Estamos
no ano da comemoração do centenário do nascimento do médico, escritor e ensaísta
Teixeira de Sousa (1919-2019).
Abro
aqui um parêntese para uma nota pessoal e dizer que Teixeira de Sousa é um dos
meus escritores de eleição, no que toca à escrita literária cabo-verdiana. Volta
e meia, apanho-me a revisitar alguns dos seus ensaios, romances e contos. Creio
ter lido a quase totalidade dos seus escritos
ficcionistas e os seus artigos, publicados em jornais e revistas. Isto apenas
para dizer que sou leitora aficionada da obra de Teixeira de Sousa. Fecho o
parêntesis.
Nesta
linha de interesse, igualmente tenho-me debruçado em análises, sobre alguns romances e contos de
T. de Sousa, em textos dispersos, não só
neste «Blog», mas também em outras
publicações e em intervenções públicas.
E já
agora uma pequena nota/aviso: o leitor interessado encontrará no Boletim Cabo
Verde (1949-1964) e no Jornal Terra-Nova, um acervo significativo de textos
ensaísticos de Teixeira de Sousa.
Portanto,
é bem provável que me repita nesta evocação em termos de apreciação deste
grande escritor de formação ainda Claridoso (1936) e em transição para a
geração da «Certeza» (1941).
Sobre
o modelo de escrita literária de Teixeira de Sousa, torna-se importante sublinhar
também, a influência do movimento
literário português denominado neo-realismo que estava no auge,
precisamente, aquando da estada - estudos universitários de medicina 1938-1945 de
Henrique Teixeira de Sousa em Lisboa - e
que são de recorte muito acentuado na sua obra, com especial destaque para os
Contos (leia-se a colectânea: «Contra Mar e Vento»).
É
que concomitantemente à sua vida de bom estudante universitário, Teixeira de
Sousa participou também - durante a permanência em Lisboa - em tertúlias
literárias, em que pontuavam nomes grandes do movimento, tais como Fernando Namora, Cardoso Pires, João Cochofel,
Mário Dionísio, entre outros famosos escritores da altura.
Convém
dizer que muito do que aqui vai registado foi antes confirmado pelo
próprio escritor que ao ensaísta francês Michel Laban, o autor concedeu uma grande entrevista, inserta no volume I de
«Encontro com Escritores» editado pela Fundação Eng. António de Almeida,
Porto,1992.
Médico
de profissão, o Dr. Henrique Teixeira de Sousa viu a luz do mundo, a 6 de
Setembro de 1919, no pequeno povoado de São Domingos, na Freguesia de São
Lourenço na ilha do Fogo.
Os
progenitores do nosso escritor para que os filhos fizessem a Instrução
Primária, a família transpôs-se para a
cidade de São Filipe, sede de Concelho e da ilha e onde se sediava a Escola.
A
propósito da sua fase de aluno do ensino primário, na cidade de São Filipe, Teixeira de Sousa
relembra com carinho a figura da sua professora, a foguense Irene Vasconcelos
Barbosa, num dos muitos artigos escritos para o Jornal «Terra Nova».
Igualmente
a figura de professora é evocada e transfigurada em personagem de alguns Contos
do autor, com destaque para o Conto «Dragão e Eu» quando, e já com saudades, o
protagonista termina o 2º Grau da Instrução Primária:
“ A escola! Não me queria convencer de
que tudo tinha acabado. Não mais as lições em classe e as brincadeiras de roda
da palmeira. Não mais os livros de leitura com trechos bonitos que eu lia em
voz alta. «Marília e Gonçalves passeavam numa tarde, à beira do rio, quando
Marília se descuidou e caiu à água. Gonçalves atirou-se ao rio, salvando Marília
de correr afogada.»
Era um mundo de coisas belas (...) A
professora falava com brandura e ensinava sem bater.” (In: Contra Mar e Vento, pág. 46 da 3ª edição
– Europa-América, 1998).
Para
este texto homenagem do centenário do nascimento de Henrique Teixeira de Sousa,
escolhi os sub-temas elencados no título.
Afinal,
o escritor foguense nunca escondeu a admiração que tinha
por tudo que se relacionasse com a vida a bordo de navios. Pelo contrário, sempre a enunciou e afirmou-a de várias
maneiras, nas muitas entrevistas que deu e mesmo em alguns dos seus textos a
propósito. Finalmente, retratou-a e recriou-a com enorme projecção na ficção
que ele gerou.
Com
efeito, ele habituara-se desde tenra idade
a escutar o assunto em casa. O pai do escritor,
João Sousa, natural da ilha Brava, era capitão de longo curso e mais tarde,
dono de alguns barcos que fizeram também a aventurosa ligação marítima - Fogo/Brava/ Estado Unidos da América.
Ora
bem, a profissão paterna, impregnou no autor um entranhado amor às coisas marítimas - a vida a bordo, a terminologia
náutica, as viagens sobre as quais o escritor frequentemente referia.
