Os Vindos do Mar - As Visitas Temidas de Piratas às Ilhas de Cabo Verde

domingo, 26 de dezembro de 2021

 

 

Eis um assunto histórico que sempre despertou em mim uma grande curiosidade, as visitas indesejadas e temidas dos piratas, a Cabo Verde.

Mas mais, a minha curiosidade tem sido maior ao longo da vida, em  relação aos assaltos dos piratas à ilha do vulcão, as quais, como tudo indica, não foram assim tão poucas..

Acontece que cresci na Ilha do Fogo, só lá não nasci por um acaso, pois os meus pais e os meus irmãos mais velhos, tiveram de viajar do Fogo, via Mindelo, para Portugal de urgência, por motivos de saúde. E então eu nasci a bordo do vapor, em viagem para Lisboa. Embora também goste do local do meu nascimento: o mar!

Voltando aos terríveis piratas que são o foco deste escrito, sempre direi que desde miúda, pude  perceber e guardei muito bem essa memória, de que na minha ilha, uma das maiores ofensas que se podiam proferir, dirigindo-se a alguém, era o ápodo de “Pirata.” Era algo de muito grave. Era considerada uma enorme injúria, chamar-se a alguém: “Pirata!”. Ou, pior ainda:  “Filho de Pirata!”. Isso então,dava direito a brigas e a zangas sérias.

Mais tarde, com o andar dos séculos, com a passagem dos tempos, com o esquecimento do inferno  que fora sempre, a chegada dos piratas saqueadores, e com a evolução semântica do termo, “pirata”, “piratinha,” que conservou a conotação negativa - pois que justamente aplicado a ladrões, marginais e a deliquentes juvenis - o termo perdeu a pesada carga injuriosa que carreou no passado da ilha, quando então era o “trunfo” máximo de ofensa numa altercação entre vizinhos e/ou  entre outros contendores.

A então Vila de São Filipe foi várias vezes assaltada por estes "terroristas" do mar que não estavam autorizados a navegar no oceano dividido  - Tratado de Tordesilhas assinado em 1494 - entre espanhóis e portugueses e tudo isto durante séculos XV, XVI e XVII, sobretudo neste último século (XVII), os assaltos sucederam-se com maior frequência pois que já havia mais casas, mais templos construídos, igrejas e capelas, um pouco por toda a ilha. Os piratas  saqueavam  e roubavam tudo, inclusivamente casas da gente mais abastada da Vila de São Filipe.

Os Corsários e Piratas eram fundamentalmente, ingleses, franceses e holandeses.

O Historiador Christiano José de Senna Barcellos (Brava 1854 – 1915) no seu Volume I dos «Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné» Edição da BNL 2003, descreve com pormenores o que foi o saque da então Vila de São Filipe em Julho de 1655, por ele considerado dos mais violentos, operado por piratas holandeses.

O trecho que se segue, retirado do Volume I, pags. 245/246 narra-nos o seguinte:

“ Em Julho de 1655 aportou à ilha do Fogo uma nau holandesa, guiada por portugueses. Os holandeses saquearam a vila de São Filipe durante quatro dias, aprisionando mulheres, crianças e o vigário da matriz, sendo todos resgatados a troco de muitas fazendas. Quebraram e profanaram as imagens da igreja, e roubaram o oiro, pratas, ornamentos e sinos, escapando ao saque o Santissímo e o cofre que haviam sido escondidos por um beneficiado.

O Capitão-mór Francisco Lobo de Barros não estava na Vila quando se deu o saque, que foi repentino, e da mesma forma não estavam o alferes, o sargento e cabo de esquadra! Desprevenidos e enganadas as vigias e sentinelas (...)

Levaram armas e munições, deixaram a Vila de São Filipe em mísero estado.

Mais tarde, foram castigadas e despromovidas, as autoridades que não estavam nos seus postos. O Rei D. João IV, ordenou que se desse tudo o que à Igreja matriz de São Filipe, havia sido roubado pelos holandeses, ao mesmo tempo que  censurou as autoridades da ilha pela ausência da ilha e pelo abandono do seus postos. Por isso, e doravante,  passou a ser nomeado para o lugar de capitão e sargento-mór, um perfil militar que dava mais segurança na defesa e no zelo da ilha.

