O Amor nas Parábolas de Cristo

terça-feira, 29 de maio de 2012
Sempre que releio a parte do evangelho bíblico que exorta o amor ao próximo sensibilizo-me fortemente e mais me convenço de que os fundamentos do cristianismo que Jesus pregou nas suas parábolas, ao tempo predicantes – porque inseridas em ambiência historicamente de muita injustiça e de violência – assentam pilares exactamente nisso: no amor, através de dois dos seus maiores mandamentos.
É sabido e pacífico de que os dez mandamentos são preceitos que vinham já da célebre e antiga Tábua de Moisés e que eram a Lei para os judeus. No entanto, os dois mandamentos sobre o amor e a aceitação do próximo ganharam (na boca do Nazareno) nova interpretação, uma releitura mais enfatizada. Para além de renovada persuasão e reiteração à sua prática interiorizada, fez também depender deles, subordinando, os restantes preceitos inseridos na mesma tábua.
Daí que, ao comparar o que sobre isso nos informaram e foram transcritas para o documento magno, a Bíblia, os quatro evangelistas maiores: João, Lucas, Marcos e Mateus, impulsionaram a escrita deste pequeno texto.
Como transmissores que foram da doutrina e do legado deixado por Cristo, assemelham-se naturalmente no conteúdo, diferindo embora, na forma e no estilo de os recontar. Observemos pois os diversos matizes, da mesma realidade:
 Em S. Mateus:(Mt 23, 34-40) «O mandamento do Amor Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo. E um deles, que era legista, perguntou-lhe: Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? Jesus disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas».
Na mesma linha, o evangelista S. Marcos (Mc 12, 28-34) reconta este trecho da vida de Jesus: « Aproximou-se dele um escriba que os tinha ouvido discutir e, vendo que Jesus lhes havia respondido bem, perguntou-lhe: «qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu: (…) amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.» (…)
São Lucas, que segundo os biógrafos, fora “médico e seguidor de Paulo, teria um evangelho mais próximo da mentalidade do homem moderno” pontua neste capítulo através da seguinte versão (Lc 10, 25-28):
. «Levantou-se então, um doutor da Lei e perguntou-lhe para o experimentar: – Mestre, que hei-de de fazer para possuir a vida eterna? – Disse-lhe Jesus: – Que está escrito na Lei, Como lês?
O outro respondeu: – Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe Jesus: - Respondeste bem; faz isso e viverás.»
 São João remata com “chave de ouro” a sua versão, pois que acaba por fazer uma simbiose, uma fusão dos dois mandamentos sobre o amor, num único.
Eis o que nos diz (Jo 14, 34-36): «Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto, é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros».
A juntar tudo isto, ouso interrogar se não foi também a influência da prática e da sensibilidade afectiva mais perceptível na mulher, e sabemos historicamente, que os ouvintes, os seguidores, mais constantes, mais atentos e que mais rodearam JC foram exactamente mulheres e que Ele as ouviu também. Se isso não terá acrescentado à sua formação espiritual, maior consistência para destacar e considerar de entre os preceitos em vigor, o Amor partilhado entre os Homens, como pilar da religião que deixou.
Não haverá muito mais a acrescentar, na pretensão deste escrito. As interpretações são e serão sempre leituras diferentes de sujeitos diferentes e até, leituras outras do mesmo sujeito, em períodos diversos da sua formação e da sua vida.
Daí que, para concluir, diria que da minha leitura, sobre o amor nas parábolas bíblicas em termos de conceito e de prática requeridos e acentuados por Jesus é que fizeram e continuam a fazer a grande diferença. Não apenas a cronológica – entre o AC (Antes de Cristo) e o DC (Depois de Cristo) – mas também do reforço de um entendimento mais ontológico do ser-se cristão.

Nos 101 anos do nascimento de Maria Helena Spencer

quarta-feira, 16 de maio de 2012



Nunca me canso de voltar à escrita de Maria Helena Spencer. Ela é na minha opinião, uma das mais profundas e completas autoras das Letras cabo-verdianas. Aliás, tudo ou quase tudo, o que esta excelente cronista e ficcionista escreveu é de boa e de agradável leitura. Senhora de uma prosa deliciosa, foi colaboradora por uma boa dezena de anos no único periódico regular e mensal então existente e publicado na Imprensa da Praia, o Boletim «Cabo Verde» (1949-1964).

Pois bem, falar hoje de Maria Helena Spencer é já falar do seu rico e muito prestigiado legado escrito, daquilo que ela nos deixou, não só enquanto contista, como também enquanto jornalista.

Da sua obra, parte dela, até poderia acrescentar, parte significativa dos seus escritos encontra-se compilada, desde 2005. Mas manda a verdade que seja dita que faltam ainda por compilar outras peças escritas desta excelente autora, dispersas e insertas no antigo Boletim «Cabo Verde». Digo isto, porque a colectânea «Contos Crónicas e Reportagens» pretendeu ser tão-somente, uma amostragem qualitativa da escrita vária de Maria Helena Spencer e os textos seleccionados – com um timbre subjectivo, vale sempre dizê-lo – foram considerados os mais ilustrativos da tipologia da escrita diversificada desta Contista, Jornalista, que abrange a Entrevista, a Reportagem, a Crónica e ao Conto. Estou convicta de que a escrita desta autora pede outras abordagens, ou melhor, outras análises que destacassem com critérios, a diversificação dos seus escritos.

Apenas uma rápida informação biográfica de Maria Helena Spencer Santos, que assinava muitos dos textos publicados no «Cabo Verde» apenas com a as iniciais MHS. Nasceu na cidade da Praia, em 1911 e faleceu na cidade de Faro em 2006, aos 95 anos de idade. Fez os estudos primários na Praia, parte do Secundário no Colégio das Doroteias em Sintra e findou o Curso Complementar dos Liceus no antigo Liceu Infante D. Henrique em Mindelo, S. Vicente. Foi Professora primária na ilha da Brava, funcionária dos CTT na Praia aí viveu até meados dos anos 60 do século XX. Colaboradora permanente do Boletim «Cabo Verde» e, curiosamente ganhava o seu sustento também como modista – segundo me contaram alguns familiares e amigas dela – fazia belos e artísticos vestidos de noiva.

Dos meus registos, Maria Helena Spencer deve ter sido, creio eu, a primeira Jornalista em Cabo Verde, encartada, isto é, com licença para exercer a profissão. Posto assim de forma abreviada e informal, eis a biografia de Maria Helena Spencer, passo agora à sua faceta de Contista.

