. Que fique esclarecido que estamos perante uma infinitésima parte daquilo que são os contos tradicionais brasileiros – dez contos – mas ainda que parca em quantidade, não deixa de ser significativa e exemplar em termos de amostragem.
De facto, alguns dos contos aqui transcritos, ilustram de certa forma – e creio que boa parte deles – uma região do Brasil que salvo melhor opinião, se trata do Rio Grande do Norte.
São contos orais recolhidos da tradição folclórica, que nos fazem viajar no tempo. Num tempo longinquamente passado, mas, em que, também diria, fixado pela palavra oral e/ou pela palavra escrita e carregado de uma profunda ancestralidade e de genuína ruralidade, ganha forma intemporal e a dimensão do espaço neles (nos contos) se dilui, pois que os sentimos – nós leitores da língua portuguesa de outras paragens e culturas – por vezes bem próximos e identificáveis, não só linguisticamente, mas sobretudo culturalmente.
No fundo, trata-se da tal proximidade legada pela língua comum e pelas matrizes culturais portuguesas e africanas, acrescida, no caso do Brasil, pela matriz cultural índia.
Logo, os contos aqui colectados, estão embebidos de uma maravilhosa e sublime cosmogonia mestiça, que os tornam ao nosso entendimento, uma “fonte” onde todos, ou quase todos, também tivemos em algum momento ou, temos lá ainda algum “cântaro” que comungou da mesma água.
Com efeito, são pequenas narrativas oralmente transmitidas, que vêm de tempos remotos, algumas delas fizeram, por vezes, atormentadas e demoradas viagens, originárias de terras e de países longínquos e de culturas diferentes, foram escutadas por muitas gerações e transmitidas a outras tantas; pelo caminho sofreram diversas alterações e transfigurações geo-sociais, até chegarem aos nossos dias.
As histórias contidas nestas narrativas orais ao mudarem de ambiente, os seus conteúdos também se alteraram, igualmente se adaptaram e adquiriram nova feição, novo tom, outros ritos, acção renovada, aventuras novas, paisagens aculturadas à região e à comunidade, de tal modo que estes os envolveram como parte da sua própria vivência. Nesta arte modificada, as personagens iniciais e/ou originais transmudaram-se em outras figuras bem locais, e muito poucas conservaram as suas formas estrangeiras ou forasteiras. E isto é válido, quer para os animais, quer para os humanos ou sobre-humanos efabulados, quer ainda para as personagens fantasmagóricas.
De qualquer forma ganharam quase todas, novas cores, novas feições, novas formas de falar e de se socializarem, outros usos e diferentes costumes locais e/ou regionais e novas “manhas” e/ou “artimanhas para garantir a sobrevivência.
Enfim, dito de maneira resumida: tanto as personagens como os seus comportamentos aculturaram-se ao país, no caso, Brasil e nas suas diferentes regiões. As personagens antropomorfizadas ou não, foram recriadas e enriquecidas com novos tipos humanos, com novas atitudes e reacções, novas travessuras e posturas outras perante o relativismo do bem e do mal, da riqueza e da pobreza. Em síntese, ouvidos os contos e identificados os dramas, as tragédias e as alegrias da condição humana neles efabulados, eles foram incorporados na comunidade, absorvidos e transformados pela mesma comunidade em algo de pertença própria. Tudo isto emoldurado num fundo em que existe e se percebe uma autêntica recriação antropológica ficcional, conformada – reitere-se – ao ambiente para onde os contos orais migraram e passaram a ser património da região.
É assim que temos no conto «Os Compadres Corcundas» uma acabada narrativa de personagens, ou melhor de duas personagens que só na aparência física se assemelham, porque ambas corcundas, mas enquanto um era pobre, humilde e amigo de ajudar o próximo, o outro era rico, vaidoso e ambicioso desmedido. O conto de final exemplar gira à volta da virtude e do pecado, dois ditames antagónicos que coexistem no ser humano em divergência constante um contra o outro e o caso contado não foge a este figurino esquemático. No final do conto, naturalmente que a virtude e a humildade são copiosamente recompensadas e o vício e o pecado severamente punidos.
O interessante do enredo do conto «Os Compadres Corcundas» reside também nas informações que vão sendo dadas sob forma de juízos de valor social e ditas de uma forma aparentemente despicienda. É que, enquanto: «o povo do lugar vivia mangando do corcunda pobre» assim se inicia a narração, ninguém «reparava no rico» que também era corcunda. A medida que se adensa a narração das desventuras do «corcunda pobre» pois ele é o protagonista, o universo mágico por onde ele circula vai-lhe preparando a alteração para a riqueza e para a bem-aventurança próximas pois que ele não desrespeitou os preceitos cristãos religiosos ao acrescentar à cantiga de roda dos seres mágicos (seus benfeitores finais) a sua quadra de versejador repentista: «Segunda, terça-feira / Vai, vem! /E quarta e quinta-feira / Meu Bem!
Opostamente, embora sem o saber, mas com ambição desmedida, quando lhe chegou a vez, o «corcunda rico» a quem «a medida do ter, nunca se enche» querendo ser compensado como o outro compadre que, para além de rico se tornou «esbelto», quis acrescentar também a cantoria dos duendes da floresta encantada, dizendo desastradamente: «Sexta, sábado e domingo! / também!» Ora, não guardou os dias santos. A assomar aqui o intertexto religioso cristão de clara influência cultural portuguesa/europeia.
Remate final do conto «Os Compadres Corcundas»: o corcunda rico, além de muito espancado fisicamente pelos duendes em fúria, ficou com dupla marreca, isto é, com mais «aquela de que o compadre pobre se livrara» para se lembrar do pecado e do atrevimento cometidos.
Outro dado singular deste conto é que o universo da história se desenrola em ambiente muito masculino, não há presença feminina explicitada. O conto respira: “Muita briga,” “caçador esforçado,”trabalho duro,” “força física” são os elementos e os requisitos constantes de que se compõe toda a acção do conto.
Entrando agora no dos outros contos, este intitulado, «Bicho de Palha» somos remetidos intertextualmente, e diria que quase de imediato, para a universal «Gata Borralheira» dos Irmãos Grimm. Aliás, este paralelismo, esta similitude temática de base entre as duas narrativas, já foi e tem sido objecto de análises comparativas de ensaístas, de críticos literários e de antropólogos brasileiros de renome, de entre os quais destacaria o insigne folclorista Luís da Câmara Cascudo.
Continuando com o conto «Bicho de Palha» aqui e agora a jovem bonita, de seu nome Maria, que nascera de família rica e educada, mas que devido às viagens constantes, ao novo casamento e o posterior desaparecimento do seu progenitor, ela ficou entregue aos maus-tratos da madrasta; à inveja por parte da meia-irmã feia e, para cúmulo, é alcunhada por todos da vizinhança de Bicho de Palha, «graças ao seu vestido singular (…) uma grande capa de palha entrançada com um capuz…» o tipo de vestuário que diariamente envergava para não lhe serem reconhecidos os traços de beleza aristocratas, pois que a função que exercia era de serva. Tal como a homóloga europeia, (Gata Borralheira) Bicho de Palha, tropical/brasileira, tem também uma protectora, uma fada – disfarçada sob a forma de uma velha bondosa – e igualmente irá ao baile do princípe por quem está apaixonada e será retribuída com igual afecto; a sedução fará bem o seu jogo entre os dois; a “Bicho de Palha” terá também direito ao teste do sapato de cristal. O casamento final é abençoado pelos reis e a fada velhinha então revela-se. Afinal, era ela, nada mais, nada menos, do que a “Nossa Senhora!” A arquitectura deste conto oral acaba por ser clássica com os três momentos: o primeiro, de equilíbrio pois que supõe a infância tranquila de Maria repleta de afecto e de bem-estar; o segundo, de desequilíbrio e de muita instabilidade, dá a conhecer toda a saga da “Bicho de Palha” e, por último, o terceiro momento em que se dá a transformação de novo na “Maria” original, mas agora adulta, bela e amada pelo Príncipe. Repare-se no simbolismo da fada que não é uma “encantada” qualquer, é a santa maior (Nossa Senhora) de entre todas.
Ora isso faz-nos identificar e reconhecer de novo o fundo religioso que se implica de certa forma no conto, dado que buscado na própria realidade do quotidiano. Dito de outro modo: a iconografia sagrada e os ritos cristãos funcionam como “hiper-texto” em grande parte das manifestações folclóricas, tradicionais e populares das regiões e dos povos que possuem a base histórica/linguística comum portuguesa.
Além do mais, num dos contos, temos de volta o eterno Pedro Malas Artes, ou Pedro das Malas-artes ou ainda Pedro Malasartes, como é mais conhecida esta personagem. Possivelmente terá “viajado” do Portugal quinhentista para as terras de Vera Cruz, pois que é personagem recorrente no conto tradicional português – em recolhas feitas por Teófilo Braga e outros autores – com incidência nos contos tradicionais orais alentejanos.
Desta feita e no conto aqui presente, o nosso pícaro e manhoso “Malasartes,” um exímio e ardiloso mestre na arte da sobrevivência, engana a todos, incluindo o próprio rei, ao prometer-lhe que em troca de “três bilhas de azeite” lhe traria ao palácio “três mulatas moças e bonitas”. Ora bem, com a oferta real em mãos, sai Pedro Malasartes pelo mundo, na aventura de conseguir sustento e de cumprir com o prometido ao rei. Pelo caminho vai enganando, torpedeando e ludibriando tudo e todos até conseguir em pleno os seus objectivos.
Outra narrativa muito interessante é o conto «Mãe do Ouro» que introduz na história narrada alguns elementos que me parecem pertencer ao maravilhoso de matriz cultural dos índios. A começar, a simbologia do nome e do significado na narrativa da personagem/protagonista “Mãe do Mundo” cosmogónica, abrangente, onde começa e acaba a natureza, que «vira nascer o primeiro Deus» de tão velha e antiga que era, pois «que até parecia haver a morte se esquecido dela». Narra-nos o conto que com o decorrer do tempo e ciclicamente, nas noites de lua cheia acontecia um ritual, a “mãe do Mundo” acompanhada de uma jovem de boas virtudes, banhava-se num lago e era por ele tragada. Passara o testemunho. Reaparecia transformada em mulher-serpente cujas escamas eram de ouro; daí o novo nome que intitula o conto: «Mãe do Ouro». Assim, através dela vem a explicação fantástica do renascer constante e eterno da terra e da água (ambas prefiguradas em mulher) que geram os demais elementos da natureza.

