Viver numa cidade insegura, é viver em risco permanente...

terça-feira, 29 de dezembro de 2015
 
Será que na quadra festiva, um tempo de celebrações familiares, amigas e de harmonia se deva escrever um texto tão negativo como o que proponho escrever? Não sei, fica-me a dúvida...
Só que não consigo calar a minha indignação perante a ameaça, diária e constante que a cidadã - não importa a faixa etária - está sujeita nesta cidade da Praia, quando põe o pé na rua.
Os assaltos são frequentes ao longo do ano e crescem com particular gravidade na Quadra que atravessamos. Infelizmente a segurança policial, ou outra, não cresce em eficácia - nem de longe, nem de perto -  em igual proporção.
Observo que a polícia é imediata, quando se trata de multar um estacionamento infractor. Não discordarei. Pena é que não tenha igual presteza, quando um cidadão é assaltado em plena rua movimentada pelos mesmo carros que são por eles multados.
A verdade porém, é que nos locais, na hora, e nos momentos de assalto, nenhum polícia está por perto...
 São-nos narrados, ouvimos e assitimos em ritmo diário a episódios de roubos a residências, a lojas, de assaltos na rua. Enfim, para mal dos nossos pecados isto passou a ser conversa diária em qualquer sítio que se esteja.
Para exemplificar, narrarei um desses episódio a que assiti recentemente.. Passou-se no passeio à beira-mar  no Palmarejo, local onde, ao fim do dia, muita gente se junta para a caminhada, para a corrida vespertinas. Ora bem, uma jovem munida de  máquina fotográfica, fotogravava o mar perto e a paisagem em volta. As pessoas iam e vinham ao longo do “calçadão”. Eis que no meio disto surge um grupo de cerca de seis a oito rapazes  bandidos,  autênticas aves de rapina que se atiram de surpresa sobre a moça, quais abutres sobre a presa; ela caiu desamparada, arrancaram-lhe a câmara fotográfica e fugiram a correr à vista de todos. Tudo vi impotente embora, pois apenas pude gritar por socorro...mas de nada me valeu. A polícia chegou depois.
 Aliás, cenas como esta são diárias e de elevada frequência nas ruas e nos becos da cidade e dos bairros da Praia.  Tornaram-se numa constante e sem fim à vista. Se não são máquinas, são carteiras,  são compras, enfim, tudo que alguém transporte consigo, é-lhe arrebatado de forma violenta.
Para quando uma segurança eficaz da cidade?
Quem, em consciência, mulher, nacional, praiense, se sente segura nas ruas da cidade?
Quem em honesto pensamento, convida ou recomenda um estrangeiro amigo a visitar esta terra? É que  no momento seguinte ao convite, preocupado ficará com a segurança da pessoa amiga.
Vivemos em risco permanente nesta cidade tão insegura para os seus habitantes. As mulheres e os idosos que o digam! São as principais vítimas dos ladrões e dos bandidos.
Por vezes pergunto-me: que turistas nos visitarão? ...apenas virão uma vez e  devem jurar nunca mais cá voltar, pois que, volta e meia, são assaltados, maltratados física e psicológicamente pelos bandidos que pululam -  com um à-vontade estranhíssimo - esta cidade, capital das ilhas.
Por certo que não ficarão com vontade de recomendar Cabo Verde a ninguém mais.
Este país, cujos governantes, por um lado, tanto alarde fazem do seu turismo mas não oferecem por outro lado, algo que é vital para a sustentabilidade desse mesmo turismo, que é a segurança do cidadão residente/visitante/turista e dos seus bens.
Espero, faço votos que se conheçam proximamente no programa governativo de algum partido político, concorrente às eleições legislativas, a prioridade devida e explicitada; a política e o “modus operandi” na área da segurança em Cabo Verde, com particular acuidade para a cidade da Praia, a mais insegura do país.
 
 
 

CONTO DE NATAL CABO-VERDIANO

domingo, 20 de dezembro de 2015

MNIN ISJUS TITÁ NASCÊ NA MAR

      Adriano Miranda Lima
 
 
      Aquela tarde de 24 de Dezembro de 1951, no Mindelo, seria igual a outras, não fosse véspera de Natal. Nhô Mano descia a rua de Morguino, vindo das fraldas do Monte, a caminho da Praia de Bote, mergulhado nos seus pensamentos, quase não dando pelas pessoas que o cumprimentavam. Tinha encontro marcado no botequim Boca de Tubarão com os três companheiros que o ajudam na actividade do bote adquirido com o suor do seu trabalho. A sua experiência dizia-lhe que não podia contar com a melhor disposição deles em ir para o mar em véspera de Natal. Mas que remédio tinham eles? ─ Interrogou-se no seu íntimo. A pesca na véspera foi um fiasco, por causa da ventania que soprou, encapelando o mar, e agora tinham mesmo de ir à vida. O tempo estava de boa feição, sem vento e com mar calmo, e nhô Mano estava confiante numa boa pescaria durante a noite. Não era altura de luar e iam precisar de cafucas (1) para iluminar os trabalhos. Ainda teria de verificar se eram suficientes as pontarias de anzóis (2) que durante a manhã preparou. Mas o que o preocupava mesmo era a boa vontade dos seus companheiros em trabalhar numa altura desta. O Muxim, o mais velho dos três, nunca virava a cara ao trabalho, embora homem de pouca fala. O Fidjim raramente dizia que não, mas tinha o velho hábito de ir à Missa de Galo com a mãe dos seus filhos. O maior problema era o Lela de nhâ Lorença, o mais jovem; bom remador, sim senhor, mas refilão e pouco regular no seu procedimento, e além disso amigo do seu groguinho e da sua paródia.

