Mulher cabo-verdiana, mulher
santantonense!
Enquanto eu crescia, numa infância e
adolescência passadas parcialmente nesta ilha, vi-a muitas vezes calcorreando
os caminhos escarpados e pedregosos de Santo Antão com cargas à cabeça, pés
descalços e um filho às costas, procurando sobreviver através dos parcos
escudos que lhe pagavam. A mulher era o principal “meio de transporte” de
cargas de uma localidade para outra e mesmo até aos portos, para escoamento da
produção agrícola. Isso quando em todo o Santo Antão as viaturas podiam ser
contadas nos dedos de uma só mão, e as estradas quase não existiam. Eram só
caminhos.
Via-a trabalhando como “criada”, sete
dias na semana, mais que de sol a sol, sem horário, sem dias de folga, sem direito
a férias, disponível aos patrões desde o raiar do dia até tarde de noite,
quando eles já não precisassem e se fossem deitar; e até durante a noite, se
surgisse algum incómodo ou necessidade: sempre submissa, sempre disponível,
sempre serviçal.
Vi-a, também, na faina agrícola, por
exemplo na apanha do café, depois batendo os grãos no pilão para lhes tirar a
casca, e em todas as outras etapas da limpeza do produto, que, acabado, era
ensacado e colocado à sua cabeça a caminho dos portos de exportação da ilha: contribuindo,
assim, para o desafogo dos senhores, enquanto ela continuava sempre no parco
nível da simples sobrevivência.
Vi-a dona de casa, sem capacitação,
sem competências senão as de fazedora do lar, criando os filhos de quem era
mais que marido, autêntico senhor; por vezes tendo de sujeitar-se a situações
degradantes por não ter modo de escape nem de sobreviver sozinha. Até porque o
abandono do lar era uma desonra, quaisquer que fossem as situações degradantes
de que ela fugia. A própria lei funcionava contra ela. Não era que até para
viajar precisava da autorização expressa do marido?
Não vi, mas sei que em tempos de carestia
ou fome, muitas delas tiveram de se vender e algumas até viram a sua virgindade
vendida pelos próprios progenitores aos senhores da ilha, a troco de umas
quartas de milho ou para pagamento de uma dívida, para salvarem a família da desnutrição
e da morte. Até não há muito tempo não se chamava violação ao acto de um homem
adulto se aproveitar de uma mulher ainda criança, violentando-lhe o corpo e a
alma.
Mas a tudo isto a mulher
santantonense (e posso dizer a mulher cabo-verdiana) sobreviveu, pelo menos a
maior parte. E continuou a alimentar os filhos com o seu suor, muitas vezes
sozinha, a ser a cola da família, a procurar pôr os meninos na escola, talvez
na esperança de lhes dar um futuro melhor que o seu presente, uma oportunidade
de evasão, talvez de ir para uma terra longe onde não houvesse gente gentio e
donde pudessem voltar com anel de ouro no dedo e, muito provavelmente, ajudar a
mamã-velha.
Sim, porque a sua única esperança
eram os filhos, por isso não se importava de os ter, mesmo que fosse de um pai
atrás do outro. Destino, dizia ela! E que esses pais sucessivos a deixassem
sozinha a criar os meninos, mercê dessa poligamia não oficial que grassou sempre
e ainda está presente na nossa terra, com contornos degradantes: filhos,
privados de modelos masculinos de valor, crescendo disfuncionais por terem na
alma a marca duma pseudo-orfandade, com um pai vivo algures mas incógnito ou simplesmente
desaparecido das suas vidas; e, no mínimo, a circular por aí, mas não
contribuindo para o seu sustento e educação.
É verdade que havia excepções.
Mulheres que mercê da sua condição social conseguiram escapar a estes padrões.
Mulheres privilegiadas, mas eram poucas.