Fazendo agora um pouco a “narrativa tradicional oral comparada” se assim me é permitido expressar, a propósito dos contos acabados de ler e que foram pretextos desta singela nota de leitura, (re)contaria também que outrora em Cabo Verde as contadoras de histórias mágicas e de encantar, mas igualmente exemplares, pois que quase sempre continham algum ensinamento, ilustravam algumas normas de comportamento mediante castigos e recompensas – nisso as histórias contadas em crioulo, e/ou em crioulo/português adaptadas ao Arquipélago e, por vezes, às singularidades de cada ilha, não diferiam muito em finalidade com o que acontecia ou acontece noutras partes do nosso mundo – terminavam-nas regra geral com as seguintes lengalengas ou sentenças «história, história, fartura do céu, ámen!» (ilhas de barlavento) «quem souber mais que conte melhor» (ilhas de sotavento). Tudo isso dito oralmente nas variantes do crioulo das ilhas ou Língua cabo-verdiana. Logo, um final, ou melhor, uma “suspensão” a adivinhar continuidade, desde que se verificassem algumas condições: «fartura do céu…» e mais estórias por e para contar.
As histórias, normalmente destinadas às crianças tinham, ou podiam ter, também entre o auditório ouvinte adulto. Regra geral, os contos orais só deviam ser narrados, depois do pôr-do-sol ou, como então se dizia: à «boquinha da noite», ao anoitecer e nunca antes. O que faz supor a existência de um ritual em termos de tempo de lazer que não devia ser roubado ao tempo do trabalho. De tal modo assim era respeitado a hora de contar histórias que se tal narração acontecesse antes da noite, ou fora de horas, havia ritos a cumprir para que os malefícios que o conto explicitasse não fizessem recair os seus efeitos sobre alguém de entre a assistência. Um desses ritos ou gesto era, por exemplo, de entre os ouvintes do conto, três pessoas, normalmente voluntárias, arrancassem ou simulassem arrancar um cílio das pestanas. Feita esta espécie de esconjuro, a contadora poderia iniciar tranquilamente a sua narração, na certeza, de que embora estivesse a transgredir o preceito da hora apropriada de contar história, lhe seria relevada a eventual falta, e nada de mal sucederia a quem a escutasse.
Para alguns de nós, muitas das histórias escutadas na infância ajudaram-nos a construir, de certa forma, valores e a intuir o lado misterioso, encantado e maravilhoso da vida.
Concluindo, gostaria de declarar que se me fosse pedida alguma recomendação ou sugestão de leitura, ela seria a seguinte: que se leiam os dez contos; da «Princesa Bambuluá» ao «Peixinho Encantado», passando por «O Marido da Mãe D’Água», «Mulher Dengosa», e indo até «O Bem se Paga com o Mal» pois que o resultado da leitura integralmente feita será gratificante por várias razões, mas sobretudo, pela espécie de alegria inicial ou de um regresso ao ponto de partida, que estes contos nos devolvem.
É minha convicção que enquanto nota de leitura, singela como se apresenta este escrito, ela não se deverá alongar muito mais, sob pena de contrariar o objectivo final desejado, pois que nada substitui a intimidade que se vai estabelecer entre o leitor e o conto. Por isso mesmo convido-o, caro leitor, a ler estas pequenas – “ariscas,” “delicadas” e deliciosas ao mesmo tempo – peças culturais saídas de um criador colectivo, prenhes de prefigurações, de ícones e de símbolos da cultura miscigenada e rica que é o folclore brasileiro.
Para fechar mesmo estes apontamentos que me seja permitido voltar de novo ao universo de um dos contos ora colectados, «A Princesa Bambuluá,» e fazer minhas as palavras da narradora do conto: “Eu estava lá e vi tudo, e trouxe um boião de doces, mas, na Ladeira do Escorrega, escorreguei, caí e se quebrou tudo…”
Que perdure o maravilhoso!


OBS – Este texto foi elaborado a pedido do IILP (Instituto Internacional da Língua Portuguesa) para uma colectânea de contos tradicionais da CPLP.

O meu avô maçónico...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Costuma-se dizer que as famílias “normais” ou “felizes” não têm histórias… Creio que o dito, longe está de ser total e verdadeiro. De facto, na minha perspectiva, todas as famílias têm histórias. Histórias vividas, partilhadas, omissas e por fim rememoradas em momentos, em passagens de vida por vezes especiais. Das histórias familiares, pois com certeza que umas são mais felizes, outras menos felizes e ainda algumas de muito infortúnio; haverá algumas “especiais” e que se calhar, por isso mesmo merecem ser contadas.
Assim aconteceu com a família Duarte Fonseca, da qual sou membro pelo lado materno e sobre a qual pretendo – é mesmo pretensão da minha parte e que isso seja tomado à letra – traçar alguns episódios da sua história passada e vivida sobretudo na ilha de S. Vicente.
Ora bem, era meu avô materno Torquato Gomes Fonseca, natural de Mindelo e nascido a 26 de Fevereiro de 1881. Filho de José Pedro Gomes da Fonseca e de Tereza de Jesus Fonseca, ambos naturais da Ilha de Santo Antão. Foi escolarizado no Seminário-Liceu de S. Nicolau, e na vida adulta foi maçónico e republicano. Funcionário Público, tendo desempenhado diversos cargos dos quais destaco o de Presidente, de Vice-Presidente e de Vogal da Câmara Municipal de S. Vicente, Director dos Correios de Cabo Verde, Vogal Permanente do Conselho da Instrução Pública de Cabo Verde, vogal do Conselho da Biblioteca Municipal de Mindelo, entre outras funções algumas graciosa e civicamente desempenhadas. Igualmente, instruiu então muitos jovens comerciantes e empregados de escritórios comerciais de S. Vicente com aulas de contabilidade e de escrita comercial que ministrava. Charadista em tempos livres, colaborou no Almanaque Luso – Brasileiro com hieróglifos comprimidos, cruzadas e salto a cavalo, passatempos que mais tarde alguns netos (eu incluída) lhe herdámos o gosto. Neste particular, o meu irmão mais velho foi quem aprendeu a resolver os “hieróglifos comprimidos” e os “saltos de cavalo” com o avô.
Casou-se em 1909 com a minha avó Leopoldina Cristina Duarte, natural da ilha de São Vicente, nascida a 9 de Agosto de 1884. Filha de Pedro José Duarte, natural da ilha de São Nicolau e de Izabel Christina Duarte Christino, natural da ilha de Santo Antão, família de muita inclinação à monarquia então vigente em Portugal.
O pai da minha avó Dina, Pedro José Duarte era proprietário e comerciante, vindo de S. Nicolau e que se estabelecera a partir de 1880 em Mindelo para aí criar e educar os filhos. Augusto de Deus Duarte, Belmiro de Deus Duarte, Francisco de Deus Duarte, Isabel Cristina Duarte, Leopoldina Cristina Duarte, Mariana Cristina Duarte, Eugénia Cristina Duarte, Rosely Cristina Duarte e Alda Cristina Duarte, esta última nascida em 1890, e a que permaneceu solteira. (ao que parece, queria seguir a vida religiosa. Suspeito que por uma causa amorosa mal sucedida e nunca divulgada. Aliás, muito comum à época) Foi sempre tratada e nomeada carinhosamente pela família de: “a querida Aldinha” que quando eu era miúda julgava que fosse esse o nome dela. Querida tia, era ela e por sinal minha madrinha de baptismo, que se realizou na Igreja de S. Sebastião da Pedreira em Lisboa pois era a igreja que servia o Bairro Azul, onde vivi os dois primeiros anos de vida, com os meus pais e os manos mais velhos (1946-1948).
A avó Dina e as irmãs tiveram mestras em casa que lhes ensinaram e lhes ministravam as disciplinas da Instrução Primária, também bordado, francês e piano, muito usado entre as famílias então ditas de “bem.” O pai delas queria que as filhas fossem mulheres instruídas, para isso recrutava e pagava as ditas mestras ou professoras particulares que se deslocavam a casa dele para aí ministrarem a formação às seis filhas.
Um aparte: o instrumento musical, o piano e o aprender a tocá-lo, cedo fizeram parte da mobília e do estar social dos lares mindelenses mais abonados.
Retomando, os rapazes frequentaram Seminário, tendo um deles – Francisco de Deus Duarte, meu tio-avô – sido ordenado padre.
Conta-se entre os familiares mais próximos, que a avó Dina, para além de ter sido uma mãe educadora exemplar, foi igualmente uma senhora culta e benquista por todos os familiares e amigos próximos de tal forma o fora que na sua morte, ocorrida em Lisboa em 1938, os primos/sobrinhos Manuel Ribeiro de Almeida (Leça Ribeiro) e Raul Ribeiro lhe traçaram o seguinte perfil, que passo a transcrever e que foi notícia no jornal «Notícias de Cabo Verde», no seu número 178, de 1 de Novembro de 1938: «Sucumbiu em Lisboa no dia 31 de Outubro findo, à acção da doença de que foi tratar-se, a Exma. Sra. D. Leopoldina Duarte Fonseca, acarinhada esposa do nosso prezado amigo e ilustre funcionário dos Correios e Telégrafos, Sr. Torquato Gomes Fonseca. O seu dilecto esposo, a sua numerosa prole e toda a família ficaram inconsoláveis com o passamento da bondosa e distinta senhora. Educadora como as melhores mães de Cabo Verde, era um encanto observar a forma primorosa como dirigia a instrução dos seus filhos de quem constituiu uma verdadeira dinastia de excelentes estudantes.
Mas D. Leopoldina Duarte Fonseca foi também filha amantíssima, irmã, esposa e parente virtuosa e prestante.
Avaliamos, pois, a imensa dor que a sua falta irreparável vai causar aos membros extremosos do seu lar. À sua carinhosa família, em especial ao Sr. Torquato G. Fonseca, aos seus filhos, aos nossos directores, seus primos e às suas tias apresentamos a expressão muito sentida das
nossas condolências.» (Fim de transcrição). Assim era o perfil da avó Dina para os familiares e para os amigos.
Voltando um pouco atrás na narração, vale dizer que idêntico processo de transposição de ilha sucedera com José Pedro Gomes da Fonseca e Tereza de Jesus Fonseca, meus bisavós, pais de Torquato, que se mudaram de Santo Antão para a ilha de S. Vicente onde nasceram os filhos: Torquato Gomes Fonseca (1881-1954) e João Gomes Fonseca (1882-1940?). Existiu também uma filha, irmã do meu avô, de nome Francisca de Jesus Fonseca, tia Chica, que bem jovem pôs termos à vida e dela pouco se falou na família. Os dois rapazes, Torquato e João, após a frequência do Seminário-Liceu em S. Nicolau entraram para o funcionalismo público e nele fizeram carreira.