       Nhô Mano passou em primeiro lugar pelo Plurim de Pêxe (3) para arranjar isco, e a seguir deu umas voltinhas pela rua da Canecadinha, onde adquiriu alguns suprimentos, incluindo petróleo para as cafucas; depois, foi ao bote ultimar os preparativos, o que sempre preferia fazer sozinho, com a sua habitual calma e meticulosidade.

       Estava já à porta do Boca de Tubarão, onde parou por momentos a olhar para o horizonte. O Sol ia a caminho da linha de cumeada de Santo Antão, e nhô Lela pensou com os seus botões que era hora de despachar e ir para o mar. No interior do botequim os 3 pescadores olharam para o patrão quando ele entrou. Não estavam lá de muito boa cara, e o Lela e nhâ Lorença disparou logo:

      ─ Ó nhô Mano, no Natal? Cmanera? (4) ─ Sem ter tempo de nhô Mano reagir, Fidjim adiantou:

      ─ Eu por acaso já tinha combinado umas coisas com a Bia.  

      O Muxim é que não abriu a boca, entretendo-se a rapar uma unha com um canivete, mesmo quando nhô Mano olhou para ele interrogativo, como que a pedir a sua opinião. Então o catraeiro respondeu:

      Mnis, sei que hoje é véspera de Natal, sim senhor, e vocês têm razão, lá isso têm. Mas já viram que ontem não pescámos nada e estamos todos quebrados (5)? Não será melhor arranjarmos um dinheirinho para amanhã podermos ter em casa ao menos um bom almocinho com a família e sentir uns trocos a mexer no bolso? Depois, essa coisa de Natal é mais para rico, não para nós. Por algum motivo o povo diz que em Cabo Verde “ramede de pobre é pobreza”, mas é claro que temos de lutar contra essa fatalidade. Vocês interessam-se lá por essa coisa de presépio, Menino Jesus, prenda de Natal? Ora, ora…

      Sem coragem para contrariar quem lhes dava a ganhar o pão do dia, lá se levantaram os pescadores, seguindo em silêncio atrás do seu patrão em direcção ao Flor da Baía, nome com que ele baptizou o bote. Com os seus 66 anos, nhô Mano ainda se apresentava com todo o vigor para as duras lidas do mar. Os músculos retesados dos seus braços compridos eram a prova de muitos anos a dar ao remo.

       Conferiram os apetrechos de pesca, numa espécie de check list que o catraeiro não dispensava. A seguir, arrastaram o bote até à água e momentos depois ele já deslizava suavemente ─ chape-chape, chape-chape ─ tomando a direcção da Ponta do Morro Branco, movido pela força dos oito braços. O silêncio em que iam foi interrompido por Lela quando ouviram alguns foguetes estralejar sobre a cidade: ─ Adé, eles estão a saudar a nossa saída, nhô Mano! Não estamos lá para festejar mas temos ao menos direito a foguete ─ riu-se soltando uma sonora gargalhada. Seguiu-se então o seguinte diálogo entre os quatro.

      ─ Eu, Mano de nhâ Ludovina, vos digo que não tem piada nenhuma festejar sem dinheiro no bolso. Nem Natal, nem São João, nem Carnaval, nem festa nenhuma. Aliás, foram poucos os natais em que não estive derriba de mar, desde que me fiz homem. A vida não é um mar de rosas, moços.

       Interveio Muxim, quebrando o seu habitual mutismo: ─ Eu também não. E não me recordo de alguma vez ter havido festa de Natal em minha casa. Só me lembro de o meu pai, que tinha manhas de funileiro, me ter feito um navio de lata bnitim. Tinha eu seis aninhos, e o meu pai copiou o modelo de um vapor inglês que estava fundeado na Baía.

      ─ Eu, brinquedo, brinquedo… nunca cheirei nenhum – disse o Lela. A não ser uma cornetinha que me deram na catequese nos Salesianos. Tinha os meus onze anos e passei o dia todo a tocar, fazendo uma trabuzana tal que a avó Tanha me mandou ir tocar para a rua...

      ─ Digo-vos que Natal, Natal, é em casa de gente branca – interrompeu-o o Fidjim – a minha mãe foi criada em casa de gente rica e lembro-me do que ela contava. E no dia de Natal aparecia sempre com coisas boas de comer que lhe davam das sobras, bolo, pudim, croquetes... Também lhe davam roupa usada em bom estado ainda.

       Os foguetes ainda se ouviam ao longe quando atingiram a Ponta do Morro Branco. Em lenta agonia, o Sol era uma imensa bola de fogo a mergulhar no mar, deixando atrás de si pinceladas de um rosa espectral, espécie de mortalha do dia que findava. Em breve cairia sobre o mar um manto escuro cada vez mais espesso, ficando como únicas referências visuais o vulto sobranceiro do Monte Cara e, mais além, o ilhéu dos Pássaros. Começaram a lançar as pontarias de anzóis, com o bote a mover-se suavemente, agora apenas ao sabor da corrente. A 3 quilómetros de distância, estava a Ponta de Ladra Cachorro, mas só a demandariam se a faina não corresse logo de feição. A certa altura, nhô Mano mostrou o balaio em que estava a comida para a noite:

      ─ Rapazes, nesse balaio há peixe frito, pastéis de milho e pão da padaria Jonas, que é a nossa ceia, e… uma garrafinha de grogue, que é o meu presente para vocês não pensarem que sou calisto (6). Gastei os últimos escudos que trazia no bolso, mas com fé em Nosso Senhor vamos fazer esta noite um bom dinheirinho.

