Hoje, mais do que no antigamente dos tempos, a sociedade cabo-verdiana enfrenta um grande e gravíssimo problema que é o de uma sociedade em que a maior parte dos seus mais jovens cidadãos é cada vez mais – por que muito mais populosa – oriunda de família numerosa, desestruturada e monoparental, jovens cidadãos, geralmente dotados de pouca orientação e de educação no sentido mais amplo e abrangente do termo. Educação, em que valores e princípios alicerçados, são transmitidos de forma sistematizada e interiorizados pela criança e pelo adolescente como os esteios mais fortes da vida gregária do Homem. São as tais aquisições que devem ser feitas, em primeira-mão, no seio da família.
Infelizmente, o que nos é dado observar actualmente nas escolas públicas e ultimamente até nas privadas, são alunos, crianças e adolescentes, uma parte significativa, não portadores desse perfil de origem.
Se por um lado, exige-se entre nós e bem que a escola seja um verdadeiro centro de informação, de formação, científica, humana e social; de conhecimentos capazes de apetrechar o formando para a vida interpessoal e profissional. Por outro lado, tal já não será possível, uma vez que – de novo algum lamento por causa disso – os próprios professores, sobretudo os de geração mais recente, trazem infelizmente na sua bagagem cultural “etapas queimadas” porque não preenchidas por princípios e valores ganhos na/e em família. Muito pouco poderão dar ao aluno em termos de partilha. Daí também explicada porque convivemos actualmente tanta deseducação, (permitam-me a expressão) na nossa sociedade!
Já não é só a pobreza material, a causadora destes males. Não sei se estudos sociológicos e estatísticos aqui eventualmente realizados sobre o assunto têm conclusões fundamentadas sobre a matéria. No meu entender, e para os tempos actuais, razões outras, como exemplo paradigmático, a completa desestruturação e até por vezes a ausência familiar, na vida das crianças, são, sem dúvida, os elementos mais perturbadores desta cadeia de desequilíbrios sociais que se verificam de forma cada vez mais assustadora entre nós e de que os meninos de rua e os delinquentes juvenis, são parte do problema.
A escola não deve substituir a família. A cada um está atribuído um papel, específico e diferenciado. Assim deve ser o entendimento desta importantíssima equação social.
Os jovens, homens e mulheres, não podem deixar que a função de criar, de orientar e de educar uma criança ao mundo trazida sejam, regra geral, entre nós, tarefas apenas da procriadora. Esta última, cada vez mais adolescente, sobrecarregada na procura da sobrevivência, desamparada, com muito pouco para dar, acaba por orientar – se é que neste caso, assim se poderá dizer – mal a criança que posteriormente é encaminhada para a escola com faltas gritantes que só o lar (paterno/materno) poderia ter preenchido, se os dois partilhassem com alguma paridade esta responsabilidade.
A quantidade populacional – com muita incidência na camada mais pobre e desqualificada da população – tem também a ver com essa desestruturação total em termos da educação infanto/juvenil.
Por outro lado, e mais grave ainda, são as crianças de rua, abandonadas pelos progenitores, que não são chamados sequer à responsabilidade criminal de largar na via pública, entregues à sua sorte, meninos e meninas cada vez mais em tenra idade.
A propósito deste drama social, li num relatório do Eurostat, as consequências nefastas de se ser “criança de rua” o seguinte. “A curto prazo, reflecte-se na alimentação, na saúde, no sucesso escolar e na integração social inexistente, mas a médio e longo prazo, as consequências verificam-se ao nível da falta de qualificações e nas dificuldades de integração no mercado de trabalho.” (fim da transcrição) Para nós, acrescentaria que aumenta a incidência da pobreza extrema e potencia a delinquência juvenil e a criminalidade adulta.
O país conhecerá, nesta matéria, algum progresso real, no dia em que o programa de algum governo futuro sufragado pela sociedade, “pegar de frente” uma política de população – em que a família nuclear ocupe lugar de primazia, sem titubeios, de forma descomplexada, sem preconceitos – e, faça disso, a sua principal bandeira no pressuposto de que a sustentabilidade social e económica, a qualidade de vida do país e dos que nele vivem passam igualmente pelo modelo familiar adoptado no que respeita à assunção das responsabilidades dos progenitores na educação e na orientação dos seus filhos.
Temos todos alguma consciência de que a complexidade do problema é enorme e a transversalidade da abordagem da causa da família em Cabo Verde constitui um verdadeiro desafio, uma interpelação profunda a futuros governantes, a responsáveis do país, à sociedade civil no seu todo e a cada um dos cidadãos. Do mesmo modo que todos estamos igualmente cientes de que a sua inscrição na agenda prioritária do país é uma exigência imperiosa. Os valores cristãos culturalmente por nós interiorizados fazem dessa causa um quase desígnio nacional.
A reparação devida:
Por lapso, no texto intitulado: «A escola e o saber para a vida» não mencionei – entre as instituições académicas afamadas outrora em Cabo Verde – a Escola Industrial e Comercial do Mindelo, mais conhecida como Escola Técnica e que foi de facto de referência e que tão bons profissionais deu em ramos bem diversificados. Fica aqui o reparo.