A estrutura das narrativas de MHS, tende para a do conto clássico, se assim me é permitido expressar, isto é, vamos encontrar em muitas delas, enformando o conteúdo: o jogo do bem e do mal, as indagações e as angústias existenciais do homem e da mulher, no caso, cabo-verdianos, as interacções respectivas com o seu meio, a sua sociedade. Vamos também encontrar nos contos desta autora, sugeridas ou explicitadas, as contradições da natureza humana, a espiritualidade cristã da autora aparece bem vincada, bem acentuada em muitos textos ficcionistas e ensaísticos desta escritora. Outra marca da autora é a intertextualidade entre a sua escrita jornalística e a sua escrita literária. Os termos, quando necessários, são pesquisados na sua semântica e contextualizados na história a narrar. O leitor apercebe-se desta contaminação, em alguns contos.

Seria igualmente bom realçar, que um dos temas bem caros à prosa ficcional da MHS é a emigração. Embora fosse um tema já consagrado na então pujante literatura do Arquipélago. Para esta autora, o fenómeno da emigração é, regra geral, problemático porque quase sempre desestruturador de laços familiares. As mais das vezes, mal sucedida e não revelada aos que ficaram nas ilhas. São os casos, para exemplificar, narrados nos contos: «O Regresso», «O Meu Irmão Branco» «O Homem do Leme», cujos enredos dão conta ao leitor, da forma como autora aborda esta temática fulcral que vem da considerada antiga literatura cabo-verdiana.

A escrita de MHS, sobretudo as suas crónicas revelam-na como alguém - embora preocupada com os problemas sociais - possivelmente optimista, crente na vida, alegre. Aliás, ela expressa isso de forma clara, quando, por exemplo, evoca elogiando num texto, a poesia e as cantigas alegres e satíricas de Jorge Pedro Barbosa, poeta e filho do grande poeta Jorge Barbosa, para as contrastar com algum melancólico pessimismo inscrito na literatura da época.

Daí que, julgo eu, que ela tivesse resistido muito tempo para escrever sobre um tema então recorrente, porque muito real e presente para os nossos escritores e poetas das ilhas desse tempo e que teve uma incontornável dimensão na produção literária de quase todos eles. Refiro-me à fome e à seca. Eis que nos anos sessenta do século passado, MHS, abalança-se e escreve sobre isso um Conto simplesmente genial: «Uma História Entre Muitas» Trata-se efectivamente duma saga densamente dramática e extraordinariamente envolvente, que não deixa ninguém que o leia indiferente. De facto, este Conto é no meu ponto de vista de leitora, um dos melhores trechos descritivos e narrativos da grande tragédia que amiúde visitava as ilhas. A narradora é uma mulher, Marina, oriunda do interior da ilha de Santiago, quem, no crescendo dramático e comovente, narra na primeira pessoa a sua história, dando realismo e verosimilhança à história da família que de bons anos de colheitas, de festas fartas e típicas do interior da ilha, passa à penúria, à miséria mais abjecta em que a morte é parte grotesca desta imensa tragédia.

É de leitura obrigatória, recomendo-vos. Quem queira conhecer a capacidade narrativa desta escritora, deve ler «Uma História Entre Muitas».

Volto a repetir, a narrativa é simplesmente genial!

Para terminar, gostaria de reafirmar que a escrita de Maria Helena Spencer não se confina à ficcional. Ela foi com igual mérito Jornalista, autora de excelentes textos ensaísticos e de opinião sobre temas sociais, históricos variados que preocupavam Cabo Verde da época.



As Crises Político-Militares na Guiné-Bissau: Causas, problemas e Soluções [i]

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O golpe de estado na Guiné-Bissau do passado dia 12 de Abril (mais um), não surpreendeu verdadeiramente ninguém minimamente avisado porque fora anunciado (insinuado) na véspera, por Kumba Yalá à cabeça dos Cinco – os que contestaram os resultados das eleições presidenciais – na sua conferência de imprensa então realizada.
Ao reiterar o que antes afirmara da sua não participação na 2ª volta (eleições presidenciais) Kumba Yalá disse expressamente que não haveria a 2ª volta, deixando entender que o processo eleitoral seria interrompido.

Na sequência desse golpe, as reacções não se fizeram esperar. Registe-se o forte e contundente comunicado da CPLP que deu o mote às demais organizações internacionais, para a condenação inequívoca do golpe ao mesmo tempo que exigiam todas – organizações internacionais – o regresso imediato à ordem constitucional. No mesmo sentido, e com a mesma veemência, antecipando as próprias resoluções do Conselho de Segurança, foi a voz do Secretário-Geral das Nações Unidas Ban-Ki Moon. A CEDEAO, com a ambiguidade e a inconsequência que se lhe conhecem, “condena” o golpe mas presta-se de seguida a legitimá-la através de negociações generosas sempre em benefício e impunidade dos golpistas sustentadas com o argumento de que é preciso evitar “banhos de sangue”. No fundo a CEDEAO não tem moral para condenar quaisquer golpes porque com mais ou menos “nuances” ela se edifica sob fundações golpistas.

De entre as inúmeras reacções populares e dispersas por todos os cantos em que exista um guineense, e não só, pois até a longínqua e poderosa China se manifestou por mais de uma vez, destaco uma que se realizou no Centro de Estudos e Estratégia do Ministério dos Negócios Estrangeiros sob a forma de um debate subordinado ao tema “AS CRISES POLÍTICO-MILITARES NA GUINÉ-BISSAU: CAUSAS, PROBLEMAS E SOLUÇÕES” para o qual fui convidado como “Animador do Debate”. Levei à letra o meu papel e propus-me apresentar à audiência o quadro em que se desenrolava toda a espiral de violência que grassa a Guiné-Bissau desde os primórdios da ocupação do seu território, até os nossos dias, com especial ênfase para estes últimos anos, pretendendo desta forma descrever o cenário em que se deveria processar o debate.

Da cronologia dos acontecimentos que tem inicio com a chegada dos portugueses – meados do século XV - salientei os marcos mais relevantes da História recente da Guiné-Bissau no quadro da violência, detendo-me para uma análise mais cuidada naqueles que, em meu entender, são mais representativos para a compreensão do fenómeno.