E como este, outros ataques de piratas se sucederam na maltratada ilha.

 Daí que fosse natural que os habitantes da ilha do Fogo, não guardassem boas memórias desses malfeitores que vinham do mar; os quais, para além de lhes roubarem tudo o que era mais valioso, violavam-lhes as mulheres, deixando algumas vezes, filhos dessa horrenda violação. Por isso, entendemos bem, a ofensa grande que era, apodar-se alguém de “filho de pirata”.

Muitas historietas e lendas se construiram à volta desses malfeitores vindos do mar, volto a repetir.

Conta-se igualmente que a determinada altura, foram escolhidos jovens que possuíam  voz potente e que avistavam do cume da serra mais alta da ilha, as velas dos barcos de piratas na linha do horizonte, e quando aconteciam esses avistamentos, gritavam algo semelhante a: “Pirata à vista!!.” O grito anunciador dava azo a que “corredores alvissareiros” fossem à Vila, avisar o padre e as autoridades da iminente chegada. Ouvia-se então, e era escutado com aflição, o rebate dos sinos da Igreja de Nª Senhora da Conceição, cujos sons, o tipo de toque, transmitiam aos moradores, a aproximação dos bandidos vindos do mar. Por vezes, e quando havia calmaria, a aproximação  dos navios do fundeadouro, levava mais tempo e tal facto, dava tempo também a que os habitantes fugissem da Vila em direcção ao sul, e ao norte da ilha levando consigo, alguns bens considerados mais valiosos. Outras vezes, os moradores e as autoridades eram apanhados de surpresa com a chegada da pirataria e tinham de largar tudo e fugir a “sete pés”.

E histórias há que narram que alguns moradores, mais ricos, levavam caixas com ouro e prata e que as escondiam em buracos cavados na terra, em determinados sítios e que, passada a tormenta, iam à procura delas. Acontecia que na aflição, alguns se esquecessem do sítio onde haviam enterrado, as caixas com jóias e com objectos de valor. Então ficavam aí enterradas “ad eternum”, configurando-se à volta disso, lendas e historietas locais, e algum anedotário que daí  também se originou. 

Outras vezes enganavam-se – na pressa da fuga -  no baú ou, na caixa a levar. Ao invés de carregarem a caixa com objectos de valor, levavam  a caixa com roupas, ou com objectos sem qualquer valor,  deixando - literalmente - o “ouro ao bandido.”

Todos sabemos que estas ilhas foram assoladas e saqueadas, não poucas vezes, por piratas e corsários holandeses, franceses e ingleses. Sabemos dos assaltos e dos saques à Cidade Velha, antiga capital da sua quase destruição feita por piratas, e que por isso, se transferiu a capital de Cabo Verde, para a Praia.

Nomes há que se sobressairam no meio dos piratas e dos corsários saqueadores violentos das ilhas e, particularmente da Cidade Velha, o inglês Francis Drake, o francês Jacques Cassard, entre outros, e tristemente célebres destruidores de vilas e da cidade destas pobres ilhas.

Piratas e corsários que matavam, que saqueavam, tudo que encontravam pela frente e que violavam  mulheres.  Daí terem deixado em algumas ilhas, alguma descendência. Filhos – que do pai nunca haveriam de ouvir falar, pois o desconhecimento seria total e para sempre.

Desta forma, podemos compreender o quão injurioso e acintoso era chamar-se a alguém: “Filho de Pirata!”

Não admira pois, a ira e a aversão secular que na ilha do Fogo, se nutriu pelos piratas.

E pensar que as viagens dos corsários com a finalidade  de pilharem não só as naus portuguesas e espanholas, mas também de saquearem vilas e cidades, foram realizadas com a benção e o beneplácito régio dos respectivos países.

Nos dias de hoje na cidade de São Filipe ainda existem vestígios (simbólicos) da  passagem de piratas e que são reveladores da tal ira secular que os sanfilipenses, nutriram pelos bandidos vindos do mar.