       Os homens ouviram e continuaram no seu afã de lançar anzol e sondar os locais mais propícios, no que o Muxim tinha um especial faro. As duas cafucas estavam já acesas e ao longe divisaram outras luzinhas a piscar sobre o mar, quais pirilampos a imitar iluminações de Natal no negrume da noite.

      ─ É rapaziada de S. Pedro. Eles também devem andar quebrados como nós…

      ─ Não estejas agora com remoques, Lela ─ retorquiu Muxim. Não somos só nós que trabalhamos no Natal, trabalham os doutores, os enfermeiros, os guardas de alfândega, os polícias de capitania, e outras mais criaturas.

       A verdade é que, fosse por obra do Pai Natal ou simples acaso, estavam a fazer boa pescaria. O relógio de nhô Mano marcava 2 horas da manhã e o fundo do bote já registava uma boa captura de goraz, garoupa e esmoregal, entre outras espécies menores. Mas nhô Mano queria aproveitar o maná e mandou remar mais para o pé de uns rochedos próximos, pensando que umas moreias também calhariam bem. Assim foi a noite toda, até que o cansaço se tornou visível nos rostos. Enquanto estavam mergulhados no seu trabalho, iam conversando sobre as suas vidas pessoais e metendo algumas pilhérias pelo meio.

      O Lela estava debruçado sobre o bote a recolocar isco nos anzóis quando nhô Mano se virou para o Muxim e lhe segredou junto ao ouvido, sem que os outros ouvissem: ─ Vê lá tu, o Lela não é mau rapaz, até trabalha muito bem quando quer, mas é preciso espicaçá-lo. Às vezes olho para ele e lembro-me do meu filho macho, o Humberto, que infelizmente morreu na flor da idade.

      ─ Ah, lembro-me bem do Beto, que Deus haja. A vida é assim, nhô Mano, mas você tem a sua filha Luzia, por sinal boa rapariga.

      Nesse ínterim, o catraeiro disse aos companheiros que ia dormitar um pouco porque já não tinha a idade deles e o corpo estava mesmo a reclamar. Enroscou-se sobre um dos assentos do bote e não tardou a entrar nos braços de Morfeu.

       Os pescadores prosseguiram a sua azáfama, seguindo as instruções do patrão, que queria desembarcar às primeiras horas da manhã com um carregamento o maior possível e enquanto houvesse peixe a rondar. Mas, a certa altura, nhô Mano acordou sobressaltado com o Lela a gritar, esbaforido:

       ─ Acordem, acordem, olhem lá ao longe, no horizonte, dois palmos à esquerda de Santo Antão!!! Mnin Isjus titá nascê na mar (7), embrulhado num lençol de nuvens!!! Olhem bem, olhem bem!!!

      Nhô Mano, estremunhado, esfregou os olhos e virou a cabeça para onde apontava o seu jovem companheiro. Mirou, mirou, e disse:

      ─ Onde é que estás a ver o Mnin Isjus, Lela? – Este voltou a fitar o horizonte, desta vez com as mãos em canudo.

      ─ Estava lá, sim, juro!!! O Fidjim é testemunha, que ele também viu!!! E o Muxim também deve ter visto!!!

      ─ Ó Lela, o que vi foram umas nuvens em forma de figurinhas, mas qual é (8), rapaz?, não havia nenhum Mnin Isjus, ─ respondeu o Fidjim ─ às vezes as nuvens tomam cara de gente…

        Eh lá, a mim não me metam nisto, que eu até nem acredito nestas coisas de religião! ─ rematou o Muxim.

     Então, nhô Mano, conhecendo bem o seu mais jovem companheiro, teve um pressentimento e perguntou:

       ─ Lela, onde é que está a garrafa de grogue que ficou acima de meio quando fui dormir? ─       O Lela, acabrunhado, mostrou a garrafa, já completamente vazia. Todos deram uma gargalhada e o catraeiro exclamou, todo divertido:

       ─ É sempre o mesmo. Não se pode confiar uma garrafa a este rapaz. Agora vais ser tu a pagar-nos uma rodada de grogue no Boca de Tubarão!

       Instantes depois, o Flor da Baía já dobrava a Ponta do Morro Branco, a caminho da Praia de Bote, impulsionado pelas remadas sincopadas dos quatro pescadores. O céu estava coalhado de cúmulos dispersos, de cor variando entre o branco e o cinzento, como pedaços de algodão espalhados ao acaso para atapetar a chegada do Mnin Isjus.  

 
 (1) Lanterna improvisada com um recipiente, torcida e petróleo.

(2) Sistema de pesca formado por um longo fio e vários anzóis.

(3) Mercado de Peixe

(4) Expressão crioula interrogativa que significa: “Então, como?”

(5) Termo crioulo que significa estar-se sem dinheiro, vindo do inglês broken. 

(6) Termo crioulo que significa forreta.