Da resistência “armada” à ocupação colonial, de carácter étnico (papeis, balantas, beafadas, felupes e outras) e circunscrito ao chão de cada etnia que termina nos finas dos anos 30 do século passado (vide quadros)


     passando pela resistência política em que foram precursores a Liga Guineense (1910 – 1915), o Partido Socialista (1948) e o MING (1955) mas também protagonizada por um enxame de partidos políticos nacionais:

 (FLING (Frente de Libertação para a Independência Nacional da Guiné Portuguesa)

 FNLG (Frente de Libertação da Guiné)

 MLG (Movimento de Libertação da Guiné)

 PDG (Partido Democrático da Guiné-Bissau)

 PELUNDENSE (formado apenas por manjacos de Pelundo)

 PLG (Partido de Libertação da Guiné)

 UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa)

 UPG (União Popular da Guiné)

 UPLG (União Popular de Libertação da Guiné Portuguesa)

e supranacionais:

 FGICV (Federação da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde)

 FLGC (Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde)

 FUL (Frente Unida de Libertação da Guiné e Cabo Verde)

 MLGC (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde)

 MLGCV (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde)

 PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde)

a maior parte de vida muito efémera, mas todos afastados da luta para a independência pelo génio diplomático de Amílcar de Cabral que acaba por fazer reconhecer pela comunidade internacional o PAIGC como o único e legítimo representante dos povos da Guiné e Cabo Verde. O PAIGC torna-se deste modo no alfa e no ómega da questão. É no PAIGC que nascem as causas e estou convencido que é com o PAIGC que se encontrará a solução. Se não, vejamos:

1. Em 1963, o PAIGC dá início à luta armada. E pela primeira vez na história da Guiné, um balanta, um papel, um mandinga, um fula, um felupe ou um anónimo qualquer de qualquer outra etnia está disposto a lutar e a morrer não especificamente pelo seu “chão” mas por toda a Guiné, pelo “chão” do outro, pelo chão comum.

2. A luta armada conduzida pelo PAIGC ao pôr em mãos impreparadas e mentes pouco esclarecidas um instrumento de matar permitiu que o terror, o abuso de autoridade, o desrespeito e mesmo o barbarismo se espalhassem de forma tão epidémica que Amílcar Cabral teve necessidade urgente de convocar uma reunião de quadros conhecida por “Congresso de Cassacá”, para pôr cobro aos desmandos dos então senhores da guerra que se apresentaram nessa reunião fortemente armados e escoltados. Teve AC de fazer apelo à toda a sua diplomacia para evitar que ali mesmo se operasse um banho de sangue. Dessa reunião, para além da criação das FARP, uma forma de controlar, disciplinar e balizar a violência, saíram importantes orientações que determinaram o rumo do PAIGC. O pós-congresso gerou ajustes de contas e um banho de sangue, até então sem precedentes.

3. A violência não terminou porque a luta armada é, de per se, uma violência. Processos sumários continuaram e condenações à morte por fuzilamento não eram raras.

4. O PAIGC era minado por intrigas e conspiraçõezitas internas, é bom reafirmá-lo, que culminaram com o assassínio de Amílcar Cabral em 1973.

5. O assassínio de Amílcar Cabral espoletou uma vaga de execuções sumárias de carácter sangrento e generalizado com denúncias seguidas logo de execuções, sem julgamentos, para evitar, ao que se diz, o seu (das denúncias) efeito boomerang. O envolvimento de dirigentes de topo, da Guiné, era de tal forma abrangente que, falam rumores sustentados, que foi preciso a intervenção do arguto e atento Presidente Samora Machel que tinha na comissão de inquérito, o seu braço direito Aquino Bragança, a alertar que se se continuasse com as execuções ficar-se-ia sem gente para continuar a luta tal era a abrangência dos implicados. Isto fez com que muitos dos eventuais “implicados” fossem ignorados para não decepar a estrutura da luta armada.

6. Ainda no ano de 1973, mais propriamente a 24 de Setembro, a Guiné-Bissau declara a sua independência que será reconhecida de jure pela potência colonizadora em Setembro de 1974 depois de dezenas de outros países já o terem o feito. Foi a 1ª vez em África, pelo menos na ao Sul de Sahara, que uma independência não é “concedida” mas sim reconhecida pela potência colonizadora.

7. Em 25 de Abril de 1974 acontece o Golpe de Estado em Portugal que ficou conhecido pela Revolução dos Cravos pondo fim a uma ditadura que durava quase 50 anos.

8. Pouco tempo depois do Golpe de 25 de Abril, o PAIGC instala-se oficiosamente em Bissau, e assiste-se a uma onda de “raptos” seguidos de fuzilamentos no mato de indivíduos que haviam abandonado o PAIGC, e se encontravam em Bissau, e de outros que eram acusados de colaborar com o “colon”. Nem sequer havia julgamentos. Uma “brigada” composta por uma suposta gente na clandestinidade ávida de mostrar serviço apontava-os e localizava-os não se sabe com que critério. Eram levados e fuzilados. Quando se perguntava por um fulano, que se supunha nessa situação, a resposta era: Partido lêba’l! (O Partido levou-o!) As coisas passavam-se à calada da noite e sob a cumplicidade silenciosa de todos. Tudo era permitido ao PAIGC, inclusive tirar vida aos seus concidadãos, por simples decisão dos seus dirigentes e sem que tivesse de prestar quaisquer justificações públicas.

9. A entrada do PAIGC após o reconhecimento de jure fora deveras triunfal. O mundo inteiro rendia-se à gesta dos obreiros da independência. E os guineenses orgulhosos dos seus combatentes reverenciavam-se humilde e generosamente perante eles. Entregaram-se de alma lavada e de corpo inteiro ao anunciado projecto da (re)construção nacional. Acreditaram todos, com raríssimas excepções, que aqueles que foram capazes de levar de vencida, com todo o brilhantismo que se lhes reconhece, um exército europeu, também poderiam ser competentes para gerir o País. Tanto mais que anunciavam em grandes parangonas a chegada do “Homem Novo forjado na luta” prenhe de virtudes e convicções nacionalistas.

10. O sucesso da luta embriagou o PAIGC e cegou os seus dirigentes. Declaram guerra à uma indefesa e descuidada (politicamente) sociedade de “civis” e não só decretaram o seu desaparecimento, como arrogantemente dispensaram a sua participação como cidadãos de pleno direito no processo da (re)construção nacional. Um amigo meu, a este propósito, e comentando um artigo que eu escrevera, disse:

“Para o cúmulo disso tudo, o que está a atrasar o país é que introduziram na vida social guineense um elemento perturbador que é a divisão entre os que fizeram a luta, «os melhores filhos», que a si arrogam tudo, e os que já cá estavam que lhes devem prestar vassalagem e a nada têm direito.”