A escola e o saber para a vida
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Cabo Verde de uma maneira geral, sempre se orgulhou, da escola que teve sobretudo no passado. Lembremo-nos das instituições académicas que ainda hoje são referências para nós. Refiro-me ao Seminário – Liceu de S. Nicolau, ao Liceu de Gil Eanes de Mindelo. Gostaria de incluir neste rol, o também antigo liceu “Adriano Moreira” ou como foi chamado antes: “Liceu Nacional” da Praia dos anos 60 do século vinte, que hoje reclamo de bom liceu. Acontecia que nelas, as instituições aqui referidas, se falava e se comunicava em língua portuguesa, e, sobretudo se processavam os conhecimentos que os alunos adquiriam neste mesmo veículo linguístico que actualmente estamos a descurar e a querer renegar como nosso. Ora podem contra argumentar que ao tempo tudo isso era obrigatório, (a obrigação, os deveres e a disciplina sempre fizeram parte de qualquer escola que se preze e de toda a família com função de educar) mas a verdade é que basta comparar o aluno médio de hoje do 12º ano do ensino secundário, na sua forma de expressar, na cultura e no saber académico que revela para percebemo-nos que o não podemos comparar com o aluno do antigo 7º ano dos liceus, quer do Mindelo, quer da Praia. São duas situações e duas realidades, que mesmo salvaguardados o tempo e as diferenças, quem sai a perder nesta hipotética comparação é o actual aluno, finalista do secundário.
A escola na nossa cultura funcionou (já hesito dizer que “funciona”, colocando o verbo no presente) também como um local de iniciação, de descoberta de preceitos sociais, para além de noções científicas e culturais. Na verdade é ou foi durante a fase da escolarização, nesse hiato importantíssimo da vida é que a socialização é feita de forma mais intensa e mais constante. Depois…cada um partiu ou parte para sua vida (e este “sua” entendida aqui de forma bem individualizada e pessoal).
De facto é nessa fase, que se dão ou se deram as mais fortes e por vezes decisivas interacções entre o “eu”, o “nós”, e os “outros”, cujas marcas nos acompanharão para o resto das nossas vidas e é também nessa fase que se adquirem as “ferramentas” básicas para uma mais equilibrada integração social. Creio que na vida dos homens, e para aqueles que o fizeram, o serviço militar obrigatório, também acabam por comungar dos mesmos reflexos ou efeitos no seu comportamento cívico posterior.
Ora quem entra para o mundo adulto – do trabalho e da família – munido dessas ferramentas, à partida, terá naturalmente vantagens acrescidas.
Mas como obter essas ferramentas a partir da escola hoje neste país se nem os seus principais – os professores – agentes estão devidamente preparados?
Quando falo com alguns formandos – futuros professores – em preparação para a apresentação e a defesa do trabalho de fim de curso, reparo com muita tristeza, as lacunas gritantes no modo de expressão da linguagem que espelha a aquisição cultural que deveria diferente e mais substantiva nesta etapa de escolarização e de formação, e que ficou irremediavelmente perdida se calhar porque etapas não preenchidas adequadamente ao longo da vida escolar/académica.
Assim sendo o que esperar em termos de desempenho didáctico-pedagógico deste agente de ensino face a uma turma de alunos?
Mas teremos de chamar de volta o antigo orgulho que tínhamos da nossa escola pública e que tranquilizava os pais em matéria de aquisição de saber dos filhos. A sociedade civil, os pais e os encarregados de educação devem ser mais activos, mais participantes e até mais exigentes com a instituição escolar que frequentam os filhos. O manterem-se informados regularmente do aproveitamento e do comportamento dos seus educandos, acaba por ser uma forma eficaz de controlo sobre o que se está a ministrar nas disciplinas curriculares e de chamar a atenção da escola para o que está bem e para o que não está bem na instituição no seu todo.
Haja determinação de todos para se mudar este paradigma fundamental que é a educação, em que a escolar funciona também como um saber para a vida.
Mas para que tudo isso aconteça no meio de nós será preciso a presença e o envolvimento da família nuclear do educando ou quem faça as vezes disso. Sem esse sério contributo – o da família – estamos a comprometer negativamente o futuro da nossa sociedade.
A escola na nossa cultura funcionou (já hesito dizer que “funciona”, colocando o verbo no presente) também como um local de iniciação, de descoberta de preceitos sociais, para além de noções científicas e culturais. Na verdade é ou foi durante a fase da escolarização, nesse hiato importantíssimo da vida é que a socialização é feita de forma mais intensa e mais constante. Depois…cada um partiu ou parte para sua vida (e este “sua” entendida aqui de forma bem individualizada e pessoal).
De facto é nessa fase, que se dão ou se deram as mais fortes e por vezes decisivas interacções entre o “eu”, o “nós”, e os “outros”, cujas marcas nos acompanharão para o resto das nossas vidas e é também nessa fase que se adquirem as “ferramentas” básicas para uma mais equilibrada integração social. Creio que na vida dos homens, e para aqueles que o fizeram, o serviço militar obrigatório, também acabam por comungar dos mesmos reflexos ou efeitos no seu comportamento cívico posterior.