(7) Tradução do crioulo mindelense para o português: “Menino Jesus está a nascer no mar”

(8) Expressão típica em crioulo que significa: “Como assim, qual é a tua?”

 

Tomar, Dezembro de 2015

Adriano Miranda Lima

 

Por ocasião da cerimónia de atribuição do grau de "Doutor Honoris Causa" ao Dr. António Manuel Mascarenhas Gomes Monteiro, pela Universidade de Mindelo. Dezembro 2015

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

 Hão-de convir comigo de que não é fácil falar de uma pessoa por quem se tem muita amizade, e por quem se nutre igualmente, uma certa admiração pelo carácter íntegro e generoso que dela emerge.

Quando tentei caracterizar, há muito tempo atrás, o perfil de Mascarenhas Monteiro, vieram-me à memória e registei-as então, as palavras, da portentosa escritora portuguesa, Agustina Bessa-Luís que no seu livro, «Meninos de Ouro», a determinada altura e para definir o seu protagonista, o narrador dizia que ele se situava entre aqueles para quem “o luxo é um acidente interior.” Nada exibicionista ou alardeado. Nada exterior, mas sim, um atributo interno. Situo o Dr. Mascarenhas Monteiro, nesta definição pela sua simplicidade no trato social e pela sua modéstia sem pose, e pela riqueza interior que demonstra no trato com outrem. Tudo isso adveniente da sua boa formação e capacidade humanas.

Antes de entrar neste modesto ensaio laudatório sobre um perfil tão insigne, permitam-me, ilustres presenças, senhores e senhoras, que faça um breve recuo no tempo: Mais precisamente há vinte cinco anos, em 1990, quando aqui, nas ilhas, se vivia um ambiente de alguma alegria republicana, cidadã, marcada pela abertura democrática que se dera então em Cabo Verde, com o fim do regime de Partido Único, presente entre nós, desde a Independência em 1975.

O Dr. Mascarenhas Monteiro perfilava-se e destacava-se como o candidato desse tempo ímpar na nossa história mais recente, em que finalmente, tínhamos conquistado a liberdade que tanto almejávamos e íamos poder votar livremente com alternativas!

Ora bem, recuando no tempo, tive o privilégio e um enorme prazer, devo dizê-lo, de organizar nessa altura - Novembro de 1990, para o Jornal «Opinião» - um conjunto de textos em que, para além de uma entrevista com o então candidato presidencial, procurei, ouvi, e escutei vários testemunhos de diferentes cidadãos sobre a pessoa em que residia a esperança democrática – mais tarde confirmada – de uma presidência diferente em quase tudo o que havíamos presenciado até então.

De entre as muitas personalidades ouvidas, registados foram também alguns depoimentos de antigos professores liceais que o foram do adolescente/jovem Tony Mascarenhas Monteiro. Seleccionei de entre eles, e para esta ocasião, o depoimento da antiga Professora de Geografia, Drª Maria Luísa Ferro Ribeiro, quem, a determinada altura da conversa, afirmou: “ (...) é um dado normalmente aceite que o professor marca o aluno e que essa influência estende-se às vezes, até à vida profissional...e Maria Luísa Ribeiro continuou: “mas acho que o inverso pode ser verdade, há alunos que também marcam o professor e incitam-no a continuar a sua tarefa; há alunos que mostram que vale a pena essa profissão e isso é mais evidente e ganha maior relevância quando se está no início da carreira. Foi exactamente o que sucedeu comigo. Ainda jovem vinha preparar a minha tese para a licenciatura em Ciência Geográfica, tese essa que versava a ilha de Santiago. O decorrer da preparação dos meus trabalhos coincide com o início da minha actividade de leccionação no Liceu da Praia. Então, do conjunto dos alunos que me ficaram gravados pela vida fora, um deles é precisamente António Mascarenhas Monteiro – Tony, como nós todos o chamávamos. Recordo-o como um jovem bem-comportado, responsável, calado, mas interveniente e interessado na matéria. Sempre com um enorme sentido de seriedade e de responsabilidade, nada habituais na idade e na época e que eu atribuía ao facto de ele ser o mais velho  do grupo de irmãos e de muito cedo ter assumido posições de responsabilidade familiar. E finalizou a antiga professora: (...) pelo muito que me marcou como professora não só por ter sido bom aluno do ponto de vista do aproveitamento, mas pelo aluno que impressionava qualquer professor (...) e quando vejo o actual Tony, penso que o que ele é hoje, já estava quase que escrito pela maneira de ser dele que haveria de ser, enfim, a pessoa que todos nós conhecemos: responsável, modesta, uma vida de projecção mas comedida e sobretudo uma ligação muito especial com as pessoas. (...) Fim de citação.

Achei interessante, porque nunca perdem actualidade estes dizeres, apesar dos anos passados e das vicissitudes normais do decorrer de uma vida. Dizeres definidores de uma tão prestigiada personalidade nacional e assim trazê-los à colação, neste momento em que a Universidade de Mindelo, achou por bem, distingui-lo com o grau “Honoris Causa” que tão bem se casa com o perfil do homenageado.

Pois bem, falar do perfil do Dr. Mascarenhas Monteiro é percorrer um curriculum de exemplar porte cívico e moral, edificado num laborioso percurso existencial.