 Para exemplo, quando alguém quer mostrar a sua contrariedade, a sua forte  oposição a algo feito, ou pela Câmara Municipal ou, pelo Governo, coloca à janela uma bandeira de pirata (com fundo preto, a caveira com o lenço vermelho e as duas espadas traçadas) para simbolizar que está em total desacordo com o que se fez ou, com o que se pretende fazer e com isso demonstrar também, algum  desprezo por tal situação.

Voltando ao título deste escrito, coloco uma questão: quando é que algum Historiador nosso, se abalançará para nos narrar com factos e datas investigadas, os muitos assaltos de piratas e de corsários nestas ilhas? No fundo, uma História específica da pirataria em Cabo Verde.

Afinal, a história da Pirataria em Cabo Verde, é parte e faz parte integrante da História já bem antiga deste Arquipélago cujo percurso se iniciou nos idos do século XV(1460).

Até ao momento que escrevo estas linhas não conheço e nem tive notícia de alguma obra histórica recente –refiro-me a livro - a este respeito e aqui dada à estampa. Salvo, claro! A grande obra (vários volumes) escrito por Christiano Senna Barcellos, já aqui referido, bravense de origem e meticuloso investigador da História destas ilhas. 

Nesta linha de escritos sobre piratas, devo mencionar também a escritora e cronista da ilha do Fogo, Gilda Marta Vieira de Vasconcelo Barbosa, que publicou um texto - (ou mais do que um...) –  no Jornal Terra Nova de Abril de 2006, exactamente sobre das atrocidades e as pilhagens cometidas por piratas, que invadiam a ilha, com particular incidência em São Filipe.

E bom seria também, que o assunto fosse hoje seriamente investigado, para que o tivessemos como objecto de ensaios e/ou de teses no país.

Assim chego ao fim desta minha tentativa, que reconheço muito, muito modesta, de trazer ao leitor deste “Blog,” uma parte milimétrica da nossa História, embora nada agradável, ela é também e se calhar, estruturante/desestruturante, porque os assaltos de piratas, provocaram significativas alterações na vida dos habitantes e na organização administrativa, do nosso Arquipélago.

 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

 

Por achar que é mais do que um comentário ao texto: “Ah! A Boa Escola!”; por considerar que de um texto se trata com uma abordagem distinta, da problemática das duas Línguas cabo-verdianas - o Crioulo e o português - aqui se publica um texto da Professora Maria Cândida Gonçalves, minha colega das lides do ensino e, além do mais, uma  amiga de longa data.

 

 

 

Querida  Colega e Amiga

Como sabes, eu tenho uma visão sobre a situação das línguas portuguesa e cabo-verdiana em Cabo Verde convergente com a tua, mas com uma abordagem diferente. Eu não creio que o foco deva ser posto apenas na preservação e valorização do ensino da língua portuguesa, mas sim numa abordagem holística que leve em consideração, por um lado, a importância desta língua para os cabo-verdianos e sua importância a nível global e, por outro, a importância e o lugar conquistados pela língua cabo-verdiana na sociedade cabo-verdiana atual. Penso que já não é suficiente denunciar a situação caótica a que chegámos em relação ao uso destas duas línguas em Cabo Verde. Não vale a pena “tapar o sol com a peneira”, pois a maioria dos cabo-verdianos já não usa a língua portuguesa em situações de comunicação informal ou formal. Vários fatores têm contribuído para este ambiente sociolinguístico. Penso, portanto, que precisamos de reformas profundas do sistema educativo, visando preservar e valorizar as duas línguas,  passando pelo esclarecimento e sensibilização da sociedade cabo-verdiana (jovens, sobretudo, que se recusam a falar português) para que ambas sejam aceites, cada uma com a sua importância própria. 

Penso também que o caso do Haiti é diferente do de Cabo Verde. Aqui, nenhum governo tem defendido a abolição da língua portuguesa, tampouco os defensores da oficialização da língua cabo-verdiana. 

E termino dizendo que não aprovo a anunciada decisão do Ministério da Educação de introduzir o ensino da língua cabo-verdiana no 10º Ano do Ensino Secundário, a partir do próximo ano letivo. Acho que se trata de mais uma “medida avulsa”, que não vai resolver a complexa situação linguística em Cabo Verde. Defendo que a implementação de novas medidas de política linguística deve começar pelo Ensino Básico, visando formar gradualmente uma sociedade cabo-verdiana bilingue num horizonte temporal definido dentro dum Plano Nacional de Desenvolvimento Curricular, que vise responder aos diversos questionamentos e inquietações dos cabo-verdianos residentes no País e na diáspora.