Ora quem entra para o mundo adulto – do trabalho e da família – munido dessas ferramentas, à partida, terá naturalmente vantagens acrescidas.
Mas como obter essas ferramentas a partir da escola hoje neste país se nem os seus principais – os professores – agentes estão devidamente preparados?
Quando falo com alguns formandos – futuros professores – em preparação para a apresentação e a defesa do trabalho de fim de curso, reparo com muita tristeza, as lacunas gritantes no modo de expressão da linguagem que espelha a aquisição cultural que deveria diferente e mais substantiva nesta etapa de escolarização e de formação, e que ficou irremediavelmente perdida se calhar porque etapas não preenchidas adequadamente ao longo da vida escolar/académica.
Assim sendo o que esperar em termos de desempenho didáctico-pedagógico deste agente de ensino face a uma turma de alunos?
Mas teremos de chamar de volta o antigo orgulho que tínhamos da nossa escola pública e que tranquilizava os pais em matéria de aquisição de saber dos filhos. A sociedade civil, os pais e os encarregados de educação devem ser mais activos, mais participantes e até mais exigentes com a instituição escolar que frequentam os filhos. O manterem-se informados regularmente do aproveitamento e do comportamento dos seus educandos, acaba por ser uma forma eficaz de controlo sobre o que se está a ministrar nas disciplinas curriculares e de chamar a atenção da escola para o que está bem e para o que não está bem na instituição no seu todo.
Haja determinação de todos para se mudar este paradigma fundamental que é a educação, em que a escolar funciona também como um saber para a vida.
Mas para que tudo isso aconteça no meio de nós será preciso a presença e o envolvimento da família nuclear do educando ou quem faça as vezes disso. Sem esse sério contributo – o da família – estamos a comprometer negativamente o futuro da nossa sociedade.
Por onde andam o ensino e a aprendizagem da Língua Portuguesa?
domingo, 22 de novembro de 2009
O que aconteceu ao ensino da Língua portuguesa em Cabo Verde? Onde param os bons professores desta disciplina com o saber e o saber fazer pedagogicamente afinados, com objectivos a cumprir, com um excelente domínio da língua veicular, com brio na didáctica a seguir na disciplina durante o ano lectivo e finalmente com a convicção firmada de que o fundamental é chegar ao fim do ano escolar com os seus alunos a gostarem da disciplina, a falarem e a escreverem adequadamente o português?
Onde ficou o ensino e o consequente conhecimento das regras gramaticais? Porque é que actualmente o aluno cabo-verdiano (excepções haverá certamente) é tão mal – sucedido em termos de aproveitamento universitário em universidades portuguesas e brasileiras? Exactamente por causa do não domínio da língua portuguesa. Quando no nosso tempo (no meu tempo e antes dele) era exactamente o contrário. Deste mal gravíssimo não padecia o aluno universitário cabo-verdiano. Nem o aluno universitário, nem o funcionário público cabo-verdiano. Estes perfis nacionais falavam e escreviam correctamente a língua veicular e oficial do país. Porque será que o nosso jovem emigrante em Portugal (onde está a maior comunidade cabo-verdiana emigrada na Europa) tem dificuldade em concorrer a empregos com emigrantes angolanos e brasileiros? A razão é porque fala mal ou não domina o português.
O que terá acontecido ao nosso ensino do português em que nos dias de hoje, alunos em estudos superiores tratam o professor por “tu” por pura ignorância da correcta utilização de uma simples forma verbal na 3ª pessoa do singular?
E tudo isto a acontecer em intensidade cada vez mais assustadora nas nossas escolas e em todos os níveis de ensino. Está-se a denegrir de uma forma que eu diria algo “criminosa” o ensino e a aprendizagem da nossa bela língua segunda! Que loucura! Aonde iremos parar se nem um património tão rico e enriquecedor como é a língua portuguesa conseguimos preservar?
Uma simples visita hoje a uma sala de professores em intervalos de aulas, de uma escola secundária do país, apercebemo-nos de que nem o professor de português já fala a língua veicular. Até se pode ouvir o francês e o inglês, por graça, entre os colegas do mesmo grupo, mas escutar a bela língua portuguesa? Não, não teremos esse gosto!
Ora é certo que o professor de português em Cabo Verde tem na verdade, em todo o lado um ambiente avesso, para não dizer hostil, à difusão, à socialização da língua veicular e oficial.
No antanho desta nossa sociedade ainda existiam bons “redutos” onde se praticava o português. Era nas escolas, no ambiente académico, na comunicação aluno/professor e vice-versa, nos serviços do Estado e era igualmente na Comunicação Social. Parecendo que não, o que é certo é que funcionavam e bem, como autênticos guardiães da Língua portuguesa em solo nacional. Actualmente, nem isso já acontece.