O enlace de Torquato Fonseca e de Leopoldina Duarte efectuou-se em 1909, em S. Vicente, terra de nascimento dos nubentes que viveram na cidade do Mindelo, numa casa espaçosa e com um grande quintal – objecto de boa memória da minha mãe e dos irmãos, pois sítio de jogos, de brincadeiras de uma infância cuidada – e na antiga então rua “Júdice Becker”, perto da Praça Nova, até à morte da avó Leopoldina em 1938, vítima de doença renal grave. Falo do quintal pois ele fez parte das memórias mais queridas da minha mãe e dos irmãos que das fotografias guardadas da família, muitas foram tiradas nesse espaço de inúmeras brincadeiras da infância e adolescência e onde havia um frondoso tamarindeiro e um famoso tanque.
Do matrimónio, nasceram oito filhos: José, Celina, Sérgio, Humberto, Maria da Paz, Dina, Jorge e Henrique. Interessante é que o filho mais velho é registado com o nome comum dos dois avós, sendo o materno, Pedro José e o paterno José Pedro. A filha Dina morreu ainda de tenra idade, vítima de doença. É a partir deles que se segue a descendência dos Duarte Fonseca.
Mas mais do que espelhar um pouco esta “árvore genealógica” o que queria registar, recordando, são pequenas histórias de família.
De entre os episódios da família mindelense contados com muita graciosidade e com a arte de bem narrar da minha mãe, reconto dois.
A primeira, liga-se à passagem em S. Vicente – no périplo pelas colónias portuguesas de África – do príncipe herdeiro da coroa portuguesa, Luís Filipe, filho do rei D. Carlos, em 1908, que na noite em que o “brigue” esteve fundeado no Porto Grande, ofereceu um baile em que foram convidadas algumas jovens das então consideradas as melhores famílias de Mindelo. A minha avó Leopoldina, nessa altura já estava bem comprometida com o seu Torquato, foi uma das convidadas. Bem, a família dela contente e possivelmente honrada com tal convite, pois que eram de simpatias monárquicas sabidas, autorizou a jovem a participar do baile. De roupa nova e aperaltada lá foi a filha e outras tantas amigas ao grande baile no barco real. O príncipe, num gesto gentil, pois que o fez pessoalmente, ofereceu no final da festa, uma cigarrilha de cinta dourada a cada uma das moças convidadas para o baile.
Deve ser esclarecido que o namorado da Dina, o Kate – assim eram os diminutivos por que eram conhecidos os meus avós – não gostou mesmo nada de ver a sua namorada, ou mesmo noiva prometida, a participar de um baile em que o par não seria ele. Enciumado e mais, nada contente, pois para além de tudo, ele pertencia ao núcleo de cabo-verdianos que aspirava o advento da república e nada gostava da realeza; zangou-se com a sua Dina e por mais de uma semana não lhe enviou cartas, nem bilhetes como se usava na época entre namorados. Parece que tal situação terá divertido a avó que se apercebeu, pela primeira vez de uma cena real de ciúmes por parte do noivo. Mais tarde, já casados, eis que um dia, ao mexer em caixas com papéis, o meu avô descobre a cigarrilha – que lhe trouxe à memória o episódio – que entretanto fora cuidadosamente embrulhada e guardada pela minha avó como recordação do baile. De novo uma cena de ciúmes e de amuo entre o casal. Ora, moral da história, dizia a avó numa demonstração de como o casal se entendia bem, que todas as cenas de ciúmes que o avô lhe fizera durante os anos de casados, se resumiram a essas duas e ambas tiveram como causa o baile e a cigarrilha de cinta dourada oferecida pelo “malogrado príncipe Luís Filipe,” como ela dizia pois que o regicídio havia de acontecer pouco tempo depois da visita do Príncipe às então colónias portuguesas africanas.
Outra historieta já presenciada por minha mãe foi quando, os filhos, os mais velhos – na altura: José, (1910 -2004) Celina, (1911-1992) Sérgio (1913 -1994) e Humberto, (1916 -1983) Maria da Paz (1919) era bem pequena ainda, 3 anos de idade – descobriram que o pai era “maçom”. E tudo aconteceu em 1922, quando Torquato Fonseca se preparava para participar no Congresso internacional maçónico (secreto evidentemente) que se realizou, ou não, nesse ano na cidade do Porto. Ele integraria a representação portuguesa ao congresso. Suponho que ele já possuía, à época, o grau de oficial. Ora, a minha mãe teria na altura 11 anos e já ajudava a mãe dela nas lides da casa. Coube-lhe ir colocar um casaco do pai acabado de ser passado e brunido, no guarda-fato. Possivelmente as coisas que seriam necessárias para a viagem ao Porto já estariam à vista dentro do mesmo guarda-fato. Estranheza da filha quando ao abrir a porta do móvel, vê o avental e mais os outros símbolos próprios da sociedade secreta. Vai daí, chama aos gritos, os irmãos, crianças todos, para irem ver a “descoberta” feita desses estranhos pertences do pai. Este, na hora ausente de casa no trabalho, não teve conhecimento do caso. A mãe Dina tomou conta da ocorrência. Ter-lhes-ia explicado que eles ficavam expressamente proibidos de qualquer comentário sobre o incidente a quem quer fosse e que ela prometia em contrapartida, nada contar ao pai deles sobre o que haviam feito.
Foi assim que a minha mãe soube que o pai era membro e activo da maçonaria luso-cabo-verdiana, da “Loja Almirante Reis” de Mindelo que era filiada no “Grande Oriente Lusitano”. Também o irmão João Gomes Fonseca era “maçon.”

Nota curiosa: Aqui há alguns anos descobri em documentos lidos, que o avô paterno do meu marido, Jaime Alberto Ferreira (1887-1925) foi igualmente maçónico, membro de uma das lojas de Mindelo e que os nossos dois avós terão estado juntos, ou não – pois não confirmei se a tal delegação de que eles seriam parte, lá esteve – no tal congresso do Porto. Igualmente, um tio-avô do meu marido foi outro destacado membro da maçonaria luso-cabo-verdiana. De seu nome, António Augusto Martins, mais conhecido por Fidjito Martins e por sinal, membro da mesma loja a que pertencia o meu avô.
Interessante foi saber que o avô Torquato chegou a ser “grande oficial” e o representante máximo em Cabo Verde. Antes de morrer passou a chefia a Carlos Rocha conhecido e tratado por Carlos Pudjim na cidade do Mindelo.
Sobre a actividade da maçonaria exercida em Cabo Verde, para além dos aspectos considerados negativos no tocante à animosidade, recíproca aliás, entre a franco-maçonaria, a Igreja, e a perseguição movida pelo regime vigente (O Estado Novo) após a 1ª República portuguesa cuja liderança estivera a cargo de altos membros da maçonaria portuguesa; ressalvados estes aspectos e acrescidos por outro lado, pelo facto de lhes ser atribuído poderes esotéricos e extra -humanos – a maior parte, criada e efabulada no imaginário popular – para além disso, a confraria maçónica crioula, em certos momentos de crises e de fomes, ao tempo muito frequentes nestas ilhas, foi autêntica benemérita. Auxiliada pela congénere lusa, concorria com o governo, na assistência aos desvalidos, por vezes com quantitativos em géneros alimentícios e pecuniários bem superiores aos donativos oficiais. Igualmente, protegia as viúvas e os filhos dos membros falecidos, pagando-lhes os estudos e, por vezes, custeando até a subsistência alimentar ao agregado privado do chefe de família.
Essa actividade assistencial das lojas maçónicas crioulas, filadas no Grande Oriente Lusitano, foi para mim uma descoberta boa, ao pensar que o meu avô materno pertenceu ao núcleo dos seus membros mais activos.
Afinal são historietas de família, boas e más que por vezes nos levam a descobrir alguns “rastos” da memória mais colectiva que emolduraram uma época e fazem-nos também entender algum passado destas ilhas.

Nota final: Apesar de, por um lado, ter tentado com este texto, fazer um exercício de aproximação à realidade passada da família Duarte Fonseca, com destaque para o avô Kate. Por outro lado, gostaria de considerar também que terá havido da minha parte e naturalmente, muita subjectividade de perspectiva na sua abordagem.

DE ONDE VIRÁ O EXEMPLO?...

domingo, 12 de setembro de 2010

Sempre ouvi dizer que o exemplo vem de cima. E nem era preciso! Todos nós, temos esta percepção desde a tenra idade em que os nossos pais, primeiro, depois em parceria com os nossos professores constituem as nossas referências, os nossos paradigmas, normalmente modelados pela religião. E continuam pelo resto da vida, às vezes nem sempre pelos melhores motivos, mas permanecendo como uma base residual que o ditado popular, de certo modo, consagrou em “o que o berço dá, só a tumba leva” – referindo-se sobretudo à educação doméstica.

Este intróito para dizer que hoje, ganhou forma, sustentada e praticada pelas grandes instituições, a indelicadeza, a deselegância no comportamento com o público. E isto em assuntos banais quanto mais em reivindicações ou reclamações; com pessoas publicamente conhecidas quanto mais com “anónimos”. Insinua-se um apelo, quiçá, à reverência ou à bajulação, ou ainda à velha «cunha» para quebrar a silenciosa arrogância. A “importantivite” ou o comezinho "culto da personalidade” feito à escala de cada função é mais forte que os procedimentos formalmente instituídos. E, pelos vistos, não é só aos balcões, ou “front office” como modernamente se converteram, termo que supõe maior abrangência, mas também na gestão de topo.