 

Eu, Estátua, indefesa e silenciosa

domingo, 12 de dezembro de 2021

 Por achar que o texto corresponde e bem ao que se passa hoje em Portugal em termos de julgamento e de condenação  da História - o que é incorrecto, uma vez que a História não se julga - como pretendem alguns ditos activistas oriundos das ex-colónias e doutros países africanos, que escolheram viver em Portugal.

 Aqui vai transcrito e com a devida vénia ao seu autor, o jornalista e escritor, Miguel Sousa Tavares.



Eu, estátua, indefesa e silenciosa

Por Miguel Sousa Tavares*

                                          “Eu, Diogo Cão, navegador,

                                          Deixei este padrão ao pé

                                          Do areal moreno

                                          E para diante naveguei”

 

                                          Fernando Pessoa, in “Mensagem”

 

Mário Lúcio de Sousa, natural do Tarrafal, Cabo Verde (onde, da última vez que lá estive, nenhuma estátua, nenhuma placa, nenhuma simples escultura, evocava o campo de morte onde tantos resistentes portugueses pagaram pela sua luta contra o fascismo e o colonialismo), escreveu no “Público” de domingo passado um artigo a defender o derrube, o “afundamento” ou a “vandalização” das estátuas coloniais portuguesas em Portugal. Embora identificado pelo jornal como “escritor e músico”, confesso que a minha ignorância sobre ele era total. Erro meu: a sua biografia ilustra-o como poeta, escritor (com dois prémios literários portugueses conquistados), músico, cantor, “cantautor”, “pensador”, pintor, global artist e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde. Um personagem e tanto! Das suas qualidades musicais, a net pouco mais me revelou que brevíssimos excertos dos vários concertos ao vivo em que parece ter ocupado o seu último Verão em Portugal, mas nada que o aproxime sequer dos vários nomes que fizeram da música cabo-verdiana uma referência mundial. Das suas qualidades literárias, apenas consegui chegar a dois poemas sofríveis, para não dizer medíocres, e o próprio texto publicado no jornal, onde, em minha modesta opinião, faz um fraco uso desta extraordinária língua que lhe deixámos em herança... para além das estátuas. Mas isso é o menos, o fundamental é o seu argumentário.

Primeiro que tudo, a questão da legitimidade. Mário Lúcio (como ele gosta de assinar) fala em nome dos “antigos colonizados, seus descendentes, hoje pessoas nascidas, crescidas, naturalizadas, cidadanizadas, nacionalizadas, simplesmente portuguesas”. Ora, os de quem ele fala, sim, são portugueses, tal qual como eu; ele, não. Por mais que este país o acarinhe e premeie, ele continua a ser, de direito, um estrangeiro, como eu sou em Cabo Verde — embora, segundo percebi, ele goze daquele estatuto especial de alguns cidadãos dos PALOP de serem aqui quase tão portugueses como nós, mas, vade retro, orgulhosamente africanos em África e no Brasil... Assim, a minha pergunta é: que legitimidade tem um estrangeiro para vir pregar o derrube de estátuas, ou do que quer que seja, num país que não é o seu? Acaso ele se atreveria a isso em Inglaterra, em Angola ou no Brasil? Acaso ele me consentiria isso em Cabo Verde?