Mas ainda que os programas dos diferentes níveis de ensino e destinados à disciplina estejam inadaptados ou desajustados, o que não acredito, pois actualmente são elaborados com a visão e a metodologia de ensino de língua viva; mesmo que o docente da língua portuguesa não esteja a ser secundado na sua escola e interdisciplinarmente, quando solicita a colaboração dos colegas para que tenham em atenção os “erros” dos alunos e que os corrijam em tempo, na respectiva disciplina; ainda que esteja a haver desleixo e preguiça no geral de quase todos os professores em não corrigirem os erros gramaticais, ortoépicos e outros que os alunos cometem e que são da obrigação dos professores ajudá-los a emendarem-se; apesar de tudo, isso não justifica, nem ilibe o actual professor da língua veicular do sistema de ensino nacional, da sua quota – parte de enorme responsabilidade de promover a apetência no seu aprendente, de velar pela sua boa “performance” linguística como objectivo final e, finalmente, de atalhar o fracasso quase total que tem sido a aprendizagem da língua segunda e da língua que garante sucesso escolar e funciona, até prova em contrário, como “passaporte” para o sucesso académico, profissional e social entre nós.
Temos todos que ter a perfeita consciência da transcendente importância da Língua portuguesa, nossa língua também. A nossa primeira língua de comunicação internacional. A língua em que lemos e aprendemos quase tudo o que a ciência, a tecnologia e a boa literatura nos oferece. E tudo isto se passa num mundo cada vez mais exigente e apertado para os jovens cabo-verdianos que demandam uma profissão. Por favor! Não desbaratemos tão rico património!
Onde ficou o ensino e o consequente conhecimento das regras gramaticais? Porque é que actualmente o aluno cabo-verdiano (excepções haverá certamente) é tão mal – sucedido em termos de aproveitamento universitário em universidades portuguesas e brasileiras? Exactamente por causa do não domínio da língua portuguesa. Quando no nosso tempo (no meu tempo e antes dele) era exactamente o contrário. Deste mal gravíssimo não padecia o aluno universitário cabo-verdiano. Nem o aluno universitário, nem o funcionário público cabo-verdiano. Estes perfis nacionais falavam e escreviam correctamente a língua veicular e oficial do país. Porque será que o nosso jovem emigrante em Portugal (onde está a maior comunidade cabo-verdiana emigrada na Europa) tem dificuldade em concorrer a empregos com emigrantes angolanos e brasileiros? A razão é porque fala mal ou não domina o português.
O que terá acontecido ao nosso ensino do português em que nos dias de hoje, alunos em estudos superiores tratam o professor por “tu” por pura ignorância da correcta utilização de uma simples forma verbal na 3ª pessoa do singular?
E tudo isto a acontecer em intensidade cada vez mais assustadora nas nossas escolas e em todos os níveis de ensino. Está-se a denegrir de uma forma que eu diria algo “criminosa” o ensino e a aprendizagem da nossa bela língua segunda! Que loucura! Aonde iremos parar se nem um património tão rico e enriquecedor como é a língua portuguesa conseguimos preservar?
Uma simples visita hoje a uma sala de professores em intervalos de aulas, de uma escola secundária do país, apercebemo-nos de que nem o professor de português já fala a língua veicular. Até se pode ouvir o francês e o inglês, por graça, entre os colegas do mesmo grupo, mas escutar a bela língua portuguesa? Não, não teremos esse gosto!
Ora é certo que o professor de português em Cabo Verde tem na verdade, em todo o lado um ambiente avesso, para não dizer hostil, à difusão, à socialização da língua veicular e oficial.
No antanho desta nossa sociedade ainda existiam bons “redutos” onde se praticava o português. Era nas escolas, no ambiente académico, na comunicação aluno/professor e vice-versa, nos serviços do Estado e era igualmente na Comunicação Social. Parecendo que não, o que é certo é que funcionavam e bem, como autênticos guardiães da Língua portuguesa em solo nacional. Actualmente, nem isso já acontece.
Mas ainda que os programas dos diferentes níveis de ensino e destinados à disciplina estejam inadaptados ou desajustados, o que não acredito, pois actualmente são elaborados com a visão e a metodologia de ensino de língua viva; mesmo que o docente da língua portuguesa não esteja a ser secundado na sua escola e interdisciplinarmente, quando solicita a colaboração dos colegas para que tenham em atenção os “erros” dos alunos e que os corrijam em tempo, na respectiva disciplina; ainda que esteja a haver desleixo e preguiça no geral de quase todos os professores em não corrigirem os erros gramaticais, ortoépicos e outros que os alunos cometem e que são da obrigação dos professores ajudá-los a emendarem-se; apesar de tudo, isso não justifica, nem ilibe o actual professor da língua veicular do sistema de ensino nacional, da sua quota – parte de enorme responsabilidade de promover a apetência no seu aprendente, de velar pela sua boa “performance” linguística como objectivo final e, finalmente, de atalhar o fracasso quase total que tem sido a aprendizagem da língua segunda e da língua que garante sucesso escolar e funciona, até prova em contrário, como “passaporte” para o sucesso académico, profissional e social entre nós.