Fui gestor (não era preciso tê-lo sido) e todos os meus colaboradores – felizmente estão todos vivos e lúcidos – tinham instruções explícitas de que como servidores públicos “toda a carta merece uma resposta em carta”. Era uma questão de consideração e respeito da parte da instituição pelo cidadão, mesmo se a resposta fosse desagradável ou o remetente tivesse sido menos cortês não “merecendo” aparentemente qualquer resposta. Mas a instituição é (para) deles – condição para que foi criada.

Hoje, reconheço que a resposta não tem de ser através de uma carta formal. Os meios de comunicação evoluíram muito e culturalmente adquiriram-se novos valores e instrumentos. Poderá, por isso, ser por correio electrónico, por fax ou mesmo por telefone, para casos que não requeiram registos. Mas nada disso acontece. As instituições, pura e simplesmente, não respondem a não ser para cobrar, ou se daí resultam perspectivas imediatas de valor material acrescentado. Mostram, talvez sem intenção, total desprezo pelo cidadão remetente ignorando, ou mostrando-se indiferentes ao eventual prejuízo que lhe poderão causar pela omissão ou ausência de uma resposta tempestiva qualquer que ela seja. Esquecem que um atendimento, não interessa em que sentido, poderá conduzir a outras diligências, provavelmente com outros resultados. E que em última instância é o País que ganharia.

Tudo isto ocorre-me, por arrastamento, ao saber que uma pessoa amiga, dirigiu cartas a determinadas instituições pedindo patrocínio para um acto cultural e passados meses só uma instituição teve a consideração de lhe responder. Fiquei admirado porque se tratava de coisa simples que um despacho do género: “Responder dizendo que a instituição lamenta não poder satisfazer o pedido por ….(motivos não faltam: p.e. já esgotou a verba para o efeito, etc. etc.)” teria tempestivamente resolvido com pragmatismo, elegância e delicadeza ainda que não fosse totalmente verdadeira a causa invocada. Não sendo assunto virgem, até se podia ter um modelo de carta para esse tipo de resposta. Mas era uma resposta. Uma manifestação de consideração e respeito pela pessoa que endereçou a missiva.

No caso em apreço não se tratava de uma pessoa desconhecida pois já tinha algum nome em actividades culturais para além de ter desempenhado cargos públicos.

Repito: Só uma instituição se dignou responder – o BCA (Banco Comercial do Atlântico) – (passe-se a publicidade). Não interessa em que sentido. As outras instituições nada. Silêncio absoluto. Estou certo que não foi por negligência e muito menos por desrespeito. E não acredito que o procedimento formal instituído seja “não responder quando a resposta é negativa”. Não. Isto seria o desconhecimento das mais elementares regras de relacionamento humano. E também não quero acreditar que tenha sido por indelicadeza e deselegância. Essas instituições são normalmente geridas por pessoas bem formadas cuja educação e instrução estão (ou devem estar) acima da média.

Confesso que não consigo descortinar as razões desse, no mínimo, estranho comportamento. E não acuso as instituições que seguramente sobreviverão à passagem dos seus gestores e colaboradores, quaisquer que sejam. E também sei que há comportamentos que se não forem assimilados, interiorizados – diz-se que de pequeno é que se torce o pepino – “incorporados” no nosso ADN comportamental, jamais passaremos de primatas evoluídos. E, por vezes, muito evoluídos, mas sempre PRIMATAS…

Mas quando o exemplo vem de cima é para fazer escola. E nós que passamos todo o tempo a reivindicar respeito e consideração da instituição ao simples funcionário de balcão!...

A. Ferreira

A Portugal Telecom e a Acção dourada

terça-feira, 6 de julho de 2010
A recente utilização da acção dourada (golden share) por parte de Sócrates na actual polémica negocial entre a PT portuguesa e a “Telefónica” espanhola na compra da “Vivo” suscitou-me esta pequena reflexão sobre um assunto que remonta de há catorze anos atrás e que me valeu o rótulo com “inscrição”, ao que se diz, na Embaixada de Portugal em Cabo Verde de «anti-portuguesismo». O curioso é que a PT é o denominador comum entre as duas questões. Nunca falei disso em público porque antes o considerara − e se calhar ainda o considero − um assunto de somenos do qual não me envergonho nem me arrependo e que só a mim me dizia respeito. Para além disso, nunca pensei – e continuo a não pensar − por várias razões desatacando-se a que explicarei adiante que a Embaixada de Portugal em Cabo Verde embarcasse em tamanha falácia.
Era eu membro do Governo de Cabo Verde e defendia, obviamente, os interesses do País do qual era governante na compra da Cabo Verde Telecom por parte da Portugal Telecom (PT) então empresa pública portuguesa. Não era um desafio de futebol ou de rugby, era um negócio de dezenas de milhões em que os interesses do Estado de Cabo Verde não só ficariam “penhorados” por algumas décadas como havia visíveis prejuízos imediatos. Não se podia tratar nem de boa nem de má intenção, nem tão pouco de «portuguesismo» ou «anti-portuguesismo» mas simplesmente de um negócio entre duas partes. Nem sequer da utilização de um eventual veto se poderia minimamente aventar. E note-se que em tempo algum procurei (ou se me poderá acusar de) contornar ou contrariar a lei, antes pelo contrário, pugnava pelo seu integral e rigoroso cumprimento. Isto levou a que alguns intriguistas “polítiqueiros” de ambição mesquinha à mistura com uma acentuada covardia e uma nítida falta de carácter tratassem em transformar-me em seu bode expiatório. Tomei isto, ao tempo, como um preço a pagar pelo desempenho de determinadas funções políticas e não lhe dei a devida importância.
O que é verdadeiramente interessante é que agora nenhum português ou portuguesista das Ilhas condena Sócrates ou o rotula de anti-espanhol por ter usado a golden share. Todos acham – e eu também – que como governante fez aquilo que devia fazer: defender os interesses do seu país – Portugal.
E eu como governante que devia então fazer? Ou será que o Estado de Cabo Verde não tem interesses próprios a defender? Ou deveria ser eu um “submarino” dos interesses portugueses, como os há por aí, muito bem colocados e impantes de patriotismo ilhéu?
Todos – aqueles que me são próximos – sabem muito bem como eu gosto de Portugal e dos portugueses. Não o escondo e até disso faço gala. Que tenho lá, em Portugal e entre portugueses, há longas décadas um rol de amigos de peito e mais recentemente familiares, que quando lá chego não me deixam espaço para as minhas acções privadas tal é o número de convites e de recepções, conforme o grupo.
Não me quero alongar nesta pequena reflexão, e gostaria apenas de lembrar aos que me rotularam, na falta de argumentos ponderosos, que ser amigo de Portugal e dos portugueses, não é defendê-los contra os interesses de Cabo Verde para usufruir das migalhas que mancham o carácter e envergonham a pessoa.
Convivi de perto com alguns milhares de portugueses, e particularmente e durante quase três anos, de forma continuada, com centena e meia; e algumas vezes todos sob o meu comando defendendo interesses, ao tempo, genuinamente portugueses, em circunstâncias muito difíceis, de vida ou morte, onde pontificava a cooperação real e se faziam verdadeiros amigos. Éramos jovens e os nossos caminhos, naturalmente, divergiram. Mas mantenho com eles ainda hoje uma relação muito boa. É isto que me faz feliz.

A. Ferreira

Leituras antigas de um Fogo de outrora que não agora...