Segunda questão, o fundamento. Diz ele que os “‘novos portugueses’ conti­nuam a ouvir os ecos das ordens de matar e de castigar, esses que abafam os uivos de dor”. Não vou, obviamente, discutir o que foi a barbárie da escravatura e o tráfico de 1.400.000 seres humanos, que, só os portugueses, levaram, acorrentados, de África para o Brasil — e sem os quais o Brasil que conhecemos não existiria. Mas se os “novos portugueses” ainda ouvem esses ecos, eu não: não há chicotes nem correntes em minha casa e não oiço uivos de dor vindos da sanzala dos meus escravos. O meu dever contemporâneo é contar a história, a verdadeira história (e, sim, ao contrário do que ele diz, já há em Lisboa um monumento de homenagem às vítimas da escravatura, mas, por pudor, não há um Museu das Descobertas). E, sobretudo, é meu dever denunciar novas formas de escravatura, com novos disfarces, sem chicote nem correntes, como as de que são vítimas os trabalhadores asiáticos na agricultura intensiva — e de que não se ocupam estes activistas talvez porque eles não são negros. Porque também me espanta que estes derrubadores de símbolos de um passado que há muito deixou de existir se remetam a um silêncio sujo de cumplicidade com as múltiplas formas como os povos dos países africanos outrora colónias portuguesas hoje são roubados pelos seus dirigentes, à vista de todos e como nunca foram antes. Não é o caso de Mário Lúcio, natural do único desses países que tem orgulhado a sua independência, mas o que dizer da deputada portuguesa Joacine Katar, aqui acolhida como em raros países do mundo, tão crítica do seu país de acolhimento e tão silenciosa perante a vergonha continuada que é a governação do seu país de origem e a desgraça do seu povo?

Mas, uma vez isto feito, a limpeza da memória histórica não estaria terminada. A exaltação do “colonialismo” português, confundida por estes derrubadores de estátuas com tudo o resto, não poderia, coerentemente, ficar sacia­da. Sobrariam ainda, por exemplo, as pinturas e os livros: “Os Lusíadas”, “A Peregrinação”, “As Décadas da Índia”, o “Esmeraldo de Situ Orbis”, os relatos da “História Trágico-Marítima”, o “De Angola à Contracosta”, e tantos, tantos livros mais, que haveria bibliotecas inteiras para queimar em autos-de-fé. E os escritores que algum dia se deixaram tomar pelo espanto daqueles que navegavam sem horizonte conhecido: Camões, Pessoa, Jorge de Sena, Manuel Alegre, Sophia.

Diga-me lá, Mário Lúcio, com a sua visão de global artist: a sua fúria demolidora começa em que estátua nossa em concreto e acaba em que específico pergaminho?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

*in Expresso, 11/12/2021

 

Ah! A Boa Escola!...

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

 


Entrando logo no assunto a que hoje me propus, sempre vou  dizendo que soube há bem pouco tempo, por um aluno da Escola Portuguesa da Praia, que a referida escola tem na hora actual, cerca de 900 (novecentos alunos) e que possui uma extensa ou igual lista de espera -  Quando ouvimos isso, alguém ao meu lado comentou: “Ainda bem, que estão aí tantos alunos. São eles que irão conservar a Língua portuguesa neste Arquipélago. Bem haja a escola portuguesa!”

Fiquei com curiosidade e com vontade de me abeirar da Escola em apreço, para saber, através de dados fiáveis do número de procura de lugares e da proveniência e do perfil socio-económico dos alunos que a frequentam.

E o interessante é que já se distinguem os alunos da escola em referência, pois que na rua, ou quando estão juntos, falam português uns com os outros.

Pensei comigo: “ Que contraste! Ao que chegou a escola  pública no meu país! É certo que de há muito, se previa a sua derrocada, mas não na dimensão a que esta se deu. Foi preciso ser implantada entre nós a escola Portuguesa (em boa hora chegou) para se redimir o ensino da Língua portuguesa, nossa de pleno direito, e que era ensinada com precioso cuidado aos nossos alunos há poucas décadas, por professores cabo-verdianos que a dignificavam. Mas hoje, e infelizmente, para mal dos nossos pecados, já nem o professor cabo-verdiano da disciplina, sustenta - com proficiência linguística - uma conversação em português. Enfim, uma derrocada gigantesca do ensino público!”.

Veio-me à memória - igualmente por contraste -  a conversa havida, há já algum tempo, com um antigo Faroleiro do farol de D. Maria Pia da Praia, que ao ser-lhe notado que ele se expressava bem em português, ele respondeu de pronto: “Minha senhora, eu fiz a 4ª Classe da Instrução Primária, no tempo em que se completava a escola Primária aqui em Cabo Verde, a saber falar, a contar e a escrever em português!” (Sic).