Temos todos que ter a perfeita consciência da transcendente importância da Língua portuguesa, nossa língua também. A nossa primeira língua de comunicação internacional. A língua em que lemos e aprendemos quase tudo o que a ciência, a tecnologia e a boa literatura nos oferece. E tudo isto se passa num mundo cada vez mais exigente e apertado para os jovens cabo-verdianos que demandam uma profissão. Por favor! Não desbaratemos tão rico património!
Dos conceitos à semântica mirabolante:
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Há palavras que são plenas, algumas vazias, outras ainda nem por isso…
A palavra Morte por exemplo, quando em contexto vernáculo, é um vocábulo pleno e pleno do incontornável, (porque a todos espera) do irremediável, do feito irreversível, do “até à eternidade”, em suma, do fatalismo expectável e as mais das vezes indesejável.
Porque estamos em tempo dela, a meio e em crescendo de uma epidemia devastadora (o dengue) que não escolhe a hora nem a idade, que ataca indiscriminadamente e mata a sério e dói muito para os que ficam e que ficam também à espera da vez… numa impotência aterrorizadora que só a expressão «fazer o quê?» nos aproxima de uma imitação de acalmia. Volto a dizer, porque estamos em tempo dela, a morte, o melhor mesmo é usarmos mais vezes as palavras plenas com sentido dirigido e realizado, ainda que com alguma contenção, mas é preferível o seu uso, ao invés de desbaratarmos os nossos pensamentos e as nossas ideias em palavras vazias.
O “silêncio” é também um vocábulo pleno e deve fazer parte das nossas cogitações pelos ganhos introspectivos que nos traz. Mas igualmente “compreensão” ganha aqui sentido pleno se a projectarmos no “outro” este tão prenhe de significado como o “nós” ou o “eu”.
E mais não vai dito, porque contido e sentido numa espécie de jogo de medo e de interrogação em que vida não rima com morte.
Oficialização do crioulo – Uma bandeira a meia haste
domingo, 15 de novembro de 2009
Estarão com certeza admirados de eu abordar este tema no blogue da Ondina. Parecer-vos-á, com certeza, uma temeridade, uma ousadia, ou mesmo um atrevimento.
Acontece que tenho fortes razões para o fazer. Referir-me-ei apenas a algumas: a primeira é que a Ondina se recusa a abordar o crioulo fora do contexto do bilinguismo com alegações várias – conheço-as e entendo-as - deixando-me por isso espaço para o fazer; a segunda é que a língua não é nem de longe nem de perto propriedade exclusiva dos linguístas; a terceira, é que a língua é, efectivamente, preocupação daqueles que a falam sendo intrinsecamente um meio e não um fim, desde imemoráveis tempos bíblicos da Torre de Babel; e, finalmente, the last but not the least, o recente chumbo político de que a oficialização do crioulo foi alvo na Assembleia Nacional.
A oficialização do crioulo é um tema polémico que de per si divide a sociedade cabo-verdiana independentemente do posicionamento político-partidário ou da ideologia. Há defensores e opositores em todos os quadrantes. Os argumentos de uns e de outros são vários. A meu ver a sua sustentação económica não encontra resposta nem nos seus defensores mais acérrimos arriscando-se por isso a não passar da letra de lei se, por acaso, fosse oficializado. É um "capricho" de países ricos. E se para a sua funcionalidade fosse necessário estender a mão então deixaria de ser um orgulho nacional para ser a mais vergonhosa das vaidades. Aliás, não é só vaidade, é também egoísmo e algum oportunismo e não sou eu quem o diz. É precisamente Amílcar Cabral que o deixa entender quando afirma:
Acontece que tenho fortes razões para o fazer. Referir-me-ei apenas a algumas: a primeira é que a Ondina se recusa a abordar o crioulo fora do contexto do bilinguismo com alegações várias – conheço-as e entendo-as - deixando-me por isso espaço para o fazer; a segunda é que a língua não é nem de longe nem de perto propriedade exclusiva dos linguístas; a terceira, é que a língua é, efectivamente, preocupação daqueles que a falam sendo intrinsecamente um meio e não um fim, desde imemoráveis tempos bíblicos da Torre de Babel; e, finalmente, the last but not the least, o recente chumbo político de que a oficialização do crioulo foi alvo na Assembleia Nacional.