António Manuel Mascarenhas Gomes Monteiro, nasceu em Santa Catarina, ilha de Santiago pertencendo já à galeria dos seus filhos mais ilustres, é hoje, na hora actual,  seguramente, o seu mais distinto homem público. Originário de uma família de proprietários e de comerciantes, de homens e de mulheres ligados ao trabalho e à família. A mãe, senhora que teve uma educação cuidada, inclusivamente fez estudos como interna num Colégio em Portugal, era filha de antigo Seminarista. Logo, o avô materno de Mascarenhas Monteiro fez os seus estudos na pioneira e prestigiada instituição académica/religiosa cabo-verdiana, o célebre Seminário-Liceu de S. Nicolau. Foi a mãe quem iniciou o filho, nas primeiras letras da sua escolarização e no incitamento ao gosto pela leitura através de clássicos da literatura portuguesa.

Do pai, comerciante laborioso que cedo os deixou, recebeu o nosso homenageado, o legado valioso de que a integridade de carácter, o valor do trabalho honrado e o primado da família, constituem pilares para a existência digna do ser humano.

São estas as palavras evocativas de Mascarenhas Monteiro, relembrando, há 25 anos, a casa paterna, o progenitor. E passo a citar: “Devo dizer que a imagem que conservo do meu pai é a de um homem profundamente humano, muito preocupado com o futuro dos filhos. Quando ele adoeceu gravemente, passou por um período de enorme sofrimento, sobretudo psicológico a pensar no futuro dos filhos. Era um pai, muito tolerante (...) que preferia falar com o filho quando este prevaricava... o ambiente da nossa casa era muito são e de muita solidariedade” Fim de citação.

Não admira pois, que o Dr. Mascarenhas Monteiro provenha de um ambiente familiar em que a boa educação, assim entendida na nossa cultura, como assumpção e interiorização de valores éticos cristãos que devem nortear a vida humana, marcaram presença e, inscreveram na pessoa do Dr. Mascarenhas Monteiro, uma cidadania pessoal e social sempre em crescendo.

Na Vila de Assomada, em Santa Catarina, Santiago, fez os estudos primários. Na cidade da Praia os estudos liceais de onde sairia para, na Europa, iniciar os estudos superiores em Direito. Primeiro em Portugal, e depois  na Bélgica, onde se licenciou.

Aí se manteve como Investigador no Centro Inter-Universitário de Direito da Universidade Católica de Lovaina e como Assistente da Faculdade de Direito da mesma Universidade.

De regresso ao país, desempenhou várias e altas funções, das quais destacaria, a de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, onde antes fora Juiz-conselheiro.

Recordando ainda os 25 anos do nosso Estado democrático, gostaria de nesta ocasião, relembrar às ilustres presenças de que o Dr. Mascarenhas Monteiro foi quem primeiro reclamou oficialmente a abertura democrática - no seu discurso, em nome dos Magistrados, no acto dos cumprimentos do Ano Novo ao então Presidente da República em Janeiro de 1990 - ao sugerir junto de instâncias superiores, o aparecimento de Listas Independentes, nas legislativas que se avizinhavam, a competir com o então Partido único, o PAICV, à semelhança do que havia sido legislado para as eleições autárquicas.

O Dr. Mascarenhas Monteiro é para os anais da história política  de Cabo Verde, o primeiro Presidente da República eleito por sufrágio directo e universal..

Com ele, marcou-se um “virar de página” em Cabo Verde, pela postura democrática do Chefe de Estado. O Presidente Mascarenhas Monteiro, pautou e pontuou a sua magistratura, entre outros parâmetros, por um correcto relacionamento inter-institucional, por um profundo respeito pela  separação  de poderes, e por uma rigorosa e escrupulosa observação da Constituição, sem esquecer a sua forma pessoal de estar na vida marcada por uma enorme simpatia e generosidade intrínsecas ao seu carácter, sem ser populista e sem ser maculada por qualquer demagogia, uma vez que são traços que todos nós lhe reconhecemos como inerentes ao seu saber estar e ao seu saber ser.

Estava assim iniciada em Cabo Verde uma nova e responsável forma de vivência democrática entre os órgãos do poder, entre si, e   estabelecida também nessa mesma coexistência democrática, a ligação entre estes e o cidadão.

Com a sua acção firme e determinada marcadamente apartidária e reconhecidamente isenta prestigiou e consolidou o emergente regime democrático.

Após os dois mandatos,  retirou-se o Presidente Mascarenhas Monteiro do activo político nacional, com muito prestígio angariado pelo seu notável desempenho, mas sem deixar de continuar a exercer  uma intensa e ao mesmo tempo muito discreta – como é  seu timbre – actividade cívica e humana em prol do país, e em prol da paz no mundo, como mediador internacional em zonas de conflitos, na qualidade de convidado de organizações e de organismos internacionais, de entre eles a Francofonia, a UA - Unidade Africana e a ONU - Organização das Nações Unidas; e também como conferencista convidado em vários fóruns no estrangeiro para debater, reflectir e discorrer sobre a democracia, os direitos humanos e os grandes problemas que continuam a assolar o Continente africano e o mundo.

No plano nacional, retomo, e após deixar a presidência da República, o Dr. Mascarenhas Monteiro cria com um grupo de curadores, a Fundação “Esperança” que se tem dedicado, fundamentalmente à causa da criança e do jovem em risco e de risco, crianças e jovens que sem o amparo familiar nuclear, escolar e social, resvalavam infelizmente para a delinquência, para a marginalidade ou para a precariedade.