* * * * *
Nalguns aspectos, já percorremos um
longo caminho. Muita coisa já mudou nestas décadas em que Cabo Verde tomou o
seu destino nas mãos. Mas sofremos ainda uma herança pesada determinada por
séculos de estratos culturais negativos que estigmatizaram a mulher e a
reduziram a quase escrava, por vezes quase a animalizaram, roubando-lhe a
dignidade e fazendo-a sempre subserviente, obrigando-a a pensar-se sempre em
função de mais alguém, especialmente do homem e das suas necessidades. Situação
muitas vezes reforçada por conceitos religiosos derivados de interpretações
erróneas das Escrituras Cristãs, conceitos baseados em pronunciamentos práticos
ligados à cultura da época em que foram escritos, mas que por certo na mente do
Eterno não se destinavam a ser universais e permanentes; de modo que nem na
igreja ela encontrou defensora, limitando-se essa a incitá-la à submissão, à
resignação, a baixar os braços e a aceitar ser minimizada, fazedora do lar e
fazedora de filhos.
* * * * *
Como reverter completamente os
padrões sedimentados na consciência colectiva da mulher por tantos séculos de
rebaixamento e de se pensar em relação ao outro, ao homem e aos filhos? Como
sacudir o espírito de coitada, especialmente da mulher rural e ajudá-la a
ganhar autonomia?
Hoje, em que já temos a lei a nosso
favor, em que a igualdade é um dado teoricamente adquirido, em que há o acesso
universal a oito anos de escolaridade, o que resta fazer para que a mulher
tenha autonomia e assim se possa alcançar uma redução significativa da pobreza?
Considerando, como dizia o meu marido, que todo o escudo ganho por uma mulher
vai para a família, enquanto não se pode dizer o mesmo de muitos homens, que os
gastam no botequim da esquina ainda antes de chegarem a casa.
Creio que precisamos trabalhar em
dois polos.
Primeiramente, precisamos trabalhar
mais afincadamente no sentido de uma mudança de mentalidade, e isto nos dois
géneros, mas incumbe-me falar da mulher. Precisamos começar na criança ainda
pequena, para que a menina se veja como igual; e, mais tarde, quando crescer,
não se veja como objecto, mas como sujeito: não precisando entrar em jogos de
sedução, em cuidar do exterior mais do que do interior, em procurar atrair, em contentar-se
com ser escolhida; mas a saber, ela própria, escolher, recusar o que não lhe
serve e determinar o seu destino. Destino não é o que nos acontece, é o que
escolhemos, consciente ou inconscientemente; é resultado das nossas escolhas e
acções. Precisamos ser pró-activas.
Devemos ensinar as nossas meninas a
valorizar-se através do conhecimento e da competência, a quererem o melhor para
as suas vidas e a aprenderem a não deixar que vontades alheias as distraiam e
desviem dos objectivos que propuserem para as suas vidas.
Claro que a maternidade estará
sempre no horizonte da quase totalidade do género feminino. Mas, contrapondo à
paternidade responsável, de que tanto se fala, e bem, precisamos enfatizar a
maternidade responsável, para que a mulher tome sobre si a responsabilidade de
não deixar que lhe façam um filho extemporânea ou precocemente. Precisamos dar-lhe
as ferramentas (e falo aqui de lhe elevar o nível de consciência) que lhe
permitirão desmontar os estratagemas que a coberto da palavra amor (pseudo-amor,
pois amor verdadeiro é querer o bem do outro) vão-lhe fazer ceder e desviar o
rumo da sua vida, perdendo o controlo de si mesma e do seu corpo, passando esse
controlo a mais alguém.
Antes de começarem a actividade
sexual (e bom seria que conseguíssemos reverter a tendência da cultura actual, a
fim de retardar esse começo, agora cada vez mais precoce), antes de começarem,
todas as meninas já deviam estar empoderadas no sentido de que lhes cabe a elas
regular a sua natalidade e não deixarem ao homem a responsabilidade de o fazer.
Esse é um empoderamento que deve ser feito desde muito cedo. A camisinha
continua a ser uma salvaguarda razoável contra as doenças sexualmente
transmitidas, e por isso a ênfase nesse programa deve continuar, mas depende da
vontade do homem e por isso não funciona se a mulher não for firme e exigir o
seu uso; e na questão da natalidade não é suficiente, pois passa a responsabilidade
toda para o homem, quando, em vez disso, essa responsabilidade, esse
empoderamento, deve residir na mulher, que deve saber defender-se e proteger-se,
pois é ela que, uma vez grávida, sofrerá todas as consequências.