A oficialização do crioulo é um tema polémico que de per si divide a sociedade cabo-verdiana independentemente do posicionamento político-partidário ou da ideologia. Há defensores e opositores em todos os quadrantes. Os argumentos de uns e de outros são vários. A meu ver a sua sustentação económica não encontra resposta nem nos seus defensores mais acérrimos arriscando-se por isso a não passar da letra de lei se, por acaso, fosse oficializado. É um "capricho" de países ricos. E se para a sua funcionalidade fosse necessário estender a mão então deixaria de ser um orgulho nacional para ser a mais vergonhosa das vaidades. Aliás, não é só vaidade, é também egoísmo e algum oportunismo e não sou eu quem o diz. É precisamente Amílcar Cabral que o deixa entender quando afirma:
"(…) Há pessoas que querem que ponhamos de lado a língua portuguesa, porque somos africanos e não queremos a língua de estrangeiros. Eles querem é avançar a sua cabeça, não é o seu povo que querem avançar». (…) Se quisermos levar para frente o nosso povo, durante muito tempo ainda, para escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o português"
O Governo ao transformar a oficialização do crioulo num desígnio nacional, na sua bandeira política para toda a legislatura, foi muito imprudente e, de caminho, manifestou alguma dose de arrogância. Esqueceu-se que a sua maioria não lhe permitia mexer na Constituição. Confundiu a adopção de um alfabeto com a oficialização tácita da língua que ele suporta literariamente. Só que crioulo como língua latina que é, Mário Fonseca disse-o, tinha já subjacente um alfabeto que foi sempre usado e que permitiu e permite que lêssemos Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, B. Leza, Kaoberdiano Dambará, Manual d’Novas e outros sem quaisquer problemas quer de dicção quer de interpretação. O que o ALUPEC fez, e perdoem-me os seus defensores, foi tirar a alma ao crioulo. O que é que Kabral, Karlus, Kabra, Kongu, Kamiñu diz a um leitor (não ouvinte) comum cabo-verdiano? Segundo o grande F. Pessoa (e não era preciso ser ele a dizê-lo) qualquer idioma:
“concentra em si, instintiva e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneira de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver”.
A grafia tem de traduzir estes sentimentos. Mas são estes, precisamente, os atributos do crioulo que o ALUPEC destrói: tradição, história e passado.
É interessante registar que não se cansam de apontar o grande Mestre B. Lopes da Silva quando ele conclui que para o estabelecimento de um padrão para o crioulo literário, o de Sotavento, com destaque para o de Santiago, é o que apresenta melhor performance mas olvidam-no completamente quando no mesmo documento diz:
“Não valerá a pena elaborarmos um sistema ortográfico autónomo, bastando-nos adoptar a ortografia da língua portuguesa, visto que esta não se afasta, em quase ponto nenhum, da oralidade crioula, que o esquema ortográfico se destinará a traduzir.”
Tanto quanto sei, a oficialização do crioulo ficou na Comissão Especializada com o voto contra da UCID e a abstenção (táctica) do MpD. A Imprensa por razões que desconhecemos praticamente se calou. É certo que a não aprovação na Comissão Especializada não significa um chumbo definitivo mas, por tradição a proposta que não tiver passado na especialidade não se leva à plenária. A menos que um volte-face se verifique.
E é nesta linha que se chegou a falar na negociação do “C” com “K”. Presumo que não seja mais do que um rumor, um boato. É ridículo ou surrealista de mais para se crer.Com a votação da UCID e do MpD prevaleceu o bom-senso. Até alguns (não poucos) paicvistas aplaudem.
Não sei para quê tanta pressa com a oficialização do crioulo. A polémica divertiu-nos – de uma manobra de diversão também se tratava - durante todo este tempo desviando-nos dos verdadeiros problemas do País.
Os que tão bem souberam escrever o crioulo não precisaram de o aprender em nenhuma escola nem utilizar qualquer alfabeto alternativo. É preciso ter plena consciência que o crioulo termina, para fins oficiais, quando entramos no avião. Isto sem esquecer aqueles que lá fora dele vivem, em países que em vez de promover a integração fomentam, com a nossa ajuda, a guetização – as tais chamadas minorias (socialmente estigmatizadas).
Mas a ironia do destino é que em vez do PAICV que se arroga como herdeiro – só quando lhe interessa – do património político de Amílcar Cabral, são a UCID e o MpD que neste particular se apresentam como os guardiães dos seus desígnios.
A. Ferreira
Leio...
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Leio, para meu espanto e mágoa que a pobreza extrema em Cabo Verde subiu para 26%. Pensar que há uma dezena e meia de anos a pobreza extrema no nosso país era de 14%! Para onde vamos? A isso chama-se retrocesso...
Mais, ainda sob o mesmo efeito, leio na coluna de Eunice Silva o seguinte:
«1. Reside mais de ¼ da população do país;
2. O crescimento da população é cerca de quase duas vezes superior à média nacional;
3. Cerca de 40% da população recorre à subtracção na rede pública para aceder à energia;
4. O desemprego atinge mais de 40% dos jovens, que por falta do que fazer enveredam por comportamentos desviantes, como o álcool ou a droga;
5. Pessoas são assassinadas em zonas nobres e em plena luz do dia, sem que as autoridades consigam apanhar o assassino;
6. Pessoas convivem no seu dia a dia com animais à solta, lixo e, as vacas andam nas avenidas e no meio das estradas;
7. As ruas estão invadidas de vendedores e prestadores de serviço ambulantes;
8. Cerca de 20% da população é imigrante-estrangeiro, sendo a grande maioria na situação irregular, desqualificado, pobre e desempregado;
9. Mais de 40% das famílias não tem casa de banho;
10. Apenas 15% tem acesso a rede de esgoto;
11. 53% não tem acesso à água canalizada;
12. 45% das famílias ainda abastecem-se de água em chafarizes.»