Para além desse importante atendimento, ou melhor, complementando-o, a Fundação “Esperança” criada pelo Presidente Mascarenhas Monteiro, concede bolsas de estudo e de formação no país, para estes mesmos jovens algo desvalidos. Trata-se de uma instituição inteiramente ao serviço de causas, abrangente nos seus objectivos meramente sociais e afastando de todo, fins outros de individual respaldo e/ou de vã gloria pessoal. Daí que fiável e séria, porque tem como finalidade servir a quem realmente mais necessita e, no caso, a criança e o jovem em risco, sempre bem afastado das luzes da ribalta, em conformidade com a discrição que empresta a todos os seus actos públicos.

Da sua actividade de escrita e de reflexão sobre matérias que afinal lhe são caras, encontram-se expressas em alguns artigos e publicações, originariamente versadas em francês, dos quais, e entre outros, destaco: «Reflexões sobre a competência de um Governo demissionário», publicado em Bruxelas em 1977. «A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. A proteção dos Direitos Humanos nos níveis nacional e internacional» publicado em 1991.

Magnífico Reitor, Senhores e Senhoras, distintas presenças:

É  longa e ricamente repleta, na acepção mais real do que isso possa significar, o curriculum vitae, do Dr.  Mascarenhas Monteiro.

Mas nunca é de mais, reiterar de que há qualidades e traços humanos que todos os que com ele se privam de perto, lhe reconhecem unanimemente: Uma genuína generosidade que lhe vem do seu interior, uma simpatia cativante que lhe emerge com muita naturalidade, uma cultura e uma erudição que humildemente manifesta, uma seriedade e grande probidade de homem público, com espirito de missão e ao serviço de nobres causas. Assim é o Dr. Mascarenhas Monteiro.

Para terminar, tal como comecei, parafraseando as palavras sábias da grande escritora de língua portuguesa, Agustina Bessa-Luís, volto a retomar o sentido delas: há Homens, em quem o luxo, no sentido de riqueza espiritual, humana e anímica, é um atributo que brota do próprio ser, e acrescentarei, excelências, Magnífico Reitor, meus senhores e minhas senhoras, que estamos perante alguém a quem assenta perfeitamente a definição: Um cidadão exemplar, um estadista vertical e de peso, um homem público íntegro, uma personalidade de cultura e um grande homem de família. Com este perfil, estou absolutamente certa que qualquer organização ou comunidade se sentirá orgulhosa e honrada de o ter como um dos seus.

Muita obrigada, pela vossa atenção.

 

 

Armindo Ferreira lança romance sobre história recente da Guiné e Cabo Verde

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

·         Escrito por  Antonio Monteiro, Expresso das Ilhas 

Depois de “O passaporte”, publicado em 2002, Armindo Ferreira volta às lides literárias com “Mulheres de Pano Preto”, um romance histórico de grande fôlego em que pretende suscitar um debate desapaixonado sobre a história recente da Guiné e Cabo Verde. Para isso, sob pretexto de uma história de amor, o autor reanalisa de forma ficcional e documental os acontecimentos mais marcantes do período imediatamente antes e logo a seguir à independência dos dois povos.  Apesar de desmistificar muitos factos e acontecimentos ocorridos nos últimos 40 anos, o autor vê o seu livro apenas como um contributo para a pacificação com a nossa história.


Expresso das ilhas – O seu livro é publicado em edição do autor. Porquê?

Armindo Ferreira – Boa pergunta. É que é difícil obter patrocínios e conseguir uma editora para se publicar um livro. Depois levam muito tempo a decidir. E como não sou escritor, fiz um esforço para editar o meu próprio livro, sem ter que me sujeitar a determinadas burocracias e tempos de espera que não se coadunam com a minha maneira de ser. Também será porque há neste meio de patrocínios determinadas práticas com as quais não concordo, porque não há critérios. Os privados que dêem o seu dinheiro a quem quiserem. Agora as instituições públicas que fazem patrocínio, deviam ter regras fixas e públicas para que os patrocínios fossem apreciados porque o dinheiro é de todos nós.

A questão foi colocada mais no sentido de saber se duvidava da qualidade do livro que escreveu e por isso resolveu avançar com edição de autor.

Não duvido porque não tenho pretensão nenhuma. Pelo seu conteúdo, achei que era importante publicar o livro agora, no momento que estamos a atravessar. Se notou bem, o livro é um romance com laivos históricos para situar o leitor num determinado tempo. É um tempo que não vem sendo contado convenientemente. Nós estamos a apagar determinados traços de história para tentar reescrevê-la de outra forma. E foi justamente o que eu quis fazer: tentar repor esses traços para que os mais novos saibam o que na realidade se passou –  embora sob forma ficcionada, que leve o leitor a sentir aquilo que se vivia na altura…
 Então podia levar um pouco o véu sobre o enredo do romance?

De certa forma é uma história de amor passada numa época turbulenta: antes da independência, após e aquela fase que culmina com o rompimento do polémico processo da unidade Guiné-Cabo Verde. E como se poderá ler tem como protagonistas Alice, Tomás e outros antigos estudantes do Liceu Honório Barreto, em Bissau.

Li numa recensão ao seu livro que quis distinguir de forma clara a percepção mais inteligente, mais reflectida nas falas e nas análises das suas personagens femininas.