Um trabalho mais aturado precisa ser
feito para diminuir ou evitar a gravidez precoce, e aplico este termo à falta
de idade ou de maturidade para se ser mãe, e a todas as situações quando ainda
não estão reunidas as condições para se criar um filho.
Porque, o que hoje ainda vemos é que
muitas jovens ficam com as asas cortadas por se deixarem enredar em promessas
vazias pelas quais acabam sozinhas, com um filho nos braços, cenário que pode
ser repetido uma, duas, três vezes, perpetuando um ciclo de pobreza, de
sofrimento e de disfuncionalidade familiar e social. E o aborto decididamente
não devia ser usado como simples meio de controlo da natalidade.
A maternidade responsável significa
a mulher escolher não ter filhos sem que estejam reunidas as condições para os
poder criar e preparar para a vida, com ou sem ajuda paterna, ainda mais quando
à partida o potencial pai do filho por vezes nem sequer tem com que se sustentar
a si mesmo, quanto mais para sustentar um filho! E, se tiver, a nossa justiça
ainda é fraca em o obrigar a contribuir.
Há um trabalho que deveria ser feito
com os pais e mães actualmente já a criar filhos, no sentido de os educar
nestes conceitos. Mas é difícil obter a sua audiência e atenção. Os meios de
comunicação poderiam ajudar um pouco mais, mas os programas de TV com maior
audiência são as novelas, que intoxicam e não ajudam.
A escola é o único lugar de acesso a
todas as meninas; e talvez se deva procurar um modo de conseguir um maior
acesso aos pais e mães através da própria escola dos filhos. Pesa, por isso,
sobre a escola a responsabilidade de desmontar todos os conceitos culturais
perniciosos, já que muitas famílias estão agarradas à cultura tradicional, sob
o efeito de todos esses estratos culturais adversos, não sendo capazes de remar
contra a maré. A mãe que criou os filhos sozinha e de maneira precária dá-se
por satisfeita em se tornar avó de netos que vão ser criados por ela e pela filha,
por vezes coabitando três e até quatro gerações num espaço exíguo, vivendo
ainda mais precariamente.
O outro requisito para se avançar
rumo à autonomia da mulher é a sua capacitação profissional. E, aqui, também, a
responsabilidade principal reside na escola. E o que vou dizer aplica-se tanto
a rapazes como a meninas.
Infelizmente, há algum tempo que
Cabo Verde tomou a decisão, quanto a mim errada, de apostar mais fortemente no
ensino científico-humanístico (realmente mais humanístico que científico), sem
o equilibrar com o ensino técnico-profissional.
Temos centenas e centenas de alunos
saindo anualmente dos liceus com uma formação espantosamente inferior à de
antigamente, em que com o 5º ano antigo se entrava para a administração
pública, para os bancos, para as Alfândegas, com ferramentas adequadas para se
ter sucesso: a matemática, o português, uma cultura geral básica razoável, sabendo
ler e escrever correctamente, o que hoje é difícil para muitos alunos que saem
com o 12º sem saberem redigir correctamente uma simples nota, o que parece estender-se
até a muitos licenciados.
E há as centenas de licenciados que
saem todos os anos das nossas múltiplas “universidades” sem possibilidade de
encontrarem trabalho no nosso reduzido mercado: ou porque escolheram cursos
humanísticos que já chegaram à saturação, ou porque só têm conhecimentos
teóricos e estão mal preparados, enquanto nos faltam bons técnicos e
profissionais de nível médio, que, bem capacitados e apetrechados, poderiam
ganhar a vida aqui ou em qualquer outro lugar do mundo: daqueles que
antigamente a Escola Comercial e Industrial do Mindelo e a Escola Salesiana
formavam com grande sucesso.