domingo, 4 de julho de 2010
Antes de mais, felicitar a Responsável da Casa da Memória, na pessoa da incansável e querida amiga Monique Widmer, por mais esta actividade, (encontro – conferência) de entre muitas mais, com que vem dinamizando esta instituição que já é uma referência entre nós e já se configurou, ouso dizê-lo, como um “ex-libris” da cidade de S. Filipe.
O interessante é que a Casa da Memória, como o próprio nome indica vem construindo a seu história e o seu legado, ao longo destes anos, com uma coerência, com um saber fazer e uma fidelidade aos objectivos que constituíram a sua fundação, que causa admiração e merece ser destacada como uma das realizações mais bem conseguida no panorama cultural/histórico da ilha.
Feita esta breve saudação que é de todo merecida, mas que peca por não conseguir transmitir como gostaria, com alguma abrangência e profundidade tudo aquilo que representa para nós a Casa da Memória; passo agora ao tema que procurei sintetizar no título deste texto: Leituras antigas de um Fogo de outrora que não agora.
Ora bem, falar de leituras e do tempo em que se fazia isso na ilha do Fogo, com especial incidência na cidade de S. Filipe de outrora, não é, na minha opinião, tarefa fácil, pois que escasseiam informações em registo legados.
Igualmente, outras razões se apresentam como algum óbice, a esta tarefa. Desde logo, a tradição que pretendeu marcar, distinguindo a especificidade de cada uma das ilhas. Diga-se que por vezes, com alguma imprecisão. De qualquer forma essa especificidade “per ilha” não fez do Fogo um local em que a actividade cultural no seu sentido mais clássico e abrangente em que os livros, as tertúlias culturais, as leituras e a configuração de um meio académico/intelectual, tivessem tido algum destaque relevante no passado. Se quisermos ser mais correctos, no passado, e refiro-me aos séculos, XIX e à primeira metade do século XX, dois ou três centros do Arquipélago a saber: Ribeira Brava em S. Nicolau, Mindelo em S. Vicente e a cidade da Praia em Santiago, foram os mais proeminentes em termos de ambiente literário/artístico. Mas também, e por outro lado, não deixa de ser verdade que havia espalhado um pouco por todas as ilhas uma elite letrada, pequena é certa, constituída principalmente por funcionários públicos e por gente abastada da terra mas era gente que lia, que criara hábitos de leitura que mandava vir – da então chamada Metrópole, assim era designado Portugal, nas antigas colónias e ou Províncias Ultramarinas – via correios, por barco e neste particular deve ser lembrado o enorme papel que desempenhou o Porto Grande de Mindelo onde aportavam os barcos que transportavam estas encomendas especiais contendo livros e revistas para os assinantes.
Assim também chegaram ao Fogo as enciclopédias, os almanaques, com destaque para o célebre Almanaque de LembrançasLuso-Brasileiro (1854-1932) que teve muitos colaboradores em Cabo Verde com destaque para Pedro Cardoso da ilha do Fogo e para o grande poeta da ilha vizinha, a Brava: Eugénio Tavares, que nele se estreou como poeta, entre outros literatos das ilhas. Mas a colaboração não era só com textos literários, ou crónicas, faziam-na também com o envio de enigmas, de charadas de hieróglifos comprimidos, entre outros jogos de lazer mental para se pensar e assim serem decifrados.
Da mesma forma chegavam algumas revistas portuguesas as mais conhecidas, “A Gazeta” “O Século Ilustrado,” entre outros periódicos a que não faltavam boletins agrícolas, livros de regras da escrituração comercial, códigos de leis, manuais de arte de bem escrever, enfim, havia um certo hábito de mandar buscar livros em Portugal, livros de géneros vários e diversificados. Assim eram alimentados nos séculos idos as bibliotecas particulares das casas de famílias que possuíam livros.
No capítulo da ficção distinguiam-se os romances publicados por fascículos ou por capítulos da então conhecida Editora António Maria Pereira fundada em 1848 o grande editor dos romances de Camilo Castelo Branco, editor também do que é considerado o primeiro romance policial português, «O Mistério da Estrada de Sintra» escrita em parceria por dois grandes vultos da literatura portuguesa do século XIX, Eça de Queirós e Ramalhão Ortigão e que saiu em fascículos. Tudo isso, também aqui chegava aos seus assinantes que depois os mandavam encadernar para assim os conservarem em tomos únicos. Na ilha do Fogo, houve em tempos idos, alguns profissionais de encadernação, mas mesmo em casa, em ambiente doméstico, as mulheres de mãos hábeis, costuravam os livros, os fascículos, para melhor os conservar.
Claro que não faltavam nas prateleiras, daqueles que aqui liam, os livros dos clássicos portugueses, entre os quais, Almeida Garrett, e as «Viagens na Minha Terra» Camilo Castelo Branco e o seu «Amor de Perdição» Eça de Queirós e o indispensável romance «Os Maias» Júlio Diniz e a «Morgadinha dos Canaviais» e os «Contos» Fialho de Almeida, os quais, entre outros escritores, eram os preferidos aqui.
Gostaria de acrescentar também a esta espécie de listagem, o gosto pelos livros de acção, de aventura e históricos franceses – traduzidos - Destacam-se: «Os Miseráveis» de Victor Hugo; «Os Três Mosqueteiros» e o «Conde de Monte Cristo» de Alexandre Dumas; e a série «Rocambole» de Ponson du Terrail, creio que todos da antiga editora e Livraria, Civilização.
Um pouco mais tarde, nas primeiras décadas do século XX, os romances em que o enredo tratava amores trágicos, também fizeram parte das encomendas dos leitores a par dos romances históricos, quer os escritos por autores portugueses, quer os traduzidos de autores estrangeiros, com ênfase para os romances franceses.
Apenas alguns exemplos: «Ela é apenas Mulher» e «Nada lhe será perdoado» 1930 de Maria Archer; «Marido Fiel» de João Gaspar Simões; «Para Alem do Amor» de Maria Lamas, «Memórias da Marquesa de Rio Maior» de Branca Colaço e a colecção dos romances de Concha Linares Becerra, Luísa Linares Becerra e de Corin Tellado conhecidas escritoras espanholas do género romanesco que hoje se classifica de “cor-de-rosa” ou de sentimental. Estes livros que tinham como público-alvo principal, o feminino, também faziam parte do acervo de livros que cá chegavam.
Chegavam também revistas brasileiras trazidas nos chamados “Loydes,” os barcos que faziam a ligação Europa/América do Sul e vice-versa e que escalavam o Porto de Mindelo para reabastecimento. “Cruzeiro” “Manchete” eram os periódicos brasileiros mais conhecidos e lidos nas ilhas. Parte dos livros e das revistas aqui citei, os títulos são meus conhecidos desde infância e mais tarde li alguns ainda em casa paterna, nos Mosteiros
Voltando à actividade à volta dos livros, neste particular é aqui de novo chamada mais uma valia e mais uma valência profícua da Casa da Memória e desta feita num trabalho conjunto de Gilda Barbosa e de Monique Widmer, A Casa da Memória possui assim, uma exaustiva e exemplar listagem, de dois acervos bibliográficos pertencentes a duas das mais representativas bibliotecas familiares do Fogo; uma, da família de Álvaro Adolfo Avelino Henriques, (1849-1922) Bacharel em Direito e que contém livros do século XVIII, que depois terá sido aumentada pelo filho Agnelo Avelino Henriques e que também contém livros acrescentados e oriundos da família de Abílio Macedo cujos títulos, mencionarei alguns, os mais antigos e talvez os mais importantes em termos de assunto e de autores; e outra, da família da saudosa professora Irene Vasconcelos Barbosa Vicente, que em matéria de diversidade de temas é de uma grande riqueza.
Deste modo, ficaremos a conhecer, com fundamento o tipo de leitura de uma época em que havia um interesse já notável nisso. É de entre este rol, bem extenso em termos de variedade de títulos e de volumes já elaborados por índices temáticos, que destacaremos, exemplificando: os livros de Direito, os tomos e os volumes de política, de economia, os de filosofia e equiparados; os livros de História e relacionados, ensaios diversos, os romances e os contos, entre outros temas. Uma nota interessante é que nessa listagem, não aparecem só livros em português, também se encontram bastantes livros em francês e em inglês.
Ora bem, seleccionei alguns títulos, de entre os vários da lista em apreço, porque me parece deveras interessante conhecer, ainda que muito parcamente, o que interessava à nossa gente mais antiga, em matéria e assunto de natureza técnica, científica, cultural em geral? Que livros por eles mais procurados? Afinal o que liam? E sobretudo, por onde aprendiam as matérias em que estavam interessados em saber?
Apenas alguns exemplos. Em matéria de Direito: «Ordenação e Leis do Reino de Portugal» do século XVIII, mais exactamente, 1786, «Tractado Prático de todo o Direito Emphiteutico» 1828, «Novíssima Reforma Judiciária», 1840, «Código do Processo Civil» 1876. Em matéria de economia: «Novos Elementos de Economia Política e Estadítica», Adrião Pereira Forjaz Sampaio, 1858, «Contas simples E com Juros» Carlos Florêncio Pereira, 1903, «Dúvidas Esclarecidas Dúvidas Resolvidas em Escrituras Comercial», livros de Filosofia: «Filosofia Fundamental» por Dom Jaime Balames 1852, «Curso de Filosofia Elementar», 1860, «O Mundo Oculto» 1916, de Literatura em grego «Odisseia D’Homere» 1862, por Bude, em Latim «Opera» 1860 por Virgilii Maronis, de poesia «Lira Íntima» por Joaquim Araújo, 1881, «Campo das Flores» de João de Deus, 1914 de ficção científica «A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, por Júlio Verne,1886. Isto foi uma pequeníssima amostra de entre centenas de livros, de vários dicionários e de enciclopédias.

Para além destes títulos acabados de transcrever desta biblioteca da família Henriques a que se junta a dos Macedo, gostaria também de aqui realçar alguns títulos da biblioteca que foi dos pais e é hoje pertença da herdeira a Dr.ª Gilda Vasconcelos Barbosa. Neste extenso rol, também encontramos livros em português, em francês e em inglês, desde história, almanaques antigos, passando por livros didácticos, revistas, boletins e magazines, indo até aos livros de temática ou de “carácter religioso”, como os classifica a autora da recolha, Gilda Barbosa. O levantamento de livros regista edições que medeiam entre 1800 os mais antigos até 1987 os mais actuais.
Aproveitaria a oportunidade para reiterar que este vasto espólio possui um espantoso interesse, do meu ponto de vista, e que encantaria qualquer bibliófilo apurado. Passo agora a transcrever alguns dos títulos dos livros mais antigos, em termos da data da edição. Assim temos o mais antigo em inglês:«Manual Of The seven Dolours Of the Blessed Virgin Mary» Father Sebastien, Dublin, 1883; «Missal Antigo, para Missa» 1900; «Encíclica Mediator Dei do Papa Pio XII, 1948; de João XXIII a Carta Encíclica «Mater et Magistra»; «Vers L’Unité Chrétienne» de Karl Adam; «Sanctos E Martyres do Crystianismo» Dr. Santos Farinha, 1909. Romances e contos, alguns exemplos: «Aquele vestido cor-de-rosa» e «Entre duas paixões» de Françoise Roland, 1949, «O Caminho da Culpa» de Joaquim Paço d’ Arcos, 1945, «Contos» de Guy de Maupassant, século XIX, de Philippes Oppenheim: «Foi Adão quem teve a Culpa».
Igualmente, muitos livros e Tratados de Direito comercial e penal, apenas uma breve amostragem: «Nova legislação de Inquilino Civil e Comercial» Pedro Veiga, 1948; «Formulário do Processo Civil e Orfanológico» de José Casimiro Quintela, «Tratados Colectivos sobre Direito Int. Privado» de Machado Vilela, 1913; «Abonos e Processos» compilações a partir de 1885, por Alfredo Nunes de Sousa, editado em 1912; «Portugal e o Direito Colonial Internacional» Marcello Caetano, 1948 e muitos mais livros, cuja transcrição dos títulos não caberia aqui. Os assuntos que os títulos deixam adivinhar, são de natureza diversa e constituem esta última biblioteca privada.
Por outro lado, ou melhor, igualmente numa mesma linha de evocar e de conservar a memória escrita do passado sobre Cabo Verde e sobre a ilha do Fogo em particular, a Biblioteca da Casa da Memória tem vindo a enriquecer o seu espólio de livros com exemplares já raros e antigos que têm sido de enorme e de oportuna utilidade para o pesquisador interessado
Voltando às leituras antigas da ilha do Fogo de outrora que não agora. É minha opinião – é que em todo este processo de aquisição e de apetrechamento das bibliotecas privadas ou de família – se passava a palavra uns aos outros em matéria de títulos de livros a encomendar. Não esquecer de que estamos a falar de um meio pequeno, em que não abundavam os meios de comunicação, bem pelo contrário, escassos seriam. Apenas chegavam aqui os navios de ligação inter-ilhas, e de ligação com os Estados Unidos, um deles o célebre barco «Ernestina», mais tarde a rádio. Houve também em tempos idos, a passagem por S. Filipe de barcos que faziam a ligação Lisboa/Cabo Verde/Guiné. Daí que a palavra passada de boca em boca, era um meio de se fazer conhecer, e de se recomendar os livros considerados de boa leitura. Logo, acabavam os membros pertencentes a algumas famílias, moradoras de casas/sobrados, por possuíram uma biblioteca idêntica ao do vizinho com livros idênticos, o que também poderia significar um mesmo gosto e/ou uma certa moda de leitura da época, para além da circulação entre mãos que se faziam…
Conviria igualmente incluir neste inventariar as circunstâncias do processo de leitura de outrora, as viagens à então Metrópole (Portugal) de muitas famílias, ou dos seus membros e que eram frequentes, ou relativamente frequentes. Não esquecer que alguns filhos das famílias gradas da ilha faziam os seus estudos e a sua formação em Portugal. Tudo isso era também aproveitado para “alimentar” as bibliotecas privadas.
Finalmente, para fechar este texto, gostaria de alertar para o seguinte, que não se fique com a impressão de que na ilha do Fogo não se lia. Completamente falsa esta ideia. Havia tempo, havia mulheres e homens cultos e que procuravam cultivar-se através da leitura, estariam motivados e habituados a isso? Possivelmente. Para além do mais estamos aqui a falar de pessoas interessadas em conhecimentos e em técnicas para uma aplicação consequente; depois também queriam estar informadas; a juntar a isto, tinham igualmente prazer na leitura de ficção e de poesia. Não vá sem acrescentar de que eram também detentoras de algum poder de compra. Todas estas razões juntas e somadas, explicam e justificam porque podiam mandar buscar em Portugal os livros de que gostavam e/ou de que necessitavam.
Eis pois explicadas, embora muito parcialmente, as razões da existência de algumas boas bibliotecas antigas e privadas na ilha do Fogo de que as duas acabadas de ilustrar, são exemplares, na minha opinião, perfeitos.