Não foi intencional. Foi uma leitura de quem fez a recensão. Talvez haja quem ache que os homens saíram beneficiados… Mas foi apenas uma leitura. Não tive essa intenção.

O título “Mulheres de Pano Preto” reforça essa leitura.

Não sei se se lembra de uma canção de José Carlos Schwarz  “Mindjeres di pano preto” que são aquelas mulheres que durante a luta perderam os filhos, os netos, os irmãos e os maridos e com a chegada do PAIGC pensaram que tudo ia mudar, continuaram a perder os seus entes queridos, porque o PAIGC trouxe a independência, mas não trouxe a liberdade. O regime autoritário que existiu antes, continuou e talvez um pouco mais autoritário ainda. Portanto, a independência não calou a dor dessas mulheres, elas continuaram a chorar.

O seu livro narra uma história de amor, mas tem um desfecho pouco romântico: Tomás é preso arbitrariamente e quando sai da prisão acusa a mulher de ter cometido adultério…

Bom, no livro há precedentes que o levaram a tomar essa atitude. Foi o reflexo da sociedade que se criou, uma sociedade cheia de desconfiança, de dúvidas, de incertezas e uma sociedade má em que tínhamos uma classe que dominava e outra que foi destruída. Essa destruição teve reflexos nas famílias. O facto de Alice e Tomás não se entenderem no fim era expectável: foi a esperança que nós tínhamos alimentado que acabou por se tornar num pesadelo. “Mulheres de Pano Preto” não é um romance cor-de-rosa. É um desfecho que está em sintonia com o tempo que então se vivia. Muitos casais se desfizeram com a chegada dos novos donos do poder.
 “Mulheres de Pano Preto” é um romance cabo-verdiano ou guineense?

Reflecte os dois países, Guiné e Cabo Verde em partes quase iguais, porque a acção do livro desenrola-se no tempo da unidade Guiné-Cabo Verde. Portanto, havia formalmente – porque os dois povos nunca aceitaram a unidade – uma unidade que era imposta pela força. Aliás, ao pequeno ai, como se viu, aquilo desfez-se com o gáudio das duas partes.

É um romance autobiográfico?

Nada que se pareça comigo. Senão seria uma multiplicidade de alter egos pelas personagens do livro. Tem uma ou outra memória pessoal, mas as afinidades terminam por aí. 

Mas como diz na abertura do romance, as suas personagens apoiam-se em referentes reais.

Sim, é natural que se respaldem em referentes reais: já não se inventa nada. Mas quando construí as minhas personagens não estava a pensar minimamente em ninguém em particular.
“Mulheres de Pano Preto” é um romance histórico com uma precisão de datas e acontecimentos pouco comuns em livros deste género. Como se documentou?

À medida que ia escrevendo, fui consultando os livros e sobretudo ouvi pessoas que presenciaram esses acontecimentos. Portanto, os actores directos nessas acções. Por exemplo, quando falo da morte de António Buscardini [Chefe dos Serviços de Segurança da Guiné-Bissau na altura do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980] foi gente que esteve envolvida nisso que me contou. Mesmo quando descrevo o 14 de Novembro, com Nino Vieira a ser interpelado pelo Buscardini, são histórias que eu recolhi de gente que esteve ligada ao assunto. Portanto, é uma obra de ficção mas baseada em factos reais.

O que o autor quis dizer com “Mulheres de Pano Preto”?

O leitor, melhor do que eu, tirará as suas conclusões do romance. O que quis dizer, escrevi-o no livro. O que as pessoas irão pensar do que eu disse, é uma outra história. Portanto, é preferível que as pessoas pensem naquilo que irão ler e que cheguem às suas próprias conclusões. Da minha parte, eu quis levar ao conhecimento das pessoas determinadas factos que marcaram uma época. A interpretação que poderão vir a fazer do livro ultrapassa-me, porque o livro já não é meu, já é do leitor. Fará as interpretações que bem entender, mas aí lavo as minhas mãos, se puder.
Diz que narra factos para levá-los ao conhecimento das pessoas, mas emite juízos de valor sobre estes factos. De propósito?

No livro há um narrador que não é o autor, mas pode ser que uma das personagens seja o autor. Em todo o caso, há uma distinção entre o narrador, de facto… Faço esta intromissão de propósito, achei que ficava bem. Só por isso.
Um exemplo. “A independência de Cabo Verde é fruto fundamentalmente do 25 de Abril”.

Não, isto é um diálogo. Note-se que em todo o livro há um pró e um contra. Portanto são argumentos. Há argumentos segundo os quais a independência de Cabo Verde é fruto apenas do 25 de Abril. Os combatentes que chegaram depois a Cabo Verde lutaram na Guiné para a independência da Guiné. Eles não foram mandatados pelo povo cabo-verdiano para combaterem por eles na Guiné. Portanto, é o povo da Guiné que deve estar agradecido dos combatentes cabo-verdianos na Guiné. Em Cabo Verde não combateram. Esta é uma lógica que pode até não ser a minha, eu posso ter outra. Mas é preciso pôr todos os argumentos em jogo para que o leitor tire depois as suas conclusões, porque é necessário hoje um debate sério sobre a nossa história recente, despido de qualquer preconceito. É que nós passamos por um período ditatorial duro em Cabo Verde: houve prisões arbitrárias, houve tortura e houve mortes. Hoje os agentes desse regime são tidos como democratas e a dar até lições de democracia. Todo o homem muda, mas o seu carácter é imutável depois de formado. O que proponho no livro é que façamos um debate sobre isso e não tomar como dado adquirido determinadas coisas, que por isso não se discutem.  