Esta é a situação da Cidade da Praia – a capital do país e o maior centro urbano de Cabo Verde – no século XXI.
Mais, ainda sob o mesmo efeito, leio na coluna de Eunice Silva o seguinte:
«1. Reside mais de ¼ da população do país;
2. O crescimento da população é cerca de quase duas vezes superior à média nacional;
3. Cerca de 40% da população recorre à subtracção na rede pública para aceder à energia;
4. O desemprego atinge mais de 40% dos jovens, que por falta do que fazer enveredam por comportamentos desviantes, como o álcool ou a droga;
5. Pessoas são assassinadas em zonas nobres e em plena luz do dia, sem que as autoridades consigam apanhar o assassino;
6. Pessoas convivem no seu dia a dia com animais à solta, lixo e, as vacas andam nas avenidas e no meio das estradas;
7. As ruas estão invadidas de vendedores e prestadores de serviço ambulantes;
8. Cerca de 20% da população é imigrante-estrangeiro, sendo a grande maioria na situação irregular, desqualificado, pobre e desempregado;
9. Mais de 40% das famílias não tem casa de banho;
10. Apenas 15% tem acesso a rede de esgoto;
11. 53% não tem acesso à água canalizada;
12. 45% das famílias ainda abastecem-se de água em chafarizes.»
Esta é a situação da Cidade da Praia – a capital do país e o maior centro urbano de Cabo Verde – no século XXI.
Dengue – a responsabilidade do Governo
domingo, 8 de novembro de 2009
Falar do dengue é, actualmente, incontornável em qualquer conversa. Um surto epidémico que assentou arraiais na nossa terra, e que se espalhou pelo país inteiro por obra e graça do nosso governo. A ligeireza e displicência com que as autoridades encararam o aparecimento da doença permitiram o seu alastramento a uma velocidade exponencialmente crescente gerando uma onda de apreensão e pavor na população. Isto sem falar dos seus nefastos e pesados efeitos na economia do Pais.
Normalmente, depois da tragédia vem a farsa. Desta vez que, infelizmente, começou com a tragédia é a comédia que antecipa a farsa. Pois que, depois de mais de uma dezena de milhares de casos registados e de entre eles, algumas vítimas mortais, o governo surge, com um anúncio triunfalista e ao mesmo tempo inquietante, feito pelo próprio chefe do governo - que, pelos vistos, deixou de ter ministro da saúde – a conceder tolerância de ponto supostamente para permitir o combate às causas da doença e conter a sua proliferação.
Não se tratava de uma nova doença cujos efeitos e capacidade de alastramento não se conhecessem. O que aconteceu foi o desleixo e a incúria de um governo, que continua a privilegiar o imediatismo e o improviso, navegando sempre à vista. E que, pelos vistos, se limita a gerir, estritamente, o dia-a-dia e, por isso, não tem metas nem políticas consistentes, pelo menos, para a saúde pública.
Ninguém condena o gesto do governo em si em conceder tolerância de ponto. Ele é aparentemente generoso e tem a virtude de apelar à indispensável solidariedade e alertar para os focos a combater. Também não se questiona a sua necessidade. Tornara-se já, por incúria e negligência das próprias autoridades, imprescindível e indispensável. O que ninguém aplaude é o seu timing que o transformou numa manifestação folclórica evitável se o governo tivesse feito em tempo útil o seu trabalho de casa. Não teria sido necessário privar o país de um dia de produção. Foi um gesto não negligenciável mas com uma forte carga demagógica que, no fundo, o que mais pretendia era fazer esquecer a “borrada” que havia feito ao permitir que meia dúzia de casos descambasse tão rapidamente num surto epidémico. Como diz o povo: “Depois da casa arrombada, trancas na porta!”
Não é tempo de culpabilizar ninguém individualmente nem de procurar bodes expiatórios, que os há sempre. Mas se o governo não é responsável pelo aparecimento do dengue no País, ele não pode enjeitar a grande responsabilidade que tem na sua rápida transformação em epidemia. E por isso, deve tirar, ele próprio, as devidas ilações e agir em conformidade, sob pena de, se o não fizer alguém o fará por ele com pesados custos.
Normalmente, depois da tragédia vem a farsa. Desta vez que, infelizmente, começou com a tragédia é a comédia que antecipa a farsa. Pois que, depois de mais de uma dezena de milhares de casos registados e de entre eles, algumas vítimas mortais, o governo surge, com um anúncio triunfalista e ao mesmo tempo inquietante, feito pelo próprio chefe do governo - que, pelos vistos, deixou de ter ministro da saúde – a conceder tolerância de ponto supostamente para permitir o combate às causas da doença e conter a sua proliferação.
Não se tratava de uma nova doença cujos efeitos e capacidade de alastramento não se conhecessem. O que aconteceu foi o desleixo e a incúria de um governo, que continua a privilegiar o imediatismo e o improviso, navegando sempre à vista. E que, pelos vistos, se limita a gerir, estritamente, o dia-a-dia e, por isso, não tem metas nem políticas consistentes, pelo menos, para a saúde pública.