11. O governo instalou-se em Bissau após o reconhecimento de jure por parte de Portugal. Os ministros eram chamados “comissários” e ao primeiro-ministro “comissário principal”. Logo nos primeiros sinais verificamos que estávamos perante gente incapaz e incompetente para gerir um país. Arrogantes e com tiques autistas para esconder as enormes insuficiências e total impreparação; e a culminar uma moral muito duvidosa dado o comportamento perante a sociedade.

12. O período desse governo foi de seis anos (1974 – 1980). Teve o privilégio e o benefício de ter sido o governo que maior ajuda per capita recebeu no mundo inteiro. Desbaratou-a completamente em projectos megalómanos decididos de forma acéfala e autocrática. Sobre este período escrevi num artigo de opinião:

O novo poder que se instalou em Bissau (1974), não escondia o seu carácter repressivo, autoritarista, intimidatório e revanchista. O medo e a intolerância instalaram-se. O ajuste de contas havia já substituído a reconciliação mesmo antes da sua instalação (do poder) com desaparecimentos misteriosos e execuções sumárias. Algumas ocorrências e mortes, designadamente a do Primeiro-Ministro Francisco Mendes (Chico Té) encontram-se até hoje envoltas em profundos enigmas e mistérios. A debandada dos quadros e de toda uma administração com o seu “know how“ processava-se de forma assustadora criando um negligenciado vazio real na Administração do Estado, de efeitos não devidamente dimensionados e sopesados e, por isso, arrogantemente desprezados pelas novas autoridades. Os projectos megalómanos pontificavam-se como verdadeiros elefantes brancos desbaratando a eito toda a ajuda da cooperação internacional; sinais exteriores de riqueza exibiam-se denunciando na mesma medida um certo novo-riquismo e o despontar despudorado da corrupção; os bens essenciais escasseavam; o peso, moeda nacional, depreciava-se a um ritmo acelerado agravando o já muito débil poder de compra; e a economia degradava-se a uma taxa galopante. A insatisfação era total.”

13. Perante o cenário descrito, que talvez peque por defeito, pois funções de director-geral de importantes empresas públicas chegaram a ser exercidas por autênticos analfabetos cujo único curriculum era ter participado na luta para a independência, rumores permanentes percorriam toda a cidade de Bissau sobre a iminência de um golpe de estado. O que variava era apenas a identidade do seu eventual autor que oscilava entre 2 a 3 nomes;

14. A 14 de Novembro de 1980, Nino Vieira consuma aquilo que todos esperavam pondo fim a esse governo, do qual ele era primeiro-ministro, através daquilo a que chamou “Movimento Reajustador”. Suspende a Assembleia Nacional e cria o “Conselho da Revolução”.

15. Foi na sequência desse golpe que aparecem as valas comuns com algumas centenas de cadáveres, pondo a descoberto a máscara humanística do PAIGC e que pela sua gravidade e dimensão humana e no quadro do sistema de funcionamento do PAIGC – estrutura marxista-leninista – não se podem alhear, como bem o tentaram, os seus dirigentes de topo (ainda em Unidade) em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. Todos “sabiam” e foram igualmente responsáveis. A este respeito um outro articulista depois de confirmar o quadro descrito no ponto 12, acrescentava:

O que não sabíamos (nem podíamos imaginar) era que nessa altura o regime já tinha embarcado num projecto criminoso para o qual não havia volta. Nesse preciso momento Guineenses estavam a matar Guineenses e a enterrá-los em valas comuns em Jugudul, Cumeré, e outros sítios, num genocídio que nem os colonialistas nos seus mais criminosos sonhos ousaram apenas imaginar.”(Fim de transcrição)

16. Com o golpe de 14 de Novembro na Guiné, Cabo Verde apressou-se, num gesto pleno de oportunismo e imediatismo, a romper com o processo de Unidade que tantas vítimas gerara na Guiné e em Cabo Verde tendo até estado nas especulações quanto às causas próximas do assassínio de Amílcar Cabral. De ambos os lados, as congratulações superaram de longe as lamentações que não passaram, na maior parte dos casos, de algum decoro e de puras formalidades.

17. O chamado “Movimento Reajustador” mostrou logo a sua verdadeira face e fez desvanecer toda a esperança que nele se havia depositado de promover a concórdia nacional e “reajustar” aquilo que se considerava desvio da linha orientadora do PAIGC. Liberto da ala cabo-verdiana do PAIGC, o que foi fortemente aclamado pelos quadros “lutistas” ávidos de afirmação num ambiente de vazio, nasce um corpo de “nacionalistas guineístas” que se apressa a depurar a já muito débil administração do estado através de autêntica caça às bruxas com o beneplácito do poder instituído e dos seus acólitos. O aparelho repressivo é aperfeiçoado e a debandada dos quadros técnicos, sobretudo, de origem cabo-verdiana é praticamente geral. A incompetência e a iliteracia tomam conta do próprio governo; a desilusão e a decepção regressam com o mesmo fulgor dos primórdios da independência.

18. Nino Vieira tendo enveredado pelo mesmo caminho do seu antecessor, e temendo que lhe acontecesse o que ele próprio havia feito, engendrou a sua eternização no poder, com a eliminação de todos aqueles que com o prestígio também de antigos combatentes, fonte da sua legitimação, lhe podiam fazer frente. Uma figura despontava e impunha-se pela sua postura de discrição, honestidade, fino trato, sensatez e clarividência, tanto entre aqueles que de perto trabalharam e trabalhavam com ele, como em toda a sociedade guineense – Paulo Correia.

19. É assim, que:

i. A 17 de Outubro de 1985 , uma alegada intentona “balanta” para derrubar Nino Vieira foi atribuída a Paulo Correia que no seu seguimento foi “julgado” e condenado à morte com mais 5 (Binhanquerem na Tchuda, Braima Bangura, , N’Baná Sambú, Pedro Ramos, e Viriato Pam) de entre mais de meia centena de acusados. Outros 5 terão perdido a vida na prisão (Agostinho Gomes, B’nhate na Biate, Foré na ‘Mbitna, João da Silva e Zacarias António Pereira). Processa-se a partir desta data uma autêntica antropofagia entre os dirigentes do PAIGC que se vêem privados por eliminação física dos seus mais proeminentes quadros da luta armada.

ii. A 7 de Junho de 1997 uma tentativa de golpe de estado levada a cabo por uma “Junta Militar” chefiada por Ansumane Mané, ex-CEMGFA, deposto uma semana antes por alegado envolvimento no tráfico de armas com os rebeldes de Casamança, gera uma guerra civil.

