1.BREVE INTRODUÇÃO
O presente texto não constitui mais do que um breve resumo da vida e obra de José Saramago, ainda assim não isento de dificuldades e dúvidas face à dimensão universal da sua escrita. Neste sentido, procuraremos, mais do que partir em demanda da história pessoal do escritor, determo-nos nos caminhos da sua complexa e fascinante escrita e nas obras que produziu – nas mais representativas apenas, para não tornar este trabalho muito extenso e fastidioso – porque, afinal, são elas que falam ao coração das pessoas e celebrizaram o escritor
2.O AVÔ SÁBIO E O NETO MENINO
“O Homem mais sábio que conheci em todo a minha vida não sabia ler nem escrever”. Assim começou José Saramago o discurso pronunciado em 07.12.1998 na Academia Sueca, no momento em que foi agraciado com o Prémio Nobel da Literatura, deste modo evocando comovidamente o seu avô materno, Jerónimo Melrinho de seu nome – que o ensinou “a habitar dentro das coisas” - que, tal como a sua avó, Josefa Caixinha, viviam numa pobre aldeia do interior do Portugal profundo, Azinhaga, e eram analfabetos. Foi nessa aldeia que nasceu José Saramago em 1922 e nela viveu até 1924, quando acompanhou os pais na sua migração para Lisboa em demanda de melhores condições de vida. Não obstante esta profunda mudança na sua vida, manteria laços muito fortes com o mundo rural da sua terra durante a infância e a adolescência, aí passando longas temporadas com os seus avós.
3. CICLO FORMATIVO. PRIMEIRAS PROFISSÕES. PRIMEIROS ESCRITOS (1924/1971)
Foi em Lisboa que completou a sua formação escolar em 1932 e o curso de serralheiro mecânico em 1940, após o que exerceu actividades profissionais de carácter técnico e administrativo durante largos anos.
Afastado do mundo dos livros pelas suas modestas origens sociais, aproxima-se das bibliotecas públicas existentes em Lisboa, que começa a frequentar assiduamente a partir dos 15/16 anos. Como consequência do apelo irresistível da literatura, depois de breves e dispersas incursões pela poesia, publica em 1947 a sua primeira obra, o romance “Terra do Pecado” – pouco vendeu e rapidamente transitou para o arquivo arqueológico-literário do escritor. Depois, novo longo hiato em que vai escrevendo, sobretudo poesia, sem que consiga publicar qualquer escrito.
Em 1959 assumiu as funções de director literário de uma Editora – “Estúdios Cor” – que exerceu durante cerca de 12 anos, o que lhe permitiu um convívio enriquecedor com alguns dos mais conceituados escritores do tempo. Em 1971 cessou funções na supradita Editora, passando a viver sobretudo de crónicas, que regularmente escrevia para alguns dos maiores jornais de então – fase que durou até ao final de 1975.
4. INVENÇÃO DO ESTILO SARAMAGUIANO. E A IMPORTÃNCIA DA CRÓNICA (1971/1980)
A prática da crónica assumiu uma importância decisiva na construção da estilística saramaguiana, como de resto o escritor o reconheceu expressamente, nomeadamente no plano da temática e da concepção e evolução do exercício verbal. De resto, a maioria dessas crónicas foram mais tarde objecto de compilação e publicação – e delas, vistas à distância do tempo, ressalta uma continuada e crescente maturação literária e estética, que começou por produzir alguns efeitos na poesia e no teatro, para depois se revelar em toda a sua dimensão e fulgor na ficção.
Em Novembro de 1975, em tempos agitados da Revolução Portuguesa na sequência do derrube um ano antes da ditadura salazarista, foi destituído das funções de director-adjunto de um dos principais jornais para que fora nomeado no princípio daquele ano, atenta a forma ideologicamente comprometida e polémica como alegadamente exerceu tais funções. Ou seja, o facto de aos 53 anos se ter visto na situação de marginalizado e sem trabalho, levou-o a tomar uma das decisões mais importantes e arriscadas da sua vida profissional: viver da escrita, directa ou indirectamente considerada. O mesmo é dizer que, pelo menos até o início da década de 80 do século passado, o escritor vai viver fundamentalmente de traduções, muitas delas mal pagas – ao longo de 5 anos traduziu para cima de uma trintena de livros - e de uma ou outra crónica que ia escrevendo para jornais. Esta fase da sua vida tendo como base de subsistência as traduções, foi outra importante pedra na construção do estilo inovador que já evidencia no livro “Levantado do Chão” publicado em 1980 e definitivamente se afirma com a obra que se lhe seguiu em 1982 – “Memorial do Convento”.
5. A CONSTRUÇÃO DA ESTÁTUA. OU A DÉCADA DOS PRODÍGIOS (1980 – 1991)
É, pois, em 1980 com o romance “Levantado do Chão” que, não só o escritor afirma uma nova estilística no firmamento literário português, como se abre um novo ciclo na sua vida literária, que o próprio classificou com o Ciclo da Estátua, querendo com isto dizer que, nos 11 anos seguintes (ou seja, até à publicação em 1991 do “Evangelho Segundo Jesus Cristo”), vai dedicar-se a metaforicamente construir uma estátua - a figura, o rosto, o gesto, as roupagens, os adornos – ou seja, o edifício que são os seus livros. “Levantado do Chão”, o primeiro livro desta fase, representa uma epopeia rural de 3 gerações de uma família camponesa desde os finais do século XIX até à Revolução de 25 de Abril de 1974.
A esta obra seguiu-se em 1982 o romance que muitos consideram o Opus Magnum do escritor, “Memorial do Convento”, que consubstancia uma relação inesquecível entre o homem e a história e que tem como epicentro a construção do monumental convento de Mafra, nos arredores de Lisboa, em cuja narrativa gravitam as histórias de figuras do povo anónimo, com os seus amores e desamores, alegrias e tristezas, dificuldades e abnegação – impressiona que nele tenham chegado a trabalhar cerca de 50.000 pessoas, muitas delas forçadamente.
Em 1984 é publicado o “Ano da Morte de Ricardo Reis”, cuja trama envolve o regresso a Lisboa, após 16 anos de exílio voluntário no Brasil devido à instauração da República, de um dos muitos heterónimos de Fernando Pessoa - Ricardo Reis – que se vê confrontado com a triste realidade de um País submetido a uma ditadura claustrofóbica e policial, então cheia de espanhóis fugidos da guerra civil. No fim, Ricardo Reis acaba por morrer e ficar sepultado no túmulo do seu criador.
A obra que se segue é “Jangada de Pedra”, publicada em 1985. Na narrativa deste romance, metaforicamente, a Península Ibérica separa-se da Europa por força de uma falha geológica ocorrida nos Pirinéus, ficando à deriva no mar e acabando por permanecer algures entre a América Latina e o Continente Africano, com consequências nefastas para todas as pessoas – nativos, turistas, etc. – e para a própria Europa.
Em 1989 é publicado o romance “História do Cerco de Lisboa”, que esteve longe de conhecer o sucesso dos seus anteriores. A obra questiona aquilo a que chamamos “a verdade histórica”, tenha ela o significado que tiver. A narrativa passa-se em dois planos temporais que desenvolve nos seus efeitos imaginados: num, em 1147, quando portugueses e cruzados sitiam Lisboa, então moura, e a conquistam; no outro, no século XX, em torno de um revisor de texto que, num livro alusivo ao tema, resolve mudar o curso da história alterando para “não” o “sim” que os cruzados deram para colaborar em tal empresa.
Finalmente, no fecho deste ciclo, é publicado em 1991 “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, a obra que, entrando nos meandros do Jesus Histórico de uma forma herética e provocadora, mais controvérsia suscitou – e que mais consequências provocou nos planos pessoal e de escritor, levando inclusivamente a que José Saramago tivesse passado a residir na espanhola ilha de Lanzarote (Canárias) como reacção à censura a que a obra foi sujeita pelo Governo Português de então.
Com este livro, terminou o chamado – e já referido – Ciclo da Estátua, a partir do qual o escritor iniciou outro ciclo, inspirado por novos horizontes literários e sugestivas mudanças no seu ofício de escrever – não em termos de qualidade, mas de perspectiva.
6. DA ESTÁTUA PARA A PEDRA. OU O CICLO DA ALEGORIA (1992/2005)
Veremos que, neste ciclo, ainda metaforicamente falando, o escritor abandonou a estátua e passou a escavar a pedra com que a construiu – o que começou por acontecer com “Ensaio sobre a Cegueira”. E, numa visão de conjunto, o traço dominante mais inovador parece convergir para o facto de estarmos agora diante de alegorias, aqui tidas como distopias de um mundo que abandonou a razão.
Na verdade, o “Ensaio sobre a Cegueira, publicado em 1995, é uma obra que entrou na crueldade e no caos público e moral derivado da irracionalidade humana e da hegemonia do instinto. É a história de uma cegueira fulminante que ataca todos os habitantes – menos um – o que conduz à destruição de todos os valores, de todas as normas de consenso social. O homem aqui converte-se em lobo do homem. E, uma vez mais, como acontece na maioria das obras mais representativas do escritor, a personagem central da história é uma mulher, que não cegará nunca – não perde a visão num mundo de cegos, por razões de compaixão, de amor, de respeito e de dignidade para consigo e para com os outros.
Como também acontece na obra seguinte, “Todos os Nomes”, publicado em 1997, um romance inspirado nas vicissitudes factuais e administrativas que rodearam a morte do irmão mais velho do escritor, Francisco, com 6 anos - que uma certidão do registo civil extraída a seu pedido teimava em declarar que não tinha falecido. O escritor parte desta perturbadora divergência para tergiversar romanescamente sobre o quanto as pessoas podem ser reduzidas a papéis – mas também, como é o caso, como se pode partir em busca de pessoas, ignorando-os.
Como ainda se verifica com “A Caverna”, romance publicado em 2000, que representa uma contundente crítica a um dos temas políticos e intelectuais de maior relevância no imaginário do escritor - a economia de consumo – para o que concebe um centro comercial delineado como o coração simbólico de um sistema cruel que devora modos de produção personalizados, enquanto fabrica excluídos. Nesta obra, os consumidores são retratados como prisioneiros do mercado, ao mesmo tempo que sublinha o medo e a insegurança como mecanismo de controlo social que os deixa à mercê do capitalismo global.
Como finalmente ocorre com “O Homem Duplicado”, publicado em 2002, que, mais do que uma questão de alteridade – já abordada em “Todos os Nomes” – é aqui tratada a partir de um ângulo complementar: o da identidade. Convoca, de resto, um tema recorrente em Saramago: o do outro, mas com a diferença de que o outro é aqui, no plano físico, uma cópia fiel de alguém. Nada se passaria se nunca se tivessem encontrado, mas o problema é que os seus universos pessoais paralelos se acabam por tocar. É, por isso, um livro com algum sabor a tragédia, mas também é verdade que em nenhuma outra obra a ironia e o humor estão tão presentes.
Duas obras se podem situar ainda neste ciclo: uma, “Ensaio sobre a Lucidez”, publicada em 2004, põe de pé uma alegoria de uma “peste branca”, uma rebelião cidadã que, numas eleições, protagoniza “a nunca vista história de uma cidade que decidiu votar em branco” - interpretada pelas autoridades como um desafio intolerável – que incarna um grito literário de desilusão e de clamor pela regeneração da democracia; a outra, o romance “As Intermitências da Morte”, publicado em 2005 - com a qual se fecha o ciclo alegórico – que parte de uma ficção surpreendente: “E no dia seguinte ninguém morreu”. Nesta última obra, Saramago toma a morte como argumento, detendo-se apenas num ponto de vista social, para demonstrar que, despojada da morte, a vida é inviável, dado que aquela é determinante para o equilíbrio da natureza e para o correcto funcionamento da ordem colectiva: inexorável e paradoxalmente temos de morrer se queremos viver.
7. CICLO DE ENCERRAMENTO (2005/2010)
Já afectado pela doença desde sobretudo 2007, Saramago ainda teve fôlego para escrever mais 2 romances, para além de um livro de memórias ensaiando uma viagem às origens e aos tempos de infância. O primeiro deles, “A Viagem do Elefante”, publicado em 2008, é baseado no facto real de um elefante ter viajado no século XVI de Lisboa a Viena como presente do Rei D. João III de Portugal ao arquiduque Maximiliano da Áustria pelo seu casamento com Maria de Habsburgo. O livro, com manifesto sabor cervantino, detém-se metaforicamente na viagem do elefante, traçando um paralelo com a nossa existência, pois, como o escritor admitiu: “ao falar do elefante, falo da vida humana”. O segundo, “Caim”, publicado em 2009, representa o regresso do escritor ao tema da religião, encarado, como sempre e uma vez mais, de forma frontal – embora, aqui, situando-se no Antigo Testamento, dele retirando uma dezena de episódios, cuja característica comum é a violência e o absurdo em que se sustentam, que o faz considerar a Bíblia” um “manual de maus costumes” e um “Catálogo de Crueldade.
8. PRÉMIOS
Prémios literários, honrarias públicas e distinções académicas, de tudo isto Saramago já estava longe se encontrar carenciado quando foi agraciado com o Prémio Nobel – na verdade, para além do significado de uma tal honra, após o Prémio o seu acervo apenas aumentou.
No plano interno, português, podemos dizer que ganhou todos os prémios que podia ganhar. No plano internacional, foram inúmeros os prémios que, de vários países, recebeu, alguns de grande prestígio. Mas, fora de dúvida, que, na cereja no bolo dos prémios e honrarias com que Saramago foi contemplado, está o Prémio Nobel que lhe foi atribuído em 1998, o primeiro a ser atribuído a um escritor de língua portuguesa.
9. FUNDAÇÃO JOSÉ SARAMAGO
Em 2007 José Saramago decidiu criar em Lisboa uma Fundação com o seu nome, que foi formalizada e oficialmente reconhecida em 2008, com sede num belo edifício histórico do século XVI, “Casa dos Bicos”, em plena zona ribeirinha de Lisboa, e com polos de complementaridade na terra natal do escritor (Azinhaga, Golegã) e em Lanzarote, onde, aliás, se encontra a sua biblioteca pessoal com cerca de 15.000 volumes. Entre os seus objectivos principais, a Fundação propõe-se defender e divulgar a literatura contemporânea, exigir o cumprimento da Carta dos Direitos Humanos e pugnar pela preservação do meio ambiente.
Esta Fundação tem à sua guarda o valioso espólio de José Saramago – o que por si só a transforma em referência incontornável dos estudos saramaguianos à escala nacional e internacional.
José Saramago morreu a 18 de Junho de 2010, em sua casa, em Lanzarote. À data da sua morte, ainda escrevia um novo romance, a que deu o título “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas” e que tinha como alvo o ignominioso comércio internacional de armas, publicado postumamente em versão inacabada. As suas cinzas encontram-se junto às raízes de uma oliveira trazida da sua aldeia natal, Azinhaga, e plantada junto à Casa dos Bicos, sede da Fundação. Acompanham-nas uma epígrafe que reproduz a frase final da sua obra Memorial do Convento: “Mas não subiu para as estrelas se à terra pertencia”.
Lisboa, 09 de Janeiro de 2018
José M. Gameiro Lopes