Aliás, segundo ele, crescera a ouvir histórias de
embarcadiços, de baleias, (nestas
últimas, incluídas as histórias que lhe foram contadas sobre o trisavô,
trancador de baleias de apelido Sousa, oriundo da ilha da Madeira e que casou e se fixou na Brava); de “americanos”
torna-viagem; de mar bravio; de longas calmarias; de naufrágios; de movimento
de passageiros e de carga; de contrabandos; de veleiros e de escunas.
De
tal forma interiorizou estas vivências que a sua primeira obra publicada – uma colectânea de Contos – intitulou-a: «Contra Mar e Vento» e dedicou-a ao pai: À memória do Capitão John, meu Pai – capitão que foi de veleiro e sabia
protestar contra mar e vento, e contra quem de direito for e pertencer possa.” As últimas palavras usadas nesta dedicatória foram parafraseadas
propositadamente da linguagem que então se usava nos requerimentos relativos a
despachos aduaneiros de barcos e a assuntos marítimos. (Veja-se a propósito, a
entrevista de T. de Sousa a Michel Laban – Encontros com Escritores – já aqui
referida).
É
nesta mesma colectânea de contos que nos é dado conhecer, através do Conto
homónimo do título, «Contra Mar e Vento», as peripécias, as vicissitudes de uma
viagem nos anos 30, 40 do século passado, que teve como ponto de partida New
Bedford nos Estados Unidos da América e como destino, as ilhas do
Fogo e da Brava. O fulcro da narrativa centra-se nessa viagem
que não chegou “a bom porto” antes pelo contrário, um pavoroso incêndio
deflagrado na casa das máquinas e o consequente naufrágio do navio, impediram
os seus passageiros e respectivas cargas de aportarem em São Filipe na véspera
do Natal como previsto.
“Ema Helena” o
palhabote “com praça na ilha do Fogo”
fez uma tormentosa viagem de Providence para a ilha do Fogo. O seu capitão “Fortunato” autêntico lobo do mar, conhecia bem os caprichos do “Gulf-Stream(...) O mar do Golfo não devia
estar para brincadeiras. Já se sentia a sua má-criação. Os vagalhões cresciam e
o vento uivava nas enxárcias como cães em noites. Ema Helena corria a quinze
milhas à hora. A barquinha assim marcava. Se o tempo se mantivesse igual até às
ilhas, daí a vinte e três dias largariam o ferro em S. Filipe. Noite de natal.
Príncipe de Ximento mais os homens da Companhia Braçal cantando bêbados pelas
ruas da vila. Missa do Galo na igreja matriz e a canja de galinha quentinha em
casa. Eugénia bem vestida e perfumada. Arturinho falando bom português
aprendido no liceu. «Esta bicicleta é minha. Foi meu pai que ma trouxe da
América.»” Assim sonhava acordado o
“Capitão Fortunato” Mas os azares durante a viagem, devido aos ventos contrários, às ondas medonhas do mar, não permitiram a almejada chegada ao destino.
Não foi por acaso que Teixeira de Sousa fazia
apelo com alguma insistência para que historiadores, investigadores e até mesmo
curiosos da matéria, se debruçassem e escrevessem sobre a história
trágico-marítima cabo-verdiana, que está por contar. Principalmente aquela que foi a
aventura de veleiros e de escunas de Cabo Verde, em demanda dos
portos da costa leste, a atlântica, dos Estados Unidos.
E
mais, não incorrerei em erro ao dizer que quase toda a ficção de T. de Sousa
está entranhada de mar, de barcos e de viagens, enquanto portas de saída e de
entrada das ilhas.
E já
agora, ainda sobre o mesmo assunto, convido o leitor a acompanhar-me nesta breve incursão
nos romances de Teixeira de Sousa.
Vamos, em curto itinerário, percorrer alguns romances deste autor em que os temas
acabados de referir emergem de forma muito evidente. Entremos em «Ilhéu de
Contenda». A figura de mulher/fundadora
de família e que veio do mar ou, através
do mar, tão bem simbolizada na figura de “Nha
Mariquinha” ela que olhava para
uma pintura figurativa de um navio, e que volta e meia exclamava: “La barca! Es la barca de mi destino!” numa ambiguidade de mente envelhecida pelo tempo que tanto podia significar o
barco que a trouxera de longe, dos confins do Chile e a impediu de voltar à
terra natal; como o barco que lhe levou o marido que nunca mais tornou à casa,
à ilha. Mais tarde, e já à beira da morte, “Nha
Mariquinha” exclamou: “..Fué la barca... fué la barca... Fué la
barca de mi destino!” Afinal, lançando as culpas à causadora principal da
sorte e das desditas que ela havia sofrido.
Esta
personagem – Nha Mariquinha – oriunda
de um país da América do Sul, viera para a ilha do Fogo trazida pelo marido, também ele, “ capitão de baleia, o célebre
José Cláudio”, no dizer do narrador.