Em Cabo Verde sempre houve um certo
desprezo pelo trabalho manual mas precisamos perder esse desprezo e apostar na
formação média, ao mesmo tempo que devemos procurar diminuir o desnível
monstruoso que existe entre a remuneração do trabalho considerado intelectual e
o manual, para conseguirmos reduzir a pobreza.
Precisamos de nos consciencializar
que com os níveis do preço da electricidade e da água, e com escassez de matérias-primas
para a grande indústria, Cabo Verde nunca poderá ser industrializado a um nível
competitivo do produto final, senão à custa de baixíssimos salários que
perpetuarão o ciclo de pobreza. E esses salários na maior parte são de
mulheres. Melhor que nada, pois estão a contribuir para a sua sobrevivência e
pelo menos não estão completamente desempregadas, mas nada mais.
A ideia da grande industrialização
para exportação parece uma utopia! Será que vamos poder competir com a China,
que está a invadir o mundo inteiro com todo o tipo de produtos? Ou com colossos
como a Nigéria e outros países da nossa África, também apostados na industrialização?
O que poderemos fabricar em grande escala
para mandar para fora a um nível competitivo? Muito pouca coisa, se alguma.
Os outros também estão nesta corrida e têm tudo em maior escala! Sejamos
realistas, pois o nosso produto final será sempre mais caro, se tivermos
salários adequados; ainda mais se tivermos de importar matéria-prima para lhe
acrescentar valor e reexportar!
O nosso caminho é procurar
satisfazer as nossas necessidades circulando os nossos produtos entre as ilhas,
e para isso precisamos estradas no mar (dizem que é para breve, veremos!);
apostar na industrialização de produtos específicos e culturais, usando as
matérias-primas que temos e que consigam iludir a concorrência: os nossos
queijos, a nossa doçaria, o grogue, a secagem de frutas e legumes, as conservas
de pescado (das melhores do mundo), incluindo secagem e fumagem, etc., etc.
Mas uma aposta maior deve ser em
serviços, que não exigem água nem energia nem matérias-primas vindas de fora. E
por isso devemos procurar direccionar as meninas para a tecnologia e para as
ciências (a que elas ainda parecem um pouco refractárias), para poderem ter o
seu quinhão no desenvolvimento desse sector.
Contudo, a maior de todas as apostas
deve ser num turismo de qualidade que torne Cabo Verde um destino apetecível,
mas que beneficie a população e não só as grandes cadeias com um dinheiro que
fica lá fora. O turismo ecológico, para ilhas como Santo Antão, é uma escolha de
eleição. Mas precisa ter muita qualidade, já que a qualidade é o melhor marketing:
quem encontrou qualidade torna a vir e diz aos amigos para virem; quem não
encontrou qualidade não volta e diz aos outros para não virem.
Nisto as Câmaras e o Governo têm uma
grande responsabilidade, devendo ajudar a desenvolver e a regular a qualidade
de todos esses produtos, quer os industriais quer os turísticos, para que se
imponham por si mesmos. Contribuirá para a autonomia tanto das mulheres como
dos homens da nossa terra.
Precisamos duma aposta na excelência
de tudo que fazemos. Isto também interpela a escola. Não é baixando as
fasquias, como se vem fazendo, tanto a fasquia do aproveitamento escolar como
da disciplina pessoal e colectiva, que lá chegaremos. As sociedades mais
progressivas e os países emergentes da actualidade são aqueles que apostam no
rigor, na disciplina, na exigência, em suma, na excelência, enquanto parecemos por
vezes apostados no “deixar passar”, no “fechar os olhos”, no “não fazer ondas”,
traindo a nossa juventude e o seu futuro.
Sim, a autonomia e o bem-estar da
mulher dependem de vários aspectos que precisam ser trabalhados. Mas ajudará a
diminuir a pobreza no meio familiar e, por isso, contribuirá, também, para o
bem-estar do homem.
Que o futuro seja diferente e muito
mais auspicioso!
Obrigada!
Maria Odette Pinheiro
Porto Novo, 20 de Março de 2018
1º Fórum do Desenvolvimento Social do Município do Porto
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