“Mulheres de Pano Preto” pode ser considerado um romance epocal, no sentido em que cobre um longo período, comum a muitos cabo-verdianos da sua geração, que começa no liceu e termina com o fim do efémero projecto de unidade Guiné-Cabo Verde.

Sim, apanha toda uma época que começa com o liceu, a entrada para a tropa colonial, depois a entrada para a clandestinidade, as guerrilhas, a vivência em Lisboa, o regresso à Guiné, o regresso outra vez a Lisboa, porque o ambiente de guerra não é muito favorável e, com a independência, o regresso utópico porque quase todos nós tínhamos a ideia de que independência iria resolver todos os problemas. Hoje sabemos que só a juventude pode pensar assim. A independência foi apenas um passo para a resolução dos problemas. Mas mesmo assim, as pessoas que protagonizaram a independência não estavam preparadas para essa fase. E se notarmos bem até Amílcar Cabral chamou atenção a isso. Ele disse que quando formos independentes iremos encontrar outras pessoas que saberão levar avante essa fase. Claro que os tipos que fizeram a guerra não pensaram assim, porque acharam que eram capazes. E o resultado é que a Guiné-Bissau, 42 anos depois da independência, não sabe ainda o que é o desenvolvimento e não tem paz. Porque eles formaram militares, eram bravos combatentes, mas não estavam preparados para governar um país.

Não é muito pretensioso querer lançar com o seu romance um debate sobre toda uma época vivenciada na Guiné e Cabo Verde?

Não é lançar, mas suscitar. Pode parecer pretensioso, mas não sou o primeiro a fazer isso. Há outros que já escreveram sobre isso. É mais uma achega para o debate. Quando escrevo no livro que pretendo fazer um debate, quero dizer que pretendo juntar-me àqueles que querem fazer o debate da nossa história recente, dos últimos 40 anos, porque de outra forma vamos ter uma história que não é a nossa história real. A história baseia-se em factos reais e depois há as interpretações. Por exemplo, os festejos do quadragésimo aniversário foi a glorificação do Partido Único. E em boa verdade, ninguém defende o Partido Único, ninguém defende o totalitarismo, nem o autoritarismo. E o Partido Único foi isso.
O seu livro traz à luz factos relevantes e desmistifica outros como a suposta recepção do Papa Paulo VI aos líderes Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos. Porque não decidiu escrever um tratado histórico?

É que um ensaio histórico carece de maior investigação e ela tem que ser profunda. Os dados têm que ser contraditados, porque há sempre uma fonte contrária. Eu não tenho formação nem capacidade para fazer isso. Todavia eu gostava que alguns pontos desse percurso de mais de 40 anos fossem conhecidos. Foi essa a minha motivação.
Qual a sua expectativa quanto à recepção do seu livro?

Fiz uma edição muito reduzida. Gostaria que o livro fosse lido e vou deixar aqui o meu email para que as pessoas que o lerem me coloquem directamente, se assim o entenderem, as suas questões: agregofer.jr@gmail.com. Tenho também já aberto um endereço só para acolher essas questões que é agregofer.jr@outlook.com. As pessoas podem não estar de acordo com os dois pontos de vista que normalmente tenho. É que pode muito bem existir uma terceira via. Podem dizer ‘aqui falhaste, etc’. Por exemplo, quando dizem que as Forças Armadas têm 50 ou 40 e tal anos tenho que dizer que é uma aberração histórica. Os Estados é que têm exércitos, ou seja o exército não precede o Estado. Temos também, como escrevo no livro, a independência da Guiné-Bissau proclamada, segundo o PAICG, em Madina do Boé, a 24 de Setembro de 1973 Só vou avançar um pormenor. A Guiné dita Portuguesa tinha cerca de 50 mil homens armados e tinha aviação. Seria extremamente temerário fazer as eleições com data, hora e local marcados nesta zona. Isso já diz tudo. Depois há as declarações do então governador e chefe das forças armas da Guiné-Portuguesa, Bettencourt Rodrigues, que disse que durante todo esse dia aviões e helicópteros percorreram toda a zona de Madina do Boé. Acredite se quiser, mas é logico que sabendo de antemão da hora e local da proclamação, que os portugueses fizessem isso. Não digo mais nada. Cada um que tire as suas conclusões. Pronto, ficou para a história Madina do Boé, mas é um mito. Mário de Andrade explica isso muito bem. Como se diz, uma mentira contada mil vezes passa a ser verdade.  

Os factos que traz no livro podem estragar a festa da celebração dos 40 anos de independência?
Acho que não, pode ser tomado com um presente na decorrência dos 40 anos da independência nacional. Podia ser pretensão a mais minha, mas se alguém achar que o livro pode ser considerado dentro desse âmbito que o faça, mas considero pouco provável. Em todo o caso a ideia não é estragar a festa, mas se calhar fazer a festa com verdade. Não sou detentor de verdades absolutas, por isso trago sempre no livro o ponto e o contraponto. Poderá haver mais, mas é preciso fazer este exercício para que se chegue a uma plataforma de entendimento. Além disso, é preciso pacificarmos com a nossa história