N. B. – Este escrito é resultado de um encontro - conferência realizado recentemente pela Casa da Memória em S. Filipe. Poderá conter uma ou outra marca de oralidade.
Outra explicação devida: a expressão «outrora...agora» que é parte do título do texto foi-me sugerida pelo romance de Augusto Abelaira: «Outrora, agora».

Madrigal ou a beleza das coisas simples...

quarta-feira, 23 de junho de 2010
De entre os poemas que mais gosto de ler e que nunca me canso de declamar, está o poema de Jorge Barbosa, intitulado: «Madrigal».
Acho-o simplesmente belo, de uma alegria comovedora e de uma beleza eterna que me leva quase que inevitavelmente, a tecer uma comparação entre seus versos e o conteúdo da parábola bíblica transcrita em Lucas 12:22-27: glór«Olhai os lírios dos campos…nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles…».

Pois bem, o poeta Jorge Barbosa consegue revestir de uma simplicidade – envolvida numa lírica terna e profunda – os versos, a que não falta um toque de sinceridade entretecida na declaração amorosa em que está implícita de que a grandeza do seu afecto não valerá, ou então, perderá o real valor, se demonstrada através de oferendas de artefactos, por mais sublimes e naturais que estes possam ser. Pelo contrário, o tamanho e a qualidade do afecto do sujeito poético por «você» só têm um equivalente: o «silêncio» do poeta, ou seja, a hora da sua inspiração e da escrita dos seus versos.

Mas minha gente, para quê “complicar” tecendo algum comentário estético/literário sobre «Madrigal»?...nem estaria assim a interpretar a sua verdadeira natureza e a sua simbologia que apresentam em estilo imagético muitas semelhanças com a arquitectura poética que Jorge Barbosa utilizou num outro poema: «…Rumores das coisas simples da minha terra! …»
O melhor mesmo é ler o poema. Em voz alta, ou apenas com a nossa voz interior:

Madrigal

Colhi uma flor no jardim
A mais pálida e a mais bela
A que tinha o mais discreto perfume
- para você…

Apanhei uma concha
pequenina e translúcida
que as ondas trouxeram
para o cimo da praia.
Uma concha que veio
do fundo do mar
- para você…

Escrevi
O mais lírico dos meus poemas
de uma ternura sem precipitação
- para você…

Mas não lhe dei
nem a flor do jardim
nem a concha do mar
nem o meu poema
Para quê?

Se você é jovem e eu não
se você tem decisão e eu sou
tímido
Se você gosta da vida
rumorosa e variada
e eu gosto do silencio!

O meu silêncio também é
- para você!

Jorge Barbosa (1905-1971)

Costume típico?

terça-feira, 22 de junho de 2010
Existe na ilha do Fogo, um costume bem antigo, quiçá interessante, e que ao que parece se vem mantendo inalterável ao longo do tempo.
Trata-se do seguinte: quando se encontram dois foguenses, em que pelo menos um deles se apresenta pela primeira vez, da parte do outro, sai inevitavelmente, a “sacrossanta” pergunta: «quem qui tenbo?» (crioulo, variante do Fogo) isto é, e traduzindo: «quem é a tua família?» «a que família foguense pertences?» A expressão pode variar na formulação, dependendo do contexto e do interlocutor; pode ser feita também em português, mas a significação e o objectivo são os mesmos.
Trata-se de um questão inevitável e incontornável em qualquer situação de apresentação. Esta curiosidade típica e genuinamente foguense (parece-me ser, não tenho a certeza se usual nas outras ilhas) parte regra geral, da pessoa mais velha na situação e no contexto acima descritos, quando frente a um co-ilhéu mais novo ou desconhecido.
Eu acho-lhe de um encanto especial, pois já aconteceu algumas vezes comigo, só que da minha parte sai primeiro uma gargalhada de cada vez que isso sucede – que reconheço, por vezes indelicada, porque eventualmente mal-entendida pela outra parte, mas irreprimível, não sei se por estar à espera desta formulação introdutória, acrescido do facto de achar nisso alguma comicidade, ou se, por (re) descobrir sempre que estou entre os meus – para logo de seguida justificar-me e situar-me no clã foguense donde vem a minha pertença familiar.
Aqui há tempos falando com uma familiar da mesma ilha, admirava-se ela de como este costume é de tal maneira arreigado e contagioso que até forasteiros, mais propriamente estrangeiros que vivam na ilha, com o tempo, acabam por agir da mesma forma em relação a um foguense que lhes é apresentado pela primeira vez.
Que razões explicam esta forma de apresentação que aqui chamei de uso tipicamente foguense (?)
Algumas afiguram-se-me à mente, embora assentes em bases que não me parecem muito certas para de facto, se constituir fundamento plausível para a situação.
Ora bem, uma delas – para além da curiosidade natural e normal, diria, de meio pequeno onde todos se conhecem ou julgam dever conhecer – poderá conter algum ressaibo de tipo “elitista,” ou seja, o de querer saber se o interlocutor apresentado possui alguma valia genética/social a qual, lhe será advinda se disser que: «é filho de… neto de…ou sobrinho de…ou irmão de…» A referência familiar deverá ser – assim espera quem dirigiu a pergunta – do membro mais ilustre e/ou mais conhecido de toda a família a quem ele ou ela pertença. Ora se tal corresponder às expectativas, o que perguntou já se mostrará, regra geral, afável e sociável, pois que não deu por mal empregados nem a questão colocada, nem o tempo que disponibilizará na conversa a haver, dado que encontrou «boa gente» “nos costados” do recém apresentado…
Acontecia isso também e sobretudo, quando se tratava de noivados e de casamentos. As duas famílias que pretendiam juntar-se – só se não pudessem – iam ao ponto de procurar “exaurir” toda a genealogia de ambos os lados, dos futuros cônjuges e se de um deles, nada que valesse a pena em termos de mais valia social/genealógica fosse encontrada, a família decepcionada, manifestava por vezes, o “desgosto” com o seguinte desabafo em que se dava por resignada:
- Paciência! Sina triste! Tem que ser! O que se há-de de fazer?...” (traduzido do crioulo, variante do Fogo. Atenção: a ser lida em crioulo deve sê-la com a entoação e o sotaque locais) (risos)
Mas não vá sem ser dito que algumas vezes esta curiosidade castiça da minha ilha, uma vez satisfeita e com agrado da parte questionadora, pode-se ganhar uma nova amizade, exuberantemente exibida e demonstrada de tal maneira, que para quem não esteja habituado, ou não seja conhecedor do costume, poderá parecer despropositada, ainda por cima vinda da minha gente que da “fama” – adivinhe-se a que “fama” me refiro… – não se livra…mas é mesmo só fama (?) Estou a brincar, claro!
Finalizo este pequeno texto rematando, como quem termina um conto oral: «quem souber mais que conte melhor! …»

Língua literária, ponto de chegada dos níveis da língua?