Ninguém condena o gesto do governo em si em conceder tolerância de ponto. Ele é aparentemente generoso e tem a virtude de apelar à indispensável solidariedade e alertar para os focos a combater. Também não se questiona a sua necessidade. Tornara-se já, por incúria e negligência das próprias autoridades, imprescindível e indispensável. O que ninguém aplaude é o seu timing que o transformou numa manifestação folclórica evitável se o governo tivesse feito em tempo útil o seu trabalho de casa. Não teria sido necessário privar o país de um dia de produção. Foi um gesto não negligenciável mas com uma forte carga demagógica que, no fundo, o que mais pretendia era fazer esquecer a “borrada” que havia feito ao permitir que meia dúzia de casos descambasse tão rapidamente num surto epidémico. Como diz o povo: “Depois da casa arrombada, trancas na porta!”
Não é tempo de culpabilizar ninguém individualmente nem de procurar bodes expiatórios, que os há sempre. Mas se o governo não é responsável pelo aparecimento do dengue no País, ele não pode enjeitar a grande responsabilidade que tem na sua rápida transformação em epidemia. E por isso, deve tirar, ele próprio, as devidas ilações e agir em conformidade, sob pena de, se o não fizer alguém o fará por ele com pesados custos.
A. Ferreira
O Romance Histórico em Teixeira de Sousa
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
Se há uma narrativa – dentro do panorama da moderna Literatura cabo-verdiana – que se aproxima do chamado Romance Histórico é, sem grandes margens de erro, o romance: Entre Duas Bandeiras de Teixeira de Sousa.
Recordemos que a obra foi publicada em 1994 pela editora de sempre do escritor, a Europa/América, vinte anos após os acontecimentos nela narrados e quatro anos depois da instauração em Cabo Verde do regime democrático.
Tratou-se de um projecto audacioso do seu autor e entendam-me este “audacioso” como um desvio consciente e experimentalista do escritor do molde até então seguido em matéria de temática ficcional, embora o estilo e o poder criativo de Teixeira de Sousa se mantenham neste romance, em tudo semelhante aos dos seus romances anteriores e posteriores a este. É que o tema agora é político, observado e narrado sob um formato que se diria carnavalesco e sobreposto em várias dimensões.
Mas antes de entrarmos no universo romanesco propriamente dito, fixemos o espaço e o tempo histórico de Entre Duas Bandeiras. O cenário é a cidade do Mindelo e o tempo medeia entre o período histórico/político vivido em Cabo Verde, imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974 (queda do regime salazarista) e o período antes do 5 de Julho de 1975 (data da independência de Cabo Verde).
O livro de Teixeira de Sousa – que vale a pena ser lido para quem ainda o não tenha feito – descreve-o de uma forma que prende o leitor até à última página do romance. Existe, e agora retomo o interior da acção, um tom satírico que perpassa o romance através do seu veio mais brando que é o humor. Como disse mais acima, o enredo parece formatado dentro de vários Carnavais. O Carnaval de Fevereiro, festa rija dos mindelenses, com os seus desfiles, os bailes animados e os prémios aos blocos; o Carnaval político com os seus comícios a toda a hora, com mil e um pretextos para manifestações de rua e palavras de ordem gritadas em megafones para os ouvidos dos transeuntes; os insultos e as provocações constantes dos ditos revolucionários; a dicotomia entre os auto proclamados «melhores filhos» gerados pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e os filhos ilustres da terra que a tudo assistiam, uns aterrorizados, outros atónitos, pois que eram mimoseados com a classificação de «cachorro de dois pés» entre outros epítetos e, finalmente, o Carnaval individual da personagem Gaudêncio Pereira, cuja maior aspiração em termos de vida social era poder entrar como sócio no famoso Grémio Recreativo de Mindelo. Mas há outros Carnavais dentro da urdidura novelesca que sem serem secundários, gozarão de menos estatuto do que os acabados de apontar. Gostaria de destacar a célebre «invasão e tomada da Rádio Barlavento» com a justificação de que era uma rádio que transmitia “demasiados comunicados da UDC” (União Democrática cabo-verdiana) ao invés de só transmitir “os comunicados do PAIGC”, culminando a história (de novo a ambiguidade entre o real e a ficção) com a prisão e o embarque para a cadeia política do Tarrafal dos membros da UDC, este último evento em tom sério porque trágico afinal num tempo que devia ser de liberdade. De tudo isto – e de forma aparentemente romanceada em que subjaz uma verdadeira crónica histórica – nos dá conta o livro: Entre Duas Bandeiras.
Dito por outras palavras, assistimos no desenrolar da narrativa a uma espécie de aliança, entre a História e a ficção de forma criativa e empolgante.
Finalizando, e tal como havia dito no início, a filiação deste romance, cuja leitura recomendo, deverá ser procurada na linha do romance histórico, pois que se trata também de uma grande reportagem (ficcionada embora) de um tempo histórico vivenciado pelos Mindelenses.