iii. A guerra civil fez engrossar de forma desmesurada e incontrolada as fileiras do exército com “recrutamento” de jovens voluntários potenciando os problemas já existentes de sobredimensionamento artificial complicando ainda mais as necessárias e indispensáveis reformas e estruturação das Forças Armadas.

iv. A 7 de Maio de 1999 Nino Vieira é deposto. Parte para o exílio depois de obrigado a renunciar o cargo de PR que é assumido interinamente, nos termos da Constituição, pelo Presidente da ANP, Malam Bacai Sanhá pondo fim a uma guerra civil de 11 meses.

v. Em Julho de 1999, processam-se importantes emendas na Constituição: Abolição da pena de morte; limitação de mandatos de presidente da república a dois; estabelecimento de que os principais titulares de cargos de estado têm que ser guineenses, filhos de pais guineenses.

vi. A 16 de Janeiro de 2000, Kumba Yalá, do PRS, vence as eleições presidenciais contra o candidato do PAIGC, Malam Bacai Sanhá. Com a eleição de Kumbá Yalá as funções presidenciais perderam dignidade e respeito devido a postura histriónica do presidente potenciada com actos caricatos e indignos para a imagem interna e externa do País. Mas o mais grave é a tentativa de “balantização” do exército com a elevação a patentes de comando de muitos militares.

vii. O acto de promoção por parte do PR desagradou o então CEMGFA, Ansumane Mané, que numa atitude pública e mediática provocatória, insensata e humilhante para os protagonistas processou de forma arrogante a retirada, pelas suas próprias mãos, das patentes que tinham sido conferidas a esses militares.

viii. A 30 de Novembro de 2000 é assassinado Ansumane Mané, de forma bárbara, ao que parece depois de ele se ter entregado, estando ainda por desvendar os autores e as verdadeiras razões do seu assassínio.

ix. A 14 de Setembro de 2003, Kumba Yalá, através de um golpe comandado por Veríssimo Seabra, então CEMGFA, à frente de um “Comité Militar”, é deposto. Renuncia formalmente 3 dias depois, tendo sido substituído pelo empresário Henrique Pereira Rosa.

x. A 6 de Outubro de 2004, Veríssimo Seabra, CEMGFA, é assassinado supostamente por um levantamento dos militares que tinham estado na Libéria como força de interposição, aparentemente, por corrupção ligada à questão salarial.

xi. A 24 de Julho de 2005 Nino Vieira volta ao poder através de eleições, demite o governo de Carlos Gomes, Jr. (discricionariedade que gera polémica constitucional) e nomeia em seu lugar Aristides Gomes (1 de Novembro de 2005) que é deposto através de uma moção de censura em 19 de Março de 2007. Carlos Gomes regressa ao poder em Dezembro de 2008 através de eleições ganhas pelo PAIGC com larga maioria.

xii. A 1 de Março de 2009, Tagma na Waié, CEMGFA, é assassinado através de um atentado bombista que, dadas a sofisticação, técnica e precisão utilizadas, dizem uns, ter a assinatura dos narcotraficantes estrangeiros não obstante também ele, Tagma, ser acusado de controlar uma das várias redes militares de narcotráfico; dizem outros, que é obra de especialistas militares estrangeiros. Acontece que Tagma na Waié previa o seu assassínio e apontava o seu futuro autor, pelo menos moral. Tinha deixado uma mensagem aos seus camaradas de armas: “Se ele me matar de manhã, matem-no à noite”. A este propósito um amigo meu escreveu: “Talvez tenha sido a primeira vez que um morto mata um vivo.”

xiii. A 2 de Março de 2009, cumpria-se rigorosamente as ordens de ex-CEMGFA, com o assassínio de Nino Vieira que se diz ter sido uma mistura de tiros e catanadas da forma mais selvagem e bárbara que se possa imaginar. Dizem uns, por gente ligada a Zamora Induta a mando do PM Carlos Gomes, Jr. e outros que a operação fora levado a cabo por membros do Batalhão de Mansôa que se encontrava sob o comando de António Injai que:

Uma semana antes Indjai assinara em Bissau, perante uma comissão composta pelo Primeiro-ministro, Carlos Gomes Júnior, CEMGFA, Zamora Induta, Procurador-Geral da República e o Presidente, um documento onde reconhecia estar envolvido numa operação de narcotráfico que ocorrera no aeródromo de Cufar, sul da Guiné, desmantelada «in extremis» pelos militares de Zamora Induta. Na mesma ocasião ficou estabelecido que António Indjai seria automaticamente exonerado do cargo de número dois das forças armadas e partiria para Cuba, oficialmente, em «tratamentos médicos».” (Fim de transcrição)

xiv. A 5 de Junho de 2009 são assassinados Baciro Dabó, candidato às presidenciais e Helder Proença (Político dinâmico, ex-Ministro da Defesa de Nino Vieira). Sobre o assassínio de Baciro Dabó, escreve um analista num artigo intitulado “Figuras de Narcotráfico na Guiné-Bissau:

Pedra basilar de todo o fenómeno do narcotráfico na Guiné-Bissau foi Baciro Dabó. assassinado na madrugada de 5 de Junho de 2009 em mais uma alegada tentativa de Golpe de Estado a assolar a ex-colónia portuguesa. Baciro Dabó ocupou entre 2006 e 2008 as pastas de Secretário de Estado da Ordem Pública e posteriormente de Ministro da Administração Interna. Em final de 2008, e não obstante o avolumar de suspeitas internacionais de envolvimento no narcotráfico, Baciro foi nomeado Ministro da Administração Territorial.”

Mais adiante, continua o mesmo articulista:

Mas a transformação da Guiné – Bissau em Narco-Estado não foi trabalho exclusivo de Baciro Dabó. Apesar do lugar central que desempenhou, Baciro teve a conivência e o apoio das principais figuras do Estado Guineense, desde políticos, militares a empresários e deputados, alguns deles ainda em funções.