sábado, 19 de junho de 2010
Tenho seguido, há umas semanas, por mero acaso, um diferendo de certa forma interessante, entre um finalista, em fase de estágio dos Complementos de Licenciatura de uma das instituições de ensino superior nacional e as suas orientadoras e supervisoras responsáveis pelos trabalhos finais que lhe conferirão o grau académico perseguido.
Andam as duas partes – de um lado o Formando e do oposto, os Formadores – verdadeiramente de “candeias às avessas” por causa da aceitação e da não-aceitação da existência formalizada do conceito de “Língua literária.”
Ora bem, o diferendo/debate que até podia ser deveras construtivo e interessante, pois que obriga as duas partes a estudarem mais atentamente o assunto e, de caminho abrir pistas a outras reflexões linguísticas/literárias; infelizmente, embora parcialmente, o caso já está a ganhar contornos tais, que o finalista – que me parece aplicado e com uma preocupação que já vai sendo muito rara entre nós, (formadores e formandos) que é o de se argumentar com base em pesquisas feitas, em estudos de autores abalizados na matéria em apreço – já receia uma “reprovação.” A acontecer será de certo modo “revanchista” do ponto de vista dele, porque, e continuo com a opinião dele, apenas por não concordar pontualmente com as professoras orientadoras sobre a não existência de “língua literária” enquanto conceito e registo como nível de Língua.
O que para mim é certo e muito claro, é que não quero e nem devo julgar, ou tomar partido, uma vez que apenas ouvi e escutei as razões de uma das partes.
De qualquer forma, ganhei um “mote” para escrevinhar umas linhas, o que tentarei fazer neste texto breve. Apenas isso. Longe de mim qualquer veleidade extra que não a de acrescentar mais uma opinião que nem sequer foi pedida, e que nem terá qualquer validade decisória. E ainda bem!
Mas vamos por partes que assim será melhor entendido o caso.
De uma maneira geral, entre os especialistas que sobre os níveis da língua arregimentaram conceitos, existe alguma unanimidade. Isto é, uma língua viva possui, e isso pode ser registado em termos da sua oralidade e da sua escrita, diversos níveis de língua, que se agrupam também em variações socioculturais da linguagem e variações geográficas da língua.
É assim que distinguimos numa mesma Língua, o nível corrente, o nível cuidado, o nível familiar e o nível popular. Também se observa nessa mesma língua a existência do calão, da gíria e das variantes regionais. Tomemos para exemplo, a nossa língua portuguesa que pode ser um exemplar perfeito do que se acabou de afirmar.
Fazendo agora um pouco a história da origem destes níveis de língua, a sua “paternidade” é atribuída de forma partilhada, ao “fundador” da Linguística como ciência, o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) ao «Círculo Linguístico de Praga» (1930) e a Roman Jakobson notável linguista russo (Moscovo, 1896 - Boston, 1982). Estes mestres históricos, estruturaram a Língua, criaram modelos hoje universais das funções da linguagem e fizeram aproximações entre os domínios da linguística e os da teoria literária. Todos eles fizeram escola, ganharam discípulos teorizadores, dos níveis de língua e das funções da linguagem.
Ora bem, existem também alguns autores que aceitam a conceptualização da chamada “língua literária” apenas como registo escrito, não oral, configurando-a como apresentando: “as características da língua cuidada, mas assume desvios da norma mais arrojados: figuras de estilo e palavras estudadas para criar ambientes emotivos e poéticos.” (fim de transcrição).
É minha opinião que a definição de uma “língua literária” como nível de língua – não como linguagem que a meu ver ela tem cabimento – talvez esteja mais assente, enquanto tese, entre os estilistas brasileiros da língua portuguesa, uma vez que os falantes desta variante da língua portuguesa possuem uma oralidade muito diferenciada e distinta da língua escrita. É muito mais notória a “décalage”, o desnivelamento entre a oralidade e a escrita do português, variante brasileira do que entre a oralidade e a escrita entre nós, falantes do português (euro-africano) em que, por vezes, as fronteiras entre o nível da oralidade e o nível da escrita são bem ténues.
Daí talvez tenha havido entre alguns estudiosos e estilistas da língua, a necessidade do acentuar uma existência de «língua literária» enquanto nível de língua. O que é bem capaz de eventualmente poder enriquecer, porque aumenta as variações, a distinção entre os níveis de língua, mas não deixa de ser “uma abstracção” dado que à linguagem literária concorrem e podem concorrer ao mesmo tempo, vários níveis de língua por ela absorvidos, fundidos, neutralizados e recriados. Consequentemente, pode parecer “redutora” e “limitativa” a existência de “per si” da língua literária enquanto registo autónomo como nível de língua.
Com efeito, na nossa permanente e vital necessidade de comunicação, estamos sempre a usar um nível de língua, ora o familiar, ora o cuidado, ora o corrente, e até mesmo a gíria e/ou o calão, importando apenas o contexto em que nos encontremos, os interlocutores de ocasião e a natureza e o conteúdo do assunto a tratar.
Por vezes, nos nossos actos elocutórios, em que, a “linguagem pensa o discurso e articula a fala” – que me seja permitida esta espécie também de abstracção aparentemente confusa – juntam-se num mesmo acto elocutório, o nível cuidado (culto) e o nível corrente (informativo) da língua. Imagine-se, por exemplo, o cenário de uma conferência, ou de um debate científico, entre outros, em que o rigor do pensamento e a formulação das ideias são chamados a par. Nestes casos usamos mais do que um registo da língua veiculada e com alguma ênfase no nível cuidado, na língua culta que acabam por ser sinónimos e que engloba também a linguagem científica e técnica.
Por outro lado, se se está perante um texto literário – prosa ou poesia – está-se perante um consciente “desvio” de tudo isto na perspectiva de uma linguagem criativa, original, simbólica perfigurativa, artística e poética, sem perder os limites, por vezes em última instância, da linguagem comunicativa. Por isso é que se fala em “literariedade” de um texto enquanto ficcional, poético e fundamentalmente criativo e estilístico.
E o texto literário é, por vezes, um ponto de chegada, uma convergência reelaborada, transformada, em que se encontram os vários registos dos níveis de língua, da cuidada à popular, passando pela familiar, pela gíria, numa perfeita simbiose distintiva em contexto, ora nas falas das personagens socioculturalmente distintas, ora nos descritivos do narrador e/ou no expressar emotivo do sujeito poético.
Eu fico-me – falando o nível corrente da língua – pela suposição de que existe em grau acentuado, alguma existência virtual e não verificável – enquanto nível de língua – da chamada “língua literária” sobretudo se agrupada aos níveis já aqui referidos. Mas é apenas a minha opinião.

Voltando ao início deste escrito, espero e faço votos sinceros de que o diferendo entre o estagiário e as supervisoras, responsáveis pela finalização do seu percurso académico, seja bem resolvido, com bom senso, com abertura na análise dos pontos de vista de cada lado e que haja uma discussão paritária com aceitação e compreensão na divergência de opiniões divergentes. Pelo contrário, não desejaria que o assunto fosse resolvido transmitindo algum sinal, alguma suspeição de que a solução esteve do lado da “força” de quem tem (?) a superioridade conferida do alto do estrado da sala de aula, ou da irreverência por se ter acesso a variadas informações hoje disponibilizadas pelas novas tecnologias de informação.
Finalizo reiterando o desejo que neste caso, impere a abertura intelectual e o saber, mas um saber baseado numa argumentação séria e honesta conferida através do estudo e da pesquisa sobre a matéria.

Camões e a lírica do Amor

quarta-feira, 9 de junho de 2010
Estou convicta de que não é tarefa fácil falar de Camões e da sua lírica amorosa, pois que, se há campo poético em que ele mais se agigantou, e que quase faz unanimidade entre os seus críticos e estudiosos de maior peso, foi exactamente no campo do amor. Com efeito, foi através da temática do Amor que Camões melhor exercitou a sua pena.
E convém explicitar, acrescentando desde logo que, sobre essa temática – a do amor – tudo ou, quase tudo outros maiores já se pronunciaram sobre Camões “escalpelizando-lhe” os versos. Que me seja permitida esta imagem que pretendeu significar as análises literárias, sociológicas e históricas, algumas de indiscutível valor já feitas ao longo de séculos sobre a poesia de Camões, na parte em que versa o Amor.
Logo, abordar a sua imensa poesia amorosa feita em mil poemas de que se destacam os versos sob forma de sonetos, de redondilhas, de esparsas, de cantigas, de canção, de epigramas, de elegias, de odes, éclogas…eu sei lá! Abordá-la, dizia eu, constitui sempre uma enorme temeridade de que em consciência e perante vós, gostaria de dizer que dos seus versos me aproximo sempre em reverente e maravilhada postura pois que são verdadeiras filigranas, daquele que é considerado um dos gigantes de todos os tempos da poesia feita em língua portuguesa, Luís de Camões.
Mas vamos por partes, e comecemos por uma breve cronologia da vida de Luís Vaz de Camões.
Nasceu em Lisboa, em 1524 ou 1525 (o ano e o local do seu nascimento dividem os seus biógrafos) de qualquer forma a cidade de Lisboa é-lhe dada com maior frequência como terra natal. Cedo fica órfão de pai morto em combate. Criado pela mãe, descendente de família fidalga, embora arruinada, assim o afirmam muitos dos registos biográficos do poeta, e mais, dizem que Camões estudou humanidades, letras clássicas graças a um tio materno que era Chanceler da Universidade de Coimbra e que teria descoberto a superior inteligência e muita curiosidade por saciar do sobrinho, ainda criança. Da sua vida jovem, passada na cidade de Lisboa, para além de compor poemas e até os compor a pedido de outros, ele fez poesia por encomenda para assim angariar alguma subsistência; destaca-se a sua faceta de soldado, aventureiro; de vida boémia e um pouco marginal das noites dos bares de bairros de rixas frequentes; de jovem de brigas, e de duelos por amor, por ciúmes e por rivalidades várias e de ter conhecido a prisão, algumas vezes por causa disso. Conhece por um lado, alguma fama de bom poeta ainda muito jovem e em Lisboa, mas por outro lado, não chega a ser convidado para poeta do rei, dado a “má fama” em termos de comportamento social rebelde de que gozava entre os fidalgos da Corte portuguesa.
A primeira expedição militar e guerreira foi feita em Ceuta, Marrocos, onde perde um olho.
Mais tarde, e como parte de uma pena que lhe fora comutada, embarca para a Índia, como soldado, numa das naus que na época quinhentista partiam com regularidade de Lisboa para o Oriente.
Ora, é no Oriente – onde permaneceu largos anos fundamentalmente na Índia (Goa e Malabar) e na China, em Macau, onde exerceu alguns cargos e onde numa gruta, a célebre gruta de Camões em Macau, hoje, ponto de visita obrigatória da cidade, ele escreveu grande parte da sua obra.
Com efeito, foi no Oriente que ele redigiu o livro, considerado o maior entre as suas obras, “Os Lusíadas” cujos versos são considerados de inimitável valor épico até então, realizados na Literatura portuguesa. Os Lusíadas constituem-se como um louvor aos Descobrimentos e aos feitos levados a cabo, pelos portugueses, com destaque para os feitos acontecidos nos séculos XV e XVI. Organizado em 10 cantos, o livro descreve em verso a viagem de Vasco da Gama, na descoberta do caminho marítimo para a Índia. Desde a partida de Lisboa, das aventuras, naufrágios, lutas, doenças e mortes até à chegada ao porto de destino (Calecut) em 1498. Os Lusíadas revelam de forma soberba o saber renascentista de que Camões é um expoente acabado pois o poeta inscreve neles o seu imenso saber sobre a História portuguesa e a universal, sobre a ciência náutica, sobre a mitologia clássica greco / latina, sobre os fenómenos naturais, marítimos, astronómicos, climáticos, entre outros. Claro que na obra existe também a imitação de um grande mestre clássico, no caso de Virgílio (séc. I A. C.) poeta latino, e da sua obra a “Eneida”. Imitação no sentido clássico. Camões terá tomado de Virgílio os moldes e o formato para sua obra épica. Aliás, essa imitação era tida como positiva, pedagógica e formativa do poeta renascentista.
Ora Camões escreveu muito, de tal maneira o fez, que disso tem perfeita consciência quando num dos seus conhecidos versos disse: “numa mão trago a espada, (aludindo à vida de soldado e da defesa pessoal) noutra mão trago sempre a pena” significando a produção dos seus poemas. É também no Oriente que ele experimenta a dureza da vida, passando por miséria, perseguições, naufrágios, aflições e tormentos, de vária ordem. De tudo isto, Camões dará conta nos seus versos os quais ele próprio classifica como sendo escritos: “cum saber só de experiência feito”( do Canto IV dos Lusíadas), A fala do Velho do Restelo, funciona aliás, um pouco como o alter-ego do poeta no relato das desgraças e dos infortúnios que esperam os que partem na aventura do além-mar. Aventuras e experiências dramáticas foram a própria vida de Luís de Camões no Oriente.
Regressa a Lisboa, acompanhado de um escravo javanês, o jovem Jau. Em Lisboa apresenta Os Lusíadas, lendo-os ao rei D. Sebastião que como reconhecimento lhe promete uma pensão pecuniária que o sustentaria mas que infelizmente dela pouco usufruiu, uma vez que o rei partiu logo de seguida para a célebre batalha de Alcácer-Quibir, no norte de Africa, onde perdeu a vida.
Camões vive os seus últimos anos com muita penúria e não menos dificuldades em angariar o seu sustento. Conta-se que ele sobrevivia, graças à dedicação do seu escravo Jau, que pedia esmolas para o grande poeta, nas ruas e às portas das casas de Lisboa.
Entremos agora na parte que constitui o tema que aqui trago que é Camões o lírico do Amor.
Convido-vos para juntos seguirmos alguns momentos bem significativos, ainda que a infinitésima parte, da grande viagem amorosa de Camões expressa através de alguns sonetos. Diz ele que a desdita nessa matéria cedo começou e não mais o deixou, aliás o poeta diz-nos que três desígnios lhe configuraram a vida, a saber: “Erros, Má Fortuna e Amor Ardente” quando ele afinal, apenas queria o Amor.
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças
!