Pois bem, voltando à escola portuguesa, os pais que podem economicamente e que cuidam duma escolarização de melhor qualidade para os seus  descendentes, procuram com afã, um lugar para o filho ou para o neto na Escola Portuguesa. O que está bem. Ninguém condena. Antes, pelo contrário, uma vez que a escola pública em Cabo Verde anda pelas “ruas da amargura”  em termos de qualidade de ensino, infelizmente. E assim sendo, torna-se normal, que esses mesmos país procurem - entre a oferta escolar existente e disponível - a melhor.

Não possuo dados para definir o perfil das famílias cujos filhos frequentam a referida escola, mas não corro muito o risco de errar se eu disser que elas pertencem à classe social mais instruída e mais capaz financeiramente. O que faz sentido e tem lógica.

Apenas uma nota irónica, (que não belisca e não tem nada a ver com o bem enorme que foi criar-se a Escola Portuguesa nas cidades da Praia e do Mindelo); se calhar, alguns desses pais e avós pertencem ao grupo que quer impor o Crioulo nas escolas públicas. Os chamados crioulistas. Numa atitude que alguém já definiu e bem, como de um egoísmo atroz. Ou seja: “eu já domino a Língua portuguesa  e outras Língua globais e os meus filhos e netos vão pelo mesmo caminho. Ponto final. Não quero saber dos outros que frequentam a escola pública. Para estes, basta o Crioulo.” Adivinhem quem são esses “outros”?...

Quando hoje, mais do que nunca, devemos estar  todos, e empenhadamente, a defender o ensino desta Língua global (definida pela Unesco) que é nossa também, a Língua portuguesa, e, ao mesmo tempo, defender uma melhor escola pública no país, uma vez que é na escola que os filhos e netos da camada social menos favorecida (...os tais "outros") procuram o chamado “elevador social” que lhes trará melhor futuro. É na escola, através da leitura, do escutar o professor, e no decorrer do processo de aprendizagem que o aluno se socializa com a Língua portuguesa, veiculo, por excelência, de transmissão de conceitos científicos, tecnológicos, literários e filosóficos, insertos nos programas e nos manuais escolares.

Uma boa escola é fundamental, em todo o percurso de vida da criança, do adolescente e do jovem na sua formação para o trabalho e para a sociedade.

E falando em boa escola e na qualidade do  seu ensino, trago à colação, um excerto do livro: «Os Meus Compatriotas» de Luís Valente de Oliveira, editora Gradiva, 2021. O livro, como o próprio título indica, incide sobre os portugueses enquanto povo antigo e o modo como se adaptam, em contextos e em culturas diferentes. O interessante é o excerto escolhido pois que se refere à educação formal e àquilo que se espera que a escola faça. Um pouco na linha da questão, que deve fazer a escola? .

Segundo o autor, a escola deve apelar: “a) ao conhecimento rigoroso e à análise racional dos problemas, por oposição ao palpite e às imagens impressionísticas; b) à reflexão amadurecida, por oposição à primeira ideia que nos vem à cabeça; c) ao método e à persistência na acção, por oposição à improvisação e à indiferença; d)ao espírito crítico construtivo por oposição à maledicência; e) à cooperação e à generosidade, por oposição ao individualismo egoísta; e) a que vejamos no sucesso alheio um estímulo e não uma fonte de inveja. Propõe-nos, em suma, um código de conduta, um guião para a cidadania responsável. No fundo, para merecermos o bem de viver em democracia e em paz, cabe-nos a todos e a cada um a responsabilidade de sermos cada dia melhores cidadãos.”  Luís Valente de Oliveira OS MEUS COMPATRIOTAS Gradiva, 216 pp. – Fim de transcrição.

Será que nos dias que correm, a escola pública cabo-verdiana, se reconhece em alguma alínea aqui transcrita?

Será que a nossa escola –na pessoa do professor - estará a cuidar do desenvolvimento do raciocínio cognitivo, lógico e dedutivo do aluno? Que é um dos fundamentos do ensino?

Será que ainda existe entre nós, no sistema de ensino, a inspecção pedagógica para os diferentes níveis do ensino, para se aquilatar do saber e do saber fazer do professor?