Interessante
é que é neste romance que o autor também
nos conta da tragédia do mar na vida dos ilhéus.
A
dada altura na narrativa, há o diálogo entre o protagonista Eusébio da Veiga e o clínico da ilha, Dr. Vicente em que aquele explica ao médico: “...contava a minha mãe que Nha Mariquinha era uma linda mulher quando
nova. Alta, elegante, muito trigueira, de olhos negros, cabeleira farta, também
negra como azeviche. Ela enviuvou pouco depois de cá chegar. O marido
desapareceu no mar. E tem graça, aliás, não tem graça nenhuma, aconteceu a
mesma coisa à Soila, a rapariga que a velha criou. O marido também desapareceu
numa viagem para a América. Respondeu o Dr.
Vicente: “– Senhor Eusébio, há muita tragédia oculta nesta nossas ilhas. Muita
tragédia que o mundo ignora. E o pior é que aceitamos tudo. (...) ..o mar que
nos cerca e por vezes nos engole, o isolamento (...)”.
Neste trecho do romance, o autor já aprofunda um pouco, a épica marítima,
cabo-verdiana que mais não é do que as vicissitudes marítimas na vida dos marinheiros
e dos emigrantes ilhéus de outrora.
Continuando
o itinerário pelos romances, atemo-nos um pouco no romance de sugestivo título:
«Capitão de Mar e Terra». Este é talvez, do conjunto dos romances, aquele que
mais explicitamente e pormenorizadamente enfatizou a vida do mar, as viagens,
com destaque na figura do protagonista Alfredo
Araújo, capitão de mar e terra. Portador de um autêntico sociolecto náutico,
uma linguagem específica e sócio-profissional, vai percorrendo a narrativa em contacto com os diversos grupos de
personagens que constituíam a sociedade e as forças vivas de Mindelo de então.
Como já mencionei, o título do livro é significativo, pois que nos remete ao seu enredo, em que as
referências aos capitães, às marés, às máquinas dos navios, aos cordames e
velames, são uma constante ao longo dos seus capítulos. Eis, a seguir, um curto
trecho:
[Comandava,
Alfredo Araújo em plena viagem] “(...) atenção à proa, atenção à popa, atenção
a bombordo, atenção a estibordo – respondeu cada um dos vigilantes
separadamente. (...)Atenção ao farol. Atenção ao farol. (...) – a advertência foi ecoando até à vigia da
proa. (...) O mar é assim mesmo, tem
situações difíceis que ocorrem até na pequena cabotagem. Só está preparado para
todas as eventualidades, quem aprendeu, praticou e criou calos de riba de água.
E a isso tudo, infelizmente se dá pouco valor. (...) – Mantém o rumo. – Mantém o rumo.”
Disputando
com «Capitão de Mar e Terra» em referências aos capitães, às marés, às
máquinas dos barcos, às travessias do Atlântico, aos temporais marítimos, temos
em quase igual textura, o romance: «Oh! Mar de túrbidas vagas» em que quase
toda a história se passa a bordo do lugre Santa
Luzia em viagem de Providence, EUA, para Cabo Verde. Mas também a narrativa
traz a vida familiar e as curtas estadas do Capitão
Hilário, em terra, junto da família.
É
curioso verificar que Teixeira de Sousa dedica o livro ao irmão, Orlando
Teixeira de Sousa, evocando possivelmente a cumplicidade fraterna, não só nas
viagens que fizeram ainda crianças, com pai capitão João Sousa, mas também, das muitas conversas havidas a esse propósito, em ambiente doméstico.
Ora
bem, ficámos também a saber que o autor
“bebeu” na figura do pai, a criação do
protagonista deste último romance,
publicado em vida, (2005) – «Òh Mar de túrbidas vagas» – embora transfigurada
em personagem. Era o “Capitão Hilário”
um homem tranquilo, experiente e
conhecedor das “manhas” dos ventos e das marés da travessia. Dito deste modo,
pode parecer demasiado linear, por se tratar de escrita literária, mas
socorro-me das palavras de Teixeira de Sousa sobre esta matéria que lhe serviu
de inspiração romanesca. Palavras por ele proferidas na grande entrevista já
aqui aludida.
Com
efeito, o escritor Teixeira de Sousa terá contado nos seus livros, à maneira de
bom romancista, uma parte significativa da história trágico-marítima dos nossos homens do mar e dos putativos
emigrantes à procura do “eldorado”.
Bem
gostaria de mais acrescentar, pois que o historial ficcionista muito rico de
Teixeira de Sousa, assim o exigia mas o texto já vai longo.
Para
terminar, dizer que Henrique Teixeira de Sousa faleceu em Oeiras, Portugal a 3 de Março de 2006, aos 86 anos de idade,
vítima de atropelamento.
Com
ele, simbolicamente, foi sepultado o último Claridoso.