Nino Vieira, o ex- Presidente da República Guineense assassinado a 2 de Março de 2009, ocupou um lugar central em todo este processo.”

xv. Bacai Sanhá é eleito Presidente da República a 28 de Junho de 2009 vencendo Kumba Yalá numa 2ª volta.

xvi. A 1 de Abril de 2010, uma tentativa de golpe de estado conduzida pelo vice-CEMGFA, Gen. António Injai e pelo Alm. Bubo na Tchuto, detém o PM Carlos Gomes, Jr. com ameaça de morte, caso houvesse reacção popular de apoio bem como o seu CEMGFA, Alm. Zamora Induta. O silêncio inicial do então-Presidente da República, Malam Bacai Sanhá, foi notória e a sua condenação tímida e tardia foi grave, sobretudo ao classificar a ocorrência como um “pequeno problema entre militares”. Mas mais grave ainda foi o facto do autor do atentado ter sido, por ele, nomeado no seguimento do seu acto a CEMGFA tal como reivindicava apesar do aviso americano através de um comunicado transmitido da sua embaixada em Dakar:

É impossível para os EUA contribuir para o processo de reforma da segurança e da defesa se essas pessoas, ou outros implicados no tráfico de estupefacientes, forem nomeados ou permanecerem em postos de responsabilidade nas forças armadas”, acrescentando em outro passo:

É “imperativo” que o chefe das Forças Armadas – que deve ser nomeado em breve pelo Presidente da República, Malam Bacai Sanhá – não esteja “implicado nos acontecimentos de 01 de abril”, evocando implicitamente o major-general António Indjai.

Mais tarde, num despacho da Lusa lê-se:

O governo americano espera trabalhar com as autoridades guineenses para desalojar as pessoas que ocupam funções oficiais e que se servem do seu poder para facilitar o tráfico de estupefacientes”.

Ainda no decorrer deste caso e sobre o Alm. Bubo na Tchuto, seu cúmplice, escreve um analista:

No dia 1 de Abril, soldados leais a Bubo Na Tchuto entraram no edifício da ONU e resgataram-no , enquanto detinham o primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior e o Chefe do Estado-Maior General, almirante Zamora Induta.

Bubo Na Tchuto é a força por trás de todas as outras forças”, disse à reportagem o director político da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), Abdel Fatau Musah. “O facto de ele estar a controlar as coisas é muito desagradável”.

xvii. Malam Bacai Sanhá morre em França a 9 de Janeiro de 2012 e as eleições presidenciais para a sua substituição têm lugar a 18 de Março de 2012, data que buscava o cumprimento de um preceito constitucional e tinha a concordância de todos os partidos e de todos os putativos candidatos avisados da desactualização dos Cadernos Eleitorais e da impossibilidade de os regularizar nesse lapso de tempo.

xviii. O decorrer das eleições e os resultados da 1ª volta não deixaram qualquer dúvida aos observadores internacionais que se pronunciaram e a diferença de votos entre os candidatos também não deixava espaço para a reclamação posteriormente engendrada. O peso das eventuais irregularidades, seria insignificante para alterar o curso normal das eleições. E a existirem seria mais fácil encontrarem-se entre o 2º e o 3º classificados do que entre o 1º e os outros. (vide quadro)


xix. A iminência de uma derrota anunciada na 2ª volta por parte da oposição levou que o seu mais bem classificado candidato, por coincidência da etnia balanta, um ex-presidente, eterno contestatário e pertencente ao maior partido da oposição “manipulasse” – só assim se compreende – os outros que se lhe seguiam e os levasse de forma absolutamente inconsequente a se lhe juntarem no coro de protestos.

xx. No dia 11 de Abril os 5 candidatos mais votados depois de Carlos Gomes, Jr, encabeçados por Kumba Yalá, seu porta-voz, dão uma conferência de imprensa, em que o porta-voz afirma que não só ele não compareceria à 2ª volta, como ela, a 2ª volta, não se iria realizar, num anúncio claro de interrupção do processo eleitoral.

xxi. No dia 12 de Abril, dá-se o golpe de estado, com a detenção de PR interino, Raimundo Pereira, e do candidato Carlos Gomes, Jr. (PM com funções suspensas e destacado 1º classificado na 1ª volta) de entre outros importantes membros do Governo.

20. Registe-se que esta onda de violência que vem desde o início da luta armada, não pode ser atribuída a este ou aquele actor político-militar em especial, mas a uma cultura de violência interiorizada e que se manifestou na luta pelo poder.

21. O mais estranho é que os que matam são do PAIGC e os que morrem também o são num ritual de antropofagia sem precedentes. O PAIGC ontem, um partido de heróis; o PAIGC hoje um partido de assassinos. É uma triste e deprimente constatação.

22. O sonho de Cabral do seu PAIGC gerar um “homem novo forjado na luta” com princípios e valores bem sintonizados com o respeito pela dignidade do Homem e defesa do humanismo e da humanidade foi completamente defraudado pela metamorfose que esse homem sonhado e idealizado terá sofrido, surgindo como o mais acabado homo belicus, perito na arte de matar.

23. E Amílcar Cabral, homem inteligente e arguto, tinha plena consciência da limitação e incapacidade dos seus homens para o exercício de tarefas fora do contexto “militarista”. E advertiu-os, embora sem sucesso, que a luta não era um investimento em proveito próprio, ao preconizar o encontro de Ensalmá da forma como o faz:

A Luta que levamos a cabo com a arma na mão para tirar os tugas do nosso chão, para a nossa Independência, é o programa mínimo que estamos a cumprir. Não pensem que vamos todos mandar em Bissau. Para aquele que era mecânico, electricista, pescador, agricultor quando entrou na Luta, irão ser criadas condições para ele continuar a sua actividade e viver o seu estatuto de combatente da liberdade da pátria. A nossa Independência termina em Ensalmá. Ela vai ser entregue à gente que virá ao nosso encontro para a assumir. Essa gente é que irá começar a cumprir o Programa Maior que é compor a terra, tarefa maior e mais complicada.” (O negrito é meu)

24. Cabral falhou redondamente na formação do “Homem Novo”. E tinha a consciência do “monstro” que estava a criar. Os seus sucessores mostraram-se medíocres, mesquinhos, estreitos de espírito (narrow mind) e algo oportunista tirando proveito da parte mais superficial da sua filosofia que era a incitação ao cumprimento de um programa mínimo – Independência dos territórios da Guiné e de Cabo Verde – que exigia sobretudo engenho militar e mais não era do que uma etapa mínima da luta de libertação no qual ainda continuamos fortemente empenhados e como ele diz, não podia ser feita nem liderada só pelos participantes da 1ª etapa que para tal faltava-lhes o “know how”.