Para falar sobre o amor, com conhecimento de causa, o poeta revela o entendimento que disso tem; entendimento esse, feito de longa e continuada experiência; logo, conhece o sentimento profundamente. Conhece-o tão completamente que é capaz de o descrever e de o definir nos contrastes, nos paradoxos e nas antíteses mais subtis que o mesmo sentimento pode provocar no ser humano:
«Amor é um fogo que arde sem se ver;/É ferida que dói, e não se sente;/É um contentamento descontente;/É dor que desatina sem doer.//É um não querer mais que bem querer;/É um andar solitário entre a gente;/É nunca contentar-se e contente;/É um cuidar que ganha em se perder;//É querer estar preso por vontade;/É servir a quem vence, o vencedor;/É ter com quem nos mata, lealdade.//Mas como causar pode seu favor/Nos corações humanos amizade,/Se tão contrário a si é o mesmo Amor?»

Mas mesmo assim, ele tem uma proposta que faz à vida. Aliás, para sermos mais correctos trata-se mais do que simples proposta, é uma promessa, um juramento: o de cantar o Amor, não só para ele, mas como algo que o transcenderá pois que é pertença de todos. Fá-lo, dando o seu exemplo, através do seu caso particular de amor não correspondido e cantando a beleza da amada.
Camões fez também do Amor um templo de perfeição, um ponto de chegada à Beleza espiritual, muito na linha renascentista e no caso dele também «bebido» no cancioneiro medieval:
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena, ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho, e arte
.

Mas o Amor não foi brando, nem generoso com o poeta. Entregou-o à má sorte, ao destino. Fê-lo sofrer e passar por mil tormentos, chegando ao ponto de, já não havendo mais como torturá-lo, permitir que a Fortuna inventasse outros tantos sofrimentos expressamente para ele:
Depois que quis Amor que eu só passasse
Quanto mal já por muitos repartiu,
Entregou-me à Fortuna, porque viu
Que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que ele só me reduziu,
O que para ninguém se consentiu,
Para mim consentiu que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando,
Copioso exemplário para a gente
Que destes dois tiranos é sujeita;

Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente
!

Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que coisa era viver ledo.

Mas minha Estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizeram de gostos haver medo


Apesar disto, ele não se afaste do Amor e nem desiste de amar, apesar de tudo louva-o embora reconheça a sua inconstância em questões de fidelidade e de juras de amor…Em várias flamas variamente ardia” (de muitas paixões simultâneas e diferentes se constituiu a vida do poeta/ amante)
No tempo que de amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse n’um só fogo não queria
O Céu porque tivesse experimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co’o peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou

Este meu tão cansado sofrimento!

E volta o poeta numa espécie de cantiga de Amor a revelar a tormenta por que passa por causa do Amor que não cessa de o maltratar ao provocar-lhe diferentes e desencontrados estados de alma e levando-o quase ao desvario insano aparentemente sem causa mas de tal estado ele tem uma suspeita: “…suspeito que só porque vos vi, minha senhora.”

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Num’ hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um’ hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.

Nessa linha, tal é o “desvario” provocado pelo seu estado de enamorado que o poeta fica com uma espécie de “ressaca” de amor na alma que nem ele próprio a entende. Eis os versos que no-lo dizem:
Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde;
Vem não sei como; e dói não sei porquê
.

O Amor é por vezes em Camões comparado ao mar bravio de ondas indomáveis e de iminente naufrágio a que não escapará o mais valente marinheiro, mas uma tormenta da qual ele sobreviverá, jurando embora que de novo, o oceano não o apanhará e que irá para o sossego em terra. Fatalmente para o mar voltará ainda que dele tendo medo:

Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De um naufrágio cruel saindo a nado,
Só de ouvir falar nele está medroso;

Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire sossegado;
Mas esquecido já do horror passado,
Dele a fiar se torna cobiçoso;

Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;

Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me torno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.


A força do Amor é de tal monta que já não se contenta com dois sujeitos em que um ama e o outro é amado. Não, para ser Amor na plenitude deve o “amador transformar-se na coisa amada” Um só ser aninhando os dois amantes. Desta forma talvez cessem o desejo e as outras inerências de natureza carnal/material do amor, com a transmutação dessa parte da amada – intuída na obsessão dele que a ama – para o espírito do amador.
De novo a herança do cancioneiro e das cantigas de amor do antigo trovador. Igualmente, esta composição poética possui na sua configuração e dentro da temática camoniana do amor, o intertexto clássico de uma certa postura do amador perante a endeusada amada.

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co’a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma
.

Este sentimento (o Amor) que o poeta, como poucos, soube retratar, é por vezes uma longa provação. Assemelha-se a uma quase expiação a que o amador tem de se sujeitar para merecer e ter finalmente a recompensa almejada. Mas mesmo sofrido o “calvário” por amor, é-lhe negada a recompensa que o seu sentimento pretendia e a expiação volta ao início por vontade de quem ama. Assim se expressa o poeta no soneto que a seguir se apresenta e que vai buscar no texto bíblico o mote que o emoldura:

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prémio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: − Mais servira, senão fora

Para tão longo amor tão curta a vida

A vida amorosa de Camões encontra-se abundantemente documentada pelos seus inúmeros biógrafos e pressentida grande parte dela, através dos poemas que o poeta legou. Amou muitas mulheres/musas dos seus versos. Assim foi o caso da Bárbara, segundo alguns biógrafos, a companheira dele no Oriente e que terá perecido no naufrágio em que Camões se salvou e salvou também os manuscritos dos Lusíadas.
«Endechas a Bárbara escrava/Aquela cativa,/que me tem cativo,/porque nela vivo/já não quer que viva.//Eu nunca vi rosa/que em suaves molhos,/que para meus olhos/fosse mais fermosa.// Nem no campo flores,/nem no céu estrelas,/me parecem belas/como os meus amores.//Rosto singular,/olhos sossegados,/pretos e cansados,/mas não de matar.// üa graça viva/que neles lhe mora,/para ser senhora/de quem é cativa.//Pretos os cabelos,/onde o povo vão/perde opiniãoque os louros são belos.// Pretidão de Amor,/tão doce a figura,/que a neve lhe jura/que trocara a cor.//Leda mansidão/que o siso acompanha:/bem parece estranha,/mas bárbara não.// Presença serena/que a tormenta amansa:/nela enfim descansa/toda a minha pena./Esta é a cativa/que me tem cativo,/e, pois nela vivo,"é força que viva.»
Conta-se que quando ela morreu teria o poeta em sua memória composto o célebre soneto que é dos versos de Camões dos mais conhecidos:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te
,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou
.

O que restou afinal para o Poeta do grande Amor perdido? Diz-nos que são memórias que o têm perseguido «do doce bem passado e mal presente»:

Se quando vos perdi, minha esperança,
A memória perdera juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.

Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.

De cousas de que apenas um sinal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memórias perseguido
.

Ah dura estrela minha! Ah grão tormento
Que mal pode ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que é já passado?

A demanda do Amor torna-se cada vez mais penosa para o Poeta. Ele visitou o templo do Amor, dizem-no os seus versos: «Amor co’a esperança já perdida teu soberano templo visitei (…)»
Mas agora não resta muito tempo, a idade avança e a experiência desengana.

Minguando a idade vai, crescendo o dano;
Perdeu-se-me um remédio, que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece;
Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda aparece,
De vista se me perde, e da esperança
.

Finalmente Camões resume o que foi a vida dele num verso lapidar e exemplar e que nos interpela:
«Este meu breve e vão discurso humano
Camões morreu a 10 de Junho de 1580 aos 56 anos de idade, pobre e doente. Um dos seus últimos poemas dizem-no amaldiçoando a sua vinda ao mundo e nele deixa gravado também, como se percebeu a si próprio:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar;
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu
.

Para finalizar direi que tal como ele antes dissera em versos acerca daqueles que ficam para além da morte através das suas criações e legados, também ele próprio (grande e acabado poeta) se integra totalmente nesses seus versos: “e aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” … Portanto, Camões permanece entre aqueles cujas obras ficam na memória dos Homens.