  Será que estamos a criar um fosso social ainda maior?... em quase tudo, semelhante ao que aconteceu no Haiti? Quando os socorristas  internacionais (europeus e falando francês)  não se entenderam  - linguisticamente - com os naturais, na entrega de géneros alimentícios e de medicamentos, aquando do último terramoto? E foi o caos. Porquê? A escola e outros meios de comunicação, do Haiti, por lei nacional, haviam sido desapossados de uma Língua global, o francês. Claro que os haitianos, a minoria com posses, colocou os filhos nas escolas privadas francesas. Em flagrante diferença, a significativa maioria pobre e socialmente desfavorecida, ficou apenas com o “Créolo” haitiano na escola pública.

Não sei se por esta altura, já terão emendado a situação.

 Será que é isso que queremos para este nosso Arquipélago pobre e em tudo dependente da ajuda internacional para o seu desenvolvimento?

Custa-me acreditar...

Para onde caminha o ensino em Cabo Verde?

Bem, creio que este meu escrito para “post” já vai longo e cabe-me pôr um ponto final, Se não, corro o risco (agora sim) de sequer, ele ser lido pelo leitor do «Blog».

sábado, 4 de dezembro de 2021

 

Um texto deveras interessante. Por um lado, pela forma como trata o tema da “Portugalidade.” Por outro, o título: “Eu amo a portugalidade,” tornada frase emblemática e inspiradora da matéria aqui tratada, foi proferida por Onésimo Silveira, então Embaixador de Cabo Verde em Portugal aquando do almoço de despedida de funções,  oferecido pelo autor do texto, Fernando d’Oliveira Neves, na altura, Secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

 

Eu amo a portugalidade

(publicado no jornal Público de 2/12/2021)

Fernando d’Oliveira Neves - Embaixador jubilado.

 

      É claro que o Império Português foi colonialista e racista. Mas todas as sociedades, por mais opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. É da tradição diplomática, ou melhor, era, que, quando um embaixador acreditado num posto terminava a sua missão, o ministro do país anfitrião lhe oferecia um almoço de despedida. Tal era possível quando, em cada capital, havia uma dúzia de embaixadores. Hoje, numa capital como Lisboa esse número ronda a centena. É impossível que todos os almoços sejam oferecidos pelo ministro. Na sua indisponibilidade, é substituído por um dos secretários de Estado ou pelo secretário-geral do ministério. 

      Era eu secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando me pediram para oferecer o almoço de despedida ao embaixador de Cabo Verde, Onésimo da Silveira. Nunca o tinha visto e confesso que só li o respectivo currículo pouco antes de me dirigir para a casa de jantar do Palácio das Necessidades. No fim do almoço, faço um brinde, com as banalidades usuais, apenas reforçadas pela forte singularidade das relações entre os dois países e o facto de saber que o meu convidado era poeta. Quando acabo, o embaixador Onésimo da Silveira levanta-se, com um pequeno caderno na mão e, antes de começar a ler, diz “Eu amo a portugalidade”. Fiquei encandeado perante a surpresa e a profunda sabedoria desta frase maravilhosa. Tive vontade de pintar a cara de preto, face à banalidade do que dissera. A conjugação do conceito de portugalidade com o verbo amar enfeitiçou-me e fiquei, encantado, a ouvir a magia do discurso que o embaixador continuou a ler, levando-nos pelos meandros mágicos da experiência dessa portugalidade, tão bem cognominada. 

      Este episódio ficou-me atravessado. Tentei, reconheço que sem a persistência necessária, obter o texto, sem nunca o conseguir. Agora, que tantos dislates se ouvem sobre a expansão portuguesa, esse valor que mais alto se alevantou e calou as musas, tenho-me lembrado dele. 

      É claro que o Império Português foi colonialista e racista e mais outras práticas condenáveis de todas as sociedades humanas. Dessa ignomínia não restam dúvidas. Apesar de tudo, parece avisado olhar para cada época em função dos valores então prevalecentes. Vivi o bastante para ver valores considerados vitais desaparecerem e, felizmente, ver surgir novos que nunca me tinham passado pela cabeça. Mas todas as sociedades, por mais opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. A expansão portuguesa foi muito mais que isso. Foi uma das epopeias que mais mudaram a História, dando aos homens uma nova e real dimensão do mundo em que viviam. 

      Até pelo limitado número de portugueses que a fizeram, provocou uma convivência sem precedentes de pessoas de todas as partes do mundo, que, no quotidiano, se misturaram, fizeram amizades, riram em conjunto, beberam e comeram ao pôr do sol dos cantos do mundo por onde andámos e onde muitos ficaram, trocaram experiências e constataram a relatividade das suas virtudes, crenças, medos e ambições.

      Não é fácil definir a portugalidade. Talvez o resultado positivo desse intercâmbio seja a criação e perpetuação de laços afectivos e familiares entre gentes das mais diversas partes do mundo. As amas índias da Casa Grande poderão ser exemplo. Ou talvez não passe de uma amarga saudade doce, de uma utopia que, por vezes e por instantes, se transforma em realidade. Talvez seja mais simples dar exemplos concretos.

      Portugalidade é estar na antecâmara do chefe do Governo de Malaca, a conversar com um chinês, e de repente este dizer: “Mas o Senhor é português? Eu também. Sou da freguesia de S. Pedro, em Singapura, e nos dias 13 de cada mês fazemos a procissão de Nossa Senhora de Fátima”.

      Portugalidade é chegar a Jacarta, ao fim de 25 anos de hostilidade em torno de Timor, ser levado a jantar no centro histórico da cidade pelo embaixador do Brasil, amante da presença portuguesa na Indonésia, e ouvi-lo dizer que o canhão que está no meio da praça é um canhão português, onde as noivas se vão fotografar no dia do casamento, porque é um símbolo da fertilidade. 

      Portugalidade é ser-nos dito, no Barém [Bahrein] e no Kuwait, que os únicos edifícios de pedra que ali existem anteriores ao século XX são os fortes portugueses que lá resistem.

      Portugalidade é ouvir Samora Machel a olhar para o Índico e dizer do seu orgulho, quando se lembra que Vasco da Gama ali passou e, logo a seguir, afirmar, num tom meio agastado: “Nós é que descobrimos o Brasil e agora têm um Presidente que se chama Geisel!”.

      Portugalidade é ouvir um goês a manifestar o orgulho num seu remoto antepassado agraciado com a Cruz de Cristo pela Rainha D. Maria II e outro a lembrar que o trisavô fora Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. 

      Portugalidade é ir jantar ao International Hotel do Barém, onde decorria a semana gastronómica do Texas, e chegar à mesa um empregado indiano, vestido à cowboy, que nos diz, em bom português, “boa noite” e tem na farda um dístico onde se lê o seu nome: Bragança.

      Portugalidade é verificar que os católicos de diversos países da Indochina falam um português arcaico a que chamam christian, que é para eles sinónimo de português, e por isso se dizem portugueses.

      Portugalidade é ir ao Portuguese Setllement de Malaca, encontrar uma mistura inédita de raças, malaios, chineses, indianos, e ouvi-los a cantar e dançar o Tia Anica de Loulé, em trajes minhotos, e a falar um português compreensível.

      Portugalidade é um liurai timorense desenterrar e entregar-nos uma bandeira portuguesa e dizer que o pai dele a tinha enterrado quando Timor foi invadido pela Indonésia, e lhe disse para a dar aos portugueses quando (não se) eles voltassem.

      Portugalidade é ir ao CCB assistir a uma sessão das comemorações dos 500 anos da Descoberta do Brasil e ouvir o embaixador brasileiro, Sinésio Sampaio Goes, ele também, como historiador, cultor da portugalidade, a apresentar o chefe da maior tribo de índios do Brasil, os índios tupis, se a memória não me falha. Vemos entrar um senhor com um aberto ar jovial, envergando um casaco de tweed e um maravilhoso cocado que lhe caía pelas costas até aos calcanhares, e ouvi-lo dizer, com ostensivo júbilo e orgulho: “O meu nome é António Cardoso e o meu avô era de Trás-os-Montes”.

      Acabou o Império colonial português e a opressão de uma nação sobre as outras. Fica na História um admirável património universal, físico e afectivo. Este último, símbolo notável de humanismo, será a portugalidade. Que Onésimo da Silveira me ensinou a amar.