25. A ganância, a arrogância e um certo autismo apoiados apenas e tão-somente no poder das armas falaram mais alto.

26. E enquanto o Encontro de Ensalmá não acontecer para que interiorização da força do saber e da razão suceda à força das armas, os golpes não pararão. E só o PAIGC pode operar esta inversão porque foi ele que o criou. Todos os principais protagonistas, em todos os golpes ou tentativas, são do PAIGC. Um outro importante denominador comum é a encorajadora IMPUNIDADE de que os autores dos golpes e das tentativas sempre se beneficiaram. E é sobre este aspecto que alguém num longo trabalho tipo ensaio deixa as seguintes interrogações:

“Quem foram os assassinos de Robalo, Nicandro Pereira Barreto, Ansumane Mané, Veríssimo Correia Seabra, Domingos Barros, Lamine Sanha e outros? Quem foram os responsáveis pela vala comum descoberta após golpe de 1980 que derrubou Luis Cabral? Quem foram os traficantes de armas que deram origem à guerra civil na Guiné-Bissau? Quando é que serão julgados os políticos e militares suspeitos de Narcotráfico? Porque Bubo na Tchuto não foi julgado pela acusação de tráfico de droga e pela acusação da tentativa de golpe de estado? Porque é que Intchami Yalá não foi julgado pela tentativa de golpe? Quem foi o responsável pelo desaparecimento de 500 quilos de cocaína apreendidos e guardados no tesouro Público? Quem foram os assassinos de Tagma na Waié e João Bernardo Vieira? (fim de trancrição)

27. O último golpe, o de 12 de Abril, merece uma atenção mais cuidada, embora não caiba nesta minha tarefa – animar o debate – analisá-lo em pormenor. Vamos retomá-lo – o golpe de 12 de Abril – para continuar o que no início dissemos:

i. Os autores do golpe, não conseguem justificá-lo. Atribuem-no à presença das forças angolanas – um pequeno contingente de cerca de 200 homens – no território, como ameaça para as forças armadas (mais de 4.000 homens) e a uma carta da qual só apresentam uma eventual minuta, do PM para o Secretário-Geral das Nações Unidas solicitando uma força de interposição (estabilização).

ii. A 1ª justificação visava obter o apoio popular através do apelo ao sentimento nacionalista contra um “invasor” estrangeiro (funcionou outrora) e a 2ª que se tratava de “agressão” contra as FA, ameaçadas de controlo e extinção, feita nas suas costas e contra a sua vontade porque, justificam, a Guiné não está em guerra.

iii. As verdadeiras motivações continuam por “desvendar” uma vez que as apresentadas não colheram. E um dado imediato é o impedimento da realização da 2ª volta das eleições presidenciais na data aprazada.

iv. Reivindicam para o “regresso” aos quartéis, a criação de um Conselho Nacional de Transição; nomeação de um novo Presidente da República e de um novo Primeiro-Ministro; Eleições legislativas e presidenciais, em simultâneo, num prazo de dois anos; manutenção, obviamente, das chefias militares; recusa de qualquer solução que inclua o regresso de Raimundo Pereira e Carlos Gomes, Jr. às suas funções de Presidente da República interino e Primeiro-Ministro, respectivamente. Regresso dos militares às casernas.

v. Pergunta-se: Que legitimidade têm os militares para interromper a ordem constitucional democraticamente instalada e impor a sua vontade?

vi. As reacções internas e externas não se fizeram esperar.

vii. Tiveram, os golpistas, um tímido mas declarado apoio inicial da parte dos cinco candidatos que contestavam os resultados eleitorais de que falamos atrás – depois deram o dito por não dito – bem como de algumas forças políticas da oposição e condenação de toda a população e das organizações internacionais e de todo o mundo, destacando-se a veemência e contundência da CPLP, da União africana, do Secretário-Geral das Nações Unidas, do Conselho de Segurança, da União Europeia que exigiram o retorno imediato e incondicional à ordem constitucional e sanções aos golpistas. A CEDEAO condenou-o ao mesmo tempo que se apressava em pactuar ao propor negociar uma solução.

viii. O Governo da Guiné-Bissau falava em todos os fóruns com a legitimidade e a autoridade que a legalidade internacional lhe conferia, através do seu representante para política externa – Ministro das Relações Externas. Um erro que os golpistas cometeram e que lhes custou a veemência, a firmeza e a constância do discurso de condenação em todas as frentes bem como a inquestionável solidariedade internacional.

ix. A solução encontrada pela CEDEAO, que se tem mostrado incapaz de todo, de resolver este tipo de problema, não representava nem de perto nem de longe, a tolerância zero estipulada pela organização, pois contemplava os interesses dos golpistas ignorando o governo legítimo, democraticamente eleito e indo mais longe ao cercear, para agradar os golpistas, o acesso ao poder de alguns dirigentes do PAIGC ao invocar que o presidente e o PM interinos não poderiam candidatar-se às eleições que ela (CEDEAO) preconizava. Em conclusão: Não há memória da CEDEAO ter resolvido um golpe de estado em que os golpistas não fiquem incólumes e o golpe, de forma directa ou encoberta, legitimado.

x. Como era de esperar, o PAIGC, uma vez mais firme nas suas posições de reposição da ordem constitucional, rejeitou liminarmente a recomendação proposta pela CEDEAO, pois representava na realidade legitimação do golpe e um pacto com os golpistas para os quais não havia sanções.

xi. Os interesses que gravitam à volta da CEDEAO são vários e de vária índole. Por comodidade e algum decoro apenas os caracterizamos como sendo uns de carácter endógeno, outros exógenos em relação à própria região. Quer uns quer outros, todos à volta daquilo que podemos sintetizar como interesses hegemónicos na região e, de passagem, algum ressabiamento.

xii. A UA e UE tomaram medidas concretas. A primeira suspendendo de imediato a Guiné-Bissau da Organização enquanto a segunda fechava as suas fronteiras aos golpistas, ambas exigindo o retorno à ordem constitucional.

xiii. A firmeza do PAIGC tem sido nota dominante. Não abdicar minimamente dos seus direitos constitucionais. A procissão ainda vai no adro e é nesta firmeza e defesa de princípios que, a meu ver, estará a solução política, não direi definitiva mas duradoura, dos golpes de estado. Deverão ser procurados procedimentos complementares. A luta armada terminou há 40 anos. Uns poucos, muito poucos, são os militares ainda vivos, com verdadeiro e legítimo estatuto de antigos combatentes para a independência nacional, isto é, oriundos da luta armada. E é para eles, só para eles, que se deve procurar afincadamente uma saída militar, diria, humanista, condigna.

iv. A questão do narcotráfico deve ser vista e tratada numa óptica global. Só a Guiné-Bissau por si só, não tem meios, nem humanos, nem materiais nem financeiros para resolver o problema.

xv. Feita esta panorâmica da espiral de violência na Guiné-Bissau, que vem desde os tempos da luta armada, penso que estão criadas condições minimalistas para um debate sobre AS CRISES POLÍTICO-MILITARES NA GUINÉ-BISSAU: CAUSAS, PROBLEMAS E SOLUÇÕES, tema proposto pelo Centro de Estudo e Estratégias do MNE. Não se trata, obviamente, de uma palestra que exigiria uma outra abordagem, mas sim de uma nota introdutória, de um auxiliar de memória, dos parâmetros que devem nortear o debate. Não há posições acabadas, mas apenas tópicos para reflexão.



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[i] Tema do debate para o qual fui convidado para “Animador”

[ii] Amilcar não poderia exercer nenhum cargo do poder de estado na Guiné-Bissau sendo filho de pais cabo-verdianos.

[iii] Bubo na Tchuto encontrava-se escondido nas instalações da Representação das NU em Bissau depois de ter regressado da Gâmbia para onde fugira para não ser preso por acusação de narcotráfico.



Nas palavras dos outros... Ou as "32 declarações de amor à Língua portuguesa"

quarta-feira, 9 de maio de 2012
Achei deveras interessante o facto do Jornal de Letras ter pedido – para o número especial comemorativo dos seus trinta e dois anos de existência – aos colaboradores habituais e a diversas personalidades do mundo cultural da lusofonia (num total de 32) que prestassem depoimento sobre o seu amor à Língua comum.

Antes de iniciar as transcrições dos excertos das “declarações de amor” será de toda a justeza referir que o Jornal de Letras é uma referência e destacada, no mundo cultural português em particular, e no da lusofonia em geral. E isto deve-se não só à qualidade dos artigos nele publicados, pelas informações que dá aos leitores interessados nas letras e nas artes em língua portuguesa, como também, pelo enorme mérito e empenho do seu Director, José Carlos Vasconcelos. Embora atrasadas, pois que foi em Março, daqui envio as minhas felicitações ao JL, acrescentando: obrigada pela boa leitura de tantos anos! Desejos de longos anos ao serviço da cultura.

Posto isto, reentremos naquilo que o título deste escrito pretende. Ora bem, com a devida vénia e pedido de autorização aos seus autores, transcrevo aqui, algumas das Declarações de Amor à Língua portuguesa proferidas por nomes conhecidos, sonantes e já consagrados no mundo cultural da lusofonia.

O que me apetecia mesmo era transcrevê-las todas, pois qualquer delas, a seu jeito e a seu modo, está amoravelmente dedicada à querida Língua, ou não fossem elas, declarações de amor! Não podendo ser, tive de apelar à dita selecção, embora sempre subjectiva, pois que abarca algumas e deixa de fora outras de igual mérito, que pretende ser uma amostra diversificada de origens dos falantes da mesma língua. Aqui vão elas:

Manuel Alegre,conhecido poeta português, chama à LP, a música secreta» e a determinada altura escreve: “Há na minha língua uma página chamada Atlântico, onde há sempre uma viagem que não acaba até outros mares e outros poemas. (…) Nas suas harmonias, nas suas dissonâncias, nas suas vogais azuis e verdes e nas suas consoantes sibilantes. Tem a cor do mar e o assobio do vento. Amo essa cor, esse assobio, esse murmúrio. E o cheiro a alga e sal (…)”

Pepetela, escritor angolano, numa interessante metáfora de amor á Língua diz: “ Leite. Língua. Leite materno. Língua materna. Os primeiros sabores, os primeiros sons. Do primeiro leite, se parte para o gosto dos outros. Também do da primeira língua se continua noutras. Em alguns casos. Nós normalmente temos a língua que ouvimos da mãe e a que ouvimos de quem nos dá colo, veste e leva a passear. Ou a que ouvimos na rua. Nem sempre coincidem (…) vários registos (…) sons que no princípio se misturam mas que, a momento dado, sabemos separar. (…)”

Onésimo Teotónio Almeida, açoriano, professor na Universidade de Brown, EUA, ficcionista, cronista e ensaísta português, escreve na sua declaração à Língua portuguesa que ele chamou de: “Acordo pré-nupcial”, o seguinte: “ (…) Como de aceitares um encontro para assinarmos este acordo em que gostaria de declarar que sim, te amo, desde que não alimentes ciúmes, nem me acuses de te amar só por causa da portugalidade, brasilianidade, ou lusafricanidade para que me abre o teu visual. (…)”.

Carlos Quiroga, galego ficcionista, poeta e professor Na Universidade de Santiago de Compostela, declara-se da seguinte forma: “(…) eu canto caetanamente o gosto de te sentir a roçar a língua de Camões”(…).

Germano Almeida, cabo-verdiano, ficcionista, afirma a sua ligação à LP, retratando bem o seu ambiente linguístico: (…) eu cresci alimentado por ambas (a língua portuguesa e a cabo-verdiana) sem nunca diferenciar qual das duas era mais suculenta pois que as usava indiferentemente, e por isso ambas fazem parte do que eu sou, razão por que não quero viver sem nenhuma delas, sei que perder uma me amputaria em metade. (…)”.

Nélida Pinõn, brasileira, ficcionista, na sua poética declaração de “amor tenaz” à LP, reitera a determinada altura: “(…) Esta língua, que é prólogo e epílogo, faz meu corpo existir. Com ela viajo pelo mar do destino. Já pelas manhãs, ela em pessoa abre as cortinas da representação cénica do mundo e assopra-me baixinho a fina aragem do mistério. (…)”.

De Timor, chega a declaração nas palavras de Luís Cardoso, ficcionista: “(…) Falar da língua portuguesa é também falar daqueles que um dia a utilizaram nas montanhas de Timor para expressarem os seus sentimentos por todo o drama que estavam vivendo. Creio que sabiam o peso exacto de cada palavra e do seu alcance (…)”.

Bem gostaria de continuar a transcrever aqui, mais dessas realmente belas declarações de amor feitas á língua comum, escritas por gente que a ama e que compôs com os seus escritos o número de 21Março/3 Abril do Jornal de Letras. Mas acontece que o meu espaço deve ser limitado.

Para terminar escolhi a declaração de um ficcionista mais jovem, angolano, Ondjaki. Ele dirige-se à língua portuguesa denominando-a de “Nome plural,”: >“(…) hoje que te escrevo, senhora dona língua portuguesa, esse teu nome plural…; de ti fizemos também corpo criativo – “língua desportuguesa”…e com o carinho que te temos, se fosses uma velhinha acariciava-te as mãos e beijava-te os olhos mas ah! Se habitasses um corpo de uma mulher madura dessas a que o sabor se pressente de olhos quietos, então confesso que a noite seria de amor, estranho amor, amor profundo (…)”

E assim, com as palavras dos outros, mas como quase nossas as sentimos também, se